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1 MAQUIAVEL: A GUERRA E A POLÍTICA Guilherme Celestino Souza Santos 1 RESUMO Maquiavel é um autor privilegiado para se pensar o vínculo entre a guerra e o exercício do poder político, suas análises apresentam uma perspectiva completamente original no tratamento da coisa pública e da política. A originalidade do autor está em trazer para o primeiro plano um entendimento dos afazeres políticos, dissociando o tema de todo e qualquer ideal transcendente, diferente do que fazia a tradição antiga e medieval na abordagem dessas questões. O pensamento político maquiaveliano é aquele em que se leva em conta, em primeiro lugar, a dimensão do uso da força para a manutenção e ampliação do poder: a qualidade do regime político depende menos dos ideais dos fundadores das constituições, que dos recursos militares e estratégicos que lhe dão sustentação. Maquiavel dá destaque à questão da tomada de poder pelas armas, tema inescapável a todo governante seja ele “novo” ou “antigo”. O uso da força se torna um tema central em suas obras, tais como "O Príncipe" na qual se distingue o principado "novo", como aquele que se obtém devido à conquista, do "antigo" como aquele que se deve a herança e/ou direito dinástico. Porém toda sua análise se concentra sobre o "principado novo", deixando claro que o poder está compreendido nos modos como ele se amplia ou se conserva. E a ênfase é dada à conquista militar, como que dizendo que a conservação em última análise depende da ampliação territorial do poder. Para Maquiavel a guerra é o eixo principal da política, todas as suas instituições e derivações por mais pacíficas que se apresentem, de fato existem segundo seus desdobramentos ou antecipações. Palavras-chave: Maquiavel. Guerra. Política. O Príncipe. Uso da Força. ABSTRACT Machiavelli is a privileged author to think the link between war and the exercise of political power, his analyzes present a completely original perspective on the treatment of public affairs and politics. The originality of the author is to bring to the forefront an understanding of political affairs, dissociating the theme from transcendent ideals, different from ancient and medieval tradition in addressing these issues. Machiavellian political thought takes into account in the first place the dimension of the use of force for the maintenance and expansion of power: the quality of the political regime depends less on the ideals of the founders of the constitutional law than on the military and 1 Mestre em Filosofia pela UFRJ, Especialista em Docência pelo Colégio Pedro II, Doutorando em Economia Política Internacional pelo PEPI da UFRJ, email: [email protected].

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MAQUIAVEL: A GUERRA E A POLÍTICA

Guilherme Celestino Souza Santos1

RESUMO

Maquiavel é um autor privilegiado para se pensar o vínculo entre a guerra e o exercício

do poder político, suas análises apresentam uma perspectiva completamente original no

tratamento da coisa pública e da política. A originalidade do autor está em trazer para o

primeiro plano um entendimento dos afazeres políticos, dissociando o tema de todo e

qualquer ideal transcendente, diferente do que fazia a tradição antiga e medieval na

abordagem dessas questões. O pensamento político maquiaveliano é aquele em que se

leva em conta, em primeiro lugar, a dimensão do uso da força para a manutenção e

ampliação do poder: a qualidade do regime político depende menos dos ideais dos

fundadores das constituições, que dos recursos militares e estratégicos que lhe dão

sustentação. Maquiavel dá destaque à questão da tomada de poder pelas armas, tema

inescapável a todo governante seja ele “novo” ou “antigo”. O uso da força se torna um

tema central em suas obras, tais como "O Príncipe" na qual se distingue o principado

"novo", como aquele que se obtém devido à conquista, do "antigo" como aquele que se

deve a herança e/ou direito dinástico. Porém toda sua análise se concentra sobre o

"principado novo", deixando claro que o poder está compreendido nos modos como ele

se amplia ou se conserva. E a ênfase é dada à conquista militar, como que dizendo que a

conservação em última análise depende da ampliação territorial do poder. Para

Maquiavel a guerra é o eixo principal da política, todas as suas instituições e derivações

por mais pacíficas que se apresentem, de fato existem segundo seus desdobramentos ou

antecipações.

Palavras-chave: Maquiavel. Guerra. Política. O Príncipe. Uso da Força.

ABSTRACT

Machiavelli is a privileged author to think the link between war and the exercise of

political power, his analyzes present a completely original perspective on the treatment

of public affairs and politics. The originality of the author is to bring to the forefront an

understanding of political affairs, dissociating the theme from transcendent ideals,

different from ancient and medieval tradition in addressing these issues. Machiavellian

political thought takes into account in the first place the dimension of the use of force

for the maintenance and expansion of power: the quality of the political regime depends

less on the ideals of the founders of the constitutional law than on the military and

1 Mestre em Filosofia pela UFRJ, Especialista em Docência pelo Colégio Pedro II, Doutorando em

Economia Política Internacional pelo PEPI da UFRJ, email: [email protected].

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strategies that support it. Machiavelli emphasizes the question of the seizure of power

by arms, an inescapable theme for every ruler whether he is "new" or "old". The use of

force becomes a central theme in his works, such as "The Prince" in which the "new"

principality, like the one obtained by conquest, is distinguished from the "old" like that

which is due to inheritance. But all his analysis focuses on the "new principality,"

making it clear that power is understood in the ways in which it is expanded or

preserved. And the emphasis is given to the military conquest, as saying that

conservation ultimately depends on the territorial extension of power. For Machiavelli

war is the main axis of politics, all its institutions and derivations, no matter how

peaceful they may appear, actually exist according to their unfoldings or anticipations.

Keywords: Machiavelli. War. Politics. The Prince. Use of Force.

Introdução

Como compreendê-lo? Ele escreve contra os bons sentimentos em política, mas também

é contra a violência. Ele tanto desconcerta os que creem no Direito como na Razão de

Estado, pois tem a audácia de falar de virtude no mesmo momento em que fere

duramente a moral ordinária. É porque ele descreve esse núcleo da vida coletiva no

qual a moral pura pode ser cruel e a política pura exige algo como uma moral. Não se

aceitaria um cínico que nega os valores ou um ingênuo que sacrifica a ação. Não se

ama esse pensador difícil e sem ídolo.

(Maurice Merleau-Ponty)

Maquiavel é um autor absolutamente original para se pensar a luta política. Sua

filosofia parte de um novo caminho, inaugurando a modernidade em seu campo próprio,

a práxis política. Partindo não de noções abstratas e fundamentações ontológicas ou

teológicas, mas da própria ação política analisada em situações concretas, objetiva em

grande medida aconselhar, auxiliar a tomada de decisão em momentos críticos. Chega-

se a definir conceitos com alguma pretensão universal, tais definições operam no

interior determinado da práxis, e toda tentativa de transpor esse nível, para de outra

práxis, por exemplo, sofre todos os tipos de infortúnio próprio a toda ação interpretativa

e esforço de tradução.

Nada menos tentador para o pensamento contemporâneo. Maquiavel continua

em disputa, sua interpretação continua. Liberais e marxistas, fenomenólogos e

estruturalistas, pedagogos e psicanalistas não interessa qual divisão se queira entrever

no campo do saber contemporâneo, situam-se no interior da indecisão: lá onde as armas

servem aos campos rivais, no mesmo solo onde adversários intelectuais de vida e morte

se espetam, encontramos o mesmo sorriso maquiavélico da Monalisa renascentista.

Afinal, para que lado serve o pensamento político de Maquiavel?

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Deixando de lado, por ora, a política da filosofia, voltando à filosofia política,

pode-se encontrar em Maquiavel uma nova abordagem ao pensamento político se

comparado ao que era elaborado na Idade Média e na Antiguidade Clássica. Todos os

principais pontos desse ultrapassamento da tematização anterior podem ser encontrados

por uma leitura atenta de O Príncipe, ainda mais se comparada às temáticas

convencionadas e tradições discursivas as quais a própria obra remete e faz referência.

Esta obra O Príncipe é datada de 1513, e foi escrita em um momento preciso

na vida do autor: aquele em que escrevia para o atual governante de modo lisonjeiro,

respeitoso, dando-lhe dicas, orientações provenientes de um antigo funcionário público

que entende dos afazeres políticos do Estado.

Maquiavel fora de 1498 e 1512 secretário no conselho da República de

Florença. Perde o cargo com o golpe de Estado dado pela família Médici em 1512, e

com afastamento das funções públicas se torna então um escritor político. Certamente

nunca desapareceram as aspirações de um dia retornar a um cargo importante em cidade

natal Florença, não importando se servindo à dinastia autocrática dos Médici ou ao

governo popular republicano. Maquiavel será o primeiro autor político a retirar a ênfase

da tipologia constitucional no critério de avaliação dos governos2.

Maquiavel escreve na obra que se consolidou com o nome de "O Príncipe",

uma carta ao príncipe Lourenço de Médici, dando conselhos bem precisos de como deve

fazer para constituir e manter um bom governo, discorrendo sobre o uso da força, e as

maneiras de se portar diante do público, por fim, exortando a luta por uma Itália

unificada, o que demandaria certamente um líder bem competente e impetuoso - do tipo

que é dotado de Virtú.

Não existem registros de como essa carta foi encarada pelo seu destinatário,

fora que o próprio Maquiavel só foi de fato contratado pelos Médici em 1520 para

escrever uma história de Florença. De todo modo esse texto acabou sendo publicado

como livro após sua vida, o que gerou muita polêmica e escândalo. Seus conselhos

realistas e diretos foram interpretados muitas vezes como ignomínia e imoralismo, de

modo que Shakespeare chega a identifica-lo com a figura do próprio demônio (Old

Nick) em alguns de seus escritos, e "maquiavelismo" se tornou sinônimo de velhacaria,

rapacidade. Mas seria uma fama justa?

A modernidade de Maquiavel

A ascensão do “homem novo” – os condottieri que sabem como bem fundar

um Estado e dar às coisas a sua “grandeza”(...). A ação desse homem novo, que funda

uma nova organização, um corpo político, deve seguir certas normas que são

igualmente “novas”: uma nova moralidade, mas não uma razão de Estado. Não é o

Estado, uma instituição, que raciocina, mas os homens. É a necessidade, e não a razão,

que “constrange” os estados a “numerosas coisas a que a razão não nos impele”

2 Como faz, por exemplo, Aristóteles. Cf. Política.

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(Discorsi, I, 6). Mas a razão não é a necessidade, e a necessidade não é razoável. Se a

necessidade está do seu lado, ela pode impor-lhe a razão ou a não-razão. Que a

necessidade talvez pudesse ser ela própria razoável, racional, é uma idéia alheia a

Maquiavel.

(Hannah Arendt)

A obra de Maquiavel desperta os mais diferentes juízos, suas análises abrem

mão de idealizar a função do governo e tenta apenas descrever a "verdade efetiva" das

coisas, o que obriga a assumir que os homens desempenham as funções políticas tendo

em vista a conservação e a expansão do poder e não exatamente coisas metafísicas

como "justiça", "virtude" e “liberdade”. Isso gera um mal estar nos leitores até hoje, e

certamente isso faz com sua mensagem seja denegada, diante dos pruridos moralistas

dos mais variados matizes.

Maquiavel subverte a tradição. Basta ver como Santo Tomás de Aquino, um

membro exemplar da tradição, concebe as funções da política, e então se consegue

equacionar o abalo sísmico de sua obra. O Mestre da Escolástica em seu tratado De

Regno (Do Reino) compara o governante a um piloto de navio3. Cabe ao piloto cumprir

duas funções: preservar o navio e conduzir sua rota a um porto seguro. Assim como o

governante de um Estado que deve preservar seu reino, evitando que a vida pública se

extinga. E, além disso, deve conduzir o reino ao seu fim que é ético. Cabe ao bom

governante fazer dos governados, homens virtuosos, sendo a virtude o porto real a qual

devem todos alcançar.

Maquiavel mantém a primeira função de governo – a da preservação da ordem

pública, e nada diz da outra. Seu silêncio sobre o fim ético do governo alimenta o

incessante mal-estar em seus leitores e intérpretes. A tradição humanista e cristã vinha

desde a antiguidade produzindo manuais de aconselhamento de príncipes, todos focados

na finalidade do governo – a virtude, a conquista do soberano bem – ainda que

discordando do conteúdo semântico (virtude guerreira, ou piedosa e caritativa, ou

contemplativa etc.). Tais manuais foram chamados de "espelhos do príncipe" e de certo

modo o texto de Maquiavel se insere nessa tradição, porém subvertendo algumas de

suas bases.

O texto maquiaveliano abala a maneira tradicional de pensar ao distinguir bom

e mau governo pelo critério moral em sentido estrito. Por exemplo, quando enumera

modos de fundar um principado incluindo formas consideradas criminosas e que se

poderia derivar propriamente da virtude do príncipe em sentido tradicional (humanista

ou cristão). E, sobretudo por modificar substancialmente a maneira como se irá entender

qual seja a "virtude" do príncipe.

Na antiguidade e idade média, o governo político é pensado desde uma

harmonização entre o homem e seu meio natural e social, o governando sendo por isso o

3 Estamos seguindo aqui de perto a argumentação de LIMONGI, Maria Isabel. “Ética e Política em

Maquiavel”.

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mais exigido do ponto de vista ético. "Governar a si para poder governar aos outros"4

eis um imperativo da formação política que encontramos nas variadas escolas

filosóficas desde a era clássica até o humanismo renascentista. O Bom governante é

aquele que realiza o máximo das virtudes, e consegue estimular ao máximo as virtudes

do seu governado. Um exemplo disso é a famosa narrativa de Alexandre, o Grande, que

ao atravessar o deserto, rejeita o regalo de seus comandados que unificaram as últimas

gotas de suas botijas e lhe oferecem para apaziguar a travessia. Mas no final, o grande

líder rejeita o privilégio, e derrama na areia a água, mostrando a todos que ele era como

eles e que era capaz de superar a mesma sede com temperança e equilíbrio.5 Imagens

como essa serão sempre evocadas quando se quer que ética privada seja o modelo de

regulação do governante e da sociedade.

Maquiavel já observa essa questão de modo original, o bom governante é

aquele que consegue conservar e ampliar a ordem pública e seu Estado, independente de

sua conduta na vida privada, e muitas vezes contrariando as expectativas éticas dessa. É

melhor um governante que não seja santo e proteja o Estado de suas ameaças internas e

externas, do que um que o seja, ou próximo disso, mas sucumba na primeira

confrontação que necessariamente ocorrerá. O máximo exemplo do segundo tipo,

Maquiavel observou no frade Savaranola que ao governar Florença em nome dos mais

puros e santos ideais, irá ser queimado vivo por um papa que realmente nada tinha de

santo.

São Tomás pensava que os homens tendiam por natureza ao acordo e a uma

vida harmoniosa. Maquiavel baseando-se na experiência dos exemplos históricos chega

a uma conclusão diferente disso. E por isso conclui que não é a tarefa dos governantes

cuidar da virtude dos governados. As opiniões e condutas pessoais do líder não tem

nada de melhor (ou pior) do que as dos demais. Para São Tomás, e para a tradição de

maneira geral, a virtude pública tem de ser o prolongamento das virtudes privadas, para

Maquiavel, essas são duas coisas que representam planos muitos distintos. Para o

Florentino cabe ao governante enquanto homem público a capacidade de "articular

forças sociais"6, enquanto ao homem privado, o exercício das excelências éticas

propriamente ditas. Todavia cabe ao governante "parecer" ter as virtudes privadas, uma

vez que será observado e avaliado pelos indivíduos privados e seus valores.

Maquiavel modifica estruturalmente a compreensão que se tinha sobre o que

significa ser ético, e desmantelando a relação entre ética e política que existia antes dele.

Seguindo a lição de Hannah Arendt, podemos pensá-lo como instaurando o campo

próprio da reflexão moderna sobre a política. Ou melhor,

A atitude em face da política: os antigos poderiam tornar-se imortais

somente ao juntar algo ao mundo, que continua após a morte. Os cristãos, pelo

contrário, estão seguros da imortalidade façam o que fizerem, e só devem então

escolher a “boa vida” para estarem certos da vida além. Os antigos: a vida como

4 Cf. FOCAULT, M. Govenemennt de soi et autres. 5 Idem. 6 Limongi, já citado.

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tal, sendo mortal, nada é senão uma oportunidade para tornar-se imortal. Para os

cristãos: a vida como tal é imortal, e, portanto ela é tudo. A vida e o mundo.

Vivemos no mundo: a vida continua após ter-se extinto o mundo; ou o mundo

continua após ter-se extinta a vida. Maquiavel não pergunta jamais: para que

serve a política? Isto é muito surpreendente. Ninguém salvo ele põe inteiramente

de lado essa questão. A política não tem fim mais elevado do que ela própria. O

cristianismo: a política deve ser organizada de tal modo que o homem e sua alma

possam estar certos da salvação eterna. Este é o critério último. Platão e

Aristóteles pensavam que a política devesse ser organizada de tal modo que a

filosofia – o cuidado com as coisas eternas – fosse possível. (2018, p.302)

A dinâmica da força

Toda a inovação Maquiaveliana pode ser recolhida nesta obra relativamente

curta que é O Príncipe. O plano geral da obra pode ser divido em duas partes, a primeira

do capítulo I ao XIV tratando do papel da força na política, e a segunda dos capítulos IV

ao XVI tratando do papel da imagem do príncipe na práxis do poder político. Neste

final busca-se o fundamento da glória duradoura máxima de um governante a fundação

do Estado, e o sonho de uma Itália unificada.

O uso da força se torna um tema central na primeira parte do Príncipe que

começa discutindo os tipos de principado não pela tipologia constitucional, mas quanto

a sua "novidade". O principado "novo" é aquele que se obtém devido à conquista, o

"antigo" aquele que se deve a herança e/ou direito dinástico. Toda sua análise se

concentra sobre o "principado novo", deixando claro que o poder está compreendido

nos modos como ele se amplia ou se conserva. A ênfase é dada à conquista militar,

como que dizendo que a conservação em última análise depende da ampliação territorial

do poder.

Deste modo, a força aparece como elemento constitutivo do poder, seu

domínio e manejo como que fundamental para o governo principesco. A análise

maquiaveliana abre mão de pensar a política a partir de um modelo ideal de sociedade, e

passa a observar a "verdade efetiva". Em vez de um todo harmonizou ou uma tendência

para tanto, vemos na base da sociedade uma divisão irreconciliável.

Como vemos no capítulo IX, a vida social é constituída por um conflito

fundamental entre grupos sociais - entre os “grandes” e o “povo”. Sendo os "grandes"

definidos pelo "desejo de governar e oprimir o povo" e o povo pelo "desejo de não ser

governado e oprimido pelos grandes", "em todas as cidades se encontram essas duas

tendências diversas". A arte de governar consiste em levar a bom termo esse conflito

fundamental. Algo que não significa a supressão do conflito, mas sim a sua mediação, e

a gestão dessa mediação. Cabe ao Príncipe institucionalizar o conflito, regrá-lo de tal

modo que seja possível o convívio e a mútua cooperação entre as partes conflitantes.

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O Exemplo de instituição mediadora de conflito está na República romana

descritos nos capítulos iniciais dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. A

força de Roma estava na explicitação desse conflito fundamental, em não mascará-lo

sob a aparência de um falso acordo. Para isso, os romanos criaram a figura do tribuno,

que contrapunha a do senado, como que dando vazão ao conflito fundamental entre a

plebe e a nobreza romana.

A vida social é um campo de forças e só pode prosperar se essas forças de

algum modo se equipararem. Cabe ao governante buscar, ou até mesmo forçar essa

equiparação. Porém a força insatisfeita poderá sempre se revoltar e buscar apoio de

forças estrangeiras, o que ocorria muito frequentemente na Itália da época de

Maquiavel. Um enorme desafio, portanto é manter o desejo de ambas as partes em

algum grau de satisfação, a estabilidade contra golpes, invasões ou insurgências

depende diretamente disso. Como diz Limongi:

Trata-se de resolver os conflitos internos para conquistar uma posição

forte diante das forças políticas externas. Só assim um Estado pode perdurar. (...)

É nesse sentido que Maquiavel aconselha o governante em O Príncipe: ele deve

fazer aquilo que as instituições da Roma antiga faziam e, retirando a sua força

política e suas capacidades de governo em parte do apoio do povo, isto é,

preservar a vida comum e fortalecer-se contra as forças estrangeiras. (2006, p.62-

3)

A interpretação maquiaveliana é bastante original por supor o conflito na base

da política, e não buscar uma harmonia natural ou divina, como fazia os antigos e

medievais, tampouco perseguir um consenso originário ou acordo entre os indivíduos,

como fará toda reflexão iluminista e liberal que vigora até hoje. O papel da política é

antes de tudo o de mediar conflitos sociais.

Conservar um reino já é um trabalho e tanto, tendo em vista a

instabilidade da vida social! Não é o bom timoneiro aquele que consegue evitar

que um navio afunde num mar revolto? Não é preciso cobrar dele que, além

disso, conduza o navio a um porto paradisíaco (Idem. p. 64).

Cabe ao governante maquiaveliano não mais aplicar uma regra de justiça que

só ele conhece de antemão, mas de inventar, instituir uma regra de justiça que pareça

satisfatória àqueles a quem governa. Maquiavel não recorre a modelos de como deve ser

a práxis do político, mas sim a "efetiva verdade", o que implica um recuo às séries

históricas e às recorrências. Ele define um programa de formação da inteligência

estratégica pelo recurso a observação histórica, referindo como os homens bem

sucedidos agiram em situações análogas, quais eram as suas práticas.

O recurso às decisões e posicionamentos históricos não é condição suficiente

para o sucesso atual, pois as circunstâncias nunca são exatamente iguais. Por isso o

governante deve estar também atento a cada detalhe da situação concreta em que sua

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ação se inscreve. O conhecimento histórico ajuda na compreensão da situação e não

para que se retire dele regras imutáveis e preceitos universais para a ação. O bom

político é aquele que sabe aproveitar dos dados da situação, aproveitando a ocasião para

agir.

Nisso consiste a relação entre virtú e fortuna. A virtude do governante depende

de saber impor seu ritmo de ação diante das marés oportunas ou de desgraças imposta

pela fortuna. Sua capacidade de ação depende de sua inteligência estratégica que

antecipa as ameaças externas (forças estrangeiras, rupturas de tratados, dissabores

diplomáticos, etc) e internas (conspirações, revoltas, crises econômicas, etc). A

inteligência que preside a ação virtuosa do governante é aquela que se confronta com o

imponderável dos acasos e o inexorável do destino como que se enamorando da fortuna

para a glória e não sendo arrastado por ela para o infortúnio7.

Esse confronto entre fortuna e virtù, ou, entre as circunstâncias e a

capacidade humana de modificar o curso da existência, constitui a chave de

acesso ao pensamento de Maquiavel. O autor reflete sobre a imensa influência

que a fortuna exerce nos negócios humanos e conclui que a deusa, temida por

seu enorme poder, deveria ser persuadida a aliar-se aos homens e contemplá-los

com os bens de que dispõe e que todos os homens desejam, os mais elevados dos

quais são a honra e a glória. A fortuna reaparece sensível e apreciadora do mérito

humano — virtù —, que demonstra a capacidade humana de intervir diante dos

limites impostos pelas circunstâncias, para alcançar a satisfação de seu interesse.

(SARTI, 2010, p.3)

Maquiavel conclui que a fortuna é mulher, por essa razão aprecia as

qualidades varonis, especialmente a coragem viril. Como mulher, diz, a fortuna é

sempre amiga dos jovens, pois são menos circunspectos, mais impetuosos e com

mais audácia a dominam. (Idem, nota iv, p.14)

A imagem do príncipe

Algo de substancial, que faz parte da fortuna ou infortúnio do príncipe é sua

reputação conferida pelos seus governados e pelo outros atores políticos em seu

contexto de ação. Sem uma boa imagem pública não é possível governar. Ocorre que

nem tudo que é necessário ser feito pode ser conciliado com as melhores expectativas

que se pode ter de alguém.

Embora a regra de ação do governante não será idêntica a do indivíduo em sua

vida privada, em geral será julgado segundo sua métrica, e muitas vezes terá de

deliberadamente que frustrá-la. Como diz do capítulo XV, o Príncipe precisa "aprender

a não ser bom".

7 Ver Arendt, no texto já citado, sobre o papel da glória na virtú política.

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Livio Xavier na edição da coleção Os Pensadores, traduz essa passagem como

"aprender a ser mau", o que não significa a mesma coisa e oferece uma divergência não

apenas quanto à tradução dos termos, mas, sobretudo uma divergência na interpretação

de um trecho decisivo do autor. "Ser mau" significa ferir os preceitos éticos assumidos,

"não ser bom" não implica necessariamente "ser mau", indica a necessidade de por

vezes de se pautar a conduta por vezes por princípios outros que os éticos comumente

aceitos.

Na interpretação que lê que o príncipe precisa aprender a "ser mau"

encontramos a compreensão que a política tem uma função e uma finalidade que lhe é

própria e encontra dificuldades concretas que nada tem que ver com a ética. Ela tem

campo de ação com regras próprias na qual vale mesmo a astúcia e a rapacidade. Na

interpretação sugerida por Limongi, e seguida aqui, "não ser bom" significa nem sempre

ser possível ao Príncipe corresponder as expectavas que colocam sobre seus ombros (ser

um exemplo de santidade e pureza, conduzir todos à salvação messianicamente, etc.).

Nem sempre é bom parecer bom, ou em tudo agir como bom. No cuidado com jovens e

crianças faz parte de uma boa educação frustrar expectativas de presentes e não mimá-

las demasiadamente. Os governados esperam dos seus governantes uma série de

benesses e atitudes, que, tendo em vista as opiniões ou demandas de outros grupos

sociais, terão de ser frustradas.

O Príncipe precisa aprender a não ser bom para não se arruinar, e para se

preservar no poder. Isso não significa uma regra de ação voltada para o benefício

pessoal do Príncipe, mas uma regra de governo propriamente dita. Trata-se de uma

"regra de ação" que visa à manutenção da capacidade de governo no sentido original e

moderno que Maquiavel confere a essa noção.

À guisa de conclusão: contribuições para uma abordagem crítica do

sistema internacional

Muito comum é identificar Maquiavel como um precursor das modernas

Ciências políticas, tendo definido o campo do chamado realismo político, o mesmo que

será consagrado por Hobbes em sua teoria contratual da soberania, na qual a arbitragem

jurídica e política não se dão sem coerção e monopólio da violência. Dois tipos de

objeção são possíveis de se levantar, o que certo modo isso encaminha a discussão sobre

como a teoria maquievaliana pode contribuir efetivamente para o pensamento crítico

contemporâneo no que tange uma reflexão sobre o sistema interestatal capitalista.

Em primeiro lugar, o pensamento maquievaliano é antes de tudo filosófico e

não científico – autores que afirmaram algo diferente disso como Leo Strauss, e outros,

estão presos a um paradigma cientificista e positivista que tende a reduzir o político ao

formalizável, esquecendo que diante dos mais virtuosos cálculos e entendimentos da

política, há sempre algo irredutível ao cálculo e ao entendimento analítico – a fortuna.

Em segundo lugar, a concepção de "realismo" nos leva a pensar o autor em

uma chave necessariamente conservadora – esquecendo que o Príncipe era uma

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exortação ao levante cívico pela unificação da Itália, ou os Discursos, e A Arte da

Guerra, uma concertação estratégica convocando as milícias Republicanas em prol da

autonomia Florentina no cenário das disputas militares e geopolíticas entre as grandes

potências europeias do XVI.

Não devemos esperar contribuições "científicas", tampouco "realistas" na

filosofia política maquiaveliana. Pelo contrário, seu pensamento não se cristaliza na

determinação analítica de uma realidade objetiva, sua perspectiva urge processos de

transformação social e não de conformismo. O mal-estar provocado por esses

delineamentos se deve provavelmente ao fato dessas considerações não estar ancoradas

em um ideal pacífico e tranquilo como "igualdade" ou "liberdade", mas apenas na

verdade efetiva dos fatos. E, ainda, essa compreensão da verdade efetiva é menos

conciliatória que subversiva (ou pelo menos inquietadora) em relação ao estado atual

das coisas analisadas.

Ingrid Sarti (2010) opõe a figura do Príncipe Republicano, do Príncipe

Autoritário, este último podendo receber o epíteto de "maquiavélico" por ser a

encarnação do discurso do realismo e da razão de estado. Gramsci8 lembra que a

realidade efetiva das coisas para qual Maquiavel se volta não o faz um realista, no

sentido que se costuma atribuir a esse termo, confundindo-o com conservadorismo,

justamente por que há uma teoria da revolução implícita no Príncipe. O realismo seria

dizer que a teoria política cabe apensar reafirma o estado de coisas vigente.

Entretanto, talvez nessa fonte mesma de inesgotável inquietação e vitupério

estejam as bases e os fundamentos para uma análise que se queira relevante no âmbito

político. A temática da divisão civil, por exemplo, tão presente no Príncipe e nos

Discursos, pode ensinar a se enxergar a ordem política desde o campo da correlação de

forças. O papel da força, em sua "lógica"9 sobretudo, como constitutivo efetivo das

instituições e do Estado, pode apontar para como toda a temática da soberania nacional,

e da autonomia pode ser repensada desde outro ângulo que o da tradição iluminista e

contratualista. As funções da imagem na constituição do exercício efetivo do poder

recoloca em cena o tema da ideologia. Enfim toda uma série de temas e tópicos podem

ser pensados e repensados a partir de Maquiavel quando se quer refletir sobre as

relações de poder no contexto do sistema internacional.

8 Na realidade Gramsci enxerga em que há em Maquiavel um “realismo excessivo” “na política, o qual

leva a interessar-se não pelo dever ser, mas pelo ser (...). Dilema que obriga a distinguir entre o diplomata

e o político. (...) É certo que o político não deve mover-se só na “realidade efetiva”, mas também no

“dever ser” que orienta a ação sobre a mudança da sociedade. Mas haveria duas formas deste “dever ser”:

uma, a abstrata e difusa de Savonarola (o “profeta desarmado”), e outra, a realista de Maquiavel, nem

determinista nem voluntarista, mas definida como interpretação objetiva e como indicadora de linhas de

ação, embora não se tenha transformado em realidade imediata.” PORTANTIERO, Juan Carlos. Gramsci,

leitor de Maquiavel. Tradução de Josimar Teixeira, Julho 2009. 9 Cf. LEFORT, Claude. “A lógica da força”.

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