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Tradução, Introdução e Notas de António Simões do Paço
Capa de José Manuel Reis sobre pintura de Botticelli Tradução, Introdução e Notas de António Simões do Paço
© Coisas de Ler, 2003 © Introdução de António Simões do Paço
Direitos reservados por Coisas de Ler Edições, Lda.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida sob a presente forma sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textos em recolhas antológicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial.
Execução gráfica: Arco-íris, Artes Gráficas, Lda Rio de Mouro
Coisas de Ler Edições Apartado 3168 2745 -501 Queluz Portugal
Edição publicada em Fevereiro de 2003
Depósito Legal nO 192198/03
íNDICE
Introdução . 9
Dedicatória . . 19
Capítulo L Que tipos de principados há e de que modos se adquirem . 21
Quot sint genera principatuum et quibus modis acquirantur
Capítulo II. Dos principados hereditários . . 21
De principatibus hereditarii
Capítulo III. Dos principados mistos . 22
De principatibus mixtis
Capítulo IV. Por que razão o reino de Dario, que foi ocupado por Alexandre, não se
rebelou contra os seus sucessores após a morte de Alexandre . . 30
Cur Oarii regnum quod Alexander occupaverat a successoribus suis post
Alexandri mortem non defecit
Capítulo V. De que modo se devem governar as cidades ou principados que, antes de
serem ocupados, viviam segundo as suas leis . 32
Quomodo administrandae sunt civitates vel principatus qui antequam
occuparentur suis legibus vivebant
Capítulo VI. Dos principados novos que se conquistam pelas nossas próprias armas e
talento . . 34
De principatibus novis qui armis propriis et virtute acquiruntur
Capítulo VII. Dos principados novos que se conquistam com as armas e a fortuna de outros _ 37
De principatibus novis qui alienis armis et fortuna acquirantur
Capítulo VIII. Daqueles que chegam ao principado pela perfídia . . 45
De his qui per scelera ad principatum pervenere
Capítulo IX. Do principado civil . · 49
De principati civili
Capítulo X. De que modo se devem medir as forças de todos os principados . . 52
Quomodo omnium principatuum vires perpendi debeant
Capítulo XI. Dos principados eclesiásticos
De principatibus ecclesiasticis
54
Capítulo XII. Que géneros há de milícias e acerca dos soldados mercenários .57
Quot sint genera militiae et de mercenariis militibus
Capítulo XIII. Das tropas auxiliares, mistas e próprias . · 62
De militibus auxiliariis, mixtis et propriis
Capítulo XIV O que cabe ao príncipe nos assuntos militares . · 65 Quod principem deceat circa militiam
Capítulo XV. Das coisas pelas quais os homens, e sobretudo os príncipes, são louvados
ou vituperados . 68
De his rebus quibus homines, et praesertim príncipes, laudantur aut vituperantur
Capítulo XVI. Da liberalidade e da parcimónia . · 69 De Iiberalitate et parsimonia
Capítulo XVII. Da crueldade e da clemência; e do que é melhor: ser amado ou ser ~m~o . n
De crudelitate et pietate; et an sit melius amari quam time ri, vel e contra
Capítulo XVIII. De como os príncipes devem honrar a sua palavra . 75 Quomodo fides a principibus sit servanda
Capítulo XIX. De como evitar o ódio e o desprezo . 77 De contemptu et odio fugiendo
Capítulo XX. Se as fortalezas e muitas outras coisas que os príncipes fazem todos os dias são úteis ou inúteis . . 87
An arces et multa alia quae cotidie a principibus fiunt utilia an inutilia sint
Capítulo XXI. O que convém a um príncipe para ser estimado .
Quod principem deceat ut egregius habeatur
Capítulo XXII. Dos secretários dos príncipes .
De his quos a secretis principes habent
Capítulo XXIII. Como fugir dos aduladores · Quomodo adula tores sint fugiendi
. 92
. 96
97
Capítulo XXIV. Porque perderam os príncipes de Itália os seus Estados . . 99
Cur Italiae principes regnum amiserunt
Capítulo XXv. Quanto pode a fortuna nas coisas humanas e como se pode resistir-lhe -1 01 Quantum fortuna in rebus humanis possit, et quomodo iI/i sit occurrendum
Capítulo XXVI. Exortação a tomar a Itália e libertá-Ia dos bárbaros · 104 Exhortaüo ad capessendam Italiam in libertatemque a barbaris vindicandam
Notas . .109
INTRODUÇÃO
Nicolau Maquiavel, o conformista com uma causa
Nicolau Maquiavel (1469-1527) nasceu em Florença numa altura em
que a sua cidade e país atravessavam um período extremamente
conturbado. A Itália estava dividida entre vários grandes Estados,
organizados em tomo das principais cidades - Milão, Veneza, Florença,
os Estados da Igreja, o reino de Nápoles -, e outros menores . Qualquer
deles estava constantemente à mercê dos mais fortes Estados europeus,
como a França e a Espanha. Os Espanhóis dominavam o reino de Nápoles
e os Franceses, após as intervenções armadas de Carlos VIII e Luis XII,
dominaram Milão e partilharam durante algum tempo o poder em
Nápoles.
Desde 1434 que Florença era governada pela poderosa família
Médici. O seu regime foi interrompido em 1494 pela chegada das tropas
francesas de Carlos VIII. Até 1496, Florença conhece uma espécie de
república teocrática, sob a influência do pregador dominicano Savonarola.
Após a queda deste, a república mantém-se durante mais 16 anos .
Maquiavel joga aqui um papel importante como diplomata. Chefia
missões junto da monarquia francesa (1504, 1510-11), da Santa Sé (1506)
e do imperador germânico (1507-08). Quando os Médicis reconquistam
o poder, em 1512, com a ajuda das tropas espanholas, Maquiavel é preso,
torturado e afastado da vida política activa. Durante os dez anos que se
seguiram, dedicou-se a escrever sobretudo sobre história e filosofia
política. Acabou por reconquistar o favor da família Médici e, nos dois
últimos anos da sua vida, volta a participar na política activa. O seu
principal trabalho, O Príncipe, foi escrito em 1513, mas publicado apenas
em 1532, após a sua morte. A polémica à volta d' O Príncipe, que ainda
hoje dura, começou quase de imediato. A obra foi condenada pelo papa
Clemente VIII e, em 1559, é colocada no index dos livros proibidos.
Maquiavel terá escrito O Príncipe com dois objectivos: influenciar os
destinos da sua Florença e da Itália - ameaçadas pelas divisões internas
e pelos perigos externos representados por Espanha e pela França - e
conseguir recuperar uma posição de conselheiro junto do príncipe então
no poder na sua cidade: Lourenço de Médicis.
Podemos deduzi-lo da própria obra e de urna carta, datada de 10
de Dezembro de 1513, dirigida ao seu amigo Francesco Vettori, que nos
dá um retrato do que era a sua vida de «exilado» no refúgio campestre
de San Casciano:
«C .. . ) VOU contar-te o que é a minha vida. Levanto-me ao nascer
do Sol e vou até um bosque meu que mandei cortar, onde passo duas
horas a verificar os trabalhos do dia anterior e à conversa com os
lenhadores, que estão sempre metidos nalgum problema, ou entre eles
ou com os vizinhos. C ... ) Quando saio de lá, vou até uma fonte, e dali a
verificar as minhas annadi lhas para os pássaros. Levo um livro debaixo
do braço: Dante ou Petrarca, ou um dos poetas menores como Tíbulo,
Ovídio, ou outro. Leio sobre as suas paixões amorosas, e os seus amores
trazem-me à memória os meus, e delicio-me durante um bocado com
estes pensamentos. A seguir, vou até à estalagem à beira da estrada.
Converso com os passantes, peço-lhes notícias das suas cidades, aprendo
algumas coisas e anoto os vários gostos e diversos conceitos dos homens.
Entretanto, chega a hora do almoço e, à mesa com a família, como aquilo
que houver e que a minha pobre casa e escasso património permitem.
Após a refeição, volto à estalagem. Normalmente encontro por lá o
estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois fomeiros . Passo o resto
do dia na sua companhia, jogando à cricca ( I) e ao tricche-trach (2) - que
dão origem a muitas disputas, respostas afiadas e insultos. Na maioria
das vezes jogamos por meio tostão, mas a nossa gritaria ouve-se até San
Casciano. No meio destes parasitas, é assim que arejo os miolos e
encontro alívio para as maldades da sorte. Compraz-me que ela me tenha
assim abatido, para ver se não se envergonha.
Ao cair da noite, volto a casa e entro no meu escritório. À entrada,
dispo as roupas sujas e enlameadas, ponho as minhas melhores vestes e
assim, convenientemente ataviado, entro nos velhos domínios dos antigos,
onde sou recebido com amabilidade e me alimento destas iguarias que são
só minhas e para as quais nasci . Não me envergonho de falar com eles e
perguntar-lhes pelas razões dos seus actos. E eles têm a humanidade de
responder-me. Durante quatro horas, não sinto aborrecimento, esqueço
todos os problemas, não temo a pobreza nem me amedronta a morte. Tomo
-me inteiramente um entre eles. E como Dante diz que não pode haver
conhecimento sem memória , apontei aquilo que aprendi com a sua
conversação e compus um opúsculo, De Principatibus, onde penetro o
mais profi.mdo que consigo neste assunto, discutindo o que é mn principado,
que tipos de principados há, como se conquistam, como se mantêm, e
porquê se perdem. Se alguma das minhas fantasias te agradou, esta não
deverá desprazer-te; e por um príncipe, sobretudo um príncipe novo, deveria
ser bem recebido. Por isso, dirigi-o ao Magnífico Giuliano [de Médicis] (3).
( .. . ) Estou a perder-me. Não posso continuar muito mais tempo
assim sem me tomar desprezível na minha pobreza. Além disso, é meu
desejo que estes senhores Médicis comecem a dar-me uso, nem que fosse
para pôr-me a fazer rolar urna pedra, porque então, se não conseguisse
ganhar a sua confiança, só poderia culpar-me a mim mesmo. Ao ler isto,
ver-se-á que não andei a dormir nem a jogar fora os quinze anos gastos
no estudo da arte de governar, e todos deveriam dar valor a um homem
que ganhou uma rica experiência à custa de outros. Quanto à minha
lealdade, não deveria haver dúvidas, pois que se sempre fui leal, não
seria agora que deixaria de sê-lo. Quem quer que tenha sido leal e
verdadeiro como eu fui durante quarenta e três anos, dificilmente poderia
mudar de natureza, e da minha lealdade e bondade é testemunha a minha
pobreza ( ... ).»
Maquiavélico: ardiloso, astucioso, cruel, diabólico, manhoso;
maquiavelismo: intriga, má-fé, perfidia, traição, velhacaria - eis as
definições que encontramos ao consultar um simples dicionário de
sinónimos. Maquiavel é o diabo, o sem escrúpulos, o defensor de que os
fins justificam os meios, quaisquer que eles sejam. Ernst Bloch declara
que «a doutrina de governo de Maquiavel é cínica. A sua última aplicação
prática foi o Estado hitleriano ( ... ) É o fascismo, o nazismo que revelam
a verdadeira natureza do pensamento político de Maquiavel» .
Será? Maquiavel, ao contrário do seu contemporâneo e
conterrâneo Savonarola, não é um pregador, um «profeta desarmado».
Não quer mudar nem moralizar os homens. No dizer de Daniel Donno,
tradutor e autor do ensaio introdutório da edição norte-americana (da
Bantam) d' o Príncipe. «o seu principal contributo para a política reside
no facto de libertar a acção política das considerações morais. Isto não
quer dizer que advogue a imoralidade. Na verdade, há amplos
testemunhos de que as suas opções morais coincidiam largamente com
as dos seus contemporâneos. Mas onde os teóricos da política tinham
tradicionalmente fundado as suas ideias em alicerces teológicos e éticos,
julgando as instituições e os governantes segundo um padrão do que
devia ser, Maquiavel afinnou que a religião e a moral não tinham lugar
na arena política, excepto na medida em que servissem fins políticos .
Para ele, o valor de uma instituição ou de um governante deveriam ser
detenninados apenas pelo êxito prático, e, pelo menos no que diz respeito
a O Príncipe, o êxito significava a aquisição e a manutenção do poder
político».
« Nesta matéria afasto-me das opiniões dos outros,» diz Maquiavel
no capítulo XV d' O Príncipe. «Mas sendo meu intento escrever coisa
útil a quem a entende, pareceu-me mais conveniente ir direito à verdade
efectiva das coisas que à sua imaginação. Muitos imaginaram repúblicas
e principados que nunca foram vistos nem conhecidos na realidade.
Porém, a maneira como se vive está tão afastada da maneira como se
devia viver que aquele que deixa aquilo que se faz por aquilo que deveria
fazer-se aprende mais a perder-se que a salvar-se, porque um homem
que queira em tudo professar o bem arruina-se entre tantos que não são
bons.»
Nos seus escritos, Benedetto Croce afirma que o maquiavelismo é uma
ciência, que tanto pode servir reaccionários como democratas, tal como
o hábil manejo da espada pode servir tanto homens honestos como
bandidos. Gramsci, nos Cadernos da Prisão, considera-o o nmdador da
política como actividade autónoma, com as suas próprias leis e princípios,
distintos dos da moral e da religião. A figura do «príncipe», como entidade
mítica, seria o correspondente do moderno partido político. Em termos
actuais, diríamos que Maquiavel é o teórico, por excelência, da «razão
de Estado».
Parafraseando Maquiavel , «não quero deixar para trás» um aspecto
particular da sua· modernidade: a importância que dá à imagem do
político. Maquiavel percebe que o político deve manipular a imagem
que dá de si . Um príncipe deve parecer bom, justo, generoso, ainda
que, para conservar o Estado, tenha que ser exactamente o contrário. «A
um príncipe não é, pois, necessário ter todas as qualidades acima
mencionadas», diz Maquiavel no capítulo XVIII, «mas é-lhe indispensável
parecer que as tem. Atrever-me-ei mesmo a dizer que tê-las e observá-las
sempre resulta danoso, e parecer tê-las, útil. Como parecer piedoso, fiel,
humano, íntegro, religioso - e sê-lo, mas estar armado de tal ânimo que.,
em precisando de não o ser, possa e saiba transfOlmar-se no contrário.»
E isto porque «os homens, em geral, julgam mais com os olhos do
que com as mãos, porque todos podem ver, enquanto poucos podem tocar.
Todos vêem o que pareces, poucos têm o sentimento do que és.» Não
existe, pois, poder sem dissimulação, e o poder consiste na representação
de si mesmo.
Na Europa de finais do século XV, princípios do XVI, Maquiavel,
homem culto e viajado, intui a necessidade de a Itália, um gigante
financeiro e comercial, mas um anão político devido às suas divisões,
se unir em torno de um líder forte para pôr fim às disputas entre
principados e criar um Estado moderno, centralizado, dispondo de um
exército próprio, à semelhança ' do que já haviam conseguido, ou
estavam em vias de conseguir, potências continentais· como a Espanha
e a França. Se não o conseguisse, corria o grave risco de suçumbir às
mãos dessas mesmas potências. Não ~ra uma ameaça distante .
Maquiavel viu com os seus olhos o desfilar das tropas francesas de
Carlos VIII e Luis XII ou as do Grande Capitão de Espanha pelas terras
italianas, ocupando cidades, pilhando, pondo e depondo príncipes e
papas.
A Itália está «mais escrava que os Hebreus, mais. serva que os
Persas, mais dividida que os Atenienses, sem chefe, sem ordem; batida,
espoliada, lacerada, invadida», suportando «todos. os tipos de ruína»
(capítulo XXVI) . «Sem vida, espera por aquele que venha sarar as
suas feridas e ponha fim aos saques da Lombardia, à espoliação do
reino de Nápoles e da Toscana, e a cure das chagas que há muito
degeneraram em fístulas .»
Mais que um filósofo, Maquiavel é um político, um homem de
acção. Por isso, o capítulo final d' O Príncipe é uma «Exortação a·
tomar a Itália e libertá-la dos bárbaros». Ocorre-me de irnediato um
paralelismo com a famosa XI tese de Marx sobre Feuerbach: «Os
filósofos não têm feito mais que interpretar o Mundo de diferentes
maneiras; o que importa é transformá-lo .»
César Bórgia (4), que, diz Maquiavel, «nunca me cansarei de citam,
fora o modelo do príncipe com as qualidades que ele considera necessárias
para essa tarefa libertadora. Não lhe faltava a virtu, mas traiu-o afortuna.
Os Médicis, novamente no poder em Florença, senhores de um império
comercial e financeiro (5), poderiam fornecer a nova incarnação desse
príncipe redentor, na pessoa de Lourenço.
A Itália - e Maquiavel - esperavam-no. «A guerra é justa
quando necessária, e as armas são sagradas onde não há esperança senão
nas armas», diz Maquiavel no capítulo XXVI, citando Tito Lívio . «Aqui
é grande a disposição; e não pode haver grandes dificuldades onde há
grande disposição, desde que a vossa casa siga o exemplo daqueles que
propus como modelo.»
Faltava quem dirigisse: «O restante deveis fazê-lo vós. Deus não
quer fazer tudo, para não nos retirar o livre arbítrio e parte da glória que
nos toca a nós .»
Nesta tradução procurei não sacrificar, mais do que o
indispensável à clareza necessária, a escrita por vezes hesitante e algo
repetitiva de Maquiavel, mas também notavelmente isenta, como ele
próprio diz, de «amplos períodos, palavras pomposas e magníficas e
quaisquer extravagâncias ou ornamentos exteriores com os quais muitos
costumam descrever e ornamentar as suas coisas».
Utilizei o texto italiano do Prof. Giuseppe Bonghi (edição html
de Junho de 1996, baseada na edição da Sansoni, Florença 1967, da
responsabilidade de Luigi Russo), que pude comparar com as excelentes
traduções de Daniel Donno (Bantam Books, 1966) e Fernanda Pinto
Rodrigues (1976), que, mais do que uma vez, me ajudaram a encontrar a
palavra ou expressão mais equilibrada.
Quanto às notas, procurei reduzi-las ao mínimo necessário para a
compreensão de certas situações e eventos históricos.
António Simões do Paço
NOTAS
1. Antigo jogo de cartas.
2. Tric-trac ou tavala reale: um antigo jogo de mesa ainda hoje jogado
na Grécia e no Egipto.
3. Ver nota 1 da Dedicatória.
4. Ou Borja, filho do papa Alexandre VI, que era um marrano valenciano,
natural de Xátiva.
5. Os Médicis tinham fábricas de tecidos de seda, comerciavam em azeite,
especiarias e peles, detinham um quase monopólio do alúmen -
indispensável aos tintureiros - e, sobretudo, controlavam bancos em
Itália e num punhado de grandes centros europeus, como Avignon,
Genebra, Lyon, Bruges e Londres.
DEDICATÓRIA
Nicolau Maquiavel ao Magnífico Lourenço de Médicis (1)
Nicolaus Naclavellus ad Magnificum Laurentium Medicem
Costumam, as mais das vezes, aqueles que desejam ficar nas boas graças de
um príncipe, apresentar-se-Ihe com aquelas coisas que têm por mais caras ou
que crêem dar-lhe maior prazer; donde se vê muitas vezes serem-lhes
apresentados cavalos, armas, panos de ouro, pedras preciosas e ornamentos
semelhantes, dignos da sua grandeza. Desejando eu, pois, oferecer-me a Vossa
Magnificência com algum testemunho da minha sujeição, não encontrei entre
as minhas coisas nenhuma que tenha por mais cara ou tão estimada quanto o
conhecimento dos feitos dos grandes homens, aprendido com uma larga
experiência das coisas modernas e o estudo continuado das antigas: as quais
tendo eu com grande diligência longamente reftectido e examinado, e agora
resumido num pequeno volume, envio a Vossa Magnificência. E se bem que
julgue esta obra indigna de vos ser apresentada, confio que, pela vossa
humanidade, a aceitareis, considerando que não posso fazer-vos maior dom
que dar-vos a possibilidade de em pouco tempo entenderdes tudo aquilo que
me levou tantos anos, e através de tantos trabalhos e perigos, a conhecer. Não
enchi nem ornamentei esta obra de amplos períodos, nem de palavras pomposas
e magníficas, nem de quaisquer extravagâncias ou ornamentos exteriores com
os quais muitos costumam descrever e ornamentar as suas coisas; pois que
quis que nada lhe renda honra e que apenas a variedade da matéria e a
seriedade do assunto a tornem grata. Nem desejo que seja tomado por
presunção que um homem de baixa e ínfima condição ouse discorrer e regular
o governo dos príncipes; pois que, tal como aqueles que desenham paisagens
se colocam em baixo na planície para observar a natureza dos montes e dos
lugares altos, e para observar a dos baixos se ponham no cimo dos montes, da
mesma maneira, para conhecer bem a natureza dos povos é preciso ser príncipe,
e para conhecer bem a dos príncipes é preciso ser do povo. Recebei pois,
Vossa Magnificência, esta pequena oferta com o mesmo espírito com que eu a
envio; se a lerdes e considerardes diligentemente, nela vereis um dos meus
mais profundos desejos, o de que alcanceis aquela grandeza que a fortuna e
as vossas outras qualidades vos prometem. E se Vossa Magnificência, do ápice
de vossa alteza, se dignar volver uma ou outra vez o olhar para estes baixos
lugares, verá como imerecidamente suporto uma grande e contínua maldade
da fortuna.
Capítulo I. Que tipos de principados há e de que modos se adquirem
Quaf sinf genera principafuum ef quibus madis acquiranfur
Todos os Estados, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens
foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados são ou hereditários, onde
o principe é há muito tempo da mesma linhagem, ou então são novos. Os novos ou
são inteiramente novos, como foi Milão para Francesco Sforza (1), ou são como
membros acrescentados ao Estado hereditário do príncipe que os adquire, como é
o. reino de Nápoles para o rei de Espanha (2) Os domínios assim adquiridos
habituaram-se a viver sob um príncipe ou estão habituados a ser livres; e são
adquiridos ou pelas armas próprias ou de outros, ou por fortuna ou por virtU. (3)
Capítulo II. Dos principados hereditários
De principatibus hereditariis
1. Deixarei para trás as discussões sobre as repúblicas, porque sobre elas
discuti longamente de uma outra vez (1) . Abordarei apenas o principado, e
segundo a ordem acima indicada, discutirei como estes principados podem
ser governados e preservados.
Digo, assim, que naqueles Estados hereditários acostumados à linhagem
do seu príncipe há muito menos dificuldade em conservá-los que nos
novos; porque basta não preterir a ordem dos seus antepassados e
depois temporizar com os casos que ocorram; de modo que, se Estado,a
não ser que uma força extraordinária e excessiva dele o prive ; e
aindaque dele seja privado, voltará a recuperá-lo à mínima adversidade
do ocupante.
2. Temos em Itália o exemplo do duque de Ferrara, que pôde suster os assaltos
dos Venezianos em 1484 e os do papa Júlio em 1510 pela
simples razão de estar há muito estabelecido no seu domínio.
Porque o príncipe natural tem menos razões e menos necessidades
de ofender: donde se convém que seja mais amado; e se vícios
extraordinários não o fizerem odiar, é razoável que sejanaturalmente
bem visto pelos seus. Uma mudança deixa sempre pedras aparelhadas
para edificar outra, mas num domínio antigo e contínuo apaga-se a
memória das mudanças e das suas causas.
Capítulo III. Dos principados mistos
De principatibus mixtis
1. Mas é nos principados novos que existem as dificuldades. Em primeiro
lugar, se não é inteiramente novo, mas sim membro [de outro], podem
chamar-se de conjunto quase um principado misto. As suas variações
nascem em primeiro lugar de uma dificuldade natural que é comum a todos
os principados novos: que os homens mudam de bom grado de senhor,
crendo ficar melhor; e esta crença leva-os a pegar em armas contra aquele;
no que se iludem, pois vêem depois por experiência terem piorado. Isto é
resultado de uma outra necessidade natural e comum, que é a necessidade
de ofender aqueles que se domina, seja com homens de armas, seja com
infinitos outros agravos inerentes a uma nova conquista; de modo que [o
príncipe] terá por inimigos todos aqueles que ofendeu ao ocupar aquele
principado, e não poderá manter como amigos os que o ajudaram a fazê-lo,
por não poder satisfazê-los do modo que era pressuposto e não poder
usar contra eles remédios fortes, por ser deles devedor. E ainda porque,
mesmo que tenha um exército poderosíssimo, tem necessidade do favor
dos habitantes locais para entrar numa província. Foi por estas razões
que Luis XII , rei de França, ocupou rapidamente Milão e rapidamente a
perdeu. E bastaram para tirar-lha da primeira vez as forças de Ludovico
[Sforza], pois que aqueles mesmos que lhe haviam aberto as portas, vendo
-se enganados nas suas opiniões e expectativas, não podiam suportar os
fastídios do novo príncipe.
2. É bem verdade que, tendo conquistado pela segunda vez uma região
rebelada, é mais difícil perdê-Ia; porque o senhor, aproveitando-se da
rebelião, terá menos relutância em assegurar a sua posição punindo os
delinquentes, descobrindo os suspeitos, fortalecendo-se onde estava mais
fraco. De modo que, se para a França perder Milão bastou, da primeira
vez, um duque Ludovico a ameaçar as suas fronteiras, para perdê-Ia uma
segunda vez foi necessária a oposição de todos e que os seus exércitos
fossem desbaratados e expulsos de Itália - o que resultou das razões
acima indicadas. No entanto, tiraram-lha da primeira e da segunda vez. As
razões universais da primeira já foram descritas; resta-nos agora falar sobre
as razões da segunda, e ver que remédios tinha o rei de França, ou poderia
ter alguém que estivesse na sua posição, para poder manter melhor as
suas conquistas.
3. Digo, portanto, que estes Estados que são acrescentados pela conquista a
um Estado há muito na posse daquele que conquista ou são da mesma
província e da mesma língua, ou não são. Quando o sâo, é muito fácil
conservá-los, sobretudo quando não estão habituados a viver livres. Para
possuí-los seguramente basta extinguir a linhagem do príncipe que os
dominava, porque nas outras coisas, desde que se lhes mantenha as antigas
condições e não se lhes altere os costumes, os homens vivem quietamente,
como se viu que fizeram a Bretanha, a Gasconha e a Normandia que há
tanto tempo estão com a França. E ainda que haja alguma diversidade na
língua, os costumes são, no entanto, semelhantes e facilmente conciliáveis.
Quem conquiste [estes Estados] e quiser mantê-los deverá ter em atenção
duas coisas: uma, que a linhagem do antigo príncipe se extinga; a outra, não alterar as suas leis nem os seus impostos; desse modo, em muito
pouco tempo formarão um único corpo com o seu principado antigo.
4. Mas quando se conquistam Estados numa província de língua, costumes e
leis diferentes, aqui surgem as dificuldades; e é necessário grande fortuna
e talento para conservá-los; e um dos maiores e eficazes remédios é que a
pessoa que os conquista passe a habitá-los. Isto tornaria mais segura e
durável esta posse - como fez o Turco na Grécia, o qual, com todas as
outras disposições que observou para manter este Estado, se não tivesse
passado a habitá-lo, não teria podido conservá-lo. Pois que, estando lá,
vêem-se nascer as desordens e pode-se remediá-Ias prontamente. Não estando lá, só se sabe delas quando são tão grandes que já não têm
remédio. Além disso, a província não é pilhada pelos funcionários. Os
súbditos satisfazem-se por terem pronto recurso ao príncipe; donde terão
mais razões para amá-lo, em querendo ser bons; e em querendo ser de
outro modo, para temê-lo. Um inimigo externo que queira assaltar aquele
Estado, ter-Ihe-á mais respeito, porque, habitando-o o príncipe, só o perderá
com grandíssima dificuldade.
5. O outro melhor remédio é enviar colónias para um ou dois lugares que
sejam quase compedes desse Estado; porque é necessário ou fazer isto
ou manter lá muita gente de armas e infantaria. Nas colónias não se gasta
muito. Com pouca ou nenhuma despesa, podem ser enviadas e mantidas;
e só ofende aqueles a quem tira os campos e as casas para dá-los a novos habitantes, que são uma ínfima parte do Estado; e aqueles a quem ofende,
permanecendo dispersos e pobres, não podem incomodá-lo. Todos os outros
ficam de parte, sem serem lesados, e por isso deverão manter-se quietos,
e também por medo de errar, não fosse acontecer-lhes a eles o mesmo
que aos que foram despojados. Concluo que estas colónias não custam nada, são mais fiéis e incomodam pouco; e os ofendidos não podem incomodar, por serem pobres e dispersos, como já disse. Pelo que há a
notar que os homens devem ser bem tratados ou aniquilados, porque se vingam das pequenas ofensas; das graves não podem. Assim , a ofensa que se faça a um homem deve ser tal que não se tema a vingança. Porém,
mantendo, em vez de colónias, homens de armas gasta-se muito mais,
tendo que gastar com as guarnições todos os recursos do Estado; deste
modo, a conquista reverte em perda, e ofende muito mais, porque incomoda
todo o Estado com as deslocações e o alojamento do seu exército. Todos
se ressentirão de tais incómodos e se tornarão seus inimigos; e são um
inimigo que pode incomodá-lo, pois que está na sua própria casa. De todos
os pontos de vista, portanto, estas guarnições são inúteis, tanto quanto as colónias são úteis.
6. Deve ainda um príncipe que está numa província que, como foi dito, difere
da sua, tornar-se campeão e defensor dos vizinhos com menos poder e
procurar enfraquecer os mais poderosos. E ainda guardar-se de que em
qualquer caso os invada um estrangeiro tão poderoso quanto ele. Isto
sempre acontece através da ajuda de habitantes descontentes, ou por
demasiada ambição ou por medo. Foi esse o caso dos Etólios, que deixaram
entrar os Romanos na Grécia ; e em todas as outras províncias onde
entraram foram lá metidos por habitantes locais. Está na ordem das coisas
que sempre que um estrangeiro poderoso entra numa província, todos os
menos poderosos que nela estão a ele aderem, movidos pela inveja que
têm de quem sobre eles exerceu o seu poder; tanto assim é que, a respeito
destes menos poderosos, não precisa o príncipe de cansar-se para ganhá
-los, porque imediatamente aderirão em peso ao Estado por ele conquistado. Basta-lhe assegurar-se de que não ganhem demasiada força nem
demasiada autoridade; e poderá facilmente, com a sua própria força e com
o favor deles, dominar os mais poderosos, para manter-se em tudo o árbitro
desta província. Quem não observar bem estas regras depressa perderá o
que tiver conquistado, e mesmo enquanto o conseguir conservar terá infinitas
dificuldades e problemas.
7. Os Romanos, nas províncias que conquistaram, observaram bem estas
regras. Formaram colónias; protegeram os menos poderosos sem deixar
crescer o seu poder, vergaram os poderosos e não deixaram que
estrangeiros poderosos nelas metessem o pé. Bastar-me-á por exemplo a
província da Grécia. Os Romanos protegeram os Aqueus e os Etólios,
vergaram o reino dos Macedónios e expulsaram Antíoco. E isto sem que
jamais os méritos dos Aqueus e dos Etólios os levassem a permitir-lhes
alargar os seus Estados, ou a permitir a Filipe que os persuadisse a
tornarem-se seus amigos até o terem enfraquecido. Nem o poder de Antíoco
alguma vez os induziu a permitir-lhe manter alguma parte da Grécia. Porque
os Romanos fizeram, nestes casos, aquilo que todos os príncipes sábios
devem fazer, que devem não só precaver-se contra as desordens presentes,
mas também contra as futuras , evitando-as com a toda a diligência possível.
Ao precaverem-se com tempo, facilmente as poderão remediar, mas
esperando que o mal se aproxime, a medicina já não irá a tempo porque a
doença se tornou incurável.
8. Nesta situação acontece aquilo que os médicos dizem em relação aos
atingidos pela tísica: ao princípio, o seu mal é fácil de curar e difícil de
diagnostica r, mas com o avanço do tempo , se não a tiverem
diagnosticado e curado desde o princípio, torna-se fácil de diagnosticar
e difícil de curar. Assim acontece com as coisas do Estado; quando os
males são conhecidos antecipadamente - e só os prudentes
conseguem fazê-lo - são facilmente curados. Mas quando, por não os
termos reconhecido, os deixamos crescer até que todos deles se dêem
conta , então já não há remédio.
Mas os Romanos, prevendo as dificuldades, sempre as remediaram. E
nunca as deixaram persistir para evitar uma guerra, porque sabiam que
as guerras não podem evitar-se, mas apenas adiar-se para vantagens
de outros. Escolheram fazer a guerra contra Filipe e Antíoco na Grécia
para não terem que fazê-Ia na Itália. E na altura podiam ter evitado
uma e outra, mas não quiseram. Nem nunca lhes agradou aquilo que
todos os dias ouvimos das bocas do sábios do nosso tempo:
aproveitemos as vantagens do tempo . Preferiram aproveitar as
vantagens da sua bravura e prudência, porque o tempo acarreta de tudo,
e tanto traz o bem como o mal.
8. Mas voltemos a França e examinemos se das coisas atrás ditas alguma se
fez. Falarei de Luis e não de Carlos (1) , porque tendo aquele conservado
durante mais tempo as suas possessões em Itália, melhor se pôde ver o
seu comportamento. E vereis como ele fez o contrário daquilo que se deve
fazer para conservar um Estado que é diferente do nosso.
9. O rei Luis foi introduzido na Itália pela ambição dos Venezianos, que queriam,
com aquela vinda, ganhar metade da Lombardia. Não quero censurar esta
decisão do rei, pois que, querendo começar a meter o pé em Itália e não
tendo nesta província amigos, antes pelo contrário, sendo-lhe, devido ao
comportamento do rei Carlos, fechadas todas as portas, foi forçado a procurar
as amizades que lhe apareceram. E teria sido bem sucedido se não tivesse
cometido outro tipo de erros. Tendo Luis conquistado a Lombardia ,
rapidamente recuperou a reputação que Carlos lhe havia tirado: Génova
rendeu-se, os Florentinos tornaram-se seus amigos; o marquês de Mântua,
o duque de Ferrara, os Bentivogli , a senhora de Forll , os senhores de Faenza,
Pesaro, Rimini, Camerino e Piombino, os Lucanos, os Pisanos e os Sienenses,
todos vieram oferecer-lhe a sua amizade. Os Venezianos puderam então
avaliar a temeridade da sua atitude: para conquistarem duas cidades na
Lombardia, fizeram do rei senhor de dois terços de Itália (2).
10. Considerai pois com quão pouca dificuldade poderia o rei ter conservado a sua reputação em Itália, se tivesse observado as regras acima descritas e houvesse mantido seguros e defendidos todos os seus amigos, os quais, por serem em grande número fracos e temerosos, uns da Igreja, outros dos Venezianos, eram obrigados a ficar do seu lado. E por meio deles poderia ter garantido a sua posicão contra quem ainda era poderoso. Porém, mal se viu em Milão, fez o oposto, prestando auxílio ao papa Alexandre para que este ocupasse a Romanha (3). Não se apercebeu de que, com esta decisão, estava a enfraquecer-se a si próprio, alienando os amigos e aqueles que ° tinham ajudado, e engrandecendo a Igreja, acrescentando ao domínio espiritual , que já lhe dá tanta autoridade, maior força temporal. E tendo feito um primeiro erro, foi constrangido a prosseguir na mesma via,
de tal maneira que, para pôr fim à ambição de Alexandre e para que este
não se tornasse senhor da Toscana, foi forçado a vir a Itália. Não lhe bastou ter fortalecido a Igreja e alienado os amigos. Para ficar com o reino de
Nápoles, dividiu-o com o rei de Espanha. Assim, quando antes fora o único árbitro da Itália, ele próprio introduziu um parceiro a quem os ambiciosos daquela província e os descontentes com ele poderiam recorrer. Tendo
podido deixar em Nápoles um rei que fosse seu dependente, não o fez, deixando nesse lugar alguém que o podia expulsar a ele (4).
11. O desejo de conquistar é coisa muito natural e comum, e sempre que os
homen~ que o possam o fizerem serão por isso louvados, ou pelo menos não censurados. Mas quando não o podem e querem por força fazê-lo, surge então o erro e também a censura. Se a França, com as suas forças, podia atacar Nápoles, devia fazê-lo; se não podia, não devia dividi-Ia. Se a
partilha da Lombardia com os Venezianos mereceu desculpa, por com ela
[a França] ter posto o pé em Itália, a de Nápoles merece censura, por não ter a mesma necessidade a desculpá-Ia.
Luis fez portanto estes cinco erros: arruinou os menos poderosos; deu mais poder em Itália a um poderoso; introduziu nela um estrangeiro poderosíssimo; não veio habitá-Ia; e não estabeleceu colónias.
12. Estes erros poderiam não o ter prejudicado, pelo menos em vida, se não tivesse cometido o sexto, o de tirar o Estado aos Venezianos. Porque se não tivesse engrandecido a Igreja nem introduzido a Espanha em Itália, era bem necessário e razoável enfraquecê-los; mas tendo tomado aqueles dois primeiros partidos, nunca deveria ter consentido a ruína dos Venezianos. Porque sendo eles poderosos, teriam impedido os outros de se aventurarem na Lombardia, tanto porque não o teriam consentido a menos que dela se tomassem senhores, tanto porque os outros não teriam querido tirá-Ia à França para dá-Ia a eles. E ninguém teria ousado atacar a França e Veneza ao mesmo
tempo. Se alguém disser: o rei Luis cedeu a Alexandre a Romanha e à Espanha o Reino [de Nápoles] para escapar a uma guerra, respondo, com as razões
acima invocadas, que nunca se deve deixar persistir uma desordem para evitar uma guerra, pois que, longe de evitá-Ia, apenas a adiamos e para nossa
desvantagem. E se outros alegarem a promessa que o rei fizera ao papa de
acometer para ele este empreendimento, em troca da dissolução do seu matrimónio e do chapéu [cardinalício] para Ruão, respondo com aquilo que mais abaixo direi sobre as promessas dos príncipes e de como devem ser observadas.
13. O rei Luis perdeu, por conseguinte, a Lombardia por não ter observado alguns dos termos observados por outros que se apoderaram de províncias e nelas quiseram manter-se. Isto não é nenhum milagre, mas muito comum e razoável. Falei sobre esta matéria com o cardeal de Ruão, em Nantes, quando Valentino - assim era popularmente chamado César Bórgia, filho do papa Alexandre -
ocupava a Romanha. Porque, dizendo-me o cardeal de Ruão que os Italianos
não eram entendidos nas coisas da guerra, eu respondi-lhe que os Franceses
não entendiam nada das questões do Estado. Porque se entendessem não
teriam deixado a Igreja atingir tanta grandeza. E viu-se por experiência que a grandeza da Igreja e da Espanha em Itália foi causada pela França, para sua
própria ruína. De onde se retira uma regra geral, que nunca ou raramente falha: aquele que permite a outro tomar-se poderoso cava a sua própria ruína. Porque esse poder é suscitado ou pelo engenho ou pela força, e uma e outra destas
duas são suspeitas em quem se tomou poderoso.
Capítulo IV. Por que razão o reino de Dario, que foi ocupado por Alexandre, não se rebelou contra os seus sucessores após a morte de Alexandre
Cur Darii regnum quod Alexander occupaverat a successoribus
suis post Alexandri mortem non defecit
1. Consideradas as dificuldades que há para conservar um estado recém
-conquistado, poderemos admirar-nos com a forma como, em poucos anos,
Alexandre Magno se tornou senhor da Ásia e, mal a tinha ocupado, morreu; pareceria razoável que todo aquele Estado se rebelasse (1). Porém, os
sucessores de Alexandre mantiveram-no e não tiveram para mantê-lo outras
dificuldades que aquelas que, por sua própria ambição, a si mesmos criaram.
A resposta é que os principados, desde que há memória, se governam de
duas maneiras: ou por um príncipe, sendo todos os outros servidores e agindo como ministros por sua graça e concessão; ou por um príncipe e
por barões, os quais, não por graça do senhor, mas por antiguidade da
linhagem tenham esse título. Estes barões têm Estados e súbditos próprios,
que os reconhecem por senhores e por eles têm natural afeição. Nos
Estados que são governados por um príncipe e por servidores, o príncipe
goza de maior autoridade, porque em toda a sua província não há ninguém
que seja reconhecido como superior a não ser ele; e se obedecem a mais
alguém, fazem-no como a um ministro e funcionário, e não têm por ele particular afeição.
2. Os exemplos destas duas formas de governo são, nos nossos tempos, o
Grão-Turco e o rei de França. Toda a mOf:larquia do Grão-Turco é governada
por um senhor, os outros são seus servidores; e, dividindo o seu reino em sandjacs (2), para lá manda diversos administradores, e muda-os e transfere
-os como lhe apraz. Mas o rei de França está rodeado por um grande número de senhores de velhas famílias, reconhecidos e amados pelos seus súbditos
nos respectivos Estados; têm a sua própria proeminência, que o rei não lhes
pode retirar sem correr perigo. Por conseguinte, quem avaliar estas duas
formas de Estado, verificará ser difícil conquistar o Estado do Grão-Turco,
mas que uma vez conquistado, será fácil conservá-lo.
3. A dificuldade em ocupar o reino do Grão-Turco deriva do facto de não se
poder ser chamado por príncipes desse reino, nem esperar ter a tarefa
facilitada com a rebelião daqueles que estão à sua volta. O que deriva das
razões acima aditadas. Porque sendo todos seus servidores e devedores,
é mais difícil corrompê-los; e ainda que fossem corrompidos, deles não se
pode esperar grande utilidade, não podendo eles mobilizar populações atrás
de si, pelas razões já referidas. Quem quer que ataque os Turcos, deve
pensar que vai encontrá-los unidos e que mais deve contar com as suas
próprias forças que com as desordens dos outros. Mas se o Grão-Turco
fosse vencido e desbaratado em campanha de tal modo que não pudesse
refazer os seus exércitos, não haveria a temer outros que não os do mesmo
sangue do príncipe; uma vez estes eliminados, não resta ninguém que se
deva temer, pois que os outros não têm crédito entre o povo. Tal como o
vencedor não tinha nada a esperar deles antes da vitória, tão pouco deve,
após aquela, temer deles algo.
4. O contrário acontece nos reinos governados como o de França, porque
com facilidade lá poderás entrar, ganhando para ti algum dos seus barões,
uma vez que sempre se encontram descontentes e outros que desejam
uma mudança. Pelas razões já referidas, estas pessoas podem abrir-te o
caminho para aquele Estado e facilitar-te a vitória. Mas depois, para
conservá-Ia, enfrentarás infinitas dificuldades, tanto com aqueles que te
ajudaram como com os que oprimiste. Tão pouco basta eliminar a família
do príncipe, porque ainda ficam senhores capazes de encabeçar novas
insurreições. E se não os puderes contentar nem eliminar, perdes aquele
Estado à primeira oportunidade.
5. Ora, se considerarmos a natureza do governo de Dario, veremos que era semelhante ao reino do Grão-Turco, e a Alexandre foi necessário primeiro
tirar-lhe tudo e ganhar-lhe o campo; após essa vitória, estando Dario morto,
aquele Estado ficou seguro para Alexandre, pelas razões acima explicadas.
E os seus sucessores , se se tivessem mantido unidos, poderiam ter
usufruído dele ociosos. Nem naquele reino nasceram outros tumultos, a
não ser aqueles que t: !es mesmos suscitaram. Mas aos Estados organizados
como o da França é impossível possuí-los com tanta facilidade. Daí
nasceram as muitas rebeliões da Espanha, da França e da Grécia contra
os Romanos, pelos muitos principados que havia naqueles Estados.
Enquanto a memória deles perdurou, os Romanos sempre permaneceram
inseguros naquelas possessões; mas extinta a memória deles, pelo poderio
e continuidade temporal do império, tornaram-se seus seguros possuidores.
E, ainda que combatendo entre si, cada um dos contendores pôde ficar
com uma parte daquelas províncias, segundo a autoridade que nelas havia
ganho. E essas [províncias], por se ter extinto a linhagem dos seus antigos
senhores, não reconheciam senão os Romanos. Tendo considerado todas
estas coisas, ninguém deverá admirar-se com a facilidade que teve
Alexandre para conservar o Estado da Ásia e com as dificuldades que
tiveram os outros para conservar o conquistado, como Pirro e muitos mais.
O que não derivou da muita ou pouca capacidade do vencedor, mas das
dissemelhanças dos súbditos.
Capítulo V. De que modo se devem governar as cidades ou principados que,
antes de serem ocupados, viviam segundo as suas leis.
Quomodo administrandae sunt civitates vel principatus qui antequam occuparentur suis legibus vivebant
1. Quando, como disse, aqueles Estados que se conquistam estão habituados
a viver segundo as suas leis e em liberdade, há três maneiras de conservar
a sua posse: a primeira é arruiná-los; a segunda, ir habitá-los pessoalmente;
a terceira, deixá-los viver segundo as suas leis, cobrando-lhes um tributo e instalando um governo composto de poucos homens que garantam que
continuará a ser teu amigo. Porque, sendo esse Estado uma criação do
príncipe, sabe que não pode subsistir sem a sua amizade e poderio, e tudo
fará para manter a sua autoridade. Não se desejando arruiná-Ia, mais
facilmente se conserva uma cidade habituada a viver em liberdade por
intermédio dos seus cidadãos que de qualquer outro modo.
2. Tomemos por exemplo os Espartanos e os Romanos. Os Espartanos
possuíram Atenas e Tebas criando nelas um Estado de poucos; contudo,
perderam-nas (1). Os Romanos, para conservarem Cápua, Cartago e
Numância, destruíram-nas, e não as perderam (2). Quiseram controlar a
Grécia quase da mesma maneira que os Espartanos haviam feito, tomando-a livre e deixando-a reger-se pelas suas leis; e não tiveram sucesso, de
modo que foram constrangidos a destruir muitas cidades daquela província
para poderem conservar a sua posse.
3. Porque, na verdade, não há meio seguro de conservar essas cidades senão
a destruição. E quem se tornar senhor de uma cidade habituada a viver em
liberdade e não a destruir deve esperar ser destruído por ela; porque sempre
justificará a rebelião em nome da liberdade e dos antigos costumes, os
quais nem o tempo nem os benefícios jamais farão esquecer. E por mais
acções e precauções que se tomem, se os seus habitantes não são divididos
e dispersos, não esquecerão esse nome nem aqueles costumes, e em
qualquer oportunidade a eles recorrerão, como fez Pisa ao fim de estar cem anos submetida aos Florentinos (3).
Mas quando as cidades ou as províncias estão habituadas a viver sob um
príncipe, e a sua linhagem se extinga, estando por um lado habituadas a obedeoer e por outro não tendo o seu antigo príncipe, não lhes ocorre
escolher entre os seus um novo príncipe e não sabem viver em liberdade. De maneira que são mais lentas a pegar em armas e um príncipe pode
mais facilmente conquistá-Ias e conservá-Ias. Porém, nas repúblicas há
mais vida, maiores ódios, maiores desejos de vingança, e a memória das antigas liberdades não as deixa, não as pode deixar em paz. Assim, a via
mais segura é destruí-Ias ou habitá-Ias.
Capítulo VI. Dos principados novos que se conquistam pelas nossas
próprias armas e talento De principafibus novis qui armis propriis ef virtute acquirunfur
1. Que ninguém se espante se, ao falar dos principados em tudo novos, tanto
no príncipe como no Estado, apresentar grandíssimos exemplos, porque
os homens quase sempre caminham por vias que outros abriram e procedem
nas suas acções por imitação. Ainda que não possa seguir estritamente os
caminhos dos outros nem ultrapassar o talento daqueles que imita, o homem
prudente deve seguir sempre os caminhos abertos pelos grandes homens
e imitar os mais excelsos, de tal modo que ainda que o seu talento não se
lhes compare, pelo menos se lhe aproxime. Deverá agir como os archeiros
prudentes que, parecendo-lhes o alvo demasiado distante e conhecendo
as limitações do seu arco, alçam a mira acima do alvo, não para que a
flecha atinja tão grande altura, mas para poderem, com a ajuda de uma
mira tão elevada, atingir o alvo desejado.
2. Digo, portanto, que nos principados inteiramente novos, onde haja um novo príncipe, as dificuldades para mantê-lo serão maiores ou menores consoante
o maior ou menor talento daquele que o conquista. E porque este evento de passar de cidadão a príncipe requer ou talento ou sorte, parece que um
ou outro destes dois factores mitigará em parte as dificuldades. Contudo,
aquele que menos dependeu da sorte obteve maior sucesso. Facilita-lhe
também o êxito ser o príncipe constrangido, por não ter outros Estados, a
vir pessoalmente habitá-los.
3. Falando daqueles que pelo seu talento, e não pela sorte, se tornaram
príncipes, direi que os mais excelentes são Moisés, Ciro, Rómulo, Teseu e
semelhantes. Se bem que não se deva referir Moisés, por ter sido um mero
executor das coisas que lhe eram ordenadas por Deus, basta para que
seja admirado ter tido a graça que o tornou digno de falar com Deus. Mas
consideremos Ciro e os outros que conquistaram ou fundaram reinos: achá
-los-eis a todos admiráveis; e se considerarmos os seus feitos e métodos,
veremos que não estão longe dos de Moisés, que teve um tão grande
preceptor. E examinando os seus feitos e vidas, veremos que não deveram
à fortuna mais do que a ocasião, que lhes deu a matéria onde puderam
introduzir a forma que lhes pareceu. Sem a ocasião, o seu talento teria sido
desperdiçado, e sem o seu talento a ocasião teria surgido em vão.
4. Era portanto necessário a Moisés encontrar o povo de Israel no Egipto,
escravo e oprimido pelos Egípcios, para que aquele, para escapar à servidão, se dispusesse a segui-lo. Foi necessário que Rómulo não tivesse
lugar em Alba e fosse abandonado ao nascer para que pudesse tornar-se
rei de Roma e fundador daquela pátria. Foi necessárío que Ciro encontrasse
os Persas descontentes com o império dos Medos, e os Medos moles e
efeminados por uma longa paz. Não poderia Teseu ter demonstrado a sua
vírtu se não houvesse encontrado os Atenienses dispersos. Estas ocasiões
deram, pois, a estes homens o êxito, e a excelência do seu talento permitiu
-lhes identificar a oportunidade; de onde resultou o enobrecimento e a
. felicidade dos seus países.
5. Aqueles que se tornam príncipes graças à sua virtu, como fizeram estes homens, conquistam o principado com dificuldade, mas conservam-no com facilidade; e as dificuldades que têm para conquistar o principado derivam em parte das novas ordens e costumes que são forçados a introduzir para fundar o seu Estado e garantir a sua segurança. Devemos compreender que não há nada mais difícil de planear, de êxito mais incerto e mais perigoso de gerir que empreender a criação de novas instituições; porque aquele que o faz terá por inimigos todos aqueles que estavam bem com a velha ordem e por tíbios defensores todos aqueles que beneficiarão com a nova ordem. Essa tibieza resulta em parte do medo dos adversários, que têm as leis do seu lado, e em parte da incredulidade dos homens, que, na verdade, não acreditam nas coisas novas enquanto não tiverem sido sljjeitas à prova da experiência. De onde resulta que sempre que os do campo inimigo têm uma oportunidade de atacar, fazem-no com fervor partidário, enquanto os
outros se defendem com tibieza. De maneira que, junto deles, o príncipe corre perigo.
6. É portanto necessário, se queremos compreender bem esta matéria , examinar se estes inovadores se bastam com os seus próprios meios ou se estão dependentes de outros; isto é, se para levarem avante a sua obra precisam de rezar ou de recorrer à sua força. No primeiro caso, saem-se
sempre mal e não dirigem coisa alguma; mas quando dependem das próprias forças e podem usá-Ias, raramente falham. Daqui resulta que todos os profetas armados venceram e os desarmados falharam . Porque, para além do que já foi dito, a natureza dos povos é mutável , e é fácil persuadi-los de uma coisa, mas é difícil consolidá-los nessa persuasão. E por isso convém dispor de modo a que, quando já não acreditarem , se possa fazêlos crer pela força.
7. Moisés, Ciro, Teseu e Rómulo não teriam podido fazer observar durante muito tempo as suas constituições se tivessem Estado desarmados, tal
como nos nossos tempos acontece a Frei Jerónimo [Girolamo) Savonarola (1), cuja nova ordem ruiu quando a multidão começou a descrer dele; e ele não tinha maneira de poder mantê-los firmes naquilo em que tinham acreditado, nem de fazer crer os descrentes. Assim, tais homens encontram grandes dificuldades e perigos no seu caminho, e têm que superá-los pelo seu talento. Porém, uma vez superados, e quando começam a ser venerados, e tendo suprimido todos os que, pelo seu estatuto, lhes tinham inveja, ficam poderosos, seguros, honrados e felizes.
8. A tão elevados exemplos quero acrescentar um exemplo menor que, no entanto, poderá medir-se com eles, e que bastará para todos os outros semelhantes. Refiro-me a Hieron de Siracusa. Este ascendeu de simples cidadão a príncipe de Siracusa. Não ficou a dever nada à sorte a não ser a oportunidade, porque estando os Siracusanos oprimidos, elegeram-no seu capitão, e ele mostrou-se digno de ser seu príncipe. Foi tão grande o seu talento, mesmo quando era um simples cidadão, que quem sobre ele escreveu disse: quod nihi/ iIIi deerat ad regnandum praeter regnum (para ser rei só lhe faltava o reino) . Extinguiu a antiga milícia e criou uma nova; deixou os antigos aliados e forjou novos; e quando teve aliados e soldados seus, pôde, sobre esses alicerces, construir todo o edifício. Passou muitas dificuldades para conquistar, e poucas para conservar.
Capítulo VII. Dos principados novos que se conquistam com as armas e a fortuna de outros
De principatibus novis qui alienis armis et fortuna acquirantur
1. Aqueles que, sendo homens comuns, somente pela sorte se tornam
príncipes, chegam lá com pouco esforço, mas precisam de muito'para assim se manterem. Não encontram difi culdades pelo caminho, porque o
percorrem voando, mas todas as dificuldades aparecem quando alcançam
a sua posição. Estes casos acontecem quando a alguém é concedido um Estado, por dinheiro ou como um favor de quem o concede. Como aconteceu
a muitos na Grécia, nas cidades da Jónia e do Helesponto, onde Dario fez
muitos príncipes para que conservassem essas cidades para sua própria glória e segurança. E aconteceu também com aqueles imperadores que,
sendo homens comuns, pela corrupção dos soldados, ascendiam à cabeça
do império.
2. Estes dependem inteiramente da vontade e da sorte de quem lhes concedeu
esse estatuto, que são duas coisas muito volúveis e instáveis. Não sabem
nem podem conservar esse estatuto. Não sabem porque, se não são homens de grande engenho e capacidade, não é razoável que, tendo vivido sempre como homens comuns, saibam comandar. Não podem porque não
têm forças que lhes sejam dedicadas e fiéis. Além disso, os Estados que
ascendem muito depressa, como todas as outras coisas da natureza que
nascem e crescem depressa, não podem ter raízes e tronco seguros, e
não resistem à primeira tempestade. A menos que, como já disse, aqueles
que se tornaram príncipes de repente tenham a rara capacidade de aprender
rapidamente como preservar aquilo que a sorte lhes deixou cair no colo e
comecem a construir os alicerces que os outros lançaram antes de se
tornarem príncipes.
3. A propósito destas duas formas de se chegar a príncipe, por talento ou por
sorte, quero apresentar dois exemplos ainda na nossa memória: Francesco
Sforza e César Bórgia. Francesco, com os meios adequados e com grande
talento, de homem comum tornou-se duque de Milão; e aquilo que com mil
trabalhos tinha conquistado com pouco esforço conseguiu preservar. Por
seu lado, César Bórgia, que o vulgo chama Duque Valentino, conquistou o
Estado graças à fortuna do pai , e com ela o perdeu, apesar de todos os
seus esforços e de ter feito todas as coisas que um homem talentoso e
prudente devia fazer para enraizar-se naqueles Estados que as armas e a fortuna de outro lhe haviam concedido. Porque, como acima se disse, quem não começa por construir os alicerces, poderá com grande talento fazê-lo depois, ainda que com problemas para o arquitecto e perigo para o edifício.
Se considerarmos todos os progressos do duque veremos que ele construiu
grandes alicerces para o seu futuro poderio; não julgo supérfluo discorrer
sobre isso, porque não saberia que melhores preceitos dar a um príncipe
novo que o exemplo das suas acções. E se as disposições que tomou não
lhe aproveitaram não foi por culpa sua, mas de uma extraordinária e extrema
malignidade da fortuna.
4. Tinha [o papa) Alexandre VI , para fazer grande o duque seu filho, tremandas
dificuldades presentes e futuras. Primeiro, não via maneira de poder fazer
dele senhor de algum Estado que não pertencesse à Igreja. Se pretendesse
apoderar-se do que era da Igreja, sabia que o duque de Milão e os
Venezianos não lho consentiriam; porque Faenza e Rímini estavam já sob
a protecção dos Venezianos. Além disso, via as armas da Itália, e em
particular aquelas de que se poderia servir, nas mãos daqueles que tinham
razões para temer a grandeza do papa, e portanto não podia fiar-se nelas,
estando todas nas mãos dos Orsini, dos Colonna e seus cúmplices (1) . Era
pois necessário perturbar a ordem existente e provocar desordens nos seus
Estados, para poder assenhorear-se tranquilamente de uma parte deles.
Isto foi-lhe fácil porque viu que os Venezianos, motivados por outras razões,
estavam dispostos a reintroduzir os Franceses em Itália. O que não só não
contrariou, mas antes facilitou. dissolvendo o primeiro casamento do rei Luis [XII).
5, Entrou, pois, o rei em Itália com a ajuda dos Venezianos e a cumplicidade
de Alexandre. Mal entrara em Milão, o papa obteve dele gente para a
empresa da Romanha, que lhe foi consentida pela reputação do rei. Tendo
o duque conquistado a Romanha e batido os Colonna, querendo manter aquela e avançar ainda mais, disso o impediam duas coisas: uma, as suas
forças armadas, que não lhe pareciam fiéis; a outra, a vontade da França. Isto é, que as forças dos Orsini, de que se tinha valido , lhe faltassem
deliberadamente, e não só lhe impedissem novas conquistas como lhe
tirassem o conquistado, e que o rei lhe fizesse o mesmo. Quanto aos Orsini,
teve uma amostra das suas intenções quando, depois de tomar Faenza, se
lançou sobre Bolonha e viu a sua tibieza no assalto; e quanto ao rei ,
percebeu qual era o seu ânimo quando, tendo-se apoderado do ducado de Urbino, atacou a Toscana, e o rei o obrigou a desistir dessa empresa. Foi
aqui que o duque decidiu que nunca mais dependeria das armas e da fortuna
dos outros.
6. A primeira coisa que fez foi debilitar os partidos dos Orsini e dos Colonna
em Roma; ganhou para si todos os notáveis que aderiam a essas facções,
trazendo-os para o seu serviço e atribuindo-lhes grandes provisões e honrando-os, segundo o seu estatuto, com postos militares e administrativos.
De maneira que, em poucos meses, eles esqueceram as suas antigas
lealdades e voltaram-se todos para o duque. Depois, tendo já disperso os
membros da família Colonna, esperou a ocasião de destruir os Orsini.
Apresentou-se-Ihe uma boa ocasião, e ele aproveitou-a ainda melhor. Os
Orsini , apercebendocse tardiamente de que a grandeza do duque e da Igreja
era a sua ruína, convocaram uma reunião em Magione, perto de Perugia.
Desta resultou a rebelião de Urbino, tumultos na Romanhae infinitos perigos para o duque, que tudo superou com a ajuda dos Franceses (2).
7. Tendo recuperado a sua reputação, não se fiando nem na França nem noutras forças estrangeiras, disposto a nada a arriscar, decidiu recorrer à astúcia. E tão bem soube dissimular as suas intenções que os Orsini, através
de Paulo, se reconciliaram com ele. O duque não poupou nas cortesias
para tranquilizá-lo, oferecendo-lhe dinheiro, vestes e cavalos. De tal maneira que a sua ingenuidade os levou a Sinigaglia, onde ficaram nas suas mãos (3). Destruidos estes chefes e tendo feito dos seus seguidores aliados, tinha
o duque muito bons alicerces onde fundar o seu poder, uma vez que
controlava toda a Romanha, o ducado de Urbino e, acima de tudo ,
parecendo-lhe ter ganho a amizade dos habitantes da Romanha, que haviam começado a apreciar o bem-estar de que agora gozavam.
8. E como esta parte é digna de nota e de ser imitada por outros, não quero
deixar de mencioná-Ia. Tendo o duque ocupado a Romanha, e encontrando
-a comandada por senhores impotentes que, mais do que governá-Ia, se
tinham dedicado a espoliá-Ia, a provocar desunião em vez de união, de tal maneira que na província grassavam o roubo, o banditismo e toda a espécie de delinquência, achou necessário, para torná-Ia pacífica e obediente ao
braço régio, dar-lhe um bom governo. Para isso propôs Remirro de Orco
(Rémy d'Orque), homem cruel e expedito, a quem deu plenos poderes.
Este, em pouco tempo, devolveu-a à paz e à união, o que lhe valeu grande
reputação. Mais tarde, pareceu ao duque não ser necessária uma autoridade
tão excessiva , por temer que se tornasse odiosa, e propôs que se
organizasse um tribunal civil, no centro da província, presidido por um
magistrado destacado, e junto do qual oficiava um advogado de cada cidade.
E reconhecendo que o rigor do passado gerara alguns ódios, para dela
libertar o ânimo dos povos e ganhar a sua dedicação, quis demonstrar que,
se alguma crueldade tinha havido, não fora por sua vontade, mas devido à
natureza acerba do ministro. E aproveitando uma ocasião, certa manhã,
em Cesena, mandou-o cortar em dois no meio da praça, com um cepo e
uma faca ensanguentada ao seu lado. A ferocidade daquele espectáculo
deixou o povo satisfeito e estupefacto.
9. Mas voltemos ao ponto de partida. Dizia que o duque, achando-se forte e tranquilo quanto aos perigos presentes, por ter-se devidamente armado e haver, em boa parte, destruído as forças vizinhas que lhe poderiam trazer
dano, restava-lhe, para prosseguir as suas conquistas, conseguir o respeito do rei de França, pois sabia que este, que tardiamente compreendera o seu erro, não o toleraria. Para isto, começou a procurar novos aliados e a
alimentar atritos com os Franceses, que tinham entrado no reino de Nápoles
contra os Espanhóis, que cercavam Gaeta. A sua intenção era garantir-se
contra eles - o que teria prontamente conseguido, se Alexandre fosse
vivo. Esta foi a sua conduta quanto às coisas presentes.
10. Porém, quanto às futuras, tinha em primeiro lugar que considerar se o novo
sucessor do papa não seria seu amigo e procuraria tirar-lhe aquilo que
Alexandre lhe dera. E pensou fazê-lo de quatro maneiras: em primeiro lugar,
destruir a linhagem de todos os senhores que tinha espoliado, para privar o
papa da possibilidade de usá-los contra si ; em segundo, ganhar para si
todos os gentis-homens de Roma, como disse, para poder usá-los para
refrear o papa; em terceiro lugar, ganhar todos os cardeais do Colégio que
pudesse; e em quarto, conquistar, antes da morte do papa, mais poder,
que lhe permitisse resistir ao primeiro impacto. Destas quatro coisas, à
morte de Alexandre, tinha conseguido três; a quarta estava quase
concretizada . Dos senhores espoliados, matou quantos pôde, e
pouquíssimos se salvaram; tinha ganho os gentis-homens de Roma, e
ganhara também uma grandíssima parte do Colégio de Cardeais; e quanto
às novas possessões, concebera tornar-se senhor da Toscana, possuía já
Perugia e Piombino, e Pisa estava sob o seu protectorado.
11. E assim que não precisasse de temer os Franceses (na verdade já não
precisava, porque os Franceses tinham sido expulsos do reino [de Nápoles]
pelos Espanhóis, de maneira que ambos precisavam de obter a sua
amizade), tencionava entrar em Pisa. Depois disto, Lucca e Siena cederiam de imediato, em parte pela inveja dos Florentinos, em parte por medo. Os Florentinos não teriam remédio. Se tivesse conseguido isto (ia consegui-lo no ano em que Alexandre morreu), ganharia tanta força e tanta reputação, que poderia manter-se por si só, deixando de depender da fortuna e das
forças de outros, para apoiar-se apenas no seu poder e talento. Mas Alexandre
morreu cinco anos depois de ele ter pegado na espada. Deixou-o com o
Estado da Romanha consolidado, mas com todos os outros ainda no ar, entre dois poderosissimos exércitos inimigos e gravemente doente (4).
12. Tinha o duque tanta força e tanto talento e sabia tão bem como se ganham
e perdem os homens, e eram tão sólidos os alicerces que em tão pouco
tempo havia lançado que, se não tivesse aqueles exércitos a acossá-lo, e
se estivesse de boa saúde, teria sobrevivido a todas as dificuldades. E que
os seus alicerces eram sólidos viu-se bem: a Romanha esperou por ele
mais de um mês; em Roma, ainda que meio morto, esteve em segurança;
e se bem que Ballioni, Vitelli e Orsini viessem a Roma, não conseguiram reunir forças contra ele. Pôde fazer papa, se não quem ele queria, ao menos
quem não fosse aquele que não queria. Porém, se à morte de Alexandre
houvesse estado de boa saúde, tudo lhe teria sido fácil. Disse-me ele, no
dia em que Júlio II foi eleito papa, que tinha pensado naquilo que poderia
acontecer quando morresse o seu pai, e para tudo tinha encontrado remédio,
só nunca lhe tinha ocorrido que nesse dia ele próprio estivesse também às
portas da morte.
13. Tendo passado em revista todas as acções do duque, não vejo onde poderia
repreendê-lo. Antes me parece, como fiz, que deveria propô-lo como
exemplo a todos os que pela sorte e pelas armas de outros ascenderam ao
poder. De grande ânimo e elevada ambição, não poderia ter-se comportado
de outro modo. E só se opuseram aos seus intentos a brevidade da vida de
Alexandre e a sua doença. Portanto, quem achar necessário no seu
principado novo garantir-se contra os inimigos, ganhar aliados, vencer pela
força ou pela fraude, fazer-se amar e temer pelo povo, seguir e reverenciar
pelos soldados, destruir aqueles que o possam ou devam atacar, inovar de
muitas maneiras a ordem antiga, ser severo e grato, magnânimo e liberal,
destruir uma milícia que não lhe é fiel , criar uma nova, conservar a amizade
de reis e príncipes de modo que o devam beneficiar com graças ou opor
-se-lhe com cuidado não pode encontrar melhores exemplos que seguir os
feitos deste homem.
14. Só se poderá acusá-lo de ter feito de Júlio papa. Nisso fez uma má escolha,
porque, como já disse, não podendo escolher um papa a seu modo, poderia
impedir que outro o fosse. E nunca deveria consentir que fossem investidos
no papado os cardeais que tivesse ofendido, ou que, ao tornarem-se papas,
tivessem motivos para temê-lo. Porque os homens atacam ou por medo ou
por ódio. Aqueles que ele tinha ofendido eram, entre outros, San Piero ad
Vincula [Giuliano della Rovere), [Giovanni) Colonna, San Giorgio [Raffaelle
Riario de Savona), Ascânio [Sforza); todos os outros, se se tornassem papas,
tinham razões para temê-lo, excepto o cardeal de Ruão [Georges d'Amboise)
e os espanhóis; estes por laços de família e obrigações; aquele pelo poder,
por ter do seu lado o reino de França. Portanto, o duque, antes de mais
nada, devia fazer papa um espanhol, e não o podendo, devia consentir que
fosse Georges d'Amboise e não Giuliano della Rovere. E quem acha que
nos grandes personagens os benefícios recentes fazem esquecer os ultrajes
antigos engana-se. Errou, pois, o duque nesta eleição, e esse erro foi a
causa da sua ruína.
Capítulo VIII Daqueles que chegam ao principado pela perfídia
De his qui per scelera ad principatum pervenere
1. Mas como de homem comum se chega a príncipe ainda de dois modos, o
que não pode ser totalmente atribuído à sorte ou ao talento, não me parece
que deva deixar de referi-los, se bem que de um se possa falar mais
longamente quando tratarmos das repúblicas. Estes dois modos são quando
se acede ao principado por alguma maneira pérfida ou nefasta, ou quando
um cidadão comum, com o favor dos seus concidadãos, se torna príncipe
da sua pátria. E, falando do primeiro modo, mostrarei com dois exemplos,
um antigo e outro moderno, sem entrar de outra forma nos seus méritos,
porquê me parece que basta, a quem deles necessitar, imitá-los.
2. Agátocles, da Sicília, tornou-se rei de Siracusa (1) quando à partida era
não só um homem comum, como da mais baixa e vil condição. Filho de um
oleiro, teve sempre, em todas as idades, uma vida de celerado. Porém, a
sua malvadez foi acompanhada de tão grande fortaleza de espírito e de
corpo que, tendo entrado para a milícia, passou por todas as patentes até
tornar-se pretor de Siracusa. Tendo chegado a esta posição, decidiu que
chegaria a príncipe e que conservaria pela violência, sem obrigações para
com ninguém, o poder que lhe haviam concedido. Tendo chegado a acordo
nesta matéria com Amílcar, o cartaginês, que nessa altura comandava um
exército na Sicília, convocou uma manhã o povo e o senado de Siracusa,
como se fossem discutir-se os assuntos da república. E, a um sinal
combinado, mandou matar pelos seus soldados os senadores e os mais
ricos de entre o povo. Uma vez mortos, ocupou e conservou o principado
daquela cidade sem qualquer controvérsia civil. E se bem que fosse por duas vezes vencido e sitiado pelos Cartagineses, não só conseguiu defender
a sua cidade como, deixando parte dos seus homens a protegê-Ia, com os outros lançou-se ao assalto de África, e em pouco tempo libertou Siracusa
do cerco e deixou Cartago numa situação de extrema necessidade. Os Cartagineses foram obrigados a chegar a acordo com Agátocles, contentarem-se com as suas possessões africanas e deixarem-lhe a Sicília.
3. Quem avaliar os seus feitos e talentos, não verá nada, ou pouco, que possa
ser atribuído à sorte, pois que, como já dissemos, não foi pelo favor de
ninguém, mas pela sua progressão na hierarquia da milícia, conseguida à
custa de mil trabalhos e perigos, que chegou ao principado - que depois,
com feitos audaciosos e arriscados, conservou. Porém, não se pode dizer
que seja virtu matar os seus concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem
piedade e sem religião. Isto pode levar-nos a conquistar o poder, mas não a glória. Se considerarmos o talento de Agátocies para enfrentar e sair de
perigos e a sua grandeza de ânimo para suportar e superar as adversidades,
não vejo por que deva ser julgado inferior a qualquer dos melhores capitães.
Contudo, a sua feroz crueldade e desumanidade, as suas infinitas perfídias,
não permitem que seja celebrado entre os homens mais excelentes. Não
se pode atribuir à sorte ou à virtu aquilo que por ele foi conseguido sem
uma nem outra.
4. Nos nossos tempos, sendo papa Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, órfão
desde a infância, foi educado por um tio materno chamado Giovanni
Fogliani, e, nos primeiros tempos da sua juventude, foi entregue a Paolo
Vitelli para seguir a carreira das armas, de modo que, distinguindo-se nessa
disciplina, alcançasse um posto elevado na milícia. Quando Paolo morreu,
serviu sob as ordens de Vitellozzo, seu irmão, e em muito pouco tempo, por ser engenhoso e galhardo, tornou-se o primeiro homem da sua milícia.
Mas parecendo-lhe coisa servil ficar às ordens de outrem, planeou, com a ajuda de alguns cidadãos de Fermo a quem era mais cara a servidão que
a liberdade da sua pátria, e com o favor de Vitellozzo, ocupar Fermo. E
escreveu a Giovanni Fogliani çlizendo-Ihe que, estando há tantos anos
longe de casa, queria ir visitá-lo a ele e à sua cidade e tratar da sua herança.
E uma vez que não trabalhara para outra coisa que não fosse a sua honra, para que os seus concidadãos vissem que não gastara maio tempo, queria chegar com pompa e acompanhado por cem cavalos dos seus amigos e
servidores. Pedia-lhe que ordenasse aos cidadãos de Fermo que o
recebessem com todas as honras, o que não só o honraria a ele, como ao
tio, que o criara.
5. Giovanni não se poupou a nenhuma obrigação de cortesia para com o
sobrinho. Tendo garantido que os de Fermo o recebiam honradamente,
alojou-o na sua própria casa, onde dias mais tarde, depois de ter preparado
tudo o que era necessário para a perfídia que planeara, Oliverotto ofereceu
um sumptuoso banquete para o qual Giovanni Fogliani e os homens mais
importantes de Fermo foram convidados. Terminada a refeição e todos os
entretenimentos que são de uso em semelhantes ocasiões, OIiverotto,
manhoso, lançou uma discussão sobre assuntos muito sérios e falou da
grandeza do papa Alexandre VI, do seu filho César e dos seus feitos.
Quando Giovanni e os outros começaram a responder, Oliverotto levantou
-se subitamente e disse que aquelas matérias deviam ser discutidas em
local mais recatado. Retirou-se para outra sala, seguido por Giovanni e
pelos outros convidados. Mal se tinham sentado quando, saídos de
esconderijos, soldados seus se lançaram sobre Giovanni e os outros e os
mataram.
6. Após o massacre, Oliverotto montou a cavalo, atravessou a cidade e cercou
no palácio o supremo magistrado, de tal modo que, por medo, foram
constrangidos a obedecer-lhe e a formar um governo do qual se fez príncipe.
E tendo morto todos os que, por estarem descontentes, o podiam atacar,
fortaleceu a sua posição com uma nova ordem civil e militar de maneira
que, ao fim de um ano, não só estava seguro na cidade de Fermo, como
todos os vizinhos o temiam. E, tal como no caso de Agátocies, a sua expulsão teria sido difícil se não se tivesse deixado enganar por César Bórgia em Sinigaglia, onde, como acima já foi dito, um ano após o parricídio, foi apanhado junto com os Vitelli e os Orsini, e foi estrangulado junto com
Vitellozzo, que fora seu mestre tanto na virtC! como na perfídia.
7. Poderíamos interrogar-nos sobre o porquê de Agátocles e outros
semelhantes, após infinitas traições e crueldades, terem podido viver em
segurança durante tanto tempo nas suas pátrias e defenderem-se de
inimigos externos, sem que nunca os seus concidadãos contra eles tivessem
conspirado, enquanto outros, que também recorreram à crueldade, foram
incapazes de conservar os seus Estados mesmo em tempos de paz, para
já nem falar nos tempos mais incertos da guerra. Creio que isto se deve ao bom ou mau uso da crueldade. Pode dizer-se bem usada (se é lícito dizer
bem do mal) aquela que se faz de uma só vez, pela necessidade de obter
segurança, e depois nela se não insiste, antes a substituindo por medidas
que tenham a maior utilidade possível para os súbditos. Mal usada é quando,
embora raramente aplicada ao princípio, com o tempo a ela se recorre com
frequência crescente e não decrescente. Aqueles que agem do primeiro
modo podem, com a ajuda de Deus e dos homens, encontrar remédio pRra
o seu Estado, como Agátocies. Os outros não conseguem manter-se [no
poder].
8. De onde convém anotar que, ao apoderar-se de um Estado, o ocupante
deve pensar em todas as ofensas que precisa de fazer, e então fazê-Ias
todas de uma vez, para não ter que repeti-Ias a cada passo e poder
tranquilizar os homens e ganhá-los dando-lhes benefícios. Quem fizer de
outro modo, por timidez ou mau conselho, precisará de ter sempre a adaga
na mão e nunca poderá fiar-se dos seus súbditos, pois que, devido às
contínuas ofensas, estes nunca podem estar seguros dele. O mal deve fazer-se todo de uma vez para que, sendo menos saboreado, ofenda menos. O bem deve ser feito pouco a pouco, para melhor se saborear. E, acima de
tudo, um príncipe deve tratar os seus súbditos de modo que nenhum evento, nem mau nem bom, o faça alterar a sua conduta. Porque o mal administrado
em tempos adversos já não vai a tempo; e tão pouco o bem, porque o
julgarão forçado pelas circunstâncias, e ninguém por ele ficará grato.
Capítulo IX. Do principado civil
De principati civili
1. Mas voltando ao outro caso, quando um cidadão comum, não por perfídia
ou por outra violência intolerável, mas com o favor dos seus concidadãos
se torna príncipe da sua pátria, o que se pode chamar principado civil (e
para lá chegar não é necessária toda a virtu nem toda a sorte, mas antes
uma astúcia afortunada), digo que se ascende a este principado ou com o
favor do povo ou com o favor dos grandes. Porque em todas as cidades se
encontram estas duas tendências diversas; e daqui resulta que o povo
deseja não ser comandado nem oprimido pelos grandes, e os grandes
desejam comandar e oprimir o povo. E destes dois apetites diferentes nasce
nas cidades um de três efeitos: ou principado, ou liberdade ou licença.
2. O principado provém ou do povo ou dos grandes, segundo que um ou
outro destes partidos para isso tenha a ocasião. Porque vendo os grandes
que não podem resistir ao povo, começam a criar reputação a um dos
seus, e fazem-no príncipe para poderem, à sua sombra, saciar os seus
apetites. O povo, em vendo que não pode resistir aos grandes, constrói a
reputação de alguém e faz dele príncipe, para defender-se com a sua autoridade. Aquele que ascende ao principado com a ajuda dos grandes
mantém-se com maior dificuldade que aquele que lá chega com a ajuda do povo, porque se vê príncipe com muitos à sua volta que se acham seus
iguais, e por isso não os pode comandar nem manejar a seu modo.
3. Mas aquele que acede ao principado com o favor do povo encontra-se
sozinho nesse posto e não tem à sua volta ninguém, ou tem poucos, que
não esteja pronto a obedecer-lhe. Além disto, para ser honesto, não se
pode satisfazer os grandes sem ofender outros; mas isso pode fazer-se
com o povo, porque a vontade deste é mais honesta que a dos grandes;
estes querem oprimir; aquele não ser oprimido. Além do mais, tendo o povo
por inimigo, um príncipe não pode nunca estar tranquilo, pois o povo é numeroso. Dos grandes pode resguardar-se, porque são poucos. O píor
que pode esperar um príncipe de um povo hostil é ser abandonado por ele;
mas dos grandes, se são seus inimigos, não só deve temer ser abandonado,
mas também que venham contra ele, porque tendo melhor visão e mais
astúcia, prevêem sempre tempo para se porem a salvo e tratam de pôr-se
do lado daquele que esperam que vença. O príncipe tem que viver sempre
com o mesmo povo, mas pode passar bem sem os grandes, podendo fazê
-los e desfazê-los todos os diaS e dar-lhes ou tirar-lhes a reputação à sua
vontade.
4. Para esclarecer melhor esta parte, digo que os grandes devem ser analisados
sobretudo de duas maneiras. Ou, pelo seu procedimento, se governam de
maneira a associarem-se à tua fortuna, ou não. Aqueles que se te associam
e não são rapaces deves honrá-los e amá-los; aqueles que não se te
associam, devem ser analisados de dois modos: ou o fazem por pusilanimidade e defeito natural de ãnimo; nesse caso deves servir-te deles, sobretudo se são de bom conselho, porque na prosperidade honrar-te-ão e
na adversidade não terás que temê-los. Mas quando não se te associam
por cálculo e ambição é sinal de que pensam mais neles do que em ti; e
desses deve o príncipe guardar-se, e temê-los como inimigos declarados,
porque na adversidade sempre ajudarão a arruiná-lo.
5. Portanto, quem chegue a príncipe pelo favor do povo deve manter a sua
amizade; o que é fácil , pois que o povo não pede senão que o não oprimam.
Mas quem se torne príncipe contra o povo e com o favor dos grandes deve,
antes de mais, procurar ganhar o povo; o que é fácil , se o tomar sob a sua
protecção. E porque os homens, quando são bem tratados por aqueles de
que só esperavam o mal se sentem mais gratos para com o benfeitor, o
povo amá-Io-á mais do que se tivesse acedido ao principado com o seu
apoio. E o príncipe pode ganhá-los de muitas maneiras, para as quais,
porque variam consoante os súbditos, não se podem fixar regras, e por
isso não o farei.
6. Concluirei dizendo apenas que a um príncipe é necessária a amizade do
povo. De outra forma, nas situações adversas, não tem remédio. Nabis,
príncipe dos Espartanos, resistiu ao ataque de toda a Grécia e de um exército
romano vitoriosíssimo, defendendo contra estes a sua pátria e o seu Estado.
Bastou-lhe apenas, quando surgiu o perigo, precaver-se contra poucos.
Se tivesse tido o povo por inimigo, isto não lhe teria bastado. E que ninguém
refute esta minha opinião com aquele provérbio estafado, de que «quem
se apoia no povo constrói sobre o lodo», porque isso é verdade quando um
homem comum se apoia nele e espera que o povo o liberte quando é
oprimido pelos inimigos ou pelos magistrados. Neste caso, poderia ver-se
amiúde enganado, como os Gracos em Roma e Messer Giorgio Scali em
Florença (1). Mas quando um príncipe que confia no povo tem coragem e
capacidade de comando, não desfalece na adversidade, não negligenciou
as suas outras defesas e consegue manter o moral dos seus súbditos pelas
suas ordens e pelo seu exemplo, nunca se verá enganado por ele, e
concluirá que construiu sobre bons alicerces.
7. Estes principados costumam periclitar quando passam da ordem civil ao
absolutismo, porque estes príncipes, ou comandam pelos seus meios ou
por intermédio de magistrados. No último caso, a sua situação é mais débil
e perigosa, porque fica dependente dos cidadãos que foram elevados a posições de autoridade e que podem muito facilmente, sobretudo em tempos
adversos, tirar-lhe o poder, ou opondo-se a ele ou não lhe obedecendo. E
o príncipe não vai a tempo, nas situações de perigo, de assumir a autoridade
absoluta, porque os cidadãos e súbditos, que foram habituados a receber
ordens dos magistrados, não estão, nessas situações, dispostos a obedecer
à sua. E haverá sempre, nos tempos dúbios, poucos em quem fiar-se. Porque um tal príncipe não pode apoiar-se no que viu em tempos tranquilos,
quando os cidadãos precisam do Estado. Nessas alturas todos lhe acorrem,
todos prometem, todos querem morrer por ele, quando o risco de morte
está longe; mas nos tempos adversos, quando o Estado precisa dos
cidadãos, encontra poucos. E esta experiência é tanto mais perigosa quanto
não se pode fazer mais que uma vez. De maneira que um príncipe sábio
deve cuidar de que os seus cidadãos, sempre e em todos os tipos de
situação, tenham necessidade dele e do Estado. Assim, ser-Ihe-ão sempre fiéis.
Capítulo X. De que modo se devem medir as forças de todos os principados
Quomodo omnium principatuum vires perpendi debeant
1. Ao examinar as qualidades destes principados convém fazer uma outra consideração. Isto é, se um príncipe tem um Estado tão grande que possa,
em necessitando, bastar-se a si mesmo, ou se terá sempre necessidade
de ser defendido por outros. E para esclarecer melhor esta questão, digo que acho que o príncipe poderá bastar-se a si próprio se tiver abundância de homens ou de dinheiro para poder armar um exército adequado, capaz
de enfrentar quem quer que venha atacá-lo. E julgo ainda que dependerá sempre da ajuda de outros se não puder enfrentar o inimigo em campo
aberto e tiver necessidade de refugiar-se por detrás das suas fortificações.
Do primeiro caso já falei, e a ele voltarei quando necessário. Quanto ao
segundo, não há nada a dizer, a não ser que aconselharia um tal príncipe a
fortificar e aprovisionar a sua cidade, e a não se ocupar do território em
volta. Aquele que tiver fortificado bem a sua cidade e se tiver conduzido
com os seus súbditos da forma que indiquei, e sobre a qual voltarei a falar,
só será atacado com grande relutância, porque os homens são sempre contrários aos empreendimentos onde vejam dificuldade; e não podem
ver-se facilidades em atacar alguém que defenda a sua terra com galhardia
e não seja odiado pelo povo.
2. As cidades da Alemanha gozam de grandes liberdades, têm pouco
território intramuros, e obedecem ao imperador quando lhes apraz. Não
o temem a ele nem a nenhum outro vizinho poderoso. Isto porque estão
de tal modo fortificadas que todos acham que expugná-Ias seria tarefa
desgastante e difícil. Todas têm fossos e muralhas convenientes; artilharia
suficiente; têm sempre nos armazéns públicos de que beber, comer e
queimar para um ano; e além disto, para poderem manter a plebe
alimentada sem perdas para o erário público, têm sempre em comum
trabalho para dar-lhes durante um ano naquelas actividades que são o
nervo e a vida da cidade e nas indústrias que alimentam a plebe. Têm
ainda em grande reputação os exercícios militares, e muitos regulamentos
para mantê-los.
3. Portanto, um príncipe que tenha uma cidade forte e não se faça odiar não pode ser atacado. E se apesar disso alguém o atacasse, seria obrigado a retirar com vergonha, porque as coisas do mundo são tão mutáveis que é impossível a alguém manter os seus exércitos ociosos durante um ano a cercá-lo. E a quem alegasse que o povo que tem os
seus bens fora de portas, vendo-os arder, não terá paciência, e que o
longo cerco e a preocupação com os seus bens o fará esquecer o príncipe,
respondo que um príncipe forte e corajoso superará sempre todas essas
dificuldades, dando aos súbditos ora a esperança de que o mal não durará
muito, ora o temor da crueldade do inimigo, ora salvaguardando-se com
destreza contra aqueles que lhe pareçam mais atrevidos. Além disso, é razoável pensar que o inimigo pilha e queima os campos quando chega,
numa altura em que o ânimo dos defensores ainda está quente e
determinado. Assim, o príncipe terá menos a temer, porque ao fim de
alguns dias, quando o ânimo dos seus homens arrefecer, os danos já
foram provocados, o mal já estará feito e não há mais remédio. Então,
mais que nunca senti r-se-ão ligados ao seu príncipe e acharão que ele
tem obrigações para com eles, tendo as suas casas sido queimados e os
seus bens pilhados na sua defesa. Está na natureza dos homens sentirem
-se ligados tanto pelos favores que se fazem como pelos que se recebem.
Assim, tudo bem pesado, não será difícil a um príncipe prudente manter a determinação dos seus cidadãos antes e durante um cerco , desde que
não lhes falte a comida e os meios de defesa.
Capítulo XI. Dos principados eclesiásticos
De principatibus ecclesiasticis
1. Resta apenas falar, presentemente, dos principados eclesiásticos, em
relação aos quais todas as dificuldades se colocam antes da sua aquisição. Porque se adquirem ou por talento ou por fortuna, e sem uma nem outra se
mantêm. Porque são sustentados por leis antigas fundadas na religião, que são tão poderosas e de tal natureza que mantêm os seus príncipes no
poder, seja qual for o seu procedimento ou vida. Apenas estes têm.Estados
e não os defendem; súbditos, e não os governam. E os Estados, apesar de
estarem indefesos, não lhes são subtraídos; e os súbditos, apesar de não
serem governados, não se importam, e não pensam nem podem afastar
se deles. Portanto, apenas estes principados são seguros e felizes.
2. Mas como são mantidos por razões superiores, as quais a mente humana
não atinge, deles não falarei. Porque são apoiados e exaltados por Deus,
seria coisa de um homem presunçoso e temerário falar deles. Porém, se
alguém me perguntasse como é que a Igreja atingiu tanta grandeza temporal
- apesar de que, antes de Alexandre, os potentados italianos, e não apenas aqueles a quem se chamava potentados, mas todos os barões e senhores,
mesmo os menos importantes, quanto às questões temporais, lhe davam
pouca importância, enquanto agora faz tremer um rei de França, pôde
expulsá-lo de Itália e arruinar os Venezianos -, poderia ser útil evocar as
principais causas, ainda que sejam bem conhecidas.
3. Antes de Carlos, rei de França (1), ter entrado em Itália, esta era governada
pelo papa, pelos Venezianos, pelo rei de Nápoles, o duque de Milão e os
Florentinos. Estes potentados tinham duas preocupações principais: que
nenhum estrangeiro entrasse em Itália com armas; e que algum deles
alargasse o seu Estado. Aqueles que suscitavam mais cuidado eram o
papa e os Venezianos. Para conter os Venezianos, era necessária a união
de todos os outros, como aconteceu na defesa de Ferrara; e para conter o
papa, serviam-se dos barões de Roma, os quais, estando divididos em
duas facções, a dos Orsini e a dos Colonna, sempre arranjavam motivo
para confrontos. Sempre em armas mesmo sob o olhar do pontífice,
mantinham o papado débil e fraco. E, se bem que de vez em quando surgisse
um papa corajoso, como Sixto (2), (lem a sorte nem o saber os conseguiu livrar deste obstáculo. A razão estava na brevidade das suas vidas, porque
nos dez anos que, em média, reinava um papa, muito dificilmente conseguiria dominar uma destas facções. E se, por exemplo, um papa
esteve perto de esmagar os Colonna, outro papa lhe sucedia, inimigo dos
Orsini, que fazia ressurgir os Colonna, mas não tinha tempo de esmagar
os Orsini . Isto fazia que as forças temporais do papa fossem pouco
respeitadas em Itália.
4. Surgiu depois Alexandre VI que, entre todos os pontífices que jamais
existiram, mostrou quanto um papa, pelo dinheiro e pela força, podia
prevalecer, e fez, tendo por instrumento o duque Valentino [César Bórgia] e por ocasião a invasão dos Franceses, todas aquelas cóisas sobre as quais discorri acima a propósito dos feitos do duque. E se bem que o seu
intento não fosse engrandecer a Igreja, mas o duque [seu filho], aquilo
. que fez reverteu no engrandecimento da Igreja. Esta, após a sua morte e
a derrota do duque, foi herdeira do seu trabalho. Veio a seguir o papa
Júlio [II], que achou a Igreja grande, tendo toda a Romanha, com os
barões de Roma derrotados e, graças à acção de Alexandre, aquelas
facções anuladas. E encontrou ainda a via aberta para métodos de
acumular dinheiro que nunca antes de Alexandre tinham sido usados.
5. Júlio não só seguiu como reforçou essas coisas. Procurou ganhar Bolonha,
esmagar os Venezianos e expulsar os Franceses de Itália. Teve êxito em
todas estas empresas e merece ainda mais louvor por tudo ter feito para
engrandecer a Igreja e nenhum interesse privado. Conseguiu ainda manter
os Orsini e os Colonna na situação em que os encontrou, e se bem que
houvesse entre eles alguns chefes capazes de promover alterações, duas
coisas os mantiveram quietos: uma, a grandeza da Igreja, que os assustava; a outra, não terem cardeais, que são origem de tumultos entre eles. Estas
facções nunca estarão em paz quando tiverem cardeais nas suas fileiras, porque estes nutrem, em Roma e fora dela, os partidos, e esses barões são forçados a defendê-los. E assim, da ambição dos prelados, nascem as discórdias e os tumultos entre barões. Sua Santidade o papa Leão (3)
encontrou o papado poderosíssimo e espera-se que, se aqueles o fizeram grande pelas armas, este, com a sua bondade e outras infinitas virtudes, o
faça grandíssimo e venerado.
Capítulo XII. Que géneros há de milícias e acerca dos soldados mercenários
Quat sint genera militiae et de mercenariis militibus
1. Tendo discorrido em pormenor sobre os vários tipos de principado que no
início mencionei, analisado as causas das suas forças e fraquezas e mos
trado os modos pelos quais muitos procuraram conquistá-los e mantê-los,
resta-me falar sobre os meios de ataque e de defesa que estes principados
podem empregar. Já dissemos acima que um príncipe precisa de apoiar
-se em sólidos alicerces; de outro modo, será derrubado. Os principais
alicerces de todos os Estados, tanto os novos como os velhos ou os mis
tos, são as boas leis e as boas armas. E como não pode haver boas leis
onde faltam as boas armas, e onde há boas armas convém que haja boas
leis, deixarei para trás a discussão das leis e falarei das armas.
2. Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu Estado,
ou são suas ou são mercenárias, ou auxiliares ou mistas. As mercenárias e
auxiliares são inúteis e perigosas; e se alguém faz depender o seu Estado das armas dos mercenários, nunca estará firme nem seguro, porque são
desunidos, ambiciosos, indisciplinados, desleais, valentes entre os ami
gos, mas vis ante o inimigo. Não temem a Deus, não têm fé nos homens. A
derrota só é adiada enquanto se adiar um ataque. Na paz é-se espoliado por eles, na guerra, pelo inimigo. O motivo disto é que não têm outro amor nem outra razão que os prenda ao campo de batalha que o soldo, que não é suficiente para levá-los a morrer por ti. Querem ser teus soldados en
quanto não estiveres em guerra, mas quando a guerra surge, ou desertam
ou fogem.
3. Não precisarei de esforçar-me muito a persuadir-vos disto, porque a pre
sente ru ína de Itália não se deve a outra coisa senão a ter estado durante
muitos anos dependente de forças mercenárias. Estas obtiveram algum
sucesso para alguns e pareciam valentes a lutar entre si , mas assim que
apareceu um estrangeiro mostraram o que eram. Daí que o rei Carlos de França tenha podido apoderar-se de Itália com um pedaço de gesso (1).
Quem disse que a razão de isto acontecer eram os nossos pecados falava
verdade (2). Porém, não eram os pecados em que ele pensava, mas estes
de que falei. E uma vez que eram pecados de príncipes, os príncipes tam
bém pagaram por eles.
4. Quero demonstrar melhor a desgraça que são estas tropas. Os capitães
mercenários ou são excelentes homens ou não. Se o são, não podes fiar
te neles, porque sempre aspiram à sua própria grandeza, ou oprimindo-te
a ti , que és o seu patrão, ou oprimindo outros contra a tua vontade. Mas se
o capitão não é virtuoso, normalmente arruína-te. E se alguém argumentar
que quem quer que tenha armas na mão, mercenário ou não, fará a mes
ma coisa, replicarei que as armas devem ser manejadas ou por um prínci
pe ou por uma república. O príncipe deve encarregar-se disso pessoal
mente e assumir o papel de capitão. A república deve mandar os seus
cidadãos. E quando envia um que não seja valoroso, deve substituí-lo; e
se o for, obrigá-lo a cumprir as leis, para que não passe das marcas. A experiência mostra-nos que só os príncipes e as repúblicas com tropas
suas conseguem grandes progressos e que as forças mercenárias não provocam senão danos. E que uma república com tropas próprias é mais
dificilmente dominada por um dos seus cidadãos que uma dependente de tropas estrangeiras.
5. Roma e Esparta mantiveram-se durante muitos séculos armadas e livres.
Os Suíços estão armados e são libérrimos. Entre os exércitos mercenários
antigos temos o exemplo dos Cartagineses, que estiveram para ser oprimi
dos pelos seus próprios soldados mercenários após a primeira guerra com
os Romanos, ainda que os Cartagineses tivessem por chefes militares ci
dadãos seus. Filipe da Macedónia, após a morte de Epaminondas, foi no
meado pelos Tebanos seu capitão, e após a vitória tirou-lhes a liberdade (3)
Os Milaneses, após a morte do duque Filipe, contrataram Francesco Sforza para combater os Venezianos; este, tendo derrotado os inimigos em
Caravaggio, conluiou-se com eles para oprimir os Milaneses, seus patrões.
O pai de Francesco Sforza, contratado pela rainha Giovanna de Nápoles,
abandonou-a subitamente, deixando-a desarmada; para não perder o rei
no, ela foi obrigada a lançar-se nos braços do rei de Aragão.
6. E se, no passado, os Venezianos e os Florentinos estenderam os seus
territórios com estas forças, sem que os seus capitães se fizessem prínci
pes, mas antes os defendessem, respondo que os Florentinos foram neste
caso favorecidos pela sorte, porque entre os capitães talentosos que pode
riam temer, alguns não venceram, alguns encontraram oposição e outros
voltaram as suas ambições para outras paragens. Aquele que não venceu
foi Giovanni Aucut [John Hawkwood), de quem, por não ter vencido, não
pudemos conhecer as intenções; mas todos confessarão que, se tivesse
vencido, os Florentinos estariam à sua mercê. Sforza teve sempre a oposi
ção das tropas de Braceio, e assim vigiaram-se um ao outro. Francesco [Sforza] voltou as suas atenções para a Lombardia, enquanto Braceio vol-
tou as suas para a Igreja e para o reino de Nápoles. Mas voltemos a acontecimentos mais recentes. Os Florentinos fizeram seu capitão Paolo Vitelli,
homem prudentíssimo, que, sendo de baixa condição, ascendeu a uma po
sição de grande importância. Ninguém negará que se este tivesse derrotado Pisa, teria os Florentinos à sua mercê, porque se se tivesse colocado ao
serviço dos seus inimigos não teriam salvação; e para conservá-lo, teriam
que obedecer-lhe.
7. Os Venezianos, se analisarmos o que lhes aconteceu, veremos que avança
ram com segurança e glória enquanto travaram eles mesmos as suas guer
ras. Isto foi a sua política antes de voltarem as suas atenções para terra.
Com os seus patrícios e com o povo armado conseguiram grandes feitos.
Mas assim que começaram a combater em terra, abandonaram estas qualidades e seguiram os costumes da guerra e'm Itália. No princípio da sua ex
pansão em terra, como não possuíam muito território e tinham uma grande
reputação, não tinham muito a temer dos seus capitães. Porém, assim que
os seus territórios aumentaram, como aconteceu no tempo do Carmagnola,
tiveram a prova deste erro. Porque, tendo visto as provas do seu valor, tendo
batido sob a sua direcção o duque de Milão e sabendo da sua relutância em
continuar a guerra, concluíram que não poderiam obter mais vitórias com
ele, porque não queria, e tão pouco podiam despedi-lo, para não voltarem a
perder aquilo que tinham conquisfado. Daí que precisassem, para sua segu
rança, de matá-lo, Depois tiveram por comandantes Bartolomeu de Bérgamo
[Bartolomeo Colleone), Roberto de San Severino, o conde de Pitigliano e
outros. Com esses tinham a temer não ganhos, mas perdas, como aconte
ceu posteriormente em Vailà [Agnadello), onde, num só dia, perderam tudo o
que, com tanta fadiga, tinham conquistado em oitocentos anos. Com exérci
tos mercenários, os ganhos são lentos, tardios e débeis, e as perdas súbitas
e prodigiosas. Como estes exemplos me trouxeram a Itália, que tem sido controlada desde há muitos anos por exércitos mercenários, quero abordar
com mais profundidade este assunto para que, tendo compreendido a sua origem e desenvolvimento, melhor se possa corrigir a situação.
8. Deveis compreender que, nestes últimos tempos, enquanto o poder imperial começou a sofrer derrotas em Itália e a autoridade temporal do papa começou a aumentar, a Itália se dividiu em mais Estados. Muitas das grandes cidades pegaram em armas contra os seus nobres, os quais, antes apoiados pelos imperador, as mantinham oprimidas. A Igreja favorecia es
tas revoltas para ganhar poder temporal. Em muitas outras cidades, um
dos seus cidadãos tornou-se príncipe. Daí que a Itália tenha ficado quase
nas mãos da Igreja e de algumas repúblicas e, uma vez que os padres e os
cidadãos não estão habituados a pegar em armas, começaram a contratar
forasteiros. O primeiro que deu reputação a estas milícias foi Alberigo de Conio, da Romanha. Da sua escola vieram, entre outros, Braccio e Sforza,
que nos se~s tempos foram árbitros da Itália. Depois destes vieram todos
os outros que até ao nosso tempo têm dirigido estes exércitos. E o resulta
do do seu talento foi que a Itália foi invadida pelo rei Carlos [VIII], predada
por Luis [XII], violada por Fernando [o rei católico] e vituperada pelos Suí
ços.
9. A primeira disposição que tomaram foi a de retirar importância à infantaria,
para promover a das suas tropas. Fizeram isto porque, não tendo território
e vivendo da sua profissão, poucos infantes não lhes trariam reputação e
sustentar muitos não estava ao seu alcance. Assim, usavam a cavalaria
que, dentro de números suportáveis, podia ser nutrida e honrada. E as
coisas chegaram a tal ponto que num exército de vinte mil soldados não
chegava a haver dois mil infantes. Além disto, empregaram toda a sua
habilidade para poupar trabalho e medo a si e aos seus soldados, não se
matando nas batalhas, antes fazendo prisioneiros e sem cobrar resgate. Não atacavam as terras durante a noite, e os que viviam nessas terras não atacavam de noite os seus bivaques. Não protegiam o acampamento com
paliçadas nem fossos, nem acampavam no Inverno. E todas estas coisas eram permitidas pelos seus códigos militares e inventadas por eles para,
como disse, se esquivarem a trabalhos e perigos. Assim tornaram a Itália escrava e desonrada.
Capítulo XIII. Das tropas auxiliares, mistas e próprias Oe militibus auxiliariis, mixtis et propriis
1. As forças auxiliares, que são o outro género de tropas inúteis, são as
fornecidas por alguém poderoso que é chamado a ajudar-te e defender-te
com as suas próprias tropas. Foi o que fez recentemente o papa Júlio que, tendo visto a triste figura que fizeram os seus mercenários na campanha
contra Ferrara, se voltou para as tropas auxiliares e pediu a Fernando, rei de Espanha, a ajuda da sua gente e exércitos. Estas forças podem ser
úteis e boas em defesa dos seus interesses, mas são, para quem as cha
ma, quase sempre danosas; se perdem, ficamos vencidos; se ganham,
ficamos seus prisioneiros.
2. E ainda que a história antiga esteja cheia de exemplos destes, não quero
deixar de referir o exemplo ainda fresco do papa Júlio II, cuja acção dificil
mente poderia ter sido pior pensada: para ganhar Ferrara, colocou-se intei
ramente à mercê de um estrangeiro. Porém, a sua boa estrela trouxe uma
terceira coisa que o poupou das consequências da sua decisão insensata.
Quando as suas tropas auxiliares foram derrotadas em Ravena, chegaram
os suíços que, contrariamente a todas as expectativas, incluindo as suas,
expulsaram os vencedores. Assim evitou ficar prisioneiro dos seus inimi
gos, que tinham fugido, nem dos seus auxiliares, por ter vencido com ou
tras armas que não as deles. Os Florentinos, que não tinham exército,
enviaram dez mil soldados franceses contra Pisa para tomá-Ia. Essa decisão trouxe-lhes mais perigo do que alguma vez tinham corrido em tempos
de aflição. O imperador de Constantinopla, para opor-se aos seus vizi
nhos, pôs na Grécia dez mil turcos; estes, finda a guerra, não quiseram de lá partir, e assim teve início a escravização da Grécia pelos infiéis (1 ).
3. Assim, aquele que quiser não poder vencer valha-se destas tropas, porque são muito mais perigosas do que as mercenárias. Com elas tem a ruína
garantida. Estão unidas, dedicadas a obedecer a outros. As mercenárias,
se tiverem vencido, precisam de mais tempo e de uma melhor ocasião para te causarem dano, por não serem um só corpo e terem sido reunidas
e contratadas por ti. Um terceiro que faças seu chefe não pode ganhar
rapidamente autoridade suficiente para atacar-te. Em suma, nas tropas mercenárias o maior perigo é a cobardia; nas auxiliares, o talento.
4. Um príncipe sábio evita sempre estas forças e apoia-se nas suas, e prefe
re perder com as suas que vencer com as outras, considerando não ser
verdadeira a vitória obtida com as tropas de outrem. Nunca me cansarei de
citar o exemplo de César Bórgia e dos seus feitos. Este duque entrou na Romanha com tropas auxiliares, todas francesas, e com elas conquistou Imola e Forl] ; mas não lhe parecendo que fossem seguras, virou-se para
as mercenárias, achando que representavam menos perigo. E contratou
os Orsini e os Vitelli. Posteriormente, achando-as hesitantes, desleais e
perigosas de dirigir, dispensou-as e tratou de arranjar tropas suas. E pode
ver-se facilmente que diferença há entre umas e outras destas tropas con
siderando a diferença que houve na reputação do duque quando só tinha
franceses, quando tinha os Orsini e os Vitelli , e quando ficou com as suas
próprias tropas, sob o seu comando. A sua reputação foi sempre crescen
do, e nunca foi tão altamente estimado como quando todos viram que era
dono e senhor das suas próprias tropas.
5. Tencionava não sair dos exemplos italianos e recentes, mas também não
quero deixar de referir-me a Hieron de Siracusa, de que já falei . Este, como
disse, feito pelos Siracusanas chefe dos exércitos, logo percebeu que aquela
milícia mercenária não era útil , por ser como as nossas, italianas. E, pare
cendo-lhe que não os podia manter nem abandonar, fê-los cortar em peda-
ços a todos. Depois, fez a guerra com as suas próprias tropas, não com as
alheias. Quero ainda evocar uma figura apropriada do Antigo Testamento. Oferecendo-se David a Saúl para ir combater com Golias, o desafiador
filisteu, Saúl, para dar-lhe ânimo, armou-o com as suas armas. Assim que
as endossou, David recusou-as, dizendo que com elas não se sentia bem e que antes queria enfrentar o inimigo com a sua funda e a sua faca. Em
conclusão, as armas de outrem ou não te assentam bem, ou te pesam ou
te apertam.
6. Carlos VII , pai do rei Luis XI, tendo, pela sua sorte e talento, libertado a
França dos Ingleses, percebeu a necessidade de armar-se com as suas próprias armas, e ordenou que no seu reino se instituisse a cavalaria e a
infantaria. Depois, o rei Luis, seu filho , extinguiu a infantaria e começou a contratar soldados suíços. Este erro, seguido de outros, foi, como se vê
hoje, a razão dos perigos em que se encontra esse reino. Ao dar reputação
aos suíços, aviltou as suas próprias forças; ao extinguir a sua infantaria
tornou a sua cavalaria dependente de armas alheias. Tendo-se acostuma
do a combater com suíços, não lhes parece que possam vencer sem eles.
Daqui resulta que os Franceses não são capazes de se bater com os Suíços, e não se atrevem a fazê-lo contra outros sem o seu auxílio. Os exérci
tos franceses são, portanto, mistos, em parte mercenários, em parte do
próprio país. Combinados, são muito melhores que os simplesmente auxi
liares ou simplesmente mercenários, mas muito inferiores a um exército do
próprio país. Este exemplo bastará, porque o reino de França seria insupe
rável se a ordem instituída por Carlos houvesse tido continuidade ou tives
se sido conservada. Mas a pouca prudência dos homens leva-os a come
çar uma coisa que, por parecer então boa, não revela o veneno subjacente, como já disse antes a propósito da tísica.
7. Portanto, aquele que num principado não se dá conta dos males quando
surgem não é verdadeiramente sábio, e a sabedoria é dada a poucos. E se
se considerasse a primeira causa da ruína do império romano, ver-se-ia
que começou com a contratação de mercenários godos. A partir daí, come
çaram a declinar as forças do império romano, e todo o valor que perdia
transferia-se para os Godos. Concluo, pois, que sem exércitos próprios
nenhum principado está seguro. Antes pelo contrário, dependerá da sorte, não havendo virtl! que o defenda na adversidade. E foi sempre opinião e sentença dos homens sábios quod nihil sit tam infirmum aut instabile quam fama potentiae non sua vi nixae [que nada é tão fraco e instável como a fama de um poder que não se apoia na própria força, Tácito, Anais XIII , 19]. E os exércitos próprios são aqueles que são compostos ou por súbditos,
ou por cidadãos, ou por criados teus. Todos os outros são mercenários ou auxiliares. E o modo de organizar exércitos próprios será fácil de encontrar se examinardes os métodos dos quatro personagens que atrás citei e virdes
que Filipe, pai de Alexandre Magno, e muitos outros príncipes e repúblicas se armaram e organizaram. É para essas disposições que remeto inteira
mente.
Capítulo XIV. O que cabe ao príncipe nos assuntos militàres Quod principem deceat circa militiam
1. Um príncipe não deve ter outro objectivo, nem outro pensamento, nem apren
der outra coisa como sua arte que não a guerra, os seus métodos e a sua disciplina, pois essa é a arte que se espera de quem comanda. A sua virtl! é tanta que não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como faz muitas vezes que homens que nasceram comuns ascendam a essa posição. Como contraprova , podemos ver que quando os príncipes pensam mais no conforto que nas armas perdem os seus Estados. E a primeira razão que tos faz perder é negligenciar esta arte; e a razão que tos faz conquistar é professar
essa arte.
2. Francesco Sforza, por ser homem de armas, de cidadão comum ascendeu a duque de Milão; os filhos, por fugirem aos rigores da carreira das armas,
de duques passaram a homens comuns. Porque um dos males que advêm
de estar desarmado é o desprezo, que é uma das infâmias de que o prínci
pe se deve guardar, como adiante explicarei. Não pode haver uma relação
equilibrada entre quem está armado e quem não o está. E não é razoável
que quem está armado obedeça de boa vontade a quem está desarmado,
e que alguém desarmado se sinta seguro entre servidores armados. Por
que havendo nuns desdém e no outro suspeição, não é possível que operem bem em conjunto. E um príncipe que não entenda de assuntos milita
res, entre outras infelicidades, como já disse, não poderá ser estimado
pelos seus soldados nem fiar-se neles.
3. Portanto, nunca deve desviar as atenções do exercício da guerra, e na paz
deve exercitar-se ainda mais do que em guerra. Pode fazê-lo de duas ma
neiras: pelas obras e pela mente. Quanto às obras, além de manter os
seus bem disciplinados e exercitados, deve ele próprio segui-los sempre, e
assim habituar o corpo à dureza do exercício. Ao mesmo tempo, aprende a
conhecer a natureza dos sítios, como se elevam as montanhas e desem
bocam os vales, como se estendem as planícies; entenderá a natureza
dos rios e dos pântanos que, felizmente, existem na Toscana e têmseme
Ihanças com os das outras províncias. De tal maneira que, do conhecimen
to de um local numa província se pode chegar facilmente ao conhecimento
das outras. Ao príncipe que não tenha esta perícia falta a primeira coisa
que deve ter um comandante, pois é assim que se aprende a encontrar o
inimigo, a escolher um local para bivaque, a conduzir os exércitos, a dispor os soldados no terreno e a ganhar vantagem no cerco de uma cidade.
4. Entre outras razões por que os escritores louvaram Filopémen, príncipe dos Aqueus (1 ), conta-se que nos tempos de paz não pensava senão em
como fazer a guerra; e quando estava no campo com os amigos parava
frequentemente e perguntava-lhes: «Se o inimigo estivesse naquela colina
e nós estivéssemos aqui com o nosso exército, qual de nós teria vantagem? Como poderíamos avançar contra eles em boa formação? Se qui
séssemos retirar, como deveríamos fazer? Se eles retirassem, como faría
mos para segui-los?» E, pelo caminho, apresentava-lhes todos os casos
que podem ocorrer a um exército. Ouvia as suas opiniões, dizia-lhes a sua,
corroborava-a com as suas razões. Assim, com estas contínuas cogita
ções, ao comandar os seus exércitos, nunca podia ocorrer uma situação
para que não encontrasse remédio.
5. Quanto ao exercício da mente, deve o príncipe ler as histórias e nelas
avaliar as acções dos homens excelentes, ver como se conduziram nas
guerras, examinar as razões das suas vitórias e derrotas para poder fugir a
estas e imitar aquelas. E acima de tudo, fazer como fizeram no passado
homens excelentes que imitaram alguém que anteriormente foi louvado e
glorificado e mantiveram sempre presentes consigo os seus gestos e feitos
- como se diz que Alexandre Magno imitava Aquiles; César, Alexandre; e
Cipião, Ciro. E quem ler a vida de Ciro contada por Xenofonte reconhecerá
na vida de Cipião quanta glória recolheu dessa imitação, e quanto na cas
tidade, afabilidade, humanidade e liberalidade de Cipião se conforma com
as coisas que Xenofonte escreveu de Ciro. Um príncipe sábio deve agir da
mesma maneira e nunca estar ocioso nos tempos de paz, antes com traba
lho acumular capital, para dele poder valer-se na adversidade. Assim, quan
do a fortuna mudar, encontra-Io-á preparado para resistir-lhe.
Capítulo XV. Das coisas pelas quais os homens, e sobretudo os príncipes, são louvados ou vituperados
De his rebus quibus homines, et praesertim principes, laudantur
aut vituperantur
1. Resta agora ver quais devem ser os modos e a conduta de um príncipe
para com os súbditos e os amigos. E porque sei que muitos já escreveram
sobre isto, receio que, escrevendo também eu, seja considerado presunçoso
se me afastar, sobretudo na discussão desta matéria , das opiniões dos
outros. Mas sendo meu intento escrever coisa útil a quem a entende,
pareceu-me mais conveniente ir direito à verdade efectiva das coisas que
à sua imaginação. Muitos imaginaram repúblicas e principados que nunca
foram vistos nem conhecidos na realidade. Porém, a maneira como se vive
está tão afastada da maneira como se devia viver que aquele que deixa
aquilo que se faz por aquilo que deveria fazer-se aprende mais a perder-se
que a salvar-se, porque um homem que queira em tudo professar o bem
arruina-se entre tantos que não são bons. Daí ser necessário a um príncipe,
para poder preservar-se, aprender a poder não ser bom e a usar ou não
usar dessa faculdade consoante a necessidade.
2. Deixando, pois, para trás as coisas sobre príncipes imaginários e discorrendo
sobre aquelas que são reais, digo que todos os homens, quando deles se
fala, e sobretudo os príncipes, por estarem em posições mais elevadas,
são notados por algumas destas qualidades que lhes trazem censura ou
louvor. Alguns são tidos por liberais, outros por míseros (usando um termo
toscano, porque avaro na nossa língua é ainda aquele que, por rapina, deseja possuir, e mísero chamamos nós àquele que se abstém demasiado
de usar o que lhe pertence); alguns são tidos por pródigos, outros por
rapaces; uns por cruéis, outros por piedosos; uns por indignos de confiança,
outros por leais, uns por efeminados e pusilânimes, outros por feros e
corajosos; uns por humanos, outros por soberbos; uns por lascivos, outros por castos; uns por íntegros, outros por astutos; uns por duros, outros por fáceis; uns por graves, outros por ligeiros; uns por religiosos, outros por
incrédulos; e assim por diante.
3. E eu sei que cada um confessará que seria uma coisa muito louvável que
um príncipe tivesse todas as qualidades acima descritas, aquelas que são
tidas por boas. Mas como não se podem ter nem observar inteiramente,
porque não o consente a condição humana, é-lhe necessário ser
suficientemente prudente para saber fugir da infâmia daquelas que lhe
tirariam o Estado e, se possível, também daquelas que não lho tirariam. Mas não o podendo, que isso não o preocupe demasiado. E tão pouco
deve preocupar-se se incorrer na fama daqueles vícios sem os quais dificilmente poderá salvar o seu Estado. Porque, tudo bem pesado,
encontraremos algumas coisas que, parecendo virtudes, seguindo-as,
cavará a sua ruína; e algumas outras que, parecendo vícios, seguindo-as,
alcançará a segurança e o bem-estar.
Capítulo XVI. Da liberalidade e da parcimónia
De libera/itate et parsimonia
1. Começando pelas primeiras qualidades que acima referi, digo que seria bom ser tido por liberal. Porém, a liberalidade usada ao ponto de conquistar
essa reputação é danosa. Porque se ela se usa virtuosamente e como se
deve usar, não se será por isso conhecido nem se evitará ter fama do
contrário. Para se ser tido por generoso entre os homens é necessário não
deixar para trás nenhuma forma de sumptuosidade, de tal forma que um
príncipe que assim faça consumirá em tais coisas todos os seus recursos e
acabará necessitado de, para manter a reputação de generoso, agravar
extraordinariamente o povo com impostos e fazer todas aquelas coisas que se podem fazer para obter dinheiro. O que começará a torná-lo odioso aos olhos dos súbditos e, ao ficar pobre, pouco estimado por todos. De maneira que, tendo com a sua liberalidade ofendido a muitos e premiado a
poucos, sentirá a instabilidade da sua posição ao primeiro perigo. E tomando
consciência disso e querendo arrepiar caminho, logo incorrerá na fama de
mísero.
2. Por conseguinte, não podendo um príncipe, sem dano, usar da virtude da
liberalidade de modo que lhe seja reconhecida, deve ser prudente e não se
preocupar com a reputação de mísero. Com o tempo será cada vez mais
tido por liberal, quando se vir que, graças à sua parcimónia, os seus rendimentos lhe bastam, pode defender-se de quem lhe faça guerra, pode
lançar-se em empreendimentos sem sobrecarregar o povo. Assim, liberal
será para todos aqueles a quem não tira nada, que são infinitos, e mísero
para todos aqueles a quem não dá, que são poucos. Nos nossos tempos,
não vimos fazer grandes coisas senão àqueles que foram tidos por míseros;
os outros foram arredados do poder. O papa Júlio II, que se serviu da fama
de liberal para chegar ao papado, não pensou depois em mantê-Ia, para
poder fazer a guerra. O actual rei de França fez tantas guerras sem impostos
extraordinários porque a sua longa parcimónia lhe permitiu fazer face às
despesas supérfluas. O actual rei de Espanha, se fosse tido por liberal,
não teria feito nem vencido tantas campanhas (1).
3. Assim, para não ter que roubar os súbditos, para poder defender-se, para
não ficar pobre e mesquinho, para não ser forçado à rapacidade, um príncipe
não deve preocupar-se de incorrer na fama de mísero. Porque este é um
dos vícios que o mantêm no poder. E se alguém disser que César chegou
a imperador devido à sua liberalidade e que muitos outros, por terem sido liberais e disso terem ganho a fama, alcançaram lugares muito elevados,
respondo: ou já és príncipe ou estás em vias de vir a sê-lo; no primeiro
caso, essa liberalidade é danosa; no segundo, é bem necessário ter fama de liberal. E César era um daqueles que queriam tornar-se príncipes de
Roma; mas se depois de lá ter chegado, tivesse sobrevivido e não
temperasse as despesas, teria destruído o império. E se alguém replicar
que muitos foram príncipes e fizeram grandes coisas com os seus exércitos, sendo tidos por libérrimos, responderei : ou o príncipe despende do que é
seu e dos seus súbditos, ou do que é dos outros; no primeiro caso, deve
ser parco; no outro, não deve furtar-se a nenhuma liberalidade.
4. Um príncipe que parte à cabeça dos seus exércitos, que se alimenta de
pilhagens, de saques e extorsões e gere o que é dos outros precisa de ser generoso. De outro modo, não seria seguido pelos soldados. Com aquilo
que não é teu ou dos teus súbditos pode-se ter mãos largas, como fizeram
Ciro, César e Alexandre. Gastar o que é dos outros não te diminui a
reputação, acrescenta-a. Só gastar o que é teu é que te traz dano. Nada há
que se alimente de si próprio como a liberalidade. À medida que a usas,
vais perdendo a capacidade de usá-Ia, e tornas-te pobre e desprezível , ou,
para fugir à pobreza, rapace e odioso. E entre todas as coisas de que um
príncipe deve guardar-se está o ser desprezível e odioso; e a liberalidade
conduz a uma e outra coisa. Portanto, é mais sábio ser apodado de mísero,
que nutre uma má fama sem ódio, que, por querer ter fama de liberal precisar
de incorrer na fama de rapace, que alimenta má fama com ódio.
Capítulo XVII. Da crueldade e da clemência; e do que é melhor: ser amado ou ser temido
De crude/itate et pietate; et an sit melius amari quam timeri,
ve/ e contra
1. Voltando às outras qualidades atrás mencionadas, digo que todo o príncipe
deve desejar ser tido por clemente e não por cruel. No entanto, deve evitar
usar mal a clemência. César Bórgia era tido por cruel. Porém, a sua crueldade
reformou a Romanha, uniu-a, restituiu-a à paz e à lealdade. Se pensarmos
bem nisto, veremos que foi muito mais clemente que o povo florentino, que,
para evitar a reputação de cruel , deixou destruir Pistoia (1). Assim, um príncipe
não deve importar-se com ter fama de cruel para manter os súbditos unidos
e leais. Dando um ou dois exemplos, será mais clemente que aqueles que, por demasiada clemência, deixam alastrar as desordens, de onde surgem
mortes e rapinas. Estas costumam prejudicar uma comunidade inteira,
enquanto as execuções ordenadas pelo príncipe atingem apenas um. E de
entre todos os príncipes, ao príncipe novo é impossível evitar a fama de
cruel, por estarem os Estados novos cheios de perigos. Como Virgílio pôs
na boca de Dido:
Res dura, et regni novitas me talia cogunt
Mo/iri, et late fines custode tueri (2)
No entanto, deve ser ponderado a acreditar no que ouve e no agir, não ter
medo da própria sombra e proceder moderadamente, com prudência e
humanidade, para que o excesso de confiança não o torne incauto e a desconfiança excessiva não o torne insuportável.
2. Daqui nasce um dilema: se é melhor ser amado que temido, ou o inverso. A resposta é que seria preferível ser uma e outra coisa. Mas como é difícil
conseguir ambas, é muito mais seguro ser temido que amado, se só se
puder ser uma delas. Porque dos homens pode dizer-se isto em geral: que
são ingratos, volúveis, dissimulados, avessos ao perigo e ávidos do ganho.
E enquanto trabalhas para o seu bem, como já disse, são todos teus,
oferecem-te o sangue, os bens, a vida e os filhos, quando a necessidade
deles é remota; mas quando ela se aproxima, voltam-se contra ti. E o príncipe
que, contando com a sua palavra, não se tenha preparado de outra forma,
está perdido. Porque as amizades conquistadas pelo dinheiro e não pela
grandeza e nobreza de alma são merecidas, mas não garantidas, e, na
altura necessária, não podemos valer-nos delas. Os homens hesitam menos
em ofender quem se faça amar que quem se faça temer, porque o amor é
mantido por um laço de obrigação que os homens, por serem patifes,
rompem quando lhes convém; mas o temor é mantido pelo medo da punição,
que nunca os abandona.
4. Deve, porém, o príncipe fazer-se temer de modo que, se não conquista o
amor, pelo menos evite o ódio. Porque ser temido e não odiado podem
andar juntos. O que conseguirá sempre desde que se abstenha de tocar
nos bens dos seus cidadãos e súbditos e nas suas mulheres. E quando
tiver necessidade de proceder contra a família de algum deles, que o faça
quando haja uma justificação apropriada e causa manifesta. Mas, acima
de tudo, abster-se de tocar nos bens dos outros, porque os homens
esquecem mais facilmente a morte do pai que a perda do património. Além
disso, nunca faltam as razões para confiscar bens, e aquele que começa a
viver da rapina sempre encontra razões para apoderar-se do que é dos
outros. Por outro lado, as razões para matar são mais raras e desaparecem
mais depressa.
5. Mas quando o príncipe está à cabeça dos seus exércitos e comanda uma
multidão de soldados, então mais do que nunca deve importar-se com a
fama de cruel, porque sem esta reputação nunca se tem um exército unido e pronto para a acção. Entre os feitos admiráveis de Aníbal conta-se que
tendo um exército enorme, composto por homens de muitas origens e a
combater em terra estranha, nunca se verificou qualquer dissensão, nem
entre eles nem contra o príncipe, tanto na boa como na má fortuna. O que
não pode resultar de outra coisa que da sua crueldade inumana, que,
junto com as suas infinitas qualidades, o tornou sempre, aos olhos dos
soldados, venerado e temível. E sem a crueldade, as suas outras qualidades
não bastavam para surtir o mesmo efeito. Os escritores de mau julgamento,
por um lado, admiram os seus feitos , por outro, condenam a sua razão
principal.
6. Que é verdade que as suas outras qualidades não teriam bastado pode
comprovar-se em Cipião, figura raríssima não só no seu tempo, mas em todos
os de que há memória, cujos exércitos se rebelaram em Espanha. Isso não
teve outro motivo que a sua clemência excessiva, que o levara a dar aos
soldados mais liberdade que aquela que convém à disciplina militar. Isso foi
-lhe reprovado no Senado por Fábio Máximo, que o acusou de corromper o
exército romano. Os Lócrios, que tinham sofrido uma razia de um dos tenentes
de Cipião, não foram por ele vingados, nem a insolência deste tenente foi
punida, tudo devido à sua natureza afável; de tal modo que, querendo um
senador desculpá-lo, disse que, como ele, havia muitos homens que eram
melhores a evitar os erros que a corrigi-los. Essa sua natureza teria, com o
tempo, prejudicado a fama e glória de Cipião, se nela tivesse perseverado,
mas como vivia sob o governo do Senado, esta sua característica nociva não
só não ofuscou como reforçou a sua glória.
7. Voltando à questão do ser temido e amado, concluo que amando os homens
segundo a sua vontade, mas temendo segundo a vontade do príncipe, deve
um príncipe sábio apoiar-se no que dele depende, não no que depende dos
outros. Deve somente tratar de evitar o ódio, como disse.
Capítulo XVIII. De como os príncipes devem honrar a sua palavra
Quomodo fides a principibus sit servanda
1. Todos entendem quanto é louvável num príncipe ser fiel à palavra dada e
viver com integridade e não com astúcia. No entanto, a experiência dos
nossos tempos revela-nos príncipes que fizeram grandes coisas tendo pouco
em conta a sua palavra, antes sabendo com astúcia cativar a mente dos
homens. E no fim superaram aqueles que se basearam na lealdade.
2. Deveis, pois, saber que há duas formas de combater: uma com as leis, a
outra com a força. A primeira é própria do homem, a segunda, das bestas.
Mas como a primeira muitas vezes não basta, convém recorrer à segunda.
Portanto, a um príncipe é necessário saber usar a besta e o homem. Esta
lição foi ensinada discretamente aos príncipes pelos escritores antigos.
Estes contaram como Aquiles, e muitos outros príncipes antigos, foram
dados a criar ao centauro Quíron, para que os educasse sob a sua disciplina.
Ora ter por preceptor alguém que é meio animal e meio homem não quer
dizer outra coisa senão que o príncipe precisa de saber usar uma e outra
natureza; e uma sem a outra não é durável.
3. Sendo que um príncipe necessita de saber usar a natureza animal, deve
escolher a raposa e o leão. Como o leão não sabe defender-se das armadilhas e a raposa não sabe defender-se dos lobos, precisa de ser
raposa para reconhecer as armadilhas e leão para afugentar os lobos.
Àqueles que querem apenas fazer de leão falta-lhes discernimento. Não
pode, pois, nem deve, um senhor prudente respeitar a palavra dada quando
isso se volte contra ele e tenham desaparecido as razões que o levaram a
dá-Ia. Se os homens fossem todos bons, este preceito não seria bom; mas
como são maus, e não a respeitam em relação a ti , tão pouco tu tens que
respeitá-Ia com eles. Nunca faltaram a um príncipe razões legítimas para
mascarar a sua má fé. Disto poder-se-iam dar infinitos exemplos recentes
e mostrar quantas pazes , quantas promessas foram feitas em vão e
anuladas por príncipes que faltaram à sua palavra. Aquele que melhor soube
comportar-se como a raposa levou vantagem. Porém, é necessário saber
bem disfarçar esta qualidade, ser um grande simulador e dissimulador. Os
homens são tão simples e tão obedientes às necessidades do momento
que aquele que engana achará sempre quem se deixe enganar.
4. Não quero deixar de referir um dos exemplos recentes. Alexandre VI nunca
fez outra coisa, nunca pensou noutra coisa que em enganar os homens. E
encontrou sempre com quem praticá-lo. Nunca houve homem que tivesse
maior eficácia em asseverar e afirmar com as maiores juras uma coisa que
menos a observasse. Porém, sempre se saiu bem dos seus embustes,
porque conhecia bem este lado do Mundo. A um príncipe não é, pois,
necessário ter todas as qualidades acima mencionadas, mas é-lhe
indispensável parecer que as tem. Atrever-me-eimesmo a dizer que tê-Ias
e observá-Ias sempre resulta danoso, e parecer tê-Ias, útil. Como parecer
piedoso, fiel, humano, íntegro, religioso - e sê-lo, mas estar armado de tal
ânimo que, em precisando de não o ser, possa e saiba transformar-se no
contrário. Deve também entender-se que um príncipe, sobretudo um príncipe
novo, não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são
tidos por bons, estando muitas vezes necessitado de, para manter o seu
Estado, agir contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a
religião. Por isso, precisa de estar disposto a agir conforme o ditam os
ventos da fortuna e lhe exigem as variações das coisas e, como acima disse, não se afastar do bem, desde que possa, mas sabendo enveredar
pelo mal quando necessário.
5. Deve, pois , um príncipe ter grande cuidado para que nunca lhe saia da
boca alguma coisa que não esteja imbuída das cinco qualidades acima
descritas, e que pareça, a quem o veja e ouça, todo piedade, todo fé, todo integridade, todo religião. E não há coisa mais necessária de parecer ter
que esta última qualidade. Os homens em geral julgam mais com os olhos
do que com as mãos, porque todos podem ver, enquanto poucos podem
tocar. Todos vêem o que pareces, poucos têm o sentimento do que és. E
esses poucos não se arriscam a opor-se à opinião de muitos que tenham a
majestade do Estado para defendê-los. E nas acções de todos os homens, e sobretudo dos príncipes, onde não há juiz para quem reclamar, olha-se
aos fins. Faça então um príncipe por vencer e manter-se no poder. Os
meios serão sempre tidos por honrosos e por todos louvados. Porque o
vulgo deixa-se sempre impressionar pelas aparências e pelos resultados.
E o Mundo é composto pelo vulgo. Os poucos não vingam quando os muitos
têm onde apoiar-se. Um príncipe do nosso tempo, que não convém nomear
(1), não predica outra coisa senão a paz e a fé, e de uma e de outra é inimicíssimo; e se uma e outra tivesse observado já teria por mais do que
uma vez perdido a reputação ou o Estado.
Capítulo XIX. De como evitar o ódio e o desprezo
De contemptu et adio fugiendo
1. Como acerca das qualidades acima mencionadas já falei das mais
importantes, quero discorrer brevemente sobre as outras, sob o princípio
geral de que o príncipe, como já disse em parte, deve evitar as coisas que o façam odioso e desprezível. Desde que evite isto, terá feito a sua parte e
não encontrará nas outras más famas perigo algum. Odiado o fará , acima
de tudo, como já disse, ser rapace e usurpar os bens e as mulheres dos
súbditos, coisa de que deve abster-se. Sempre que à generalidade dos
homens não se roubem os bens nem a honra, vivem contentes, e só haverá
que combater a ambição de poucos, que pode ser refreada de muitas
maneiras e com facilidade. Desprezado o fará ser tido por volúvel , ligeiro,
efeminado, pusilânime, irresoluto. Disso deve um príncipe guardar-se como
de um escolho, e esforçar-se por que nas suas acções se reconheça
grandeza, valentia, serenidade, fortaleza e, no lidar com as intrigas
particulares dos seus súbditos, querer que a sua sentença seja irrevogável.
Deve manter uma imagem tal que ninguém pense em enganá-lo nem em
iludi-lo.
2. O príncipe que conseguir manter esta imagem de si terá grande reputação.
E contra quem tem tal reputação dificilmente se conjura; não é fácil atacá
-lo enquanto for tido por excelente e reverenciado pelos seus. Um príncipe
deve ter dois medos: um interno, por causa dos súbditos; outro externo,
por causa dos potentados estrangeiros . Destes defende-se com bons
exércitos e bons aliados; e se tiver bons exércitos terá sempre bons aliados.
E os assuntos internos manter-se-ão firmes desde que os externos o
estejam, a não ser que haja uma conjura . E mesmo que as forças externas
se movam contra ele, se manteve a ordem e viveu como eu disse, e mantiver
a sua firmeza , susterá sempre o ataque, como disse que fez Nábis, o
espartano.
3. Mas quanto aos seus súbditos, quando não há movimentos exteriores,
devem temer-se as conjuras secretas. O príncipe protege-se bastante delas
evitando ser odiado ou desprezado e mantendo o povo satisfeito consigo,
o que é necessário conseguir, como acima já referi longamente. Um dos
remédios mais poderosos de que dispõe um príncipe contra as conjuras é não ser odiado pelo povo. Porque aqueles que conjuram acreditam sempre
que com a morte do príncipe satisfarão o povo. Porém, se pensarem que
vão irritá-lo, não se atreverão a tomar semelhante partido, porque as
dificuldades que advêm para os conjurados são infinitas. E vê-se por
experiência que muitas foram as conjuras e poucas as que tiveram um bom fim. Porque quem conjura não pode fazê-lo sozinho e não pode ter
por companhia senão aqueles que julga estarem descontentes. E mal
revelas as tuas intenções a um descontente dás-lhe matéria para contentar
-se, porque manifestamente ele pode disso esperar todo o tipo de conforto.
Vendo um ganho certo de um lado e do outro dúvidas e perigos, convém
muito que seja teu grande amigo, ou um inimigo obstinado do príncipe,
para não quebrar o segredo.
4. Para resumir, digo que do seu lado quem conjura não tem mais que medo,
inveja e temor do castigo, mas do lado do príncipe está a majestade do
principado, as leis, os amigos e o Estado que o defendem, de tal modo
que, juntando-lhes a benevolência popular, é impossível que alguém seja
suficientemente temerário para conjurar. Porque se, em geral, um conjurado
teme até à execução do mal, neste caso deve temer também após o
seu acto, pois tendo o povo por inimigo não pode esperar dele refúgio
algum.
5. Sobre esta matéria poderiam dar-se infinitos exemplos. Mas contento
-me com um, que está ainda na memória dos nossos pais. Messer Aníbal
Bentivogli, avô do actual Messer Aníbal, que era príncipe de Bolonha,
foi assassinado por uma conjura dos Canneschi. Da sua família só restou
Messer Giovanni, que era ainda criança pequena . Logo após o homicídio, o povo insurgiu-se e matou todos os Canneschi. Isto teve
origem na estima popular de que gozavam naquele tempo os Bentivogli.
Esta era tanta que, não restando em Bolonha ninguém da família que
pudesse, após a morte de Aníbal, reger o Estado, e tendo indícios de
que havia em Florença alguém da família Bentivoglio que era tido até
então por filho de um ferreiro , os Bolonheses foram buscá-lo a Florença
e deram-lhe o governo da sua cidade, que foi governada por ele até
que Messer Giovanni atingisse uma idade própria para governar.
6. Concluo, portanto, que um príncipe deve preocupar-se pouco com as
conjuras, desde que o povo o estime. Porém, quando este for seu inimigo
e o odiar, deve temer tudo e todos. Os Estados bem governados e os
príncipes sábios sempre diligenciaram para não exasperar os grandes e
para satisfazer o povo e mantê-lo contente. Esta é uma das matérias mais
importantes para um príncipe.
7. Entre os reinos bem ordenados e governados dos nossos tempos está a
França. Nele encontramos infinitas e boas instituições, de que depende a
liberdade e a segurança do rei. Dessas, a primeira é o Parlamento e a sua
autoridade. Porque aquele que instituiu a forma de governo daquele reino,
conhecendo as ambições dos poderosos e a sua insolência, e julgando
necessário meter-lhes freio nos dentes para controlá-los e, por outro lado,
conhecendo o ódio do povo contra os grandes, gerado pelo medo, e
querendo ter a sua confiança, não quis que isso ficasse a cargo do rei, para
aliviá-lo do fardo da responsabilidade de decidir contra os grandes em favor
do povo, ou a favor dos grandes e contra o povo. Assim instituiu um terceiro
juiz para que fosse este que, sem comprometer o rei , se batesse com os
grandes e favorecesse os pequenos. Esta instituição não podia ser melhor
nem mais prudente, nem contribuir mais para a segurança do rei e do reino.
Daqui se pode extrair uma notável lição: que os príncipes devem atribuir a
outros a responsabilidade das decisões mais gravosas e guardar para si
as que atraem reconhecimento (1). Concluo novamente que um príncipe
deve estimar os grandes, mas não se fazer odiar pelo povo.
8. Talvez pareça a muitos, considerando a vida e a morte de alguns
imperadores romanos, que haverá exemplos contrários a esta minha
opinião, vendo que alguns deles tiveram vidas honradas, mostraram
grande coragem, e no entanto perderam o império ou foram vítimas de
conspirações e assassinados pelos seus súbditos. Querendo responder
a estas objecções, discorrerei sobre as qualidades de alguns imperadores,
mostrando as razões da sua ruína, que não divergem daquilo que defendi .
E também porei em consideração as coisas que são notáveis a quem lê
sobre os feitos daquele tempo. Bastará falar de todos os imperadores
desde Marco, o Filósofo, até Maximino, e que foram Marco [Aurélio],
Cómodo, o seu filho Pertinax, Juliano, [Septímio] Severo, seu filho
Antonino Caracala, Macrino, Heliogábalo, Alexandre [Severo] e Maximino.
9. A primeira coisa a notar é que, onde nos outros principados só é necessário contender com a ambição dos grandes e a insolência dos povos, os
imperadores romanos tinham uma terceira dificuldade, a de terem que
suportar a crueldade e avareza dos soldados. Esta tarefa era tão difícil
que foi a razão da ruína de muitos, já que era difícil satisfazer os soldados
e os povos; porque os povos amavam a tranquilidade, e por isso amavam
príncipes modestos, e os soldados amavam o príncipe com espírito militar,
que fosse insolente, cruel e rapace.
10. Queriam que exercesse este espírito contra os povos, para poderem ganhar
soldos a dobrar e desafogar a sua avareza e crueldade. Isto fez que os
imperadores que, por natureza ou por experiência, não tinham uma grande
reputação, de forma a poderem com ela refrear uns e outros, sempre se arruinassem. E a maioria deles, sobretudo aqueles que tinham ascendido
recentemente ao principado, conhecidas as dificuldades destas duas disposições, tratavam de satisfazer os soldados, não se importando de
molestar o povo. Era uma opção necessária, porque quando os príncipes não podem evitar serem odiados por alguém, devem esforçar-se em primeiro
lugar por não ser odiados pela população. Quando não podem conseguir
isto, devem usar de toda a habilidade para evitar serem odiados pela parte
mais poderosa dessa população. Assim, os imperadores que por o serem há pouco tempo tinham necessidade de favores extraordinários, preferiam
tomar o partido dos soldados ao dos povos. O que lhes resultava útil ou
não consoante se eram ou não capazes de manter a sua reputação junto
deles.
11 . Pelas razões acima ditas resultou que Marco[Aurélio], Pertinax e Alexandre
[Severo], que viveram modestamente, eram amantes da justiça e inimigos
da crueldade, humanos e benignos, tiveram todos, à excepção de Marco, um triste fim (2). Apenas Marco viveu e morreu honradíssimo, porque
ascendeu ao império jure hereditario, e não o devia nem aos soldados nem
aos povos; além disso, tendo muitas virtudes que o faziam venerado,
manteve sempre, enquanto viveu, uns e outros dominados e nunca foi nem
odiado nem desprezado. Mas Pertinax foi feito imperador contra a vontade
dos soldados, os quais, estando habituados a viver licenciosamente com
Cómodo, não suportaram a vida honesta a que Pertinax os queria submeter;
daqui que, tendo-se gerado ódio, e ao ódio acrescentado o desprezo por
ser velho, foi derrubado logo no início do seu reinado.
12. Aqui deve notar-se que o ódio pode ser adquirido tanto pelas boas como
pelas más acções. Assim, como já disse, um príncipe, querendo manter o Estado, é frequentemente forçado a não ser bom. Porque quando o grupo
cujo apoio julgas vital para a tua sobrevivência - o povo, os soldados ou
os grandes - é corrupto, convém-te seguir as suas inclinações para
satisfazê-Ias, e então as boas acções tomam-se tuas inimigas. Mas falemos
de Alexandre [Severo], que foi de tanta bondade que entre os louvores que
lhe são atribuídos está este: o de durante os catorze anos em que foi
imperador ninguém ter sido morto sem julgamento. Porém, ao ser tido por
efeminado e dominado pela mãe, e por isso ter caído no desprezo, o exército
conspirou contra ele e assassinou-o.
13. Em contrapartida, discorrendo agora sobre as qualidades de Cómodo,
[Septímio] Severo, Antonino Caracala e Maximino, vereis que foram
muitíssimo cruéis e rapaces. Estes, para satisfazer os soldados, recorreram
a todos os tipos de opressão que se possam cometer contra o povo. E
todos, à excepção de Severo, tiveram um triste fim . Porque Severo tinha
tanta virtu que, mantendo os soldados do seu lado, ainda que os povos
fossem por ele agravados, pôde sempre reinar felizmente; porque a sua
virtu tornava-o tão admirado pelos soldados e pelo povo que estes ficavam,
por assim dizer, atónitos e estupefactos, e aqueles, reverentes e satisfeitos.
E como os feitos deste imperador foram tão grandes para um príncipe novo,
quero mostrar em poucas palavras quão bem soube usar as qualidades da
raposa e do leão, cujas naturezas disse mais acima que os príncipes
precisam de imitar.
14. Conhecendo Severo a cobardia do imperador Juliano, persuadiu o seu
exército, de que era comandante na Eslavónia, de que lhe convinha ir a
Roma vingar a morte de Pertinax, que fora morto pelos soldados da guarda
pretoriana. Com este pretexto, sem revelar as suas próprias pretensões ao
império, conduziu o exército a Roma, tendo entrado em Itália ainda antes
que se soubesse da sua partida. Chegado a Roma, o Senado, por medo,
elegeu-o imperador e mandou matar Ju liano. Após este início, restavam a
Severo duas dificuldades para se apoderar de todo o Estado: uma estava
na Ásia, onde [Pescennius] Níger, que comandava as legiões asiáticas, se
fizera aclamar imperador; a outra a poente, onde estava Albino, que também
aspirava à púrpura imperial. E como achava perigoso mostrar-se inimigo dos dois, decidiu atacar Níger e enganar Albino. A este escreveu dizendo
que, tendo sido proclamado imperador pelo Senado, queria partilhar essa
dignidade com ele. Enviou-lhe o título de César e, por deliberação do
Senado, fez dele colega. Albino tomou estas declarações por verdadeiras. Mas logo que Severo venceu e matou Níger e resolveu as dificuldades no
Oriente, regressou a Roma, onde se queixou ao Senado de que Albino,
pouco grato pelos benefícios que dele recebera, tinha conspirado para matá
-lo. Por isso, precisava de ir punir a sua ingratidão. De seguida marchou
para França, onde lhe tirou a vida e o Estado.
15. Quem examinar de perto as acções deste homem verá que foi um leão
ferocíssimo e uma raposa muito astuta. Verá também que foi temido e
reverenciado por todos e não odiado pelos exércitos. E não se admirará
por ele, um homem cuja ascensão era tão recente, ter alcançado um tão
grande poder, porque a sua grandíssima reputação sempre o defendeu do
ódio que os povos, devidos às suas rapinas, contra ele poderiam ter
concebido. Mas o seu filho Antonino [Caracala] era também dotado de excelentes qualidades que o faziam admirar pelos povos e agradavam aos
soldados. Era um militar que suportava quaisquer fadigas, desprezava as
iguarias delicadas e todas as outras molezas, o que o tornou amado por
todos os exércitos. Contudo, a sua ferocidade e crueldade foram tais e tão
inauditas, por ter, após infinitos assassínios, morto uma boa parte do povo
de Roma e todo o de Alexandria, que se tornou terrivelmente odiado por
todos. Começou a ser temido também por aqueles que tinha à sua volta,
de maneira que foi assassinado por um centurião no meio do seu exército.
16. Aqui deve notar-se que os assassínios semelhantes a este, que são
consequência do desespero, são inevitáveis pelos príncipes, porque quem
quer que não tema a morte pode atacá-los. Mas o príncipe deve temê-los
menos, porque são raríssimos. Deve apenas guardar-se de não ofender
gravemente nenhum dos que o servem e que estão mais perto dele, ao
serviço do seu principado. Isso fizera Antonino Caracala, que mandara matar
afrontosamente um irmão daquele centurião e ameaçava o próprio centurião
todos os dias. Além disso, mantinha-o na sua guarda pessoal, o que erC\
uma opção temerária e ruinosa, como se viu.
17. Mas falemos de Cómodo, para quem era fácil manter o império, por o ter
recebido em herança, sendo filho de Marco [Aurélio]. Bastava-lhe seguir as
pisadas do pai para ter os soldados e os povos satisfeitos. Porém, sendo
de espírito cruel e bestial , para poder exercitar a sua rapacidade contra os
povos, tratou de favorecer os exércitos e alimentar a sua licenciosidade.
Por outro lado, não cuidando da sua dignidade, já que descia frequentemente
à arena para combater com os gladiadores e fazia outras coisas
vulgaríssimas e impróprias da majestade imperial, tornou-se desprezado
pelos soldados. E sendo odiado por uns e desprezado por outros, conspiraram contra ele e mataram-no.
18. Resta falar das qualidades de Maximino. Este foi um homem muitíssimo
belicoso. E estando os exércitos fartos da moleza de Alexandre, de quem
já falei, morto este, elegeram-no imperador. Não o foi por muito tempo, porque
duas coisas o tomaram odiado e desprezado. Uma, ser de muito baixa condição,
porque fora pastor de ovelhas na Trácia (o que era sabido de todos e atraía
grande desdém); a outra porque tendo, no início do seu reinado, adiado a ida
para Roma e a tomada de posse do trono imperial, ganhara fama de ser
crudelíssimo, consentindo que os seus prefeitos, em Roma e em todos os lugares
do império, praticassem muitas crueldades. Assim, com toda a gente levada a
desdenhá-lo pela sua baixa condição e a odiá-lo pelo medo da sua ferocidade,
rebelou-se primeiro a África, depois o Senado com todo o povo de Roma, e toda a Itália conspirou contra ele. A isso juntou-se o seu próprio exército, que
tendo cercado Aquileia e encontrando dificuldades em expugná-Ia, farto da sua crueldade e vendo-o com tantos inimigos, temendo-o menos, assassinou-o.
19. Não quero falar nem de Heliogábalo, nem de Macrino, nem de Juliano, os
quais, por serem desprezados por todos, depressa foram aniquilados. Concluirei
esta discussão dizendo que os príncipes do nosso tempo têm menos dificuldades
para fazer concessões extraordinárias às suas tropas. Embora seja necessário
dar-lhes algumas atenções, isso resolve-se depressa, por não ter nenhum destes
príncipes exércitos que estejam há muito tempo ligados aos governos e
administrações das províncias, como era o caso dos exércitos do império romano. E se nessa altura era mais necessário satisfazer os soldados que as
populações, isso era porque os soldados tinham mais poder que as populações.
Agora é mais necessário a todos os príncipes, à excepção do grão-turco e do
sultão, satisfazer mais as populações que os soldados, porque estas podem
mais que eles.
20. Abro uma excepção para o grão-turco, que tem sempre à sua volta doze
mil infantes e quinze mil cavaleiros, dos quais depende a segurança e força
do seu reino. Acima de tudo é necessário àquele senhor manter a sua
amizade. O mesmo para o sultão [do Egipto], que estando nas mãos dos
soldados, convém que também ele os mantenha seus amigos, mesmo à
custa do povo. E convém notar que este Estado do sultão é diferente de todos os outros principados, porque é semelhante ao pontificado cristão,
que não se pode designar por principado hereditário nem por principado novo. Porque não são os filhos do príncipe velho que o herdam e dele
permanecem senhores, mas aquele que é eleito para esse cargo por aqueles
que para isso têm autoridade. E sendo esta uma antiga instituição, não se
lhe pode chamar principado novo, porque nela não existem algumas das dificuldades presentes nos novos. Se bem que o príncipe é novo, as instituições desse Estado são antigas e estão dispostas para recebê-lo
como se fosse o seu senhor hereditário.
21. Mas regressemos à nossa matéria. Digo que quem considerar a presente
discussão verá serem o ódio ou o desprezo a razão da ruína dos
imperadores citados, e compreenderá como aconteceu que tendo parte
deles procedido de um modo e outra parte feito o contrário, em cada um dos casos um teve final feliz e outro não. A Pertinax e Alexandre [Severo],
por serem príncipes novos, foi inútil e danoso quererem imitar Marco
[Aurélio], que ascendera ao principado jure hereditario. De igual modo, a
Caracala, Cómodo e Maximino foi pernicioso imitar Septímio Severo, por
não terem virtu suficiente para lhe seguirem as pisadas. Portanto, um
príncipe novo num principado novo não pode imitar as acções de Marco
Aurélio, nem precisa de seguir as de Septímio Severo. Mas deve ir buscar
a Severo aquelas que lhe são necessárias para as fundações do seu Estado, e a Marco a$ que são convenientes e gloriosas na preservação do que já
esteja firmemente estabelecido.
Capítulo XX. Se as fortalezas e muitas outras coisas que os príncipes fazem
todos os dias são úteis ou inúteis.
An arces et multa alia quae cotídie a principibus fiunt utilia an inutília sint
1. Alguns príncipes , para conservarem em segurança os seus Estados, desarmaram os seus súbditos; alguns outros mantiveram as cidades sujeitas
divididas; outros alimentaram inimizades contra si próprios; outros ainda
procuraram ganhar aqueles que lhes eram suspeitos quan'do acederam ao poder; alguns edificaram fortalezas; outros arruinaram-nas e destru íram-nas. E se bem que sobre todas estas coisas não vos possa dar julgamentos
precisos, sem considerar as circunstâncias particulares dos Estados onde
se aplicariam, não deixarei de abordá-Ias do modo genérico que a matéria
permite.
2. Nunca aconteceu que um príncipe novo desarmasse os seus súbditos.
Antes pelo contrário, quando os viu desarmados sempre os armou; porque
armando-os, essas armas passam a ser tuas, tornam-se fiéis aqueles que
te são suspeitos e aqueles que já te eram fiéis assim se mantêm e, de
súbditos, passam a ser teus partidários. Como não se pode armar todos os
súbditos, ao beneficiares aqueles que armas, ficas em maior segurança com os outros. Reconhecendo esta diversidade de tratamento, os primeiros
ficam-te obrigados; os outros desculpam-te, achando necessário que os
que correm maiores perigos e têm m!!iores deveres para contigo tenham
alguma vantagem. Porém, quando os desarmas, começas a ofendê-los,
mostras que desconfias deles, por serem cobardes ou desleais, e ambas
estas opiniões geram ódios contra ti. E, uma vez que não podes ficar
desarmado, terás que recorrer às milícias mercenárias, que são daquela
qualidade a que já me referi. E ainda que fosse boa, não o seria tanto que
te defendesse de inimigos poderosos e de súbditos suspeitos.
3. Portanto, como já disse, um príncipe novo num principado recente sempre
armou os seus súbditos. E disso a história está cheia de exemplos. Porém,
quando um príncipe conquista um Estado novo que venha acrescentar-se
como membro ao seu antigo Estado, então é necessário desarmar esse Estado, exceptuando aqueles que o ajudaram na sua conquista. E mesmo
a esses é necessário, aproveitando o tempo e as ocasiões, torná-los moles e efeminados e tomar medidas para que todas as armas do teu Estado
estejam nas mãos dos teus soldados, aqueles que no teu antigo Estado
vivem junto de ti.
4. Os nossos antepassados, aqueles que eram considerados sábios, diziam
que era necessário manter a posse de Pistoia pela luta de facções e a de
Pisa com fortalezas. Por isso, nutriam as divisões em qualquer cidade que
lhes estivesse submetida, para mais facilmente as controlarem. Isto, nos
tempos em que a Itália, em certo sentido, estava bem equilibrada, devia
estar bem. Porém, não creio que hoje se possa seguir esse preceito. Não
creio que as divisões lhe possam trazer algum bem. Antes pelo contrário,
quando o inimigo se aproxima, as cidades divididas perdem-se necessariamente, porque os mais fracos aderirão às forças estrangeiras e
os outros não as poderão defender sozinhos.
5. Os Venezianos, movidos, segundo creio, pelas razões acima descritas,
alimentavam as facções dos Guelfos e dos Gibelinos nas cidades que tinham
submetidas. E se bem que não as deixassem chegar à efusão de sangue,
alimentavam as suas dissensões para que, estando os cidadãos ocupados com as suas diferenças, não se unissem contra eles. O que, como se viu,
não lhes valeu de nada, porque quando foram derrotados em Vailà, logo
uma destas facções se insurgiu e tomou-lhes todo o Estado. Estes modos
indiciam a fraqueza do príncipe, porque num principado forte nunca se
permitem semelhantes divisões. Só podem ser proveitosas em tempo de
paz, em que permitem manipular mais facilmente os cidadãos. Porém,
chegada a guerra, esta política revela as suas debilidades.
6. Sem dúvida que os príncipes se tornam grandes quando superam as dificuldades e oposições que lhes são movidas. Por isso, a fortuna,
sobretudo quando quer engrandecer um príncípe novo - que tem maior
necessidade de conquistar boa reputação que um hereditário -, faz que
lhe surjam inimigos e leva-os a atacá-lo, para que ele tenha oportunidade
de superá-los e subir mais alto, pela escada que lhe trouxeram os inimigos.
Mas muitos julgam que um príncipe sábio deve, quando para isso tenha
ocasião, nutrir com astúcia alguma inimizade contra si, afim de que,
vencendo-a, aumente a sua grandeza.
7. Os príncipes, sobretudo os novos, encontraram maior lealdade e utilidade
naqueles homens que, no princípio do seu reinado, lhes eram suspeitos,
que naqueles em que ao princípio confiaram. Pandolfo Petrucci , príncipe
de Siena, governava o seu Estado mais com aqueles de quem suspeitara
do que com os outros (1) Mas não podemos generalizar nesta matéria ,
porque varia consoante a situação. Direi apenas que aqueles homens que
no início de um principado tinham sido inimigos, e que precisam de alguém
em quem apoiar-se, sempre o príncipe poderá ganhá-los com grande
facilidade; e eles, por maioria de razão, são forçados a servi-lo lealmente
logo que reconheçam ser-lhes mais necessário mudar pelas obras a má
opinião em que eram tidos. E assim o príncipe verá neles mais utilidade que
naqueles que, servindo-o confiadamente, descuram os seus assuntos.
8. E uma vez que a matéria o exige, não quero deixar de recordar aos príncipes
que conquistaram recentemente um Estado com o favor dos seus habitantes
que pensem bem nas razões que motivaram aqueles que os favoreceram.
E se essas não são uma afeição natural para com eles, mas apenas o seu
descontentamento com o governo anterior, só com grandes dificuldades e
fadigas poderão manter a sua amizade, porque será impossível contentá
-los. E reflectindo bem sobre a causa disto, com o auxílio dos exemplos
antigos e modernos que existem, verá que lhe é muito mais fácil ganhar
como amigos aqueles que se contentavam com o anterior governo que
aqueles que, por estarem descontentes, se tornaram seus amigos e o
ajudaram a ocupá-lo.
9. Tem sido hábito dos príncipes, para poderem manter com mais segurança
o seu Estado, edificar fortalezas que sejam a rédea e o freio daqueles que
contra eles atentem e terem um refúgio seguro contra um ataque súbito.
Louvo este procedimento, porque é de uso antigo. Contudo, nos nossos
tempos, Messer Niccolà Vitelli destruiu duas fortalezas na cidade de Castello
para conservar esse Estado (2) . Guida Ubaldo, duque de Urbino, regressado
aos seus domínios, de onde fora expulso por César Bórgia, arrasou até
aos alicerces todas as fortalezas da província e achou que sem elas mais
dificilmente voltaria a perder o seu Estado. E os Bentivogli, regressados a
Bolonha, fizeram o mesmo. As fortalezas são, pois, úteis ou não consoante
os tempos. E se por um lado te ajudam, por outro prejudicam-te. O assunto
pode ser encarado da seguinte maneira:
10. Aquele príncipe que teme mais o povo que os estrangeiros deve erguer
fortalezas; mas aquele que teme mais os forasteiros que o povo deve deixá
-Ias. À casa dos Sforza fez e fará mais guerra o castelo de Milão, que foi
edificado por Francisco Sforza, que qualquer desordem ocorrida naquele
Estado. Mas a melhor das fortalezas é não ser odiado pelo povo, porque
ainda que tenhas fortalezas, se o povo te tiver ódio, não são elas que te
salvam. Aos povos nunca faltam, se tiverem pegado em armas, estrangeiros
que os socorram. Nos nossos tempos, não se vê que as fortalezas tenham
aproveitado a algum príncipe, a não ser à condessa de Forll , quando o
conde Girolamo, seu marido, foi morto. Porque foi graças a ela que pôde
escapar à fúria popular, esperar pelo socorro de Milão e recuperar o seu
Estado. E os tempos nessa altura não permitiam que os forasteiros
pudessem vir em auxílio do povo (3). Porém, depois, de pouco lhe valeram
as fortalezas, quando César Bórgia a atacou e o povo, seu inimigo, se juntou aos forasteiros. Portanto, em primeiro lugar, ter-lhe-ia sido mais
seguro não ser odiada pelo povo que possuir fortalezas. Consideradas todas
estas coisas, louvarei quem construir fortalezas e quem não o fizer, e
condenarei quem quer que, fiando-se nas fortalezas, não dê a devida
importância a ser odiado pelo povo.
Capítulo XXI. O que convém a um príncipe para ser estimado
Quod principem deceat ut egregius habeatur
1. Nada faz estimar tanto um príncipe como as grandes campanhas e dar de
si raros exemplos. Nos nossos tempos, temos Femando de Aragão, presente
rei de Espanha. Este pode quase ser chamado de príncipe novo, porque,
de rei débil, tornou-se, pela fama e pela glória, no primeiro rei da cristandade.
E se considerarmos as suas acções, veremos que todas foram grandíssimas
e algumas extraordinárias. No princípio do seu reinado atacou Granada, e
essa empresa foi o alicerce do seu Estado. Em primeiro lugar; fê-lo sem
outras preocupações, sem receio de ser impedido nos seus intentos.
Manteve os barões de Castela tão ocupados naquele intento que, pensando
na guerra, não pensavam em nenhuma novidade. Entretanto, ele
conquistava reputação e autoridade sobre eles, sem que disso se dessem
conta. Pôde alimentar os exércitos com dinheiro da Igreja e do povo e
construir, com aquela longa guerra, o seu próprio poder militar, que mais
tarde o honrou. Além disto, para poder acometer maiores empreendimentos ,'
sempre em nome da religião, virou-se para uma piedosa crueldade ,
perseguindo e expulsando do seu reino os Marranos. Não se poderia
encontrar exemplo de piedade mais digno nem mais singular. A coberto do
mesmo manto, atacou a África, fez a campanha de Itália, e por último atacou a França. Sempre planeou e executou coisas grandes, que sempre
suscitaram o espanto e admiração dos seus súbditos e os ocuparam nesses
eventos. Estas acções sucederam-se umas às outras, nunca dando, entre
umas e outras, espaço aos hOm€ilS para poderem agir tranquilamente contra
ele.
2. Também beneficia muito um príncipe dar de si exemplos raros no governo
do seu país, semelhantes àqueles que se narram acerca de Messer 8ernabà
de Milão (1), e sempre que alguém faz algo extraordinariamente bom ou
mau na vida civil, deve premiá-lo ou puni-lo, de modo que se fale muito
disso. Acima de tudo, um príncipe deve esforçar-se por conquistar, em todas
as suas acções, fama de grande e excelente homem.
3. Um príncipe também ganha estima quando é amigo do seu amigo e inimigo
do seu inimigo, isto é, quando se declara abertamente a favor de alguém
contra outro. Esse partido é sempre mais útil que permanecer neutral. Se
dois vizinhos teus, poderosos, começam a esmurrar-se, ou são de qualidade
que, vencendo um deles, devas temer o vencedor ou não. Em qualquer
destes casos, ser-te-á sempre mais útil tomares partido e bateres-te bem.
Porque no primeiro caso, se não te declarares, serás sempre presa do
vencedor, com prazer e satisfação daquele que foi vencido, e não terás
razão nem coisa alguma que te defenda nem que te dê refúgio. Porque
quem vence não quer amigos suspeitos e que não o ajudem na adversidade;
quem perde não te dá abrigo, por não teres querido, de armas na mão,
partilhar a sua fortuna.
4. Quando Antíoco invadiu a Grécia, ajudado pelos Etólios, para expulsar os
Romanos, enviou embaixadores aos Aqueus, que eram aliados dos
Romanos, pedindo-lhes que se mantivessem neutrais. Ao mesmo tempo,
os Romanos persuadiam-nos a pegarem em armas em sua defesa. Este
assunto foi discutido no conselho dos Aqueus, onde a legação de Antíoco os persuadia a permanecerem neutrais, ao que o legado romano respondeu: «Quod autem isti dicunt non interponendi vos bello, nihil magis alienum
rebus vestris est; sine gratia, sine dignitate, praemium victoris eritis.!! (Nada
poderia ser pior para os vossos interesses que o que vos aconselham como
a melhor política: não vos envolverdes nesta guerra; sem reconhecimento,
sem dignidade, sereis presa do vencedor.)
5. Verás sempre que aquele que não é teu amigo te pedirá neutralidade, e
aquele que é teu amigo pedir-te-á que declares a tua posição pelas armas.
Os príncipes irresolutos, para evitarem perigos presentes, seguem as mais
das vezes a via da neutralidade, e na maioria das vezes arruinam-se. Mas
quando o príncipe se declara galhardamente a favor de uma parte, se aquele
a que aderiste vence, ainda que seja poderoso e tu fiques à sua mercê, ele
contraiu obrigações e laços de amizade para contigo, e os homens nunca
são desonestos ao ponto de, com um tal exemplo de ingratidão, te oprimirem.
Além disso, as vitórias nunca são tão completas que o vencedor não precise
de ter quaisquer considerações, sobretudo com a justiça. Mas se aquele a
que aderiste perde, poderás encontrar refúgio junto dele, ajudar-te-á naquilo
que possa, e tornar-vos-eis companheiros numa fortuna que pode mudar.
No segundo caso, quando aqueles que se combatem são de tal qualidade
que não precises de temer o vencedor, ainda maior prudência é tomares
partido. Porque estarás a participar na ruína de um com a ajuda de outro
que, se fosse sábio, o deveria ter salvo. Se o teu aliado vence, fica à tua
mercê; e é impossível que, com a tua ajuda, não vença.
6. Aqui convém notar que um príncipe deve ter o cuidado de nunca se juntar
a alguém maís poderoso que ele para atacar outros, a não ser que a
necessidade o obrigue, como disse acima. Porque vencendo fica seu
prisioneiro; e os príncipes devem evitar quanto possam ficar à mercê de
outrem. Os Venezianos aliaram-se à França contra o duque de Milão; e
podiam ter evitado aquela aliança, de que resultou a sua ruína. Mas quando
não se pode evitá-lo, como foi o caso dos Florentinos quando o papa e
Espanha foram com os seus exércitos atacar a Lombardia, então o príncipe
deve fazer alianças, pelas razões acima ditas. Não creia jamais algum
Estado poder tomar partidos seguros; que os tome a todos por dúbios.
Porque na ordem das coisas se verifica que sempre que se procura fugir a
um inconveniente incorre-se noutro. A prudência consiste em saber avaliar
as qualidades dos inconvenientes e escolher o menor.
7. Deve ainda um príncipe mostrar que ama a virtiJ e honrar aqueles que se
distinguem em qualquer arte. Além disso, deve encorajar os seus cidadãos
a exercerem tranquilamente os seus ofícios, tanto no comércio como na
agricultura e em qualquer outra ocupação dos homens, para que não temam
uns melhorar as suas possessões por medo de que lhas tirem e outros
abrir nova linha de transacções por medo dos impostos. Antes deve premiar
quem quiser fazer estas coisas e todos os que planeiem, de algum modo,
enriquecer a sua cidade ou o seu Estado. Deve, além disto, nas ocasiões
adequadas do ano, manter o povo ocupado com festas e espectáculos. E
uma vez que todas as cidades estão divididas por ofícios ou por grupos,
deve ter em conta estas associações, reunir-se com elas de vez em quando,
dar de si exemplo de humanidade e munificência, nunca esquecendo a
dignidade da sua posição, que não lhe deve faltar em coisa alguma.
Capítulo XXII. Dos secretários dos príncipes
De his quos a secretis principes habent
1. Não é de pouca importância para um príncipe a escolha dos seus ministros, os quais são bons ou não consoante a prudência do príncipe . E a primeira
avaliação que se faz da inteligência de um senhor é vendo os homens que
estão à sua volta. Quando são capazes e leais, sempre se pode reputá-lo de sábio, porque soube reconhecer as suas capacidades e mantê-los fiéis.
Mas quando assim não são, sempre se pode fazer mau juízo dele, porque o primeiro erro que comete, fá-lo nesta escolha. Não havia ninguém que
conhecesse Messer Antonio da Venafro como ministro de Pandolfo Petrucci,
príncipe de Siena, que não achasse que Pandolfo era um grande homem,
tendo-o escolhido para ministro.
2. Há três tipos de cérebros: os que compreendem por si, os que compreendem
aquilo que foi pensado por outros, e os que não compreendem nem por si
nem pelos outros. O primeiro é excelentíssimo, o segundo, excelente, e o
terceiro inútil. Se Pandolfo não estava no primeiro caso, estava
necessariamente no segundo. Porque sempre que um homem possa
discernir o bem e o mal nas palavras e nos actos dos demais, ainda que ele
próprio não tenha engenho, identifica as boas e as más acções do ministro,
exalta umas e corrige as outras; e o ministro não pode esperar enganá-lo,
e mantém-se no bom caminho.
3. Mas eis uma forma que nunca falha de um príncipe poder conhecer o seu
ministro. Quando vires o ministro pensar mais em si próprio que em ti, e
que em todas as acções procura o que lhe é útil a ele, um tal homem nunca
será bom ministro, e nunca te poderás fiar nele, porque aquele que tem
nas mãos o Estado de outro nunca deve pensar em si , mas sempre no príncipe, e nunca deve chamar a atenção do príncipe para coisas que não
sejam do interesse deste. Por outro lado, o príncipe, para manter o ministro
no bom caminho, deve pensar nele, dando-lhe honrarias, enriquecendo-o,
deixando-o em obrigação para consigo, partilhando com ele as honras e os
cargos, de forma a que o ministro veja que não pode passar sem o príncipe,
para que as grandes honrarias não o levem a desejar mais honrarias, a
grande riqueza não o faça ambicionar mais riqueza, os grandes cargos
não o façam temer as mudanças. Quando as relações entre príncipes e
ministros são assim, podem confiar-se mutuamente, e quando assim não
são, o final será sempre danoso para uns e para outros.
Capítulo XXIII. Como fugir dos aduladores
Quomodo adula tores sint fugiendi
1. Não quero deixar de falar num ponto importante, um erro do qual os príncipes
se defendem com dificuldade, se não são muito prudentes ou sensatos
nas escolhas. Refiro-me aos aduladores, de que estão cheias as cortes.
Porque os homens se comprazem tanto com as suas próprias qualidades,
assim se iludindo, que dificilmente se defendem desta peste. E ao quererem
defender-se dela, correm o risco de ser desprezados. Não há outra forma
de resguardar-se da adulação senão fazendo entender às pessoas que
não te ofendem dizendo a verdade. Porém, quando qualquer um pode dizer
-te a verdade, fica a faltar-te a deferência.
2. Portanto, um príncipe prudente deve escolher uma terceira via, escolhendo
no seu Estado homens sábios, e só a esses deve dar o livre arbítrio de lhe
dizerem a verdade, e apenas sobre as coisas que lhes pergunta, e não
outras. Mas deve inquiri-los sobre todas as coisas e ouvir as suas opiniões.
Depois, deliberar por si, e a seu modo. Deve tratar estes conselhos e os
conselheiros de modo que fique claro que as suas palavras serão tanto
mais aceites quanto forem proferidas com liberdade . Além destes
conselheiros, não deve ouvir mais ninguém, talhar a direito com as coisas
deliberadas e ser obstinado nas suas resoluções. Quem proceda de outra
forma ou se torna vítima dos aduladores ou muda frequentemente de opinião
devido à variação dos pareceres, daí resultando ser pouco estimado.
3. Quero, a este propósito, aduzir um exemplo moderno. Dom Luca, homem
de Maximiliano, presente imperador, falando de Sua Majestade dizia que
não se aconselhava com ninguém, mas que nunca fazia nada a seu modo.
O que resulta de agir ao contrário do que acima disse. O imperador é um homem muito reservado, não comunica as suas intenções a ninguém, nem
busca pareceres. Mas como mal começa a levá-Ias à prática, começam a
descobrir-se, começam a ser contraditadas por aqueles que tem ao seu
redor; e ele, faltando-lhe determinação, abandona-as. Daqui resulta que
as coisas que faz num dia destrói no outro; e nunca se entende aquilo que
pretende fazer, e não se pode confiar nas suas deliberações.
4. Um príncipe deve, portanto, aconselhar-se sempre; mas quando ele quer,
não quando os outros querem. Aliás, deve desencorajar todos de aconselhá
-lo nalguma coisa se não lho tiver. pedido. Mas deve também questionar
com frequência e depois ouvir com paciência as respostas às suas
perguntas; e se achar que alguém, por respeito, não lhas dá, zangar-se. E
se muitos acham que algum príncipe, que transmite de si a opinião de ser
prudente , assim é tido não pela sua natureza mas por estar bem
aconselhado, enganam-se de certeza. Porque esta é uma regra geral que
nunca falha: que um .príncipe que não seja sábio por si mesmo não pode
ser bem aconselhado, a não ser que, por sorte, se confie a alguém que em
tudo o governe e que seja sensatíssimo. Poderia haver uma tal situação, mas duraria pouco, porque esse governador em breve lhe tiraria o Estado.
Por outro lado, aconselhando-se com mais do que um, um príncipe que
não seja sábio nunca receberá conselhos concordantes e não saberá
conciliá-los. Cada um dos conselheiros pensará nos seus interesses; ele
não os saberá corrigir nem discernir. Não poderia ser de outra maneira,
porque os homens sempre acabam por revelar-se maus, se a necessidade
não os obrigar a ser bons. Conclui-se que os bons conselhos, vindos de
quem vierem, convém que resultem da prudência do príncipe, e não que a
prudência do príncipe venha dos bons conselhos.
Capítulo XXIV. Porque perderam os príncipes de Itália os seus Estados
Cur Italiae principes regnum amiserunt
1. As coisas acima ditas, se observadas com sensatez, fazem que um príncipe
novo pareça antigo e torna-Io-ão de imediato mais seguro e firme no poder
que se lá estivesse há muito tempo. Porque um príncipe novo é muito mais
observado nas suas acções que um príncipe hereditário. E quando estas são
vistas como virtuosas conquistam e obrigam muito mais os homens que uma
linhagem antiga. Porque os homens interessam-se muito mais pelo presente
que pelo passado, e quando no presente encontram o bem, satisfazem-se
com ele e não procuram outra coisa. Aliás, desde que o príncipe não
negligencie os seus deveres, defendê-Io-ão de todas as maneiras. Assim
duplicará a sua glória por ter dado início a um principado novo e por o ter
dotado e fortalecido com boas leis, boas armas, bons aliados e bons exemplos.
Tal como duplicará a sua vergonha aquele que, tendo nascido príncipe, tiver,
pela sua pouca prudência, perdido o principado.
2. E se considerarmos aqueles senhores que em Itália perderam o poder nos
nossos tempos, como o rei de Nápoles, o duque de Milão e outros, neles
veremos, em primeiro lugar, um comum defeito quanto às armas, pelas razões
acima indicadas. Depois veremos que alguns deles terão tido por inimigo o
povo, ou que, tendo-o por amigo, não souberam assegurar a sua posição
contra os grandes. Porque sem estes defeitos não se perdem os Estados que tenham a força para manter um exército em campanha. Filipe da
Macedónia, não o pai de Alexandre, mas aquele que foi vencido por Tito Quinto, não tinha um grande Estado, comparado com a grandeza dos
Romanos e dos Gregos que o atacaram. Porém, sendo um bom militar e
sabendo manter o povo do seu lado e proteger-se dos grandes, sustentou
durante muitos anos a guerra contra aqueles. E se no final perdeu o dominio
de algumas cidades, pôde no entanto conservar o reino.
3. Portanto, estes nossos principes, que tinham permanecido muitos anos à frente dos seus Estados, que não acusem a fortuna, mas antes a sua
incapacidade, por terem-nos perdido. Porque, nunca tendo nos tempos de
paz pensado que estes poderiam mudar (o que é um defeito comum dos
homens: não pensarem na tempestade durante a bonança), chegandos os tempos adversos pensaram em fugir e não em defender-se; e esperaram
que os povos, fartos da insolência dos vencedores, voltassem a chamá-los.
Semelhante partido, à falta de outros, é bom. Mas é bem mau trocar os outros remédios por este, porque nunca devemos deixar-nos cair na esperança de
encontrar quem nos levante. Isto, ou não acontece, ou se acontece não
proporciona segurança, por ser uma defesa vil e não depender de ti. E só são
boas, certas e duradouras as defesas que dependem de ti e da tua capacidade.
Capítulo XXV. Quanto pode a fortuna nas coisas humanas e como se pode resistir-lhe
Quantum fortuna in rebus humanis possit, et quomodo illi sit
occurrendum
1. Não desconheço que muitos tiveram e têm a opinião de que as coisas do Mundo são de tal modo govemadas pela fortuna e por Deus que os homens, com a sua prudência, não podem corrigi-Ias e para elas não têm remédio
algum. Por isso, poderiam julgar que não vale a pena suar muito, e mais vale deixar-se govemar pela sorte. Esta opinião voltou a ser mais aceite nos nossos tempos, devido às grandes vadações das coisas que se viram e vêem hoje em dia, para além de toda a conjectura humana. Por vezes, ao pensar nisso, deixei-me inclinar em parte para essa opinião.
2. No entanto. para que não se extinga o nosso livre arbítrio. acho que pode
ser verdade que a fortuna seja árbitra de metade das nossas acções, mas
que também nos deixe governar a outra metade. ou perto disso. E comparo
-3 a um desses rios caudalosos que. quando se enraivecem, alagam as
planícies. destroem as árvores e os edifícios. arrancam terras num lugar e
depositam-nas noutro. Todos fogem à sua frente. todos cedem ao seu
ímpeto, sem poder obstar-lhe. E. ainda que assim seja. isso não impede
que os homens. nos tempos de calma. possam tomar provisões e construir
muralhas e diques para que. quando as águas subam. sejam levadas para
um canal ou que o seu ímpeto não seja tão selvagem nem tão danoso.
3. O mesmo acontece com a fortuna, que demonstra o seu poder onde a virtu
não se organizou para resistir-lhe e dirige o seu ímpeto para onde sabe
que não hã muralhas nem diques para contê-lo. E se pensarmos na Itália,
que é o palco destas alterações e que lhes deu o impulso, vereis que é
uma planície sem diques nem muralhas; que, se tivesse sido protegida com a virtu necessária, como a Alemanha, a Espanha e a França, então estas cheias não teriam causado tantas alterações ou não teriam:sequer ocorrido. E creio que o que já disse basta sobre como opor-se à fortuna em
geral.
4. Mas, restringindo-me 'aos pormenores, digo que se vê hoje felicitar um
príncipe e amanHã arruiná-lo, sem tê-lo visto mudar de natureza ou qualidade
alguma. o que julgo que tem Origem, em primeiro lugar,.nas razões de que
. já falei longamente, oli seja, que aquele príncipe que se apoia totalmente
na fonuna 'arruína-se quando esta muda. Achà ainda que é b"ein sucedido
, aquele que adapta Ó seu procedimento àS'características dos tempos, e
mal sucedido aquele cujos procedimentos não estão de ' acordo com os tempos.
5. Vemos que os homens procedem de diversos modosparlrchegarem àquilo que lhes interessa: glória e riqueza. Uns com respeito; outros com ímpeto;
'uns pela violência, outros com"arte; uns com paciência, outros com o seu ", contrário. E tOdos,por estes di~ersos modos, podem lá chegar. Também
, vemos qúe, de dois homens prudentes, um alcança o seú objectivo e outro
. não; ou que 'ambos alcançam oúeus objectivos'por diferentes meios, um
com prudência e o outro peló ímpeto. o que não resuifa de outra coisa
senão d~ qUalidade dos tempos, que se conformam ou não 'cornos seus ,
procedimentos. Daqui resulta aquilo que disse: que dois, agindo deforma
diferente, obtenham o mesmo efeito; e que de dois, agindo de igual forma, um consiga o seu fim e o outro não.
6. Disto dependem também as variações do êxito. Se um" é cauteloso e paciente no seu procedimento ~ os tempos se prestam a esta forma de agir, prospe~a . Mas se .os tempos e as coi~as mudam, arruina-se por não
mudar o seu modo de proceder. Não se encontra homem tão prudente
que saiba acomodar-se a isto, seja porque não consegue desviar-se daquilo
a que a sua natureza o inclina, seja ainda porque, tendo sempre prosperado
seguindo determinada via, não se convence a afastar-se dela. É por isso
que o homem ponderado, quando chega o tempo de ser impetuoso, não
sabe sê-lo e arruina-se. Porém, se fosse capaz· de mudar de natureza
acompanhando o tempo e as coisas, a sua fortuna não se alteraria.
7.. O papa Júlio" agiu impetuosamente em todas as suas coisas, e achou os
tempos e as coisas tão conformes àquele seu modo de proceder que sempre se saiu bem. Considerai a sua primeira campanha contra Bolonha,
quando vivia ainda Messer Giovanni Bentivogli. Os Venezianos ficaram
descontentes; o rei de Espanha também. Com os Franceses estava ainda
em conversações, mas, devido à sua ferocidade e ímpeto, envolveu-se
pessoalmente naquela expedição. Esse gesto deixou num impasse a
Espanha e os Venezianos, estes por medo e aquela pelo desejo que tinha
de recuperar todo o reino de Nápoles. Por outro lado, arrastou consigo o
rei de França, porque, vendo-o em acção e desejando tê-lo. como amigo
para dominar os Venezianos, achou que não podia negar-lhe a sua gente
sem ofendê-lo manifestamente.
8. Assim, com a sua iniciativa impetuosa, Júlio" fez o que jamais outro
pontífice, com toda a prudência do Mundo, teria feito. Porque, se estivesse
à espera de partir de Roma coro tudo concluído e bem assente, como
qualquer outro pontífice teria feito, nunca o conseguiria, porque o rei de
França teria encontrado mil desculpas e os outros agitado mil temores.
Não quero referir-me às suas outras acções, que foram todas semelhantes
e todas lhe correram bem. A brevidade da sua vida não lhe permitiu experimentar o contrário, porque se tivessem vindo tempos em que
houvesse necessidade de proceder com ponderação, ter-se-ia seguido a sua ruína. Nunca Se teria desviado daqueles modos a que a sua natureza
o inclinava.
9. Concluo; pois, que, variando a fortuna e sendo os homens obsíinadosnos
seus modos, são felizes enquanto uma e outros estão conformes, e infelizes quando estes não se adaptam. Penso que é melhor ser impetuoso que
ponderado, porque a fortuna é mulher, e para tê-Ia submissa é necessário
bater-lhe e contrariá-Ia. E vê-se que ela prefere deixar-se vencer pelos
impetuosos que pelos que procedem friamente. Como mulher, é amiga
dos jovens, que são menos ponderados, mais ferozes e com mais audácia
a comandam.
Capítulo XXVI. Exortação a tomar a Itália e libertá-Ia dos bárbaros
Exhortatio ad capessendam /faliam in libertatemque a barbaris vindicandam
1. Consideradas que estão todas as coisas ,acima discutidas, e pensando
comigo mesmo se na Itália do presente os tempos eram de feição para
honrar um novo príncipe, e se havia matéria que desse ocasião a alguém
prudente e virtuoso de moldá-Ia e assim conquistar honra para si e o bem para a generalidade dos que nela habitam, pareceu-me que tantas coisas
concorrem em benefício de um príncipe novo que não me ocorre outra
ocasião que para isso fosse mais adequada, E se, como disse, era
necessário, para ver a virtu de Moisés, que o povo de Israel fosse escravo
no Egipto, e para conhecer a grandeza de ânimo de Ciro, que os Persas
fossem oprimidos pelos Medos, e [para conhecer) a excelência de Teseu,
que os Atenienses fossem desbaratados; assim, no presente, querendo conhecer avirtu de um espírito italiano, era necessário que a Itália fosse reduzida aos termos em que está actualmente: mais escrava que os Hebreus, mais serva que os Persas, mais dividida que os Atenienses, sem
chefe, sem ordem; batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado
todos os tipos de ruína.
2. E se bem que até hoje se tenham visto alguns lampejos de algum, tais que
se pudesse pensar que fora escolhido por Deus para redimi-Ia, também se viu depois que, no decurso da sua acção, foi reprovado pela fortuna (1). De
modo que, deixada sem vida, espera por aquele que venha sarár as suas
feridas e ponha fim aos saques da Lombardia, à espoliação do reino de
Nápoles e da Toscana, e a cure das chagas que há muito degeneraram em fístulas. Veja-se como roga a Deus que lhe mande alguém que a redima
destas crueldades e insolências bárbaras. Vejam-na ainda toda pronta e disposta a seguir uma bandeira, desde que surja alguém que a levante do
chão.
3. Nem se vê, no presente, em quem possa mais esperar senão na vossa
ilustre casa, com a sua fortuna e virtu, favorecida por Deus e pela Igreja, da
qual é agora príncipe, para chefiar esta redenção. O que não será muito difícil, se atentardes nos feitos e na vida dos acima nomeados. E se bem
que esses homens sejam raros e maravilhosos, nem por isso deixaram de
ser homens, e cada um deles teve ocasião inferior à presente. Porque a
sua empresa não foi mais justa do que esta, nem mais fácil , nem Deus foi
mais seu amigo que é vosso. Aqui é grande a justiça: «iustum enim est bel/um quibus necessarium, et pia arma ubi nul/a nisi in armis spes est.» (2)
Aqui é grande a disposição; e não pode haver grandes dificuldades onde
há grande disposição, desde que a vossa casa siga o éxemplo daqueles que propus como modelo. Além disto, aqui se viram coisas extraordinárias,
sem exemplo, conduzidas por Deus: o mar abriu~se ; uma nuvem mostrou-vos o caminho; uma pedra verteu água; choveu maná; tudo concorreu para a vossa grandeza. O restante deveis faz€-Io vós. Deus não quer fazer tudo, para não retirar-nos o livre arbítrio e parte da glória que nos toca a nós.
4. E não espanta que algum dos italianos que antes nomeei não possa ter feito aquilo que se pode esperar que faça a V05sa ilustre casa, nem que em tantas revoluções e movimentos bélicos pareça que as virtudes militares se tenham extinto em Itália. Isto resulta de que a velha ordem nela não era boa, e ainda não apareceu ninguém que soubesse lançar uma nova. Nada honra tanto um homem chegado ao poder como as novas leis e a nova ordem por ele criadas. Estas coisas, quando são bem fundadas ~ têm grandeza, fazem-no .reverenciado e admirado. E em Itália não falta matéria à espera de que lhe dêem novas formas. Aqui há grande virtude nos membros, desde que não lhes falte a cabeça. Vede os duelos e os combates de poucos contra poucos e reparai em como os italianos são superiores em força, destreza e engenho. Porém, quando chegamos aos exércitos, não estão à altura. E tudo se deve à fraqueza dos chefes, porque aqueles que sabem não são obedecidos, e todos se julgam sabedores porque até hoje nenhum soube elevar-se, pela virtu e pela fortuna, acima dos demais, de forma que os outros cedam. Daqui resulta que, em tanto tempo, em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos, sempre que houve um exército !nteiramente italiano fez fraca figura . Testemunham-no Taro, depois Alexandria, Cápua; Génova, Vailà, Bolonha e Mestre.
5. Assim, se a vossa ilustre casa quiser seguir os excelentes homens que redimiram as suas províl1cias, é necessário, antes de mais, como verdadeiro alicerce de qualquer empresa, prover-se de forças armádas próprias, porque não pode haver mais' fiéis, mais leais, nem melhores soldados. Se cada um deles for bom, todos juntos tornar-se-ão melhores quando se virem comandados pelo seu príncipe, que os honra e favorece. É necessário,
portanto, preparar estes exércitos, para podermos, com a virtude italiana, defender-nos dos estrangeiros.
6. Se bem que a infantaria suíça e a espanhola sejam consideradas terríveis, nem por isso deixam de ter defeitos, pelo que uma terceira força poderia não só opor-se-Ihes como confiar em vencê-los. Porque os espanhóis não conseguem opor-se à cavalaria e os suíços temem a infantaria quando vêem que é tão determinada no combate como eles. Daqui que se tenha visto, e a experiência o mostrará, que os espanhóis não conseguem suster uma cavalaria francesa e que os suíços são derrotados pela infantaria espanhola. E se bem que deste último aspecto não se tenha visto uma experiência completa, houve disso indícios na campanha de Ravena, onde a infantaria espanhola enfrentou os batalhões alemães, que combatem da mesma forma que os suíços. Aí, os espanhóis, com a agilidade dos seus corpos e a ajuda dos seus escudos, romperam por entre os lanceiros e atacaram os alemães à vontade, sem que estes pudessem contrariá-los. E não fora a cavalaria a obrigá-los a retirar, tê-los-iam morto a todos . Conhecendo-se, pois, os defeitos destas duas infantarias, pode conceber-se uma nova que resista à cavalaria e não tema os infantes. O que se
conseguirá com novas tropas e alterações nas formações militares. E estas são das coisas que, submetidas a uma nova ordem, dão reputação e grandeza a um príncipe novo.
7. Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, para que a Itália, ao fim de tanto tempo, veja o seu redentor. Não consigo exprimir com quanto amor seria recebido em todas as províncias que sofreram com estas invasões estrangeiras; com que sede de vingança, com que obstinada lealdade, com que piedade, com que lágrimas. Que portas se lhe fechariam? Que povo lhe negaria obediência? Que invejas se lhe oporiam? Que italiano lhe negaria vassalagem? Este domínio bárbaro é para todos insuportável. Que a vossa ilustre casa pegue nesta tarefa com o ânimo e a esperança com que se
acometem os empreendimentos justos, para que, sob o vosso estandarte, esta pátria seja enobrecida e, sob os seus auspícios, se verifique aquele
dito de Petrarca:
Virtu contra a furare Prenderá I'arme; e fia el combatler corto; Che /'antico vaiare Ne/li italiei cor non é ancor morto. (3 )
NOTAS
Dedicatória
1. Duque de Urbino e neto de Lourenço, o Magnífico (1449-92). Origi
nalmente, O Príncipe fora dedicado a Giuliano de Médicis, duque de
Nemours e filho de Lourenço, o Magnífico, que morreu em 1516.
Capítulo J
1. Francesco Sforza (1401-66) tomou-se duque de Milão em 1450, com
a ajuda dos Venezianos.
2. Fernando II de Aragão, o Católico (1452-1516), que acrescentou aos
seus domínios o reino de Nápoles (em 1501) e a Sicília (em 1504).
3. Fortuna é usado n'O Príncipe como sinónimo de sorte ou destino,
como hoje usamos na expressão «acasos da fortuna». Virtu significa ca
pacidade, habilidade, virtude ou talento, no sentido em que hoje dize
mos que determinado músico é «virtuoso».
Capítulo 11
1. No Discurso Sobre a Primeira Década de Tito Lívio.
Capítulo III
1. Carlos VIII (que invadiu a Itália em 1494) e Luis XII (que a invadiu
pela primeira vez em 1499).
2. Um claro exagero.
3. Embora a Romanha estivesse dividida numa pluralidade de Estados
independentes ou semi-independentes, o papa Alexandre VI reclamava
-a para a Igreja e procurou impor a sua autoridade sobre ela na pessoa do
seu filho César Bórgia. Para isso fez um acordo secreto com Luis XII,
nos seguintes termos: César Bórgia seria feito duque Valentino; ser-lhe
iam fornecidas tropas para ocupar a Romanha; a Luis XII seria garanti
do o divórcio de Joana de França, filha de Luis XI, para poder casar-se
com Ana da Bretanha, viúva de Carlos VIII (ficando assim com a
Bretanha); George d' Amboise, conselheiro de Luis XII, seria feito car
deal de Ruão.
4. O que efectivamente aconteceu: Franceses e Espanhóis entraram em
conflito e, após a batalha de Garigliano (Dezembro de 1503), os Espa
nhóis tornaram-se os únicos senhores de Nápoles .
Capítulo IV
1. Alexandre invadiu a Ásia Menor em 334 a. c., derrotou Dario em
Gaugamela em 331 a. C. e chegou à' Índia em 327 a. C. Morreu em 323
a. c., escassos onze anos após o inicio da sua expedição. '
2. Territórios ou províncias administrados por um governador nomeado
pelo sultão .
Capítulo V .
1. No final da guerra do Peloponeso, Esparta impôs a Atenas uma
oligarquia composta por trinta atenienses pró-espartanos (os trinta
tiranos). Porém, no ano seguinte, ' a democracia ateniense foi
restabelecida. Tebas, em 382 a. c., foi sujeita a uma oligarquia se
melhante, de que se livrou três anos mais tarde.
2. Cápua, 211 a. c.; Cartago, 146 a. c.; Numância, 133 a . C.
3. Pisa torno u-se uma possessão florentina em 1405 e assim perma-
neceu até 1494, altura em que Carlos VIII de França invadiu a Itália.
Voltou a ser submetida em 1509 .
Capítulo VI
1. Frei Girolamo (Jerónimo) Savonarola, um dominicano nascido em
Ferrara, começou a pregar em Florença, em 1492, contra a corrupção
que envolvia a Igreja e o papado. Durante algum tempo teve grande
influência nos destinos da cidade, sobretudo após a chegada das tropas
de Carlos VIII a Itália, que ele teria profetizado como sendo o justo
castigo dos pecados dos florentinos e do papado. Mais tarde, o papa
Alexandre VI (Rodrigo Bórgia) excomungou-o, prendeu-o e torturou-o.
Em 1498 foi condenado por heresia, enforcado e queimado na Piazza
della Signoria.
No livro Ou César ou Nada, o escritor Manuel Vásquez
Montalbán põe na boca de Maquiavel a seguinte descrição do destino do
frade : «Savonarola clamou contra a'corrupção da Igreja e dos príncipes
cúmplices, e foi utilizado inicialmente por uma fracção dos Médicis
contra outros Médicis. Isso pennitiu que o mito Savonarola crescesse e
dele se apoderasse o povo, os bispos escandalizados com a corrupção da
Igreja, como Caraffa, e esses sectores das classes poderosas que gostam,
de vez em quando, e por pouco tempo, de pedir perdão por serem pode
rosas.» Mas «a má consciência dos ricos dura pouco».
Capítulo VII
1. A influência das famílias Orsini e Colonna na vida romana datava de
há séculos. Os chefes das facções rivais, na posse de muitas proprieda
des e fortalezas em Roma e no Lácio, e à frente dos seus exércitos mer
cenários, representavam uma ameaça permanente para o papado.
2. Em Outubro de 1502, os capitães que César Bórgia contratara encon
traram-se em La Magione e conspiraram para frustrar as suas ambições.
Acordaram entre si manter a posse dos tenitórios que haviam conquis
tado em seu nome, encorajar rebeliões nos outros tenitórios dos Bórgias,
formar um exército para defesa mútua e procurar aliados. A revolta de
Urbino e os tumultos na Romanha foram consequência disso. César
Bórgia tratou de obter mais tropas francesas, e isso amedrontou os cons
piradores, que procuraram obter a paz. César ofereceu-lhes condições
muito generosas. Os conspiradores aceitaram devolver-lhe todos os ter
ritórios conquistados e manter-se ao seu serviço.
3. Acreditando piamente na reconciliação com César Bórgia, os antigos
conspiradores cumpriram o acordo e foram ao seu encontro em Sinigaglia.
Aí, César prendeu-os. Dois dos capitães, Vitellozzo Vitelli e Oliverotto
de Fermo, foram estrangulados imediatamente. Dois outros, o duque de
Gravina e Paolo Orsini tiveram o mesmo destino semanas depois .
4. A 5 de Agosto de 1503, após um jantar na residência de um cardeal,
Alexandre VI e o seu filho, César Bórgia, adoecem gravemente. O papa
morre dentro de dias e César só recupera um mês mais tarde. Entretanto,
o Colégio de Cardeais reunira para eleger novo papa, os Franceses avan
çavam para sul em socorro de Gaeta e os Espanhóis juntavam forças
para sair-lhes ao caminho.
Capítulo VIII
1. Agátocles foi rei de Siracusa entre 317 e 289 a. C.
Capítulo IX
l. Tibério e Caió Graco foram tribunos do povo em 133 e 123 a. c., respectivamente, e lançaram reformas agrárias que beneficiavam o
campesinato. Caíram às mãos do Senado. Giorgio Scali, um líder ple
beu, perdeu o favor popular e foi decapitado em 1382, depois de tentar
resgatar um amigo da prisão.
CapítuloXI
1. Carlos VIII.
2. Sixto IV (1471-84), tio do papa Júlio II.
3. Leão X (1513-21), tio de Lourenço de Médicis, a quem O Príncipe
era dedicado.
Capítulo XI!
1. Quando Carlos VIII encontrou fraca resistência em 1494, o papa Ale
xandre VI disse que os Franceses tinham chegado com giz nas mãos
para marcar os seus alojamentos.
2. O dito foi atribuído a Savonarola (ver nota 1 do capítulo VI).
3. Na realidade, Epaminondas morreu em 362 a. C. Filipe tornou-se rei
da Macedónia apenas em 359 a. C. e só ocupou Tebas em 338 a. C.
Capítulo XIII
1. O imperador João Cantacuzene pediu o auxílio dos Turcos, em 1353,
para que o ajudassem a combater os Paleólogos. Dois anos mais tarde,
findos os combates, os Turcos recusaram-se a sair.
Capítulo XIV
1. Filopémen (253-1 83 a. c.) foi repetidamente eleito general pela Liga
dos Aqllells . Pllltcarco chamou-lhe «o último dos Gregos».
Capítulo XVI
1. Luis XII e Fernando, o Católico.
Capítulo XVII
1. Em Pistoia, em 1501 e 1502, uma longa rivalidade entre duas facções,
que fora encorajada pelos Florentinos para controlar a cidade, descambou
em tumultos. O governo de Florença enviou Maquiavel para resolver a
contenda. Ao princípio, fizeram-se esforços para pacificar os chefes das
facções. Quando estes falharam, os chefes foram banidos da cidade, mas
não antes que muito sangue fosse derramado. Maquiavel defendera que
eles fossem banidos o", exec~tados desde o princípio.
2: «A necessidade aguda e a: novidade do meu reino obrigam-me a estes
feitos cruéis, e a proteger as minhas fronteiras elTI tOda a parte.» Eneida,
1,563-564.
Cap'ítulo XVIII
1. Fernando, o Católico.
Capítulo XIX
1. John Locke (1632-1704) e Montesquieu (1689-1755), «pais» da teo
ria da separação dos poderes, devem ter lido com atenção esta passa
gem.
2. Marco Aurélio (161-180) morreu quando combatia os Marcomanos
na Panónia. Pertinax (193) foi assassinado pela guarda pretoriana. Ale
xandre Severo (222-235) foi morto por um grupo de soldados amotina
dos , instigados por Maximino, o seu sucessor.
CapítuloXX
1. Pandolfo Petrucci, um dos déspotas mais hábeis do seu tempo, esteve
à frente dos destinos de Siena entre 1500 e 1512. Implacável na oposi
ção a César Bórgia, crê-se que esteve por detrás da conspiração de La
Magione (ver nota 2, cap. VII).
2. Niccoló Vitelli , um condottiere, foi afastado da cidade de Castello
pelas tropas do papa Sixto IV, em 1474. Regressou após a morte do
pontífice, em 1482. Foi então que desmantelou as fortalezas .
3. Estes factos ocorreram em 1488. A condessa Catarina Sforza era so
brinha de Ludovico, o Mouro, de Milão.
Capítulo XXI
1. Bernabó Visconti, senhor de Milão (1354-85).
Capítulo XXVI
1. A referência é, certamente, a César Bórgia.
2. «A guerra é justa quando necessária, e as armas são sagradas onde
não há esperança senão nas annas.»
3. «A virtude contra a fúria / pegará em armas, e seja curto o combate; /
Que a antiga valentia / ainda não morreu nos corações italianos.»