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A R T I G O o CONCEITO DE POLíTICA , EM MAQUIAVEL E A POLITICA COMO MAQUIAVELISMO O nome Maquiavel tor- nou-se hoje pratica- mente símbolo da "política pura" (Benedetto Croce) , da política sem ad- jetivos. A ele é dado o méri- to de, pela primeira vez, dissociar este conceito das amarras da tradição: a políti- ca se desvencilharia, enfim, dos juízos de valor, para ser iluminada unicamente pela luz nua e crua da realidade. Esta novidade, uma revolu- ção comparada à de Galileu na física (Prezzolini), estaria pormenorizadamente descrita em - O Prín- cipe. É isso, exatamente, o que gostaríamos, nestas poucas linhas, de colocar em questão. Acreditamos que, para avaliar melhor o legado de Maquiavel, é necessário distinguir claramente o objeto de estu- do de O Príncipe dos Discursos sobre a primeira década de Tito Liuio.' No capítulo I de O Príncipe, Maquiavel classifica os. vários dominii, os stati (palavra que não pode ser reduzida à noção moderna de Estado), ou seja, as várias formas de governo até então conhecidas. Maquiavel distingue as repúblicas dos principados, que podem ser hereditários ou novos, os quais, por sua vez, podem ser mistos ou completamente novos. Estes últimos, isto é, aqueles principados que foram adquiridos quer pela fortuna e com as armas que não as do príncipe, quer por meio de sua uirtü e de seu próprio exército, constituem o objeto de estudo de O Príncipe. "Novos" significa aqui novatos, isto é, conquista- dores, não tendo nenhuma conotação de novidade. Em primeiro lugar, o objetivo de O Príncipe- regras para a aquisição e manutenção de um principado novo - não é nada novo. Basta compará-lo, por exemplo, com o capítulo XI do livro V da Política de Aristóteles, cujo objeto de estudo é o "tirano". o tirano de Aristóteles eo príncipe novo de Maquiavel são caracterizados por terem adquirido e por manterem um domínio por meio da as- túcia e da violência (Política, 1313a9; Príncipe, capo VII); ambos têm, para manterem o poder, de se resguardar do ódio e do desprezo, as prin- cipais causas de sua queda C1312b17-21; capo XIX); aos dois é recomendado expulsar os nobres, os mais ricos e pro- eminentes C1311a15-22 e 1313a 40; capo VIII); a eles é também recomendado não abusar sexual- mente dos dominados ou ao menos não torná-lo público C1314b23-25 e 1314b28-36; capo VIII e XIX); finalmente, outra concordância fundamental diz res- peito à recomendação da hipocrisia Cl314a38-b18 e 1314b38-1315a4; capo XVIII). (Não é estranho a ausência em O Príncipe de uma regra, já enfatizada por Aristóteles, que muito provavelmente explica- ria uma das causas do esplendor cultural da Floren- ça dos Médici. Ele teria como objetivo: empobre- cer os ricos, para que não possam contratar tropas mercenárias; ocupar constantemente os pobres, para que, não havendo ócio, não possam, descon- tentes, tramar uma revolta; e, finalmente, dar a seus súditos a impressão de um bom governo, voltado exclusivamente ao bem público. Como sabemos, este livro é dedicado a Lourenço de Médici e visa facilitar a volta de seu autor à vida pública). Em segundo lugar, esta aproximação com o tirano antigo é confirmada pelos exemplos de principe nuovo que vêm da Antiguidade. Agátocles, por exemplo, é, no capítulo VIII, relembrado por "ter reunido numa manhã o povo e o senado de Siracusa, como se ele tivesse que deliberar assuntos pertinentes à república; porém, com um aceno previamente combinado fez com que seus soldados matassem todos PAULO lEvORIN* RESUMO Análise da obra de Moquiovel sobre o con- ceito de política, por meio da distinção en- tre o objeto de estudo de O Principe e dos Discursos sobre a primeira década de Tifo Lívio. * Doutorando em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. 90 Revisto de Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

A R T I G O o CONCEITO DE POLíTICA EM MAQUIAVEL EA … · otirano de Aristóteles e o príncipe novo de Maquiavel são caracterizados por terem adquirido e por manterem um domínio

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A R T I G O

o CONCEITO DE POLíTICA,

EM MAQUIAVEL EA POLITICACOMO MAQUIAVELISMO

Onome Maquiavel tor-nou-se hoje pratica-mente símbolo da

"política pura" (BenedettoCroce) , da política sem ad-jetivos. A ele é dado o méri-to de, pela primeira vez,dissociar este conceito dasamarras da tradição: a políti-ca se desvencilharia, enfim,dos juízos de valor, para seriluminada unicamente pelaluz nua e crua da realidade.Esta novidade, uma revolu-ção comparada à de Galileu na física (Prezzolini),estaria pormenorizadamente descrita em - O Prín-cipe. É isso, exatamente, o que gostaríamos, nestaspoucas linhas, de colocar em questão. Acreditamosque, para avaliar melhor o legado de Maquiavel, énecessário distinguir claramente o objeto de estu-do de O Príncipe dos Discursos sobre a primeiradécada de Tito Liuio.'

No capítulo I de O Príncipe, Maquiavel classificaos. vários dominii, os stati (palavra que não podeser reduzida à noção moderna de Estado), ou seja,as várias formas de governo até então conhecidas.Maquiavel distingue as repúblicas dos principados,que podem ser hereditários ou novos, os quais, porsua vez, podem ser mistos ou completamente novos.Estes últimos, isto é, aqueles principados que foramadquiridos quer pela fortuna e com as armas quenão as do príncipe, quer por meio de sua uirtü ede seu próprio exército, constituem o objeto deestudo de O Príncipe.

"Novos" significa aqui novatos, isto é, conquista-dores, não tendo nenhuma conotação de novidade.Em primeiro lugar, o objetivo de O Príncipe- regraspara a aquisição e manutenção de um principadonovo - não é nada novo. Basta compará-lo, porexemplo, com o capítulo XI do livro V da Políticade Aristóteles, cujo objeto de estudo é o "tirano".

o tirano de Aristóteles e opríncipe novo de Maquiavelsão caracterizados por teremadquirido e por manteremum domínio por meio da as-túcia e da violência (Política,1313a9; Príncipe, capo VII);ambos têm, para manteremo poder, de se resguardar doódio e do desprezo, as prin-cipais causas de sua quedaC1312b17-21; capo XIX); aosdois é recomendado expulsaros nobres, os mais ricos e pro-

eminentes C1311a15-22 e 1313a 40; capo VIII); aeles é também recomendado não abusar sexual-mente dos dominados ou ao menos não torná-lopúblico C1314b23-25 e 1314b28-36; capo VIII e XIX);finalmente, outra concordância fundamental diz res-peito à recomendação da hipocrisia Cl314a38-b18e 1314b38-1315a4; capo XVIII). (Não é estranho aausência em O Príncipe de uma regra, já enfatizadapor Aristóteles, que muito provavelmente explica-ria uma das causas do esplendor cultural da Floren-ça dos Médici. Ele teria como objetivo: empobre-cer os ricos, para que não possam contratar tropasmercenárias; ocupar constantemente os pobres,para que, não havendo ócio, não possam, descon-tentes, tramar uma revolta; e, finalmente, dar a seussúditos a impressão de um bom governo, voltadoexclusivamente ao bem público. Como sabemos,este livro é dedicado a Lourenço de Médici e visafacilitar a volta de seu autor à vida pública).

Em segundo lugar, esta aproximação com o tiranoantigo é confirmada pelos exemplos de principenuovo que vêm da Antiguidade. Agátocles, porexemplo, é, no capítulo VIII, relembrado por "terreunido numa manhã o povo e o senado de Siracusa,como se ele tivesse que deliberar assuntos pertinentesà república; porém, com um aceno previamentecombinado fez com que seus soldados matassem todos

PAULO lEvORIN*

RESUMOAnálise da obra de Moquiovel sobre o con-ceito de política, por meio da distinção en-tre o objeto de estudo de O Principe e dosDiscursos sobre a primeira década de TifoLívio.

* Doutorando em Ciência Política pela Universidadede São Paulo.

90 Revisto de Ciências Sociais v.26 n.1/2 1995

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os senadores e os mais ricos do povo, o que lhepermitiu ocupar e manter o domínio (principato)daquela cidade sem nenhuma contenda civil".Agátocles, conhecido pela historiografia clássica como"o tirano de Siracusa", antecipa fielmente um dos maisconhecidos feitos de César Borgia, modelo privilegiadona elaboração do tipo ideal do príncipe novo, quandoem Sinigália são assassinados friamente, na mesmanoite que haviam sido chamados para um encontrode confraternização, os condottieri Orsini e Vitelli.Como a quase totalidade dos nomes citados em OPríncipe são reconhecidos por todos os historiado-res antigos e modernos como tiranos, a questão estána razão pela qual aparece no capítulo VI os nomesde Moisés, Ciro, Rômulo e Teseu. Essas figurassemirníticas sempre foram unanimemente compre-endidas como fundadores - de Israel, da Pérsia, deRoma e de Atenas, respectivamente - ocupandoum patamar que as distinguia dos meros conquista-dores, dos meros tiranos. O que permite, no entan-to, Maquiavel aproximar estes dois grupos? O queos une, como ele diz, é o fato de que ambos sóalcançaram os seus objetivos por causa das armas.Usando uma de suas frases mais famosas, nestemesmo capítulo: "todos os profetas armados ven-cem, todos os desarmados fracassam". De qualquermodo, é mantida a distinção entre os fundadoressemimíticos de reinos duradouros e os tiranos decarne e osso, que como Hieron, Dionísio ou Dario,na Antiguidade, Visconti, Sforza, d'Este, Bentivogliou mesmo Mediei, na Renascença, jamais tiveramuma preocupação maior que iniciar uma dinastia.

Nem a figura do príncipe novo nem os conselhosa ele encaminhados nesse livro constituíram algumanovidade, mas somente a sua interpretação. O quefaria de Maquiavel o Galileu da política seria, emprimeiro lugar, a recusa de um enfoque normativode seu objeto de estudo - sem dúvida alguma, adistinção entre o bom e o mau governo, central nopensamento político clássico, está ausente de OPríncipe; em segundo lugar, a violência e a astúciaseriam os meios indispensáveis a toda ação política.Não é esta a nossa opinião. E por um motivo muitosimples: em O Príncipe não aparece sequer umaúnica vez a palavra "política". Para falarmos de umateoria política em Maquiavel, para compreendermosmelhor a sua noção de política, devemos recorreraos Discursos.

Nos capítulos:XXV e XXVI do primeiro livro, estáposto de uma maneira clara o que distingue estelivro do anterior. Ao tomar a Roma clássica comoobjeto de seu estudo e modelo a ser imitado,Maquiavel expôe inequivocamente seu credo polí-tico: ela possibilitou um vivere libero, uma oita cunle

ou ainda um vivere político, impossível de ser se-guido numa potestâ assoluta, a qual é chamada ti-rania. Poucas linhas depois, ele nomeia o titulardeste domínio: o nuovo principe. A mesma distin-ção encontramos no capítulo LV do primeiro livro.Criticando os nobres (gentiluomini) que vivemexclusivamente no ócio, devido à abundância desuas posses e, principalmente, os que possuemfortificações e súditos que o obedecem, como emNápoles, na Romagna e na Lombardia, Maquiavelconclui que "naquelas províncias não surgiu nenhu-ma república nem algum viver político, porque taisgerações de homens são inimigos de toda civilida-de", cabendo-lhes exclusivamente, para que possamser reordenadas, uma potenza assoluta. Não é oque ocorreu com as três repúblicas - Florença, Sienae Lucca - que souberam "manter a sua liberdade".E prossegue: "tudo concorreu para que nãohouvesse nessas províncias nenhum senhor de for-tificações e ainda nenhum ou pouquíssimos nobres",introduzindo-se, por outro lado, um "viver político".Ao terminar esse capítulo, Maquiavel conclui acercada distinção fundamental entre essas duas formasde governo: "portanto, uma república é constituídaonde há uma grande igualdade e um principado,onde há uma grande desigualdade".

Sem romper com uma perspectiva que privilegiao enfoque normativo da questão, podemos, semexagero, considerá-lo como um dos fundadores deuma outra longa e gloriosa tradição: o"republi-canismo clássico" (Zera Fink). Maquiavel recusa oideal de uma comunidade eticamente homogênea.O seu pessimismo antropológico não permite con-ceber uma forma de governo cujo princípio (nosentido que Montesquieu dá ao termo) fosse a vir-tude (seja a arete grega, seja a pietà, a fede, aintegritâ, a umanitã e a religione que os reis cató-licos deveriam possuir). É o que fica claro ao ler-mos o capítulo XVII de O Príncipe- "dos homenspodemos dizer que são ingratos, instáveis, simula-dores e dissimuladores, medrosos, avarentos" - ouo capítulo XXXVII do primeiro livro dos Discursos,no qual é dito que é de sua natureza que os ho-mens desejam mais do que podem conseguir, es-tando sempre insatisfeitos com o que possuem,causa de "toda inimizade e toda guerra". Tomandoessa característica humana como irrefutável,. a ques-tão maquiaveliana pode ser assim resumida: comoé possível em meio à pluralidade de interesses an-tagônicos, onde um consensus omnium é, por prin-cípio, descartado, estabelecer um vivere politico,isto é, um convívio civilizado entre as partesconflitantes? Esta questão e a resposta dada a elapor Maquiavel determinarão toda uma longa corrente

LEVORIN, Paulo. O conceito de político em Moquiavel. .. pp. 90 094 91

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de pensadores políticos, entre eles jonathan Swift,James Harrington, john Milton, Algernon Sydney,Bolingbroke e Montesquieu.

Enquanto, no ideal greco-cristão, a comunidadenão pode conviver com nenhuma forma de facção,já que ela se funda no consenso comum, e não napluralidade de interesses e valores, - em Maquiavelas facções não prejudicam em nada o viver políti-co. Pelo contrário: como ele descreve no capítuloIV do primeiro livro, a "causa" de Roma ter-se man-tido livre foram "os tumultos entre os nobres e aplebe". Melhor dizendo, o conflito em si não é acausa imediata dessa liberdade; ele é necessário,porém não suficiente. A publica libertà, isto é, aliberdade republicana - anterior à moderna liberda-de individual, que pressupõe a igualdade jurídicaentre os homens -, nasce da desunião entre o povoe os grandes. Há uma passagem, no capítulo IX deO Príncipe, que toma bem mais clara essa nuança:"o povo deseja não ser nem comandado nemoprimido pelos grandes e estes desejam comandare oprimir o povo"; da qual ele conclui que dessesdois apetites pode surgir ou um principado("causado pelo povo ou pelos grandes"), ou a li-berdade, ou ainda a licenciosidade. O primeiro sedá quando o conflito entre o povo e a nobreza ésuprimido por um domínio absoluto, caracterizadopelo emprego exclusivo da violência e da astúcia;já a liberdade - e este é um tema que está ausentede O Príncipe - quando esse conflito é institu-cionalizado, quando ele for submetido às ordini; alicenciosidade, finalmente, surge na ausência de umpríncipe ou de um quadro institucional.

É no capítulo II do primeiro livro dos Discursosque Maquiavel descreve a única forma de governo,o stato, as ordini que possibilitam o viver político,a igualdade civil, a liberdade pública. Esse capítuloespelha o livro VI das Histórias de Políbio, ondesão descritas, pormenorizadamente, as instituiçõesda Roma republicana. A história é vista como umatroca contínua entre dominantes e dominados.Depois de viverem por muito tempo dispersos, oshomens, já em sociedade, elegem, para sua segu-rança, o mais forte e bondoso entre eles, passandoa obedecê-Ia. Sendo os próximos príncipes não maiseleitos, mas sucedidos hereditariamente, o governode um só degenera numa tirania. Da revolta queela traz, surge um grupo pequeno, os ottimati-nobres e ricos, mas generosos - que, com a ajudado povo, instituem uma aristocracia. Esta, ao passaràs mãos de seus herdeiros, transforma-se numaoligarquia, num governo em proveito dos nobres,que, por sua vez, é derrubado pelo povo. Ogoverno do povo toma-se logo licencioso; e da

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anarquia que ele provoca surge uma novaaristocracia, iniciando uma nova fase nesse ciclocontínuo. Maquiavel ao localizar o motivo dessainstabilidade na "insolência dos grandes" e na"licenciosidade dos universais", não propõe, comovimos, a supressão desses impulsos. A solução estáno equilíbrio de forças entre os nobres e o povopor meio de regras de convivência mutuamenteaceitas.

Esses arranjos institucionais, essas ordini, que fi-zeram de Roma uma republica perfeita. consisti-am em manter "em uma mesma cidade o princi-pado, os excelentes (ottimati) e o governopopular". Os dois cônsules (que foram instituídosapós o banimento do rei de Roma, cuja funçãoprincipal era a preparação e o comando doexército), os senadores (representantes dospatrícios) e os tribunos (representantes da plebe)formavam o quadro institucional romano - que maistarde será chamado pelos Federalistas, ao retoma-rem a leitura dos clássicos do pensamento político,cbecks and balances, isto é, os freios que permiti-riam que as partes se equilibrassem entre si. Assim,todas as principais propostas políticas (impostos,declarações de guerra, acordos com as potênciasestrangeiras, banimentos, etc.) eram previamentesubmetidas a cada um dos elementos desse go-verno misto, que poderia vetá-Ias. O equilíbrioentre esses dois grupos sociais antagônicos(nobreza e povo), que a mistura dos três elementosproporciona, é, para Maquiavel, a garantia contratoda forma de governo degenerada, e, portanto,efêmera e cruel: contra a insolência dos nobres econtra a licenciosidade do povo, que trazem em sio germe da tirania. Isso não significa, como jádissemos, que esses impulsos sejam eliminados -como se pretendia na Grécia antiga, quando aformação da virtude pública, a phronesis, era oobjetivo primeiro da comunidade política, ou emum reinado orientado pelos princípios da fécatólica, na Idade Média -, e sim neutralizados porum artifício institucional, impedindo-os de setomarem o princípio de uma forma de governo.

Com base no que dissemos, podemos concluirque a verdadeira novidade, da qual Maquiavel foium dos principais arautos, consiste não no desen-volvimento de uma teoria da ação, entendida comoregras sobre o uso dos meios mais eficazes (a vio-lência e a astúcia) para a obtenção e a conservaçãodo poder sobre os outros, mas na elaboração deuma doutrina constitucional, entendida como re-gras para o convívio pacífico entre as partesconflitantes de uma mesma sociedade. Apesar deestar preso por vários laços à tradição - como a

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concepção estamental da sociedade e a concep-ção cíclica da história ou a ausência de uma divisãoentre Estado e sociedade, por exemplo -, não hácomo negar a inovação que a doutrina políticamaquiaveliana traz em relação à formação do Es-tado constitucional moderno. Maquiavel reconhece,em primeiro lugar, a irredutibilidade do conflitosocial, ou seja, a impossibilidade de haver qual-quer homogeinização da sociedade por meio deum princípio ético ou religioso qualquer, motor detodas as nossas ações. Em segundo lugar, ele acre-dita que esses conflitos, causa de todos os malessociais quando entregues a si, possam serinstitucionalizados. Graças ao engenhoso arranjoinstitucional característico do governo misto, a pazsocial, o maior bem que uma sociedade pode al-mejar, independeria da uirtú humana para a suarealização e conservação, como também estaria asalvo das intempéries da fortuna. O republicanismoclássico de inspiração romana, que tem nosDiscursos um dos exemplos pioneiros e maisilustres, foi a primeira tentativa de, no início doprocesso de laicização da política, estabelecer umgoverno das leis que substituísse de vez as mazelasdos sempre efêmeros e cruéis governos doshomens.

Por que, então, diante de tudo que dissemos, aassociação entre o nome de Maquiavel e a con-cepção de política entendida como astúcia eviolência nos soa tão normal, tão evidente? Foramos antimaquiavelistas, no século XVI e no XVII, quetomaram essa associação possível por meio de doispassos distintos: no primeiro, surge o termo"maquiavelista" para cunhar aqueles que fazem usoda astúcia e da violência para atingir ou se manterno poder; no segundo, essa designação será dadaaos "políticos".

Em 1576, Innocent Gentillet publica os Discursossobre os meios de bem governar e manter em boapaz um reino ou outro principado divididos emtrês partes, a saber: do Conselho, da Religião ePolícia que deve ter um Príncipe. Contra oFlorentino Nicolau Maquiavel, dedicado ao filhomais novo de Henrique II e Catarina de Médici -um livro que será várias vezes reeditado e queterá uma grande repercussão tanto no seu séculoquanto no próximo. O autor queixa-se de que,desde a morte de Henrique Il, em 1559, a Françaseria governada à l'italienne ou à laflorentine.Desde então, a velha maneira francesa de governar- quando o rei estava preso às deliberações daCorte e se obrigava a cuidar da alma e do bem-estar material dos seus súditos - teria dado lugar aum governo ateu, preocupado unicamente com

os meios de se manter no poder. O fato decisivo,para Gentillet, foi a Noite de São Bartolomeu, em1572, quando Henrique II teria seguido o modelodo ardil montado por César Borgia - o assassinatodos condottieri Orsini e Vitelli na mesma noite emque os havia convidado, descrito no capítulo XIIIde O Príncipe - eliminando os líderes huguenotese desencadeando uma perseguição sangrenta a seusseguidores. É interessante notar que o livro dohuguenote Gentillet não se volta contra oscatólicos, mas sim contra os "rnaquiavelistas" -termo com o qual ele designa Catarina de Médicie a sua Corte; que o mal que persegue a França sedeve menos ao fanatismo religioso que ao ateísmoe amoralismo destes. Só assim faz sentido adedicatória de um huguenote ao duque Franciscode Alençon, um católico: seu objetivo era aliciá-l onão a uma causa religiosa, mas contra o ateísmodos "maquiavélicos" da Corte francesa.

Na França dos conflitos religiosos, às vésperasda Noite de São Bartolomeu, surge uma terceiraforça, cujo objetivo era salvar o reino, pregando ofim das lutas religiosas mediante a tolerância e de-sobrigando o rei a se aliar aos católicos radicais naperseguição aos huguenotes, surge o partido dosmoderados, os politiques. Contra essa força cadavez mais influente, liderada sobretudo por Condée Montmorency, se insurgiram sobretudo osjesuítas. Estes viam nos "políticos", mais que naminoria herege, os verdadeiros inimigos do reino;pois, enquanto os últimos eram inimigos declara-dos da Igreja Católica, aqueles o combatiam ocul-tamente, sob o manto da fé católica. No final doséculo XVI e ao longo do século XVII, houve, prin-cipalmente na França e na Espanha, uma contínuatentativa de desmascarar os políticos, apontandopara o suposto ateísmo que se esconderia atrás desua religiosidade hipócrita e sua intençãodominadora. Para os seus críticos, no entanto, nãohavia dúvida alguma de que a fonte que os inspi-rava, o mestre que guiava as suas ações, eraMaquiavel. Essas inquietações são encontradas demaneira claríssima, por exemplo, na obra de Pedrode Ribadeneyra, da Companhia de Jesus, publicadaem 1595, o Tratado sobre a religião e as virtudesque um príncipe cristão deve manter para acondução e manutenção do seu Estado; que tempor subtítulo ... contra o que Nicolau Maquiavel eos políticos deste tempo ensinam. A expressão"político", portanto, associada à astúcia e àviolência, associada à maquiavélico - palavra que,por sua vez, desde 1576, toma-se pejorativa -, éfruto da propaganda ideológica, em meio aosconflitos religiosos do século XVI e do XVII.

LEVORIN, Paulo. O conceito de político em Maquiavel. . pp. 90 a 94 93

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NOTAS1. As citações de Maquiavel são baseadas nas edi-

ções Discorsi sopra Ia prima deca di Tito Liuio, Milano,1984 e li Príncipe, Milano, 1986. Entre os poucos in-térpretes que retratam o pensador florentino comoum dos maiores expoentes do republicanismoclássico, foram úteis para este pequeno ensaio: H.Baron, The Crisis of the Early Italian Renaissance, New]ersey, 1966; F. Gilbert, Macbtauelli and Guicciardtni,New Iersey, 1965 e History. Choices and Commitment,Londres, 1977; J. G. A. Pocock, The MaquiaoellianMoment, New]ersey, 1975; e F. Raab, TbeEnglisb Faceof Maquiaoelli. A cbanging Interpretation 1500-1700,London/Toronto, 1965. Fundamentais, porém, para asustentação da tese aqui desenvolvida foram doisautores: G. Sasso, Nicolõ Maquiacelti. Storia dei suoPensiero Político, Bologna, 1980, e a sua introduçãoaos Discorsi, Milano, 1984; D. Sternberger, DreiWurzeln der Politie, vol. I e II, Frankfurt am Main,1978, e Maquiaoellis 'Príncipe' und der Begriff desPolitiscben, in "Herrschaft und Vereinbarung", Frank-furt am Main, 1980.

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