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ética do príncipe e do cidadão Fernando Quintana Abordar o problema da fundação da ordem política, bem como o de uma ordem capaz de assegurar neste mundo o bem comum, logo de transcorrida a Idade Média, é falar do reino: Princibatibus e, da república: Discorsi de Niccolò Machiavelli. Uma situação de anormalidade, silentium ou solutus legibus - momento extraordinário - e, outra de normalidade, boas leis e instituições - momento ordinário -, ambas as situações, relativas à fundação da ordem e a boa ordem política, trazendo questões significativas tanto do ponto de vista ético do governante quanto dos governados. No primeiro caso, estamos diante de um argumento ex parte principis, de cima para baixo, uma visão descendente do poder, que gira em torno do problema da criação e manutenção do estado, no segundo, diante de um argumento ex parte populi, de baixo para cima, uma visão ascendente do poder, que gira em torno do problema do direito dos cidadãos. Em termos éticos: a virtude de um só, principado, e a virtude de muitos, república. Duas situações, duas éticas, que podem ser ilustradas no seguinte comentário: Nos períodos em que a ordem social é relativamente estável, todas as questões morais podem ser colocadas dentro do contexto das normas compartilhadas pela comunidade (república); nos períodos de instabilidade, pelo contrário, as normas mesmas são questionadas e submetidas à prova diante os critérios representados pelas necessidades humanas (principado) (MacIntyre: 1994: 129). As virtudes pagãs ou mundanas: coragem, honra, etc, assumindo um viés individual: “prefiro salvar minha pátria, diz o príncipe, que a minha alma” 1 ou, coletivo: “a 1 Frase atribuída por Maquiavel ao ganfalioneri (alto magistrado) da família Médici Cosme o Velho (1389 1

A ética do príncipe e do cidadão - Maquiavel

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ética do príncipe e do cidadão

Fernando Quintana

Abordar o problema da fundação da ordem política, bem como o de uma ordem capaz de assegurar neste mundo o bem comum, logo de transcorrida a Idade Média, é falar do reino: Princibatibus e, da república: Discorsi de Niccolò Machiavelli. Uma situação de anormalidade, silentium ou solutus legibus - momento extraordinário - e, outra de normalidade, boas leis e instituições - momento ordinário -, ambas as situações, relativas à fundação da ordem e a boa ordem política, trazendo questões significativas tanto do ponto de vista ético do governante quanto dos governados.

No primeiro caso, estamos diante de um argumento ex parte principis, de cima para baixo, uma visão descendente do poder, que gira em torno do problema da criação e manutenção do estado, no segundo, diante de um argumento ex parte populi, de baixo para cima, uma visão ascendente do poder, que gira em torno do problema do direito dos cidadãos. Em termos éticos: a virtude de um só, principado, e a virtude de muitos, república. Duas situações, duas éticas, que podem ser ilustradas no seguinte comentário:

Nos períodos em que a ordem social é relativamente estável, todas as questões morais podem ser colocadas dentro do contexto das normas compartilhadas pela comunidade (república); nos períodos de instabilidade, pelo contrário, as normas mesmas são questionadas e submetidas à prova diante os critérios representados pelas necessidades humanas (principado) (MacIntyre: 1994: 129).

As virtudes pagãs ou mundanas: coragem, honra, etc, assumindo um viés individual: “prefiro salvar minha pátria, diz o príncipe, que a minha alma”1 ou, coletivo: “a república deu mostras de grandeza porque (os cidadãos) amavam sua liberdade2. A presença dessa tipo de virtude, nos dois níveis mencionados, dando lugar ao seguinte comentário de Rousseau em relação à Maquiavel: querendo dar lições aos reis, acabou dando grandes lições aos povos (em feignant donner des leçons aux rois, Il en a donné de grandes aux peuples. Avaliação que encontra eco no secretário florentino quando afirma que as repúblicas são melhores que os principados ou reinos, pois o povo é mais sábio e mais constante do que um príncipe.

1 Frase atribuída por Maquiavel ao ganfalioneri (alto magistrado) da família Médici Cosme o Velho (1389- 1464) tido como o “pai da pátria” (Florença). 2 Ideia que percorre grande parte do Discurso ou comentário sobre a primeira década de Tito Lívio.

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Para entender a ética maquiaveliana convém fazer um comentário sobre a atmosfera intelectual da época: o humanismo renascentista. Uma tradição do pensamento que aparece como pano de fundo na reflexão política do quattrocento italiano. O humanismo implicou, dentre outras coisas, a afirmação do homem na cidade não mais voltado para o mundo do além: a cidade celeste (Idade Média). Acredita que os seres humanos têm mais qualidades do que aquelas atribuídas pela fé cristã que insiste no peso do pecado diante da graça divina. Essa mudança traz como consequência a centralidade da política diante do papel secundário que ocupava no medievo. Uma mudança que se estende, notadamente, ao comportamento dos homens: o triunfo da vida ativa, o compromisso com o mundo terrestre, frente à vida contemplativa, passiva, voltada para o mundo celeste.

Assim, importa trazer o seguinte comentário de Peter Burke, na introdução de A cultura do renascimento na Itália, uma das mais importantes obras sobre a época, quando afirma que o mérito do renascimento é ter enxergado a descoberta do mundo e do homem - o que implica uma profunda inflexão em relação ao período anterior:

O Renascimento é uma época de ruptura com o obscurantismo medieval que deve localizar-se por volta do quattrocento em Itália. Um período de renovação cultural: a recuperação e a aproximação aos clássicos, a aparição de um individualismo vitalista e pagão que faz um uso novo e original da razão, rompem com um passado de religiosidade a través de um forte processo de secularização e colocam os fundamentos do pensamento e a política modernos (Tejerina, 2002: 72).

De fato, uma das características do humanismo renascentista consiste em mostrar a importância da vida ativa diante da vida passiva - o que em termos políticos faz que o homem se volte para os negócios da cidade, para a conquista de bens temporais que requerem, por sua vez, a estabilidade da ordem política, bem como a possibilidade de se levar uma vida boa. Ademais, com a mudança do indivíduo-espectador para o indivíduo-ator, da cidade do além para cidade do aquém (não mais percebida como momento de transição: o cristianismo), as virtudes teológicas ou cristãs cedem diante das virtudes humanas/pagãs. As virtudes suaves, secundum divinum, infundidas por deus: fé, esperança, caridade, são substituídas por virtudes fortes, secundum rationem, criadas pelo homem: coragem, prudência, perseverança, honra - indispensáveis para enfrentar com êxito as contingências do mundo.

Do ponto de vista maquiaveliano: as virtudes seculares são úteis tanto para o príncipe realizar gran cose (conquista ou conservação do estado), quanto para o cive, que não deseja viver na cidade aguardando tempos melhores (o mundo do além), mas viver bem, em liberdade, sob uma forma boa de governo: a república. Em outros termos: as virtudes cristãs suaves (soft) desbancadas por virtudes políticas duras (hard). Tais virtudes dando lugar a dois tipos de homem: o homem qua cristão e o homem qua homem. No primeiro caso, o modelo é o “santo” ou crente que procura salvar sua

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alma, no segundo, o modelo é o príncipe e o cidadão, que, à diferença do primeiro, procuram salvar a pátria ou a liberdade e, isso, como veremos, com boni armi ou boni ordini (exércitos próprios ou leis e instituições boas).

Um dos traços importantes do humanismo renascentista é que valoriza a capacidade dos homens fundar e conservar cidades, bem como criar leis e instituições compatíveis com as virtudes e valores mundanos. Assim sendo, tal movimento volta-se para o passado, a experiência e pensamento da antiguidade clássica, contudo, vale esclarecer, não para copiá-lo mas imitá-lo. A fórmula para apropriar-se do passado pode ser resumida na frase do poeta renascentista Petrarca que diz: apraz-me a imitação (similitudo), mas não a cópia (identitas). Trata-se portanto de uma imitação não servil: uma imitação através da qual fica explícito o talento do imitador, a imitação como o aparecimento de uma identidade no presente, e não elogio nostálgico do acontecido (Bignotto, 2001: 67-68). Ou, ainda, como sustenta o autor em relação à importância do passado e, do papel dos homens na história:

Na Idade Média, a providência divina era o fator explicativo de quase todas as transformações ocorridas, que não podiam ser diretamente relacionadas a causas visíveis. O enaltecimento das faculdades criativas dos homens, feito pelos filósofos renascentistas, teve um reflexo direto na estrutura narrativa dos historiadores na medida em que alterou a percepção do papel dos atores nos acontecimentos históricos (Bignotto, 2006: 32).

Na análise da ética maquiaveliana nos deteremos em primeiro lugar em O príncipe na medida em que seu objetivo é realizar grandes coisas: conquistare e mantenere o stato e, também no Discurso na medida em que implica o comportamento virtuoso do cidadão a ser praticado na res publica para conservar e fortalecer a liberdade. Em ambos os casos, o humanismo mostra-se importante porque ensina a necessidade do compromisso político com a vida ativa e virtudes seculares para enfrentar com êxito os obstáculos que se apresentam na consecução de tais objetivos.

Falar de O príncipe é afirmar a ideia de começo, isto é, o de ter provocado uma forte inflexão depois de um longo período (Idade Média) marcado pelo predomínio da moral e ética cristã que molda por completo o mundo, e ignora ou deixa em segundo plano com raras exceções (Tomás de Aquino) qualquer outra ética ou moral que não seja a inspirada nas Escrituras. Em perspectiva maquiaveliana por entender que essa ética ou moral é um obstáculo ou empecilho para o príncipe realizar gran cose, ou seja, a ideia de que o governante, no momento extraordinário da fundação da ordem, tem que lançar mão de alguns expedientes, recursos ou meios, que, apesar de condenáveis do ponto de vista da moral cristã, são eficazes para o sucesso do resultado desejado3.

3 Aspecto destacado por vários autores que, em relação à ética de O príncipe, afirmam o seguinte: “A ética de Maquiavel é a primeira (...), em que as ações se julgam não como ações, mas somente em virtude das consequências” (MacIntyre: 1994: 128), etc,

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Assim, por exemplo, a famosa passagem em que aparece implícito o famigerado princípio de o fim justifica os meios:

Como não há tribunal onde reclamar das ações de todos os homens, e principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados. Cuide pois o príncipe de vencer e manter o estado: os meios serão sempre julgados honrosos e louvados por todos” (Maquiavel, 2001: 85).

Tal postura rompe com a crença de pensadores da Idade Média que concebem a moral e a ética cristã, que leva à salvação da alma (Agostinho), superior à política. Assim, o secretário florentino dá um passo decisivo na libertação ou autonomia da política com respeito à moral religiosa ainda dominante na época:

(Maquiavel) tem ainda um pie no mundo da Idade Média: ele é incapaz de representar-se uma moralidade que não tenha nenhuma relação com a religião. Mesmo liberando o Estado da tutela da Igreja, ele coloca a política fora da moral, e nega que uma lei moral qualquer consiga se impor diante da lutas dos Estado por poder [...] (Derathé, 1992: 40).

A posição assumida por Maquiavel faz que o substantivo maquiavelismo e o adjetivo maquiavélico fiquem atrelados à pecha de imoral ou, ainda como responsável da fase demoníaca do poder, o destruidor da moral, já na opinião de outros, que saem na sua defesa, a ação maquiavélica convém mal à Maquiavel, é maior que o autor, pior é um mau renome - o que o autor defende é a amoralidade dos príncipes (Ribeiro, 2006: 145).

A avaliação pejorativa, a demonização de Maquiavel, a devemos, em grande parte, a representantes do catolicismo como o cardeal português Jerônimo Osório quando relaciona o autor a uma atitude antiética/imoral: perfídia, dolo, má-fé (1559). Essa ideia é partilhada também por jesuítas da época que empregam os seguintes termos para falar do secretário florentino: “parceiro do diabo no crime”, “escritor sem honra e incrédulo” ou, como dizia o filósofo católico Jacques Maritain, em “L´Homme et l´État”, ao comentar a realpolitik do maquiavelismo: “a máxima segundo a qual a política deve ser indiferente ao bem e à moral é um erro fatal” e, acrescenta:

Existem dois modos opostos de compreender a promoção da vida política. O mais fácil - e que não conduz a nada de bom - é o modo hábil, esperto e violento. O mais difícil e exigente, mas de valor construtivo e progressista - é o modo moral, ético ou humanista. São duas concepções em choque, que devem ser nitidamente caracterizadas. O maquiavelismo nos propõe uma concepção puramente hábil, personalista ou técnica da política, que se torna, por definição uma política amoral (Montoro, 1997: 18-19).

Atitude seguida também pelos anglicanos da era elizabetana que criam a expressão Old Nick (Velho Diabo) ou, o cardial inglês Reginald Pole, que, indignado pelos “propósitos diabólicos” de O príncipe, acredita que foi escrito “pela mão de Satã”. Esta condenação sectária, de corifeus católicos e protestantes de outrora, não acaba por aí,

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mas continua presente quando destacados filósofos contemporâneos não moralistas mas racionalistas, como Bertrand Russel, se referem a essa obra como um “manual para gângster”.

Tais avaliações contrastam com outras menos sectárias que qualificam Maquiavel como “humanista angustiado” (Croce) - por combater sem êxito a política corrupta da Santa Sé sob a roupagem ideológica da fé; “grande appassionato” (Ridolfi) - por defender sua pátria; “pai da Staatsräson” (Razão de Estado) (Meineke) - por defender um interesse maior; “supremo realista” (Bacon) - por evitar fantasias utópicas; “humanista sério, responsável de uma verdadeira moral” - por defender que devemos assumir as consequências de nossos atos (Merlau-Ponty); “maior que Cristovão Colombo” (Strauss) - por pisar um continente que ninguém antes pisou: o continente da política, etc4.

Com base em autores do “espelho de príncipes” que indicam o comportamento a ser seguido pelos governantes5, importa insistir a profunda inflexão que se dá com o secretário florentino: “se examinarmos os tratados morais dos contemporâneos de Maquiavel encontraremos esses argumentos incansavelmente reiterados. Mas, quando nos voltamos para O príncipe, encontramos uma súbita e violenta subversão deste aspecto da moral humanista” (grifo do autor) (Skinner, 1981: 61). Efetivamente, se tomamos as principais qualidades do príncipe ou condottiere (líder) maquiaveliano tal mudança pode ser apreciada na conhecida figura animalesca de leão e raposa, atributos ou virtudes por excelência para o governante realizar gran cose:

Visto que um príncipe, se necessário, precisa saber usar a natureza animal, deve escolher a raposa e o leão, porque o leão não tem defesa contra os laços, nem a raposa contra os lobos. Precisa, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos (Maquiavel, 2001:84).

Ardil e força são meios ou expedientes que se tornam necessários para obter sucesso no resultado desejado (criação e manutenção do reino), formas de agir: a bamabalina (bamboozle: iludir) e o bambo (vara) que, em perspectiva maquiaveliana, representam uma junção inédita porque não está sujeita a uma avaliação moralista mas pragmática. Nesse sentido, o autor afasta-se da tradição cristã que julga tais recursos de forma maniqueísta. Assim, por exemplo, Agostinho quando em Cidade de Deus dá a entender, em relação aos diferentes modos de manter a paz que existem melhores e piores: os que se comportam como “ovelhas”, “pombas” ou como “feras cruéis: raposa e leão”.

4 Para um aprofundamento das diversas e contrastadas avaliações sobre o secretário florentino, Isaiah Berlin: “A originalidade de Maquiavel”, ed.cit. 5 Por exemplo, Erasmo de Roterdã: A formação do príncipe cristão (1515), etc. Para uma comparação entre ambos os autores (Maquiavel e Erasmo), Quintana, F. Ética e política: lembrança de um confronto, Escola da Magistratura Regional federal, n.1, vol.14, Rio de Janeiro, 2010, p.107-123.

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O contraste entre a ética defendida pelo bispo de Hipona e Maquiavel pode ser observado também no dualismo que aparece em Cidade: frui e uti: “dizemos gozar [frui], quando o objeto nos deleita por si mesmo, sem necessidade de referi-lo a outra coisa, e usar [uti], quando buscamos um objeto por outro” (Agostinho, 1990: 401) sendo que para o autor honestas e utilitas caminham juntas, o útil deve ser honesto e vice-versa, enquanto para o secretário florentino não necessariamente andam juntas mais ainda dificilmente aquilo que é útil é honesto.

Força e astúcia tornam-se para Maquiavel meios que, em in extremis casu, permitem evitar o pior dos males: a morte do reino. A estabilidade interna, ingroups, e segurança externa, outgroups, é a preocupação central do príncipe, que jamais deve abrir mão da máxima que o norteia: salus populi suprema lex, salus rei publicae suprema lex. Um príncipe, escreve o secretário florentino, tem dois grandes temores, um de dentro, que diz respeito a seus sujeitos, outro de fora, que diz respeito às potências vizinhas. E acrescenta que o príncipe deve defender-se com boni armi (não mercenárias), única maneira, para que tudo seja estável tanto interna quanto externamente. Tal máxima, que inspira a conduta do condottiere, pode ser interpretada no sentido de que não apenas os homens, mas também os estados têm medo de morrer.

Importa esclarecer que o entendimento de Maquiavel em relação à atuação do príncipe obedece à situação particular em que se encontra Florença, bem como toda a península itálica, na época, dividida, esfacelada, num mosaico de pequenas cidades: república de Veneza, ducado de Milão, Estados papais, república de Florença, reino de Nápoles, agravada, ainda mais pelas investidas de potências estrangeiras (França e Espana) que ameaçam seu território. A esse respeito, vale recordar a dedicatória de O príncipe: “Nicolaus Maclavellus ad Magnificum Laurentium Medice” - que irá salvar Florença, e também o último capítulo em que faz um apelo apreensivo no sentido de toda a península ter um novo líder.

Para tanto, o príncipe precisa recorrer a meios que, apesar de reprovados moralmente, são eficazes para atingir o resultado. Em relação a um dos expedientes mencionados, o uso da força, importa fazer o seguinte esclarecimento. Mais especificamente, remeter-nós àquela importante frase do secretário florentino sobre a crueldade bem ou mal empregada (capítulo VIII). Trata-se de uma avaliação neutra/objetiva na medida em que uso da força está ligado ao êxito ou fracasso do objetivo desejado. Tal avaliação, bom/mau, não é portanto subjetiva/valorativa, mas objetiva porque foge do binômio “moral-imoral” (cristão) para incluir um tipo de juízo amoral que supõe, vale sublinhar, a suspensão provisória desse binômio em relação aos meios empregados pelo príncipe que passam a ser avaliados em função da eficácia com a finalidade a ser atingida.

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Assim sendo, a “crueldade bem empregada”, decerto um uso legítimo ou justificado da mesma, obedece ao fato do condottiere salvar e conservar o principado. Tal avaliação positiva, dada pela eficácia dos meios, o uso da força, aparece, por exemplo, no elogio de Maquiavel a César Borgia pelo fato de quase ter conseguido unificar Itália servindo-se desse recurso (capítulo VII). Contudo, importa esclarecer que o emprego da força não implica o abuso da mesma: a força crua e nua que simplesmente destrói ou que serve a um só (a tirania).

Assim, estaríamos diante do uso parcimonioso da força, uma economia da violência que, in extremi casu, é necessária, em contraste com a “crueldade mal empregada”, ou seja, a violência desmedida que não consegue atingir objetivo algum, que não diminui mas recrudesce no tempo. Prova disso, quando em Discorsi sustenta que só devem ser reprovadas as ações cuja violência tem por objetivo destruir e, também e O príncipe: as crueldades mal empregadas são aquelas que crescem em vez de se extinguir, etc.

Tal distinção leva Maquiavel a condenar, por exemplo, Liverotto pelo uso interrompido que fez da violência sem atingir resultado (salvar Fermo), em contraste do elogio de Agátocles que usou a violência “só uma vez” e atingiu o objetivo (salvar Siracusa) (capítulo VIII). Daí também a conhecida distinção maquiaveliana “novos principados” e “principados despóticos”, isto é, a justificação da força no momento - extraordinário - da criação do reino e o uso abusivo da mesma que serve apenas para o poder irrestrito de um só. Tese que é confirmada, o emprego não desmedido da violência, quando o secretário florentino declara que “os que fizerem simplesmente a parte do leão não serão bem sucedidos” (Maquiavel, 2001: 84).

Assim, haveria dois tipos de príncipes: àqueles dignos de louvor que conseguem fundar reinos, se for o caso através do uso parcimonioso da força, e àqueles inglórios que não conseguem resultados e usam a força para benefício próprio. Segundo os Discorci (I, X) trata-se do contraste entre bons e maus imperadores: os primeiros dão segurança e paz aos súditos, os segundos não vão além da ambição e crueldades inumeráveis sem resultado algum. Idéia também defendida pelo bispo de Hipona quando elogia, por um lado, os imperatur christianissimus e, por outro lado condena os imperadores ímpios que usam a força em benefício próprio, por orgulho ou concupiscência. Distinção que se estende, em terminologia agostiniana, à “paz dos justos” (guerra justa) e “paz dos pecadores” (guerra injusta), ou seja, ao bom e o mau uso da violência.

Com respeito ao segundo expediente maquiaveliano, astúcia, fraude/engano, etc, ele remete, dentre outras coisas, a um tema clássico da teoria política: os arcana imperii (segredos guardados nas arcas do império), ou seja, ao “fenômeno do poder oculto” - não fazer aparecer aquilo que é: a dissimulação; e, também ao “fenômeno do poder que oculta” - fazer aparecer aquilo que não é: a simulação, isto é, a mentira impiedosa

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(impia fraus) à diferença da mentira piedosa (pia fraus: Kant). O maquiavelismo maudit que norteia tais atitudes (simulação e dissimulação) para o condottiere realizar grandes coisas encontra eco, até hoje, em comentários moralistas do tipo: “a veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos” (Arendt, 1973:15).

Ambas, dissimulação e simulação, em perspectiva maquiaveliana, devem ser avaliadas objetivamente, ou seja, em relação ao êxito ou fracasso do resultado, neste sentido contrasta com o ponto de vista agostiniano que, coerente com o moralismo extremado que defende, entende que é preferível calar/dissimular (ocultar a verdade) do que mentir/simular (tergiversar a verdade): ocultar a verdade, afirma o bispo de Hipona em Contra a mentira, não é o mesmo que proferir uma mentira, todo mentiroso escreve para ocultar a verdade, mas não sempre quem oculta a verdade é um mentiroso, pois as vezes ocultamos a verdade não só mentindo mas guardando silêncio. E arremata: é permissível para aquele que se envolve em questões religiosas ocultar num momento oportuno algo que pode ser aconselhável ocultar (Fortin, 1992: 180).

Força e astúcia podem também ser relacionadas à problemática que gira em torno da conhecida fórmula do jurista italiano Giovanni Botero: della ragione di stato (1589), que significa que o governante ao seguir seu objetivo não está obrigado a levar em conta os preceitos da moral dominante - cristã - como está obrigado o homem comum. Tal entendimento é retomado quase na íntegra por Maquiavel quando afirma que um príncipe não pode observar todas as coisas à semelhança dos homens bons, sendo forçado, para conservar a ordem, agir contra a caridade, a fé, a humanidade, a religião (capítulo XVIII). Premissa esta que é destacada por um importante estudioso da “razão de Estado”- quando afirma em relação a ética cristã e maquiaveliana:

[...] a autoridade da igreja no só se apoiava na autoridade e no dogma, mas também na sua doutrina ética e axiológica, que cobria toda a vida e unia harmonicamente o mandato divino com o Direito natural, era absolutamente inevitável o conflito entre esta ética cristiano-jusnaturalista e o naturalismo radical da axiologia e ética maquiavélicas. Os ânimos, por isso, se sentiam presos entre as exigências da política prática [...] e as doutrinas do púlpito e do confessionário, que condenava a mentira, o engano e a deslealdade (Meinecke, 1983: 121-122).

A expressão razão de Estado diz respeito então ao conhecimento racional dos meios necessários, eficazes, através dos quais os estados se criam, resistem e fortalecem. Em tal contexto, os atributos do príncipe (força, astúcia) podem ser “vícios úteis” que trazem benefício. Assim por exemplo quando o secretario florentino declara:

Quando é necessário deliberar sobre uma decisão da qual depende a salvação do Estado, não se deve deixar de agir por considerações de justiça. Deve-se seguir o caminho que leva à salvação do Estado e à manutenção da sua liberdade (independência) rejeitando-se tudo mais (Maquiavel, 1994: 419).

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Depreende-se disso que a intenção do autor é substituir, quando o que estão em jogo é a salvação do reino, a moral à “moda cristã” ainda forte na época por uma avaliação neutra/objetiva própria ao comportamento ou conduta que a circunstância exige. Em outros termos: uma mudança dos valores da moral cristã, julgados legítimos na vida privada, por àqueles próprios da prática política, que exige um exame racional dos meios empregados, bem como das virtudes ou qualidades do príncipe. A esse respeito comentam estudiosos: “o cristão afirmava: pouco importa que a ação do príncipe traz beneficio imediato a seus sujeitos, ela é condenável si sua intenção é perversa, (enquanto Maquiavel) sustenta: pouco importa a virtude do príncipe si seu efeito é perder o Estado” (Lefort, 1986: 403).

Segundo a visão antropológica do secretário florentino: os homens são maus, ingratos, falsos, não cumprem a palavra dada, são dissimuladores e simuladores inimigos do perigo é ávidos de ganho, etc. podemos inferir que “a ímpia natureza humana impõe uma moralidade pública que não se identifica e pode colidir com as virtudes dos homens que professam acreditar nos preceitos cristãos e tentam agir segundo essas normas” (Berlin, 2002: 329). Em outras palavras: diante das imperfeições da natureza humana alguém tem que assumir tal situação, o governante, mesmo ao preço de abrir mão de princípios morais.

Assim, as virtudes maquiavelianas encontram na antípoda daquelas defendidas pelo cristianismo. Máximas associadas a Maquiavel do tipo: “prefiro salvar minha pátria que minha alma”, “não se governa com pater noster”, servem para mostrar a decalagem ou ruptura que se dá como o autor de O príncipe em relação às virtudes defendidas outrora pelos “pais da igreja” que convidam não a adotar uma atitude passiva frente ao mundo, mas também que é necessário o respeito rigoroso dos dogmas cristãos mesmo que leve ao fracasso ou impotência política. Prova disso, as palavras dirigidas por Maquiavel ao frade dominicano Girolamo Savanorala, que fracassa redondamente no seu intento de governar com pater noster Florença: “Oh Profeta desarmado! Quanto equivocado estais. O homem de estado na sua relação com outros estados não pode ser governado pelas mesmas regras que regem as relações entre particulares, se assim o fizer é muito provável que não consigas realizar grandes coisas”6.

Quanto à honra/glória ou fama, outra virtude maquiaveliana, cabe dizer que ela supõe um bônus e um ônus, ou seja, o fato de ser reconhecido, sobressair sobre os demais, está em relação direta com o príncipe manter ou salvar o reino. Mais especificamente, uma “dupla glória”, que, como se lê em O príncipe, consiste não só em criar um novo principado, mas também fortalecê-lo por meio de boas armas e boas leis, contudo, os

6 O gonfaloniere Savanarola, “pai espiritual e político de Florença”, governou essa cidade (1494-98) “apenas com palavras” denunciando a tirania dos Médicis (1389-1494), a corrupção do papado e a necessidade de “purificar” Florença. Excomungado pelo Papa Alexandre VI por heresia foi preso, enforcado e queimado na Piazza della Seignoria.

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boni armi são mais relevantes que os boni ordini porque “não pode haver boas leis onde não há boas armas”, ou seja, o príncipe deve contar com milícias próprias, leais, não com mercenários infiéis, se o objeto é estabelecer as bases de uma boa ordem política. Assim, a honra do príncipe nada mais é que a virtude recompensada ou, em outros termos: se o príncipe deseja alcançar resultados (criar o estado e fortalecê-lo com boas armas) deve conduzir-se o mais virtuosamente possível. A honra é tão relevante para Maquiavel ao ponto do príncipe que funda um principado não por isso merece glória, não por isso age virtuosamente. É o caso (mais uma vez) de Agátocles que, apesar de ter usado “bem a crueldade” (salvar Siracusa), não foi “celebrado entre os homens excelentes” porque não contou com exército próprio nem conseguiu instaurar boas leis e instituições.

A honra, virtude demasiadamente humana, é justamente a que Maquiavel admira e quer resgatar pelo efeito salutar que traz. Para isso mostra a importância da história com exemplos de “líderes admiráveis” que, para usar uma expressão weberiana, teriam “colocado os dedos nos raios da história” (deixado sua marca). Assim, por exemplo, Rômulo que, segundo ele: “[...] nenhum espírito esclarecido reprovará que se tenha valido de uma ação extraordinária (morte de Remo) para instituir um reino” (Maquiavel, 1994: 48). Elogio que se estende a outras figuras “incomparáveis da história” que teriam conseguido pelas ações ou reflexões não apenas salvar povos, mas também dotá-los de boas instituições. A este respeito, convém transcrever o chamado “sonho de Maquiavel”:

[Que] disse ter visto um grupo de homens malvestidos, de aparência miserável e sofredora. Ao indagar quem eram, recebeu a seguinte resposta: ‘Somos os santos e os bem-aventurados, vamos para o Paraíso’. Em seguida, avistou uma multidão de homens de nobre e grave aspecto, vestidos com roupas majestosas, que discutiam solenemente sobre importantes problemas políticos. Reconheceu os grandes filósofos e historiadores da Antiguidade que haviam escrito obras fundamentais sobre política e sobre os Estados. [E] perguntou também a eles quem eram e para onde se dirigiam: ‘Somos os condenados ao Inferno’, responderam. [E] termina [dizendo] que antes preferia ir para o inferno discutir sobre política com os grandes homens da Antiguidade do que mandado ao paraíso, para morrer de tédio na companhia dos beatos e santos (Virolli, 2002: 17).

Em relação à prudência, isto é, reconhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos pior ela pode ser interpretada, seguindo o ponto de vista pragmático do autor, que a atividade política se funda em juízos descritivos, a posteriori, relativos (revisáveis ou mutáveis), condicionais ou hipotéticos (se quero x devo fazer y). Trata-se de juízos que, à diferença dos juízos ou avaliações morais7, devem estar presentes não só na avaliação do governante, mas também no momento deste fazer escolhas que, em função das circunstâncias deve - prudentemente -, decidir pela “menos prejudicial”.

7 Ou seja, de juízos prescritivos, a priori, absolutos, incondicionais (devo fazer x).

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Escolher o “menos pior” implica dizer que o governante que age de forma prudente deve ter um conhecimento o mais apurado possível das vantagens ou desvantagens que sua decisão traz como resultado. Neste sentido, tal virtude, a prudência, se afasta do entendimento dado pelo pensamento da antiguidade clássica (Aristóteles) quanto pelo pensamento da idade média (Agostinho). No primeiro caso, ela diz respeito a uma mistura do bom sentimento e a escolha dos meios racionais para torná-lo efetivo; no segundo, ela se relaciona com o amor a deus que permite discernir quais ações são favoráveis ou contrárias para se chegar a Ele.

Em Maquiavel, pelo contrário, a prudência consiste em enfrentar racional e pragmaticamente (inspirados naqueles juízos), os obstáculos e/ou inconvenientes que possam trazer menos prejuízos - mais ainda se o que está em jogo é a salvação do reino. Assim sendo, a prudência maquiavelina, centrada na figura do príncipe, toma distância do “bom sentimento”, assim como da “caritás ou amor” divino. Mas também da ética estoica segundo a qual: uma coisa pode ser moralmente certa sem ser conveniente, e conveniente sem ser certa, contudo a conveniência nunca pode entrar em conflito com a retidão moral porque só podemos achar as coisas úteis na honestidade. O elogio às virtudes mundanas do príncipe fica evidente quando Maquiavel compara o elemento “subjetivo”, as qualidades ou capacidades do príncipe, com a fortuna, a sorte ou acaso - as circunstâncias “objetivas” em que atua. Neste ponto distanciando-se mais uma vez de autores do “espelho de príncipes” (Erasmo de Roterdã) pelo fato de não admitir que o governante ceda às circunstâncias, mas, pelo contrário, quanto mais adversas com mais dureza/firmeza deve enfrentá-las. A este respeito, importa lembrar a famosa metáfora de Maquiavel que diz: a fortuna é mulher e por isso gosta de jovens para batê-la (capítulo XXV) - o que implica que o governante deve agir de tal maneira que não seja dominado pela fortuna.

A relação virtude-fortuna significa também que o príncipe fica submetido a uma ética específica conhecida depois de Max Weber como ética da responsabilidade que, em contraste ao defendido pelo cristianismo, a ética da resignação, impele o condottiere a fazer aquilo que não pode deixar de fazer, a não transferir para outro àquilo que deve decidir - com o bônus e ônus que supõe. Trata-se, portanto, de uma ética sacrifical ou heróica que aparece de forma mais dramática diante dos “maus ventos da fortuna”.

Para concluir com a ética maquiaveliana de O príncipe, que se encontra submetido a “ditames da necessidade”: conquistare e mantere o stato, podemos dizer que se torna imperioso lançar mão de certas virtudes (coragem, honra, prudência) e meios capazes de atingir com êxito tal resultado ou, em sentido mais amplo, capazes de desvendar a vulnerabilidade dos valores morais e lidar eficazmente com a impiedosa realidade.

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Do exposto, acreditamos que o legado de O príncipe não pode ficar reduzido a uma visão maniqueísta: virtudes seculares boas versus virtudes cristãs ruins, mas o que merece destacado é o fato de que comungar com outra coisa que não seja o divino ou sagrado, comungar com a salvação ou manutenção de estado, significa abraçar outro tipo de ética destinada a ter melhor sorte neste mundo:

[...] na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um bom cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido - nem protegido - por esse quadro. É a insegurança que lhe dá a liberdade (para criar a sua própria ética: a dos resultados) (Ribeiro, 2006: 149).

Com base na assertiva de que a obra de Maquiavel também “valoriza a ética na polis”, convém abordar a continuação àquela ética que, à diferença daquela do herói-fundador, o príncipe, diz respeito ao comportamento, qualidades ou atributos do “herói-cidadão”, o cive, que participa de uma forma boa de governo: a república.

A abordagem deste aspecto faz que a reflexão maquiaveliana não se limite ao estado potentia mas que se interesse por outros elementos que dizem respeito ao “processo de qualificação do estado moderno”. Um processo, que não é lineal nem acumulativo, mas que muda de acordo às circunstâncias: o estado como força física, mas também como poder legal, potestas, e poder legítimo, auctoritas: Em linguagem maquiaveliana: como a ordem política pode ser dotada de boas leis e instituições (boni ordini).

Para abordar a “segunda ética” maquiaveliana, plural ou coletiva, do cive na república, convém deter-nós nos Discorsi: outra prova de como o humanismo renascentista volta sua atenção ao pensamento e experiência do passado - a república romana (V a I a.C). Ou seja, como esta forma de governo consegue desenvolver bens associados à vida boa, em comunidade, que podem ser “imitados” no tempo presente (Petrarca).

O exemplo que suscita a admiração é Roma: “é maravilhoso como cresceu a grandeza de Atenas durante os anos que se seguiram à tirania (...) mais maravilhoso ainda é a grandeza alcançada pela república romana depois que foi libertada de seus reis” (Maquiavel, 1994: 197). Em relação a esta volta importa insistir que ela não deve ser tida como um exercício nostálgico, res gesta, tentativa arqueológica de exumação da antiguidade política, mas como res gerenda: um programa de governo para o futuro (Moreira, 2005: 20-21). Ou, ainda, para os humanistas renascentistas o passado era uma poderosa arma contra forças desagregadoras do presente em decadência (igreja católica e império) e não uma simples miragem, que não resistia a mais simples análise histórica (Bignotto, 2006: 25).

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Para essa tradição do pensamento o retorno ao passado obedece ao “papel ético” e “função pedagógica” que a história tinha (no presente), mais especificamente ao fato de que as repúblicas antigas, em particular Roma, eram exemplos, os mais acabados, que teriam conseguido conciliar liberdade-individual e liberdade-participação política, bem como dado mostras de virtude, simplicidade, patriotismo, integridade e amor pela justiça. Neste sentido, haveria que mostrar alguns aspectos da república romana a partir dos escritos de um de seus principais artífices e defensores: Marco Túlio Cícero, e isso sobretudo pelo princípio metodológico por ele adotado - a imitação - que era o modelo seguido pelos renascentistas que “procuravam por em prática as regras que podiam ser aprendidas” pelos historiadores antigos (BIgnotto, 2006: 30).

Na sua principal obra política, De republica (50-51 a.C), o termo res publica, no sentido amplo da palavra, aparece como sinônimo de Estado: a república, escreve Cícero, é a coisa do povo e por povo é necessário entender não qualquer agrupamento de homens reunidos como um simples rebanho, mas um grupo de homens associados uns aos outros através de uma mesma lei (iuris consensu) e comunhão de interesses (utilitatis communione) (Cícero, s/d: 40) já em sentido restrito o termo designa uma forma específica de governo, uma forma mista, a república romana que durou mais de quatrocentos anos.

A preferência de Cícero por esse regime prende-se, como acontece com outros autores da antiguidade, ao fato de ter resistido à prova do tempo: a estabilidade (firmitudinem). Assim, em De republica, afirma que das três formas de governo: a monarquia é certamente preferível, mas será ainda mais aquela forma composta equilibradamente pelas três melhores. Na verdade, acrescenta, é bom que exista no governo alguma coisa de real, que outros poderes sejam atribuídos aos melhores (ottimati), e que certas questões fiquem reservadas ao povo. Dessa assertiva se depreende, implicitamente, que o inconveniente das formas boas, simples ou puras de governo (monarquia, aristocracia e governo popular), é que elas não duram no tempo e que cada uma degenera rapidamente no oposto. Para Cícero, o problema dessas formas é que delas resultam defeitos opostos de “modo que o rei se converte em tirano, os melhores em facção, e o povo em turba” - o mesmo contudo não acontece no governo composto ou misto: a república.

Assim, a constituição romana teria conseguido retardar o ritmo circular da anaciclose polibiana (formas retas seguidas de formas más de governo). Trata-se portanto de uma - quarta - forma que não coincide com as três formas simples porque é composta, nem com as três formas corrompidas porque é reta. Além do mais foi um regime, na opinião do jurisconsulto romano, em que nenhuma das partes (rei, aristocrata e povo) foi suficientemente forte - o que possibilitou evitar os “germes funestos” que isso acarreta: a corrupção.

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Em relação ao governo misto ou, como dizia o historiador grego Políbio: os próprios romanos julgam impossível afirmar com certeza se o sistema é monarquia, aristocracia ou democracia já que ao examinar os poderes dos cônsules era uma monarquia, os poderes do senado, uma aristocracia, os direitos do povo, uma democracia, ele tinha a vantagem de combinar uma série de instituições que faz dele, no entendimento de Maquiavel, um regime “admirável”.

O poder na república era dividido entre dois magistrados (hereditários depois eleitos) a quem não era permitido exercê-los por mais de um ano: a presença dos cônsules, um vigiando o outro, era a expressão mesma do princípio da república segundo o qual um único homem não pode ser governante supremo. Além do mais, seguindo o princípio: auctoritas in senato potestas in populo, o poder era exercido também por cidadãos eminentes, senado ou conselho de anciãos, órgão máximo de deliberação, cuja presença permitia evitar os impulsos desmedidos da plebe, tal instituição, na opinião de Cícero, a mais importante já que “qualquer alteração nos cidadãos eminentes vai seguida de alterações no povo” e, finalmente, o poder foi colocado no interesse do povo, os tribunos da plebe, que tinham poder de veto das leis que os desagradavam, bem como o direito de convocar assembleias para elaborar suas próprias leis (Holland, 2006: 26; 50).

Trata-se de um governo equilibrado/moderado, temperatum, na medida em que os cidadãos romanos, patrícios e plebeus, conseguem moderar seus interesses em pró do bem comum através da participação em tais instituições. Do ponto de vista social, a república romana se assenta em grupos sociais conflitantes, aristocratas e povo, porém cada um através de boni ordini consegue manifestar seus interesses e também controlar o poder do outro. A esse respeito, vale citar a famosa metáfora que aparece em Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência, quando o autor elogia a forma mista de governo com base na constituição romana:

O que se chama união em um corpo político é uma coisa muito dúbia: a verdadeira é uma união de harmonia, que faz com que todas as partes, por mais opostas que nos pareçam, concorram para o bem geral da sociedade, tal como as dissonâncias na música concorrem para a harmonia global. Pode haver união em um estado em que se acredite ver somente distúrbios, isto é, uma harmonia da qual resulta a felicidade, que é a única paz verdadeira. É como acontece com as partes deste Universo, eternamente ligadas pela ação de umas e pela reação de outras, etc. (Montesquieu, 2002:74).

Assim, combinando determinadas instituições (cônsules, senado, tribunos da plebe, etc), esse regime consegue a um só tempo refletir a pluralidade: os interesses de aristocratas e plebeus, mas também a unidade: o bem comum. A resolução dos conflitos entre ambos os grupos requerendo, por sua vez, um comportamento virtuoso de todos os cidadãos (cives virtus), ou seja, vale insistir, um comportamento moderado

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que supõe o controle dos apetites e/ou interesses mais imediatos em prol do interesse de todos. Em outras palavras: os aristocratas não reclamar tanta riqueza, a plebe não extrapolar em demasia sua exigência por mais liberdade - ao ponto de converter-se em licença total, viver cada um como quer.

Quanto à propriedade, a república ciceroniana visa estabelecer regras que tornem possível a livre disposição das pessoas, aí incluindo posses subjetivas e objetivas, isto é, àquelas relativas ao corpo, à livre escolha de cada um e os bens móveis e imóveis, voluntariamente utilizados (Rosenfield, 2008: 44). Trata-se de uma forma de governo de muitos proprietários que torna possível a não dependência à vontade daquele que tudo pode: o tirano ou oligarca. Quanto à liberdade, como vimos, ela tem um duplo significado, uma vez que inclui além da ideia de autogoverno, a participação nos negócios ou assuntos públicos, o autointeresse, ou seja, a independência e segurança individual. Assim, por exemplo, como se lê na introdução Dos deveres:

(...) para aqueles que patrocinam a virtude (no sentido de participação política), essa busca não se opõe ao autointeresse propriamente entendido nem está dele separada, pois, ao ocupar-se da finalidade natural, o homem realiza sua natureza e alcança a ventura (Cícero, 1999: xxiv).

Das entrelinhas dessa passagem resulta que a liberdade pública e privada, positiva e negativa, são compatíveis com a utilitatis communione. A tese da indivisibilidade de ambos os tipos de liberdades, com base na constituição romana, constituindo um dos traços mais importantes do republicanismo tal como defendido por Maquiavel.

Em relação à liberdade como autointeresse ela significa que o cidadão romano luta por proteção, por uma garantia pública e institucionalizada do obter segurança (Pitkin apud Pettit, 2003:15). Mas, ser livre significa também desposar quem quiser, criar os filhos sem temer por sua honra nem por seu próprio bem-estar; ser livre era estar em condições de possuir livremente a sua propriedade (Skinner apud Pettit, 2003: 57). Quanto à liberdade como autogoverno ela significa que um povo livre é um povo que não tem um senhor ou, como afirma Cícero: que pode votar em qualquer pessoa para ocupar qualquer cargo (Holland, 2006: 49).

A república romana supõe cidadãos virtuosos, comportamentos orientados na procura do interesse geral, sendo assim a chamada “virtude cívica” supõe o exercício de outras virtudes tais como a justiça. Esta última, segundo Cícero, “senhora e rainha de todas as demais” confunde-se com a própria ideia de bem comum, uma vez que para o orador romano “não existe algo de mais estranho à justiça, a uma sociedade visando ao bem comum, que o homem que rapina o homem em benefício próprio”. Quanto à coragem, vale dizer que ela consiste no desprezo aos desejos imediatos sendo assimilada, por sua vez, à perseverança na realização do interesse comum. Quanto à honra importa destacar que ela é importante não apenas em tempo de guerra mas também, como assinala Cícero, durante o normal funcionamento da república: “se quisermos julgar

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com propriedade muitas foram as empresas civis, mais grandiosas e gloriosas que as militares, os que governam a república experimentam as maiores façanhas”. Aspecto este, como veremos, também elogiado por Maquiavel.

No que tange à sabedoria, ela é associada aos aristocratas - os membros do conselho de anciãos ou senado -, isto é, os mais senis ou sábios (ottimati) que, por seu preparo/ experiência, diz Cícero, são os mais capazes de antever as coisas futuras no momento crítico e resolver os problemas tomando a decisão correta. Daí, então, que o senado seja tido como a instituição mais importante da república. Finalmente, o decoro que não é outra coisa senão a escolha de uma forma de vida apropriada aos talentos individuais, bem como à posição social que cada um tem na cidade.

A descrição desse modelo político, bem como das virtudes ciceronianas é relevante porque foi retomado quase na íntegra por Maquiavel, sem desconsiderar outros autores da época como Francisco Guiccardini, etc, contudo, é o secretário florentino que merece destaque se levamos em conta o comentário do filósofo Espinosa: Maquiavel foi o “campeão da liberdade” e, isso, importa frisar, com base na defesa da república.

No elogio da república romana Maquiavel vai questionar a “ideologia da pobreza do cristianismo”, uma vez que a riqueza é um componente indissociável da vida boa visto que contribui para a consecução do bem maior que é a liberdade. Sem esquecer, a importância que dá a educação com seu forte potencial libertador na formação de cidadãos virtuosos, bem como o fato da necessidade da república contar com exército próprio para defender e expandir a liberdade para fora das fronteiras.

A reflexão maquiaveliana se inscreve num quadro comparativo em que aparece de um lado a “mais gloriosa forma de governo da história”: a república romana - exemplo de governo largo e, de outro lado, as repúblicas de sua época: Florença e Veneza - exemplos de governo stretto (república democrática e aristocrática). Com base nesse estudo comparativo, Maquiavel pode ser considerado um republicano: “o grande inovador do pensamento republicano no começo da modernidade”. Atitude, importa lembrar, que se desenha nos Discorsi, quando comenta a obra do historiador Tito Lívio, em que elogia Roma afirmando que as repúblicas possuem mais germes de vida e têm sorte mais duradoura do que as monarquias ou, ainda, que as repúblicas podem mais facilmente acomodar-se à variedade das circunstâncias do que um monarca absoluto, dada a diversidade de gênio dos cidadãos que as compõem, etc.

A esse respeito, duas ideias merecem ser retidas. A primeira, seguindo a tradição da Antiguidade, é que a permanência no tempo constitui, aos olhos de Maquiavel, um traço distintivo, positivo, de uma forma boa de governo: a república romana que durou quase cinco séculos. A segunda relaciona-se ao gênio, caráter ou virtude do cidadão romano. Este elogio se assenta num tipo de argumento em que Maquiavel é mestre: o método realista. Efetivamente, tomando como base a forma mista de governo em Roma, observa que em todas as cidades existem dois tipos de humores opostos: o

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povo que não quer ser comandado nem oprimido pelos grandes, e os grandes que desejam comandar e oprimir o povo. E acrescenta: desses dois apetites diferentes nascem efeitos salutares - a liberdade.

Assim, um regime de liberdade supõe a presença de interesses contrapostos, mas que conseguem, através de boni ordini, ajustar seus interesses em favor do interesse de todos: nenhum dos dois grupos do corpo político fica sujeito, ao menos em direito, ao outro. Dessa maneira, o conflito, ingrediente indissociável da vida em sociedade, não é ignorado nem suprimido por Maquiavel, pelo contrário ele é assumido explorando ao máximo seu efeito salutar. É o que se depreende de outra afirmação muito ousada do secretário florentino: “os que criticam as contínuas dissensões entre aristocratas e povo parecem justamente desaprovar as causas que permitem que a liberdade fosse conservada em Roma”. E arremata:

Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua desunião [...]. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação, a boa educação das boas leis, e estas das desordens [conflitos] que quase todos condenam irrefletidamente (Maquiavel, 1994:31)

Assim, em relação ao conflito pode-se afirmar o seguinte: se o conflito é inevitável, faz parte da natureza do homem, o importante não é suprimi-lo, mas evitar que destrua a a convivência - o que importa, em perspectiva maquiaveliana, é defender instituições que ofereçam uma arena na qual os embates ocorram de forma civilizada (Bignotto, 2003:50). Efetivamente, diante de interesses de grupos contrapostos: os aristocratas querer mais poder (riqueza) e o povo lutar para que isso não aconteça, o regime misto, a república, teria a vantagem de evitar o triunfo de extremos, e isso é possível porque ambos os grupos conseguem manifestar seus interesses através de instituições que, ao se vigiarem mutuamente, tornam possível a convivência. Em outras palavras: uma forma de exercício da liberdade em que os cidadãos trabalham em favor de todos.

Trata-se, portanto, da expansão da liberdade nas duas dimensões assinaladas: positiva e negativa, autogoverno e autointeresse, liberdade como participação no processo da elaboração das normas e tomada de decisões políticas, e liberdade como ausência de impedimentos externos e proteção legal do indivíduo mediante a submissão de todos à lei. Tal opinião sendo compartilhada pelo humanista florentino Guicciardini segundo a qual a liberdade na república está associada à segurança individual e à participação nos assuntos públicos. A liberdade republicana supõe então uma estreita relação entre liberdade individual e os valores cívicos ligados à comunidade:

[...] Maquiavel, herdeiro direto dos humanistas, concebeu a liberdade como liberdade negativa, mas acrescentou uma reflexão em torno das condições objetivas que tornam essa liberdade possível. Ora, foi justamente ao pensar a relação do indivíduo com a cidade, que ele foi capaz de mostrar que a máxima liberdade, ou a única verdadeira, é aquela que permite a todos exercer suas potencialidades. Isso não pode ser pensado sem colocar a questão da melhor forma de governo, pois segundo o pensador italiano, não há liberdade que não possa se exercer numa arena povoada e reconhecida como legítima pelos participantes de uma comunidade (Bignotto, 2000: 56-57).

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Mas, a liberdade em Maquiavel assume ainda outro sentido, uma vez que se relaciona ao momento da fundação da república, como foi Roma em que tal ato teria acontecido sem interferências externas. Neste contexto, ser livre significa não sofrer qualquer controle externo, ou seja, não depender do concurso de outros estados, bem como a possibilidade de cada estado tomar suas decisões partindo apenas de sua própria vontade (Skinner, 1996:28-29). A exemplaridade da civitas romana dá-se então não só por ter conhecido a liberdade individual e política, mas também por ter-se liberado no momento da fundação. Assim, Maquiavel acompanha a opinião de outros humanistas italianos como Coluccio Salutati:

[...] uma cidade livre e, portanto, aquela que se mantém livre do jugo de senhores externos, mas também aquela capaz de permitir aos cidadãos o exercício da justiça baseada em leis promulgadas segundo a concordância dos cidadãos, expressa nos diversos conselhos que deveriam estruturar a vida política da cidade (Bignotto, 2001: 105).

Seguindo Montesquieu, o princípio ou mola que anima a república-democrática, ou, na terminologia de Maquiavel, o governo largo (Roma) é a “virtude política”, isto é, a presença de um sentimento coletivo que se traduz pelo amor à pátria, a igualdade e o respeito pelas leis. Ou, como diz em Espírito: “ama-se a pátria como algo que é de todos, (quando) ela é percebida como pertencente a todos que se consideram iguais entre si e frente à lei”. Esse princípio ou mola, que dá vida à república-democrática, requer por sua vez a contenção do bem particular em prol do interesse geral. A virtude política, lembrando o filósofo francês, supõe então uma renúncia penosa: ela exige a preferência contínua do interesse público em relação ao interesse privado.

Contudo, importa insistir que Maquiavel não vê o interesse público e o privado como incompatíveis, mas complementares. Ou seja, o interesse particular sempre que praticado de maneira moderada contribui ao fortalecimento de instituições livres ou, parafraseando o autor: “à grandeza ou potência da cidade”. Além do mais, como adiantamos, o secretário florentino acredita que a riqueza é fundamental para a vida na cidade, a vida boa, sobretudo tendo em conta às repúblicas da sua época (Veneza e Florença) que se assentam na riqueza ou independência material de seus membros. Tal entendimento, porém, merece um comentário: não se trata do elogio da riqueza pela riqueza, mas mostrar que não há incompatibilidade entre valores cívicos coletivos, associados à vida na cidade, e o acúmulo limitado de bens materiais, ou seja, que não há oposição entre virtude pública e interesse particular - o que podemos chamar, seguindo Aléxis de Tocqueveille, l’ intérêt bien entendu.

Convém reiterar que a procura pela satisfação dos desejos imediatos/particulares, ingrediente básico da natureza humana segundo Maquiavel, não pode ser de tal sorte que seja um empecilho à conquista e manutenção da liberdade. De fato, seguindo pensadores da antiguidade, entende que um dos principais problemas da república consiste em degenerar numa forma má de governo, e isso acontece justamente quando a re privata, o desejo pela ambição ou lucro ilimitado, se impõe sobre a re

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publica. Ou, como diz nos Discorsi: a riqueza sem valor (moderação) é de fato uma causa da corrupção cívica, sendo que tal situação é mais grave quando toma conta do corpo político, quando praticada pelos governantes que se encontram em situação mais propensa para isso.

Em relação a este último ponto, cabe dizer que o secretário florentino prevê, in extremis, o apelo à figura extraordinária de um só que, com seu exemplo, pode acabar com a corrupção (daí sua admiração pelos grandes homens do passado e também de sua época), contudo, acredita, igualmente, que a corrupção pode ser combatida com boas leis e instituições: “uma república deve incluir entre suas ordini àquelas que permitam que os cidadãos se mantenham sob vigilância para que não possam, sob o pretexto do bem, fazer o mal”. E acrescenta: “é essencial que cada um permaneça de olhos abertos e se mantenha alerta não só para identificar tais tendências corruptas como também para empregar a força da lei para eliminá-las”. Em resumo: um regime não corrupto exige vigilância dos cidadãos.

Para Maquiavel existe ainda outro meio eficaz para induzir o povo a adquirir a virtude e afastar-se da corrupção: o culto religioso. As repúblicas, afirma, que querem impedir a corrupção dos estados devem manter sem alterações os ritos religiosos e o respeito que inspiram. O índice mais seguro da ruína de um país, acrescenta, é o desprezo pelo culto dos deuses. Onde reina a religião, arremata, se acredita na prevalência do bem, pela mesma razão se deve supor a presença do mal nos lugares onde ela desapareceu (Maquiavel, 1994:61-62). Com base nos bons exemplos da religião pagã, a república romana, critica a igreja católica que, sob a roupagem da fé, pratica a corrupção e, de forma pragmática, como é de hábito, defende o bom uso dos cultos religiosos, uma vez que além de manter os homens bons pode induzir o povo comum a preferir o bem da comunidade a qualquer outro (Skinner, 1988: 98).

No relativo à educação ela é apreciada não só em função de promover o bem comum: as boas leis, diz Maquiavel, dependem da boa educação, mas também de promover a virtude cívica, ou seja, a “potência da república” que traz a experiência da liberdade e que pode expandir-se a outros lugares - como aconteceu com Roma. A educação, a formação de cidadãos com grandeza de espírito e força do corpo, ou seja, a chamada fibra ou coragem republicana implica potencializar ao máximo os impulsos humanos canalizando-os para a república expandir sua grandeza para “fora”. Assim, a honra do cidadão - tida por Cícero como uma das mais importantes virtudes - confunde-se com uma das acepções maquiavelianas do termo virtude: virilidade ou coragem.

Tal parece ser a opinião de outros humanistas da época que, apesar de guardar certa desconfiança em relação à gloria associada à expansão da liberdade “fora” das fronteiras (Roma), entendem que a verdadeira e completa virtude é alcançada não apenas com a participação dos cidadãos na vida política, mas também com a virtude militar: o cidadão-soldado ou, parafraseando Petrarca: a cidadania militar. Tal virtude, a coragem militar, devendo ser praticada não apenas para defender a cidade contra

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inimigos externos e internos, mas também, como defende Maquiavel, para irradiar para fora das fronteiras os valores associados à república: a liberdade.

A esse respeito, cabe dizer que a maioria dos pensadores renascentistas entendia que era preferível a república contar com exército próprio do que com forças mercenárias. Esse meio é considerado mais confiável para a república proteger seu principal valor: a liberdade. A vantagem de contar com cidadãos armados e independentes, “milícias próprias”, é que fortalece a disciplina, cuja virilidade é incompleta sem um período de serviço e de experiência militar - que traz a disciplina em nível individual e coletivo. Em relação à compatibilidade coragem militar e busca de benefícios próprios, a opinião dos humanistas não é unânime: alguns entendem que são incompatíveis, outros, pelo contrário, que o amor pelos bens materiais, dentre os quais Maquiavel, não é incompatível com os valores cívico-militares (Bignotto, 1991: 43).

No que tange às repúblicas da época renascentista importa destacar que Florença era tida como exemplo de governo democrático: um Gran Consiglio e um pequeno Senado à diferença de Veneza, mais aristocrática, com o Conselho dos Dez que intervinha em tudo (tesouro, exército, etc), para muitos: a encarnação viva do regime misto, daí sua maior duração no tempo em relação à república florentina. Somado a isso, Florença não tinha exército próprio, durante muito tempo sob o comando de condottieris irresponsáveis que a tornava presa fácil de outras cidades ou estados. Daí o interesse de Maquiavel reviver em Florença uma milícia formada por cidadãos que fosse fiel à república, e isso com base na história de Roma que, em sua opinião, era o melhor exemplo. Já Veneza contava com exército próprio e conseguiu defender melhor seu território e instituições porém, segundo avaliação maquiaveliana, com limitações já que foi incapaz de expandir a liberdade para fora. Sendo assim, Veneza estava mais voltada à preservação da liberdade, “satisfeita em manter o statu quo”, como se lê nos Discorsi, do que propagar a liberdade a outros lugares.

A diferença entre ambas as repúblicas responde também ao fato da primeira revelar certo atraso no plano cultural: faltava-lhe aquele entusiasmo pela antiguidade clássica não assim para o comércio e os negócios; enquanto a segunda, além do avanço da indústria e comércio, possuía mais elevada consciência política, berço das doutrinas políticas, da escrita da história que lhe serviu para admirar Roma (Burckhardt, 2003: 69;71).

Para concluir, podemos dizer, com base nos escritos maquiavelianos, O príncipe e Discorsi, que existem duas maneiras de entender a relação ética e política: da “janela do palácio”, visão vertical do poder, baseada no argumento ex parte principis, bem como na lógica ofensiva da raison d’État, que gira em torno do seguinte interrogante: que situações permitem a quebra de limites impostos pela moral ou ética comuns? Resposta: a conservação ou manutenção do reino; e da “rua ou praça” pública, visão horizontal do poder, baseada no argumento ex parte populi, bem como na lógica

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defensiva dos direitos dos cidadãos, que gira em torno do seguinte interrogante: que condições é necessário criar para que tais limites não sejam violados? Resposta: boas leis e instituições - a república. Em outros termos, trata-se do ponto de articulação entre jogos estratégicos do poder, as técnicas abusivas de governo, e a preocupação ética por instituir a liberdade individual (Foucault 2012: 278).

Assim, conforme a assertiva arendtiana de que “a negação deliberada da verdade dos fatos, a capacidade de mentir, e a faculdade de mudar os fatos, a capacidade de agir estão interligadas”, cumpre comentar que diante da lógica - ofensiva - de O príncipe, norteada pela preservação da ordem, resta ainda a possibilidade da lógica - defensiva - a do cive, norteada pelo resguardo da liberdade - que implica uma boa ordem política: a república.

referências

AGOSTINHO. A cidade de Deus: contra os pagãos. Trad. O.Paes Leme. Petrópolis/RJ: Vozes, 1990, 2 Vol.ARENDT, H. Crises da república. Trad. J. Volkmann. São Paulo: Perspectiva, 1973.

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