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Paul-Henri e Marie-José Chombart de Lauwe A evolução contemporânea da Família: estruturas, funções, necessidades Um elevado número de investigações socio- lógicas, demo gráficas e económicas, efectua- das em diversos países, sobre a evolução con- temporânea da família, permite já estabelecer um primeiro inventário de aspectos funda- mentais dessa evolução e de problemas a es- tudar, por ela suscitados. Revela, por outro lado, não só o importante contributo que tais investigações podem, oferecer à definição de programas económicos e sociais, como também a necessidade de substituir a tradicional con- cepção estática da família por uma nova con- cepção dinâmica, adaptada às transformações em curso. INTRODUÇÃO 1 A concepção estática da família, considerada como um re- fúgio, uma garantia de estabilidade ou de ordem social, está hoje ultrapassada. Num mundo em rápida transformação, a família nada perdeu da sua importância, do seu vigor, da sua vitalidade, mas atravessa uma fase de completa transformação. Ignorá-lo N. da R.— Tradução, amavelmente autorizada pelas Edições Julliard, do artigo «L'évolution des besoins et la conception dynamique de la famille», publicado na Revue Française de Sociologie, ano I, n.° 4, Out.-Dez. 1950, pp. 403-425. 1 Alguns dos temas abordados neste artigo correspondem a investiga- ções já efectuadas em meio urbano, outras a estudos em curso, outras ainda a simples projectos. Pensámos que seria útil agrupá-los numa visão de con- 475

A evolução contemporanea familia - Paul Henri - Marie Jose Chombart de Lauwe

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  • Paul-Henrie

    Marie-JosChombart

    deLauwe

    A evoluocontempornea daFamlia: estruturas,funes, necessidades

    Um elevado nmero de investigaes socio-lgicas, demo grficas e econmicas, efectua-das em diversos pases, sobre a evoluo con-tempornea da famlia, permite j estabelecerum primeiro inventrio de aspectos funda-mentais dessa evoluo e de problemas a es-tudar, por ela suscitados. Revela, por outrolado, no s o importante contributo que taisinvestigaes podem, oferecer definio deprogramas econmicos e sociais, como tambma necessidade de substituir a tradicional con-cepo esttica da famlia por uma nova con-cepo dinmica, adaptada s transformaesem curso.

    I N T R O D U O 1A concepo esttica da famlia, considerada como um re-

    fgio, uma garantia de estabilidade ou de ordem social, est hojeultrapassada. Num mundo em rpida transformao, a famlianada perdeu da sua importncia, do seu vigor, da sua vitalidade,mas atravessa uma fase de completa transformao. Ignor-lo

    N. da R. Traduo, amavelmente autorizada pelas Edies Julliard,do artigo L'volution des besoins et la conception dynamique de la famille,publicado na Revue Franaise de Sociologie, ano I, n. 4, Out.-Dez. 1950,pp. 403-425.

    1 Alguns dos temas abordados neste artigo correspondem a investiga-

    es j efectuadas em meio urbano, outras a estudos em curso, outras aindaa simples projectos. Pensmos que seria til agrup-los numa viso de con-

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  • seria conden-la a novas desiluses. Reconhec-lo pode abrir-lhehorizontes ilimitados e contribuir para uma transformao doconjunto das estruturas sociais, que mais largamente correspondas necessidades essenciais dos homens.

    Um grande nmero dos males da vida social dos quais noslamentamos actualmente, tais como a desorientao juvenil, a ina-daptao das crianas, o desequilbrio de numerosas mulheres, ainquietao de homens de todas as condies e o seu isolamentona multido, encontram-se ligados a esta ausncia duma concepodinmica da famlia, adaptada nossa sociedade.

    Mas o que a famlia? Tomaremos aqui a palavra nosentido restrito de grupo conjugal compreendendo, na civilizaoocidental, o homem, a mulher e os filhos, mais ou menos ligadosao conjunto de pessoas que vivem num mesmo alojamento, querdizer ao mnage no sentido administrativo da palavra, ou a an-tiga maisonnee2. Na vida rural, e sobretudo em outras civili-zaes, este grupo conjugal menos fcil de distinguir da comu-nidade familiar ou grupo extenso de parentesco, que desempenhaa um papel mais importante. Na vida urbana e na civilizaoindustrial, o grupo conjugal diferencia-se, porm, cada vez mafenitidamente. Parece desenhar-se uma evoluo geral nesse sentido,mesmo, at certo ponto, em pases onde vigorava a poligamia.

    Este grupo conjugal, ligado ou no a uma comunidade fami-liar ou a uma comunidade local, tem funes e uma estruturaque interessa definir para o conhecimento das suas necessidades.Essas funes e estruturas variam conforme as culturas, as civili-zaes e os meios sociais. A literatura sociolgica versando esteassunto j abundante, principalmente nos Estados Unidos3. Ve-remos, no entanto, a necessidade de recorrer a outras formas deanlise estrutural, quando lembrarmos diversos estudos europeus,dos quais alguns so, hoje, muito frequentemente esquecidos. Par-ticularmente, a ligao entre a evoluo dos papeis sociais nafamlia, as transformaes econmicas e tcnicas e a influnciadas correntes ideolgicas precisa de ser melhor esclarecida.

    As necessidades devem, portanto, ser estudadas atravs deum processo diferencial e na sua evoluo. Mas a prpria noode necessidade precisa de ser fixada; foi o que tentmos fazernoutro lugar4. Voltaremos, contudo, a falar dela mais adiante.junto. [N. da T. Embora o inventrio de temas e noes apresentado nesteartigo date j de h cinco anos, ele constitui ainda, em nosso conhecimento,o texto que fornece uma panormica mais completa e sistemtica do campo deinvestigao a que se refere. Por isso o publicamos].2

    CHOMBART BE LAUWE, P.-H., F&mille et Habitation, Paris, C.N.R.S.rtomo I, 1959, tomo II, 1960.3

    HILL, R., Sociology of marriage and family behavior 1945-1959,.Current Sociology, 7 (1), 1958.4

    CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La Vie Quotidienne des Familles Ouvri-res, Paris, C.N.R.S., 1956.

  • Qual o papel a desempenhar pelo investigador na determinaodas necessidades familiares? No se trata, de maneira nenhuma,de estudar os meios a utilizar para as satisfazeresse o tra-balho dos servios sociais, mas de pr em evidncia o apare-cimento de novas necessidades em relao com a evoluo da fa-mlia. Incumbir aos planificadores dar resposta aos problemaspostos pelos socilogos.

    I. A EVOLUO DIA FAMLIA NO SEC. XXA famlia conjugal foi considerada como um grupo prim-

    rio 5, muitas vezes como o grupo primrio por excelncia,pea-chave da estrutura global da sociedade, e durante muitotempo, nas culturas ocidentais e mesmo noutras, como uma gar-rantia da ordem e da autoridade. Vrios autores salientaram autilizao da famlia para fins polticos no decorrer da histria,particularmente pelo poder real em Franja6. Jean LACROix re-cordou, por exempla, a posio de DONALD, que se nos afigura hojecaricatural: o Estado rege a famlia, a famlia rege os indivduos.Esta ordem social correspondia a uma determinada forma deexistncia, predominantemente rural, e a uma determinada concep-o da vida poltica. Actualmente, sob a influncia conjugada dastransformaes econmicas e das correntes do pensamento, a fam-lia mudou muito de aspecto.

    A famlia conjugal, ou um pouco mais latamente o mnage,a maisonne, tal como existiu durante muito tempo na Europa,correspondia: no espao, a uma unidade de habitao; do pontode vista econmico, a uma unidade de produo e de consumo;do ponto de vista social, a uma unidade de autoridade, a do senhorda casa ou chefe de famlia; e encontrava-se duplamente insertanum sistema de parentesco e num grupo local mais vasto: lugar,aldeia ou bairro.

    A industrializao e o desenvolvimento da vida urbana, nossculos XIX e XX, modificaram ao mesmo tempo a economia, osgrupos locais e os sistemas de parentesco. Em consequncia, a

    5 N. da T.: Foi C. H. COOI^ EY quem lanou a expresso primary-group,

    para designar qualquer grupo com as seguintes caractersticas: 1) face-to--face association; 2) the unspecialized character of that association; 3) rela-tive permanence; 4) the small number of persons involved; 5) the relativeintimacy among the participants. Embora o conceito de grupo primrio tenhaevoludo depois, parece ser ao seu significado original que os Autores aquialudem.6

    Sociologie Compare de Ia Famille Contemporaine, Paris, C.N.R.S.,1955 (Colloques Internationaux du Centre National de Ia Recherche Scientift-que); Kenouveau des Ides sur Ia Famille, Paris, P.U.F., 1954 (I.N.E.D.,Travaux et Documents, n. 18); LACROIX, Jean, Force et Faiblesse de IaFamille, Paris, Ed. du Seuil, 1957; LACROIX, Jean, La famille et le mouvementdes ides, in Famille d'Aujourd9hui, Lyon, Chronique Sociale de France, 1958.

  • famlia conjugal mudou simultaneamente de posio na sociedadee de estrutura interna. Ao mesmo tempo, novas ideologias modifi-caram os modelos antigos, aos quais se reportam os membros dafamlia. A imagem do grupo primrio adquiriu outra forma narepresentaro mental. Alteraram-se os sistemas de valores. At aspalavras pai e (filho deixaram de ter o mesmo significado, e alingustica revela as suas profundas modificaes.

    Para compreender estas alteraes, torna-se necessrio estu-dar a evoluo das funes da famlia na sociedade e a evoluodas suas estruturas, assim como a modificao das relaes e dospapis sociais no interior do grupo familiar.

    1. Evoluo das funes da famlia

    Entre os investigadores que, nestes ltimos anos, se dedica-ram ao estudo da evoluo das funes da famlia7, muitos intro-duziram, na discusso, elementos novos. O plano que seguiremos levaisso em conta, embora se baseie em observaes do Grupo de Etno-logia Social, de Paris. Provisoriamente, agruparemos dez sriesde funes em que quatro grandes grupos: as funes fsicas ebiolgicas, as funes econmicas, as funes sociais e culturais,as funes afectivas e espirituais, das1 quais indicaremos rapida-mente algumas linhas de evoluo.

    Dentro das funes fsicas e biolgicas, a funo de repro-duo e de sobrevivncia aquela que, pelo menos aparentemente,parece menos susceptvel de sofrer modificaes importantes. Noentanto, as transformaes tcnicas, o melhoramento das condi-es de vida e de sade, as guerras, as crises econmicas e ascorrentes ideolgicas tm uma influencia profunda sobre o com-portamento dos homens perante a vida e a espcie8. Particular-mente, a concepo do casal como unidade social e espiritual tendecada vez mais para uma diferenciao entre a funo de procriao

    7 STOETZEL, Jean, Les changements dans les fonctions familiales, in

    Renouveau des Ides sur Ia Famille, cit., pp. 343-369; STOETZEL, Jean etGIRARD, Alain, Les fonctions de Ia famille et Ia vie familiale, in Encyclo-pdie Franaise, T. XVI, La Civilisation Quotidienne, Paris, Larousse, 1954,section B, ehap. I; NIMKOFF, M. J. and MEYER, F., Technology, biology andthe changing family, Am. Jour. of Sociology, 57 (I), 1951, pp. 20-26;ANSHEN, R. N., dir., The Family, its function and destiny, New York, Harper& Bros., 1959; SVERDLOV, G. M., Changing in family relations in the URSS,in Actes du 3G Congrs Mondial de Sociologie, Londres, Association Inter-nationale de Sociologie, 1956, vol. IV, pp. 50-59; LEVI-STRAUSS, Claude, LesStructures Elmentaires de Ia Parente, Paris, P..F., 1949, chap. XXIX.8

    ARIES, P., Histoire des Populations Franaises et de leurs Attitudesdevant Ia vie depuis le XVIII6 Sicle, Paris, Ed. Self, 1948; SAUVY, Alfred,Thorie Gnrale de Ia Population, Tome II: Biologie Sociale, Paris,P.U.F., 1954.

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  • e o amor, apesar das suas ligaes profundas. O casamento , ago-ra, antes de mais, uma unio de duas pessoas. um princpio novona humanidade desde o Cristianismo^ se bem que as sociedadesditas crists o tenham depois, muitas vezes, submetido a rude provae no paream t-lo reencontrado seno recentemente.

    As funes de proteco material parecem ter perdido umaparte da sua importncia, devido ao lugar cada vez maior ocupadopelas diversas instituies sanitrias, educativas, jurdicas, desegurana social. Mas a famlia reserva para os filhos, sobretudoos mais pequenos, uma funo de habitao, uma funo de segu-rana econmica e, mais ainda, uma funo de segurana afectiva,acerca da qual voltaremos a falar, adiante. Alm disso, a famliatem sido apresentada, muitas vezes, nas grandes cidades indus^triais, como um refgio social, que permite defender o indivduocontra o isolamento na multido, particularmente em perodos con-turbados 9.

    O segundo conjunto o das funes econmicas (produo econsumo), que se alteraram muito mais profundamente.

    Actualmente, a funo de produo reveste-se de dois aspec-tos. Em meio urbano, a famlia raramente uma unidade de pro-duo para Exterior* como suqede na explorao agrcola; osartfices e os comerciantes so praticamente os nicos a conser-var situaes deste gnero. Em contrapartida, a famlia conservauma funo muito importante de produo de servios para osseus prprios membros. Quanto mais baixo o nvel de vida dafamlia, mais a me e, em certa medida, o pai despendem horasde trabalho para cuidai' dos filhos. A importncia desta funo,do ponto de vista econmico, tem sido muito pouco salientada.Quando verificamos que certas mulheres do meio operrio traba*lham 14 horas por dia para desempenhar as suas tarefas doms-ticas, podemos compreender melhor o lugar ocupado por estamo-de-obra familiar na vida social de um pas10.

    A funo de consumo corrente diz-loconservou umaimportncia muito maior do que a de produo. Com efeito, afamlia continua a ser muito nitidamente um grupo de comprasou de distribuio. Sendo tanto uma unidade de consumo, comouma unidade de habitao, a famlia dispe, para os seus membros,de um rendimento e organiza as despesas. Em; geral, se algunsmembros so assalariados e guardam uma parte do seu isalriopara gastos prprios, uma outra parte dele vai para o fundocomum. Interessa, ento, estudar o equilbrio entre o rendimento

    9 SCHELSKY, H., Wandlungen der deutschen Familie in der Gegenwart,

    Stuttgart, Enker 1956.10 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La Ve Quottdienne...f cit.; STOETZEL,

    Jean, et GIRARD, Alain, Une tude du budget-temps de Ia femme dans lesagglomrations urbaines, Population, 1 (I), 1948, pp. 47-62.

  • e a despesa e precisa, no decorrer da existncia do mnage,quais os perodos favorveis ou desfavorveis.

    Seria fastidioso citar os diversos autores que, em vrios pa-ses, se dedicaram a estes problemas de oramentos familiares.Entre os pioneiros, podemos citar ENGEL na Alemanha, DUCRE-TIAUX na Blgica, OWNTREE em Inglaterra, LE PLAY, OU, mais re-centemente, HALBWACHS em Frana. Os institutos nacionais tm-semultiplicado e dedicam cada vez maior ateno ao estudo dos ora^mentos familiares, no s para definir as necessidades familiares,como tambm para fundamentar os planos econmicos governa-mentais.

    O estudo do consumo familiar permite determinar progres-sivamente a maior parte das necessidades. Particularmente, apartir de ENGEL, OS estudos de oramentos familiares efectuadospor rubricas de despesas (alimentares, habitao, vesturio, diver-sos) permitem pr em evidncia a importncia relativa dos dife^ -rentes objectos de consumo, em funo do equilbrio oramentale das condies de existncia. Desde h alguns anos, a rubricadiversos adquiriu, mesmo nas famlias operrias, dimensestais, que nos estudos recentes j aparece subdividida em vriasoutras (sade, transportes, ocupaes do tempo livre, etc) la. Deresto, entendesse hoje que tambm as outras rubricas devem seramplamente subdivididas, sob pena de perderem significado:por exemplo, nas despesas de habitao, haver que distinguir asque se 'referem renda e as de conservao e arranjo da casa12.

    O estudo da funo de consumo levanta, para as famliasnumerosas, o problema das comparaes por unidades de consu-mo

    13. As escalas actualmente utilizadas em tais comparaes, em

    especial a impropriamente chamada escala de Oxford, parece--nos que desfavorecem nitidamente as famlias com grande nmero

    11 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., ha Vie Quotidienne..., cit. nota (4),

    supra.12

    CHOMBART DE LAUWE, P.-H., Famille et Habitation, cit. nata (2),supra.

    13 JV. da T.: De facto, querendo verificar, por exemplo, como variam as

    diversas rubricas de despesas (alimentao, habitao, etc.) em funo dorendimento familiar, torna-se necessrio eliminar as variaes devidas a dife-renas de composio dos agregados familiares observados, quanto idade eao sexo dos seus membros. Para isso, a contagem do nmero de membrosde cada famlia faz-se, no em indivduos reais, mas em unidades de con-sumo. Baseando-se no facto de que h uma relao estreita, de modo especialna alimentao, entre as quantidades necessrias satisfao das necessidadesdo indivduo e a idade e sexo desse indivduo, a escala de Oxford, mencionadapelos Autores, conta o homem adulto por uma unidade de consumo, mas amulher adulta apenas por 0,70 unidades de consumo, e as crianas por 0,70,0,60, 0,50 e 0,30, conforme a idade. Assim, uma famlia de 5 indivduos podeser computada em, por exemplo, 3,5 unidades de consumo apenas (1 + 0,7 ++ 0,7 + 0,6 + 0,5 = 3,5), menos do que outra composta s por quatro pessoas(1 + 0,7 + 1 + 1 = 3,7).

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  • de membros, pelo que deveriam iser modificadas14. Em Frana, oI. N. IS. E. E. utilizou uma escala mais aceitvel, mas ainda no in-teiramente satisfatria. Faltam-nos investigaes seguras nestedomnio.

    Seja como for, o estudo das funes econmicas constitui umaexcelente introduo ao estudo dos papis sociais e das relaesna famlia, ao qual aludiremos adiante.

    As funes sociais e culturais formam o terceiro conjunto,e a sua evoluo pode ser estudada de diversos pontos de vista.A primeira destas funes a da socializao da criana15. A fam-lia teve outrora um papel decerto mais importante do que hoje nainstruo e educao das crianas. Nos nossos dias, grande partedestas funes confiada escola e aos1 vrios movimentos edu-cativos ou de tempos livres que se ocupam dos jovens. Mas o papelda famlia permanece indispensvel, e numerosos autores tmprecavido os pais contra o abandono da educao familiar. O papelda me ou do pai permanece, em larga medida, indispensvel. Ino seio da famlia que a criana faz a sua primeira aprendizagemda sociedade, e essa aprendizagem marcar toda a sua existn-*cia16. a propsito da educao que melhor apreendemos o pro-blema das relaes entre natureza e cultura, a que HEGEL deu aimportncia que se sabe e que autores modernos tm particular-mente posto em evidncia.

    A funo de identificao social, na qual tim justamenteinsistido alguns autores em especiail STOETZEL muda deaspecto consoante as sociedades, mas permanece sempre indispen-svel 17. t atravs da famlia que a criana recebe um nome, umapaternidade, uma identidade; e tambm por seu intermdio queo indivduo admitido na sociedade.

    Devido s suas funes jurdicas e polticas, a famlia, diri-gida pelo seu chefe, foi um instrumento de governo. O Estadaapoiava-se nos chefes de famlia, e por isso que a poltica fami-liar levanta ainda hoje, por vezes, tantas controvrsias. Efectiva*mente, de acordo com a ideia que formam da autoridade paternae do seu lugar na hierarquia dos valores, os homens adquirem uma

    14 HILL, R., Sociology of marriage..., cit. nota (3), supra.13 N. da T.: O termo socializao usado aqui na acepo que lhe

    dada pelos especialistas de Sociologia e Psicologia Social. Socializationescreve Meyer F. NIMKOFF in social psychology denotes the process bywhich an individual learns to adjust to the group by acquiring social beha-viour of which the group approves (vd. Dictionary of the Social Sciences,ed. by Julius GOULD and William L. KOLB, The Free Press of Glencce, 1964),Neste sentido, a socializao todo o processo de aprendizagem (que abrangea educao na famlia) das normas sociais e padres culturais da sociedadee do meio a que o indivduo se destina.16

    CHOMBART DE LAUWB, M.-J., Psychopatologie Sociale de VEnfantJnadapt, Paris, C.N.R.S., 1960.

    17 Bibliografia citada na nota (7), supra.

  • noo mais ou menos paternalista da sociedade, que pode, s vezes,transformar-se numa concepo mais ou menos totalitria. A evo-luo para a democracia est, assim, ligada evoliujo da famlia.

    A famlia tem tambm funes de transmisso: atravs delaque se transmitem os bens duma gerao a outra. As regras rela-tivas herana tm-se modificado profundamente. O direito demorgadio desapareceu e os bens materiais transmitidos so redu-zidos pelos impostos do Estado. A transformao particular-mente ntida na transmisso para alm do parentesco de 1. grau:unicamente a famlia (conjugal , em certa medida poupada. Atransmisso do nome continua a ser patrilinear; mas o bero fami-liar pode ser o da famlia da mulher. A transmisso da culturacontinua a ser uma funo importante da famlia, apesar do papelda escola, dos mass media, da imprensa, etc. Esta funo estintimamente ligada ao meio social no qual a famlia se insere.

    O ltimo conjunto diz respeito s funes afectivas e espiri-tuais. Para um desenvolvimento harmnico da sua personalidade,a criana tem necessidade dum clima afectivo particular, que s afamlia lhe pode proporcionar. Pensou-se que, em caso de falta,,tal necessidade de afecto poderia ser parcialmente compensadadoutro modo; mas os psiclogos so unnimes em afirmar que opapel do afecto maternal insubstituvel. Mais recentemente, foitambm colocado em primeiro plano o papel do afecto paternal. Oambiente do conjunto formaxfo pelos innos tem tambm influnciana educao da criana18. Depois de um perodo de certo enfraqueci-mento, a famlia reencontra, assim,, de uma maneira nova, as jus-tificaes objectivas da sua coeso afectiva.

    A famlia teve durante muito tempo uma funo espiritual,designadamente uma funo religiosa, que continua a ser relevantenas famlias ligadas a uma determinada crena. Mas, sejam quaisforem as tendncias filosficas e as crenas dos seus membros, afamlia continua a constituir um plo de atraco peljo prpriofacto de representar um sinal de esperana e de amor. Em reu-nies de grupo, com jovens de opinies muito diferentes, temossido impressionados pelo seu desejo de uma famlia atractiva,oposta, no seu esprito, famlia oprimente, da qual se queremlibertar. A recusa da famlia de tipo tradicional anda assim acom-panhada pela aspirao a uma famlia de um novo tipo. Mas, qualser a estrutura deste novo tipo de famlia? Quais sero a ospapis dos seus membros?19.

    18 CHOMBART DE LAUWE, M.-J., Psychopatologie Sociale..., cit. nota (16),

    supra.19 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La naissance des aspirations des

    formes nouvelles de Ia famille, in Recherches sur Ia FamUle, Tubingen,J,. C. B.. Mohr, 1956.

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  • 2. Evoluo dos papis sociais e das relaes familiaresCada membro da famlia tem um papel social, que envolve

    o cumprimento de determinadas funes. Mas o seu papel socialno se limita a este aspecto funcional: refere-se tambm a umadeterminada imagem de pai, de me ou de filho, que corres-ponde a uma expectativa de comportamento. Os modelos respei-tantes a estas personagens variam com as formas da cultura. Nosperodos de transformaes sociais rpidas, as contradies entreos comportamentos quotidianos e as imagens de referncia criam,naturalmente, incfertezas e conflitos20.

    No podemos, num estudo sumrio, referir-nos detalhada-mente s descries que foram feitas das diferentes personagensdeste jogo familiar, dos seus respectivos papis sociais e das rela-es que se estabelecem entre elas. Queremos somente traar umquadro rpido e salientar certos aspectos das suas transformaes.

    Estudos preliminares deveriam incidir, em nossa opinio,sobre a alterao das actividades no interior do grupo familiar.Nesta perspectiva, a observao da vida quotidiana das famlias a melhor aproximao ao estudo dos papis sociais e das rela-es ; requer,, porm, muito tempo e grande mincia 21. A ligaontima entre as transformaes do meio (em relao com a evolu-o das tcnicas, os movimentos ideolgicos, as condies de vida,os comportamentos) e as funes a que nos referimos acima, per-mite-nos situar em contexto muito amplb as modificaes internasdas estruturas da famlia. Os diferentes aspectos a considerardevem incidir sobre o espao e o tempo, os trabalhos quotidianos,os oramentos, a educao e as actividades culturais.

    A noo de grupo familiar esteve sempre e continua a estarligada de espao. Ora, cada vez mais o apartamento substitui acasa e o jardim. A passagem da vida junto do solo vida nashabitaes em altura transforma muitas vezes as relaes exte-riores e a vida interna do mnage22. Isso particularmente mani-festo quando as alteraes econmicas so muito rpidas; nafrica e na sia, por exemplo. A dimenso do alojamento, a dispo-sio das divises e o seu equipamento e arranjo exprimem e modi-ficam, a um tempo, as estruturas familiares. A observao emp-

    2 0 CHOMBART DE L A U W E , P.-H., et CHOMBART DE L A U W E , M.-J., Trans -

    formations des roles du pre et de Ia mre dans Ia famille d'aujourd'hui,Ecole des Parents, 1959, pp. 13-23.

    21 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La Vie Quotidienne, cit. nota (4), supra.22

    CHOMBART DE LAUWE, P.-H., Les rapports entre le milieu social et Iafamille en relation avec rorganisation de Tespace, in Actes du 3e CongrsMondial de Sociologie, Londres, Association Internationale de Sociologie, 1956,vol. IV, pp. 35-40; CHOMBART DE LAUWE, P.-H., Famille et Habitation, cit.nota (2), supra.

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  • rica neste campo essencial para se definirem as necessidades23.O estudo dos horrios de cada um dos membros da famlia

    no menos importante. Por vezes, mostra que o pai, pratica-mente, no v os filhos; outras vezes, evidencia um nmero dehoras de trabalho esgotante para a mulher do meio operrio. Almdisso, a comparao dos ritmos acentua, quando a mulher traba-lha, uma tendncia para a uniformizao das actividades24. Oshorrios dirios e as distribuies mensais ou anuais da utiliza-o do tempo, mostram-nos, em certos perodos e para determina-das categorias sociais, uma evoluo tendente a um aumento dotempo destinado ao repouso e distraco. No entanto, nos m-nages de escassos rditos, em Frana, as horas extraordinriasso mais numerosas do que antes da guerra, o que suprime umaparte das actividades familiares em comum, nos tempos livres.

    A raridade das actividades de produo domstica para omercado no deve levar-nos a menosprezar o trabalho directa-mente produtivo para os prprios membros da famlia. Os melho-ramentos tcnicos libertam progressivamente a mulher de diversostrabalhos domsticos; mas a carga que estes lhe impem continuaainda muito pesada.

    A organizao das despesas e do consumo, de que falmosmais acima, requer um estudo profundo em relao com as fun-es econmicas e as atitudes dos diferentes membros da famlia.Particularmente, o aumento muito tfpido das despesas referentess actividades culturais mostra a modificao profunda que seopera nas preocupaes, necessidades e aspiraes. Essa alterao visvel mesmo nas refeies, que continuam, apesar de tudo, aser o momento privilegiado de reunio e de comunho familiar,pelo menos nos mnages de rditos modestos25.

    De um modo geral, a ligao entre o nvel de vida e certoscomportamentos foi bem evidenciada por diversos autores. Nomea-damente, as atitudes de autoridade ou de igualdade parecemdependentes das classes sociais. Os mnages operrios tm com-portamentos qu lhes so prprios, e a evoluo das famlias ope-rrias levanta problemas especficos26.

    As ocupaes relativas aos filhos devem ser estudadas emligao com a organizao do espao e do tempo, tendo em contaos progressos da informao sobre novos mtodos e as alteraesque ela provoca. De facto, o desenvolvimento da informao sobrea vida poltica e social facilita, em certos aspectos, a maior parti-

    123 CHOMBART DE LAUWE, Famille et Habitation, cit. nota (2), supra.

    2 4 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La Vie Quotidienne..., cit. nota (4),

    supra.2 5

    Idem, ibidem.26 KONIG, Jt,, Fami ly and au thor i ty . The Gemian f a t h e r in 1955,

    Sociological Review, 5 ( I ) , 1957, pp . 107-127; BRAMS, L., S t ruc tu re Socialeet famille ouvrire, Actes du 8 Congrs Mondial de Sociologie, Londres ,Association In te rna t iona le de Sociologie, 1956, vol. IV, pp . 146-154.

  • cipao do conjunto da populao na vida colectiva de um pas.Da resulta para as famlias uma intensificao do intercmbiointelectual interno; todavia, dificuldades surgem quando as opi-nies divergentes so muito acentuadas. Esse facto particular-mente manifesto nas relaes entre geraes.

    As actividades culturais e espirituais ultrapassam largamenteo problema dos tempos livres. Sem dvida, a introduo da rdio,e sobretudo da televiso, provocam modificaes brutais nos hor-rios, nas preocupaes, nas fontes de informao, nas relaessociais internas, no ambiente familiar. Mas preciso no esquecerque a vida cultural se estende a todas as manifestaes da vidafamiliar.

    Acompanhando as actividades da famlia, vem-se as perso-nagens do grupo desempenhar papis variveis consoante os pa-ses, as culturas, os nveis de vida, os meios sociais. Por conse^guinte, difcil descrever a sua evoluo em termos gerais; podem,no entanto, destacar-se certas tendncias.

    Na vida social, a mulher casada era, e continua a ser namaior parte dos casos, apreciada segundo a famlia a que pertencee no segundo a sua posio social. Usa o nome do marido, se bemque nalguns pases no seja a isso obrigada por lei, O direito devoto -lhe ainda, por vezes, contestado ou s lhe foi concedido recen-temente, depois de muitas discusses. Este estatuto social estrelacionado com o facto de se lhe no ter reconhecido durante muitotempo, na sociedade, mais do que um papel familiar de guardi dolar. Ora, o grupo familiar foi-se restringindo progressivamentee o papel social nele desempenhado pela mulher encontrou-se igual-mente reduzido. Ao mesmo tempo, a mulher tende a ingressar navida profissional, no s por coaco econmica, mas tambm porinteresse prprio e para participar mais activamente na vidasocial27. Finalmente, grandes perturbaes sociais levaram amulher a desempenhar papis essenciais em lutas revolucionriase na libertao dos seus pases: as raparigas que combateram nosmaquis com os homens, ou arriscaram a vida de vrias maneiras,no podem encarar, como anteriormente, o seu papel na sociedade.

    Podemos ver nesta libertao rpida da mulher o resultadofinal dum movimento profundo que se desenvolve no decorrer dossculos. ENGELS dizia que a monogamia apareceu como a sujeiode um sexo ao outro, como proclamao entre os isexos de um con-flito desconhecido, at ento, em toda a pr-histria 28. (Se estatese das origens, em parte inspirada em MORGAN, hoje difcil-

    27 CHOMBART DE L A U W E , M.-J., e t CHOMBART DE L A U W E , P.-H. , Les atti-

    tudes Vgard de Ia position de Ia femme dans Ia socit, Paris, Grouped'Ethnologie Sociale, 1960 (multigraphi).

    28 ENGELS, F., U Origine de Ia Famille (trad. de 1'aliemand), Paris,A. Costes, 1948.

  • mente sustentvel ENGELS teve no entanto o mrito de mostraicomo, atravs dos sobressaltos da civilizao ocidental, at aocapitalismo, se tende a afirmar uma nova forma de amor, quesupe a reciprocidade do amor no ser amado e a igualdade dohomem e da mulher29. Neste ponto, muitos autores cristos estode acordo com JENGELS*, se bem que se lhe oponham em muitosoutros. Reportando-ise a doutrinas diferentes, uns e outros confe-rem ao verdadeiro amor uma primazia incontestada.

    Este tema da primazia do amor reencontra-se, embora sobformas essencialmente diferentes1, tanto em LENINE na sua respostaa Inez ARMAND, e em certos anarquistas, como em MICHELET e emescritores catlicos, por exemplo VIALATOUX e ARCHAMBAULT, eduma forma mais completa e mais profunda, no filsofo JeanLACROIX'30. Este ltimo salienta um p-omto capital, a propsito daunio livre, ao citar o psiclogo Daniel LAGACHE : a unio livre stu e eu; o casamento somos ns. Voltamos a encontrar aqui o eloentre a socializao pela famlia-instituio e o amor que o seufundamento. O ns familiar tem de caracterstico que o indivi-dual e o social crescem nele proporcionalmente sl.

    O estudo do divrcio e dos sintomas de desagregao que a suaextenso manifesta em certos pases, como os Estados Unidos, deulugar a interessantes comentrios que vo ao encontro de preo-cupaes dos autores socialistas. Assim G. MURY, baseando-se emparticular em Kimball YOUNG, acentua a maior resistncia ao divr-cio dos operrios qualificados, enquanto que os colarinhos bran-cos32 ou o sub-proletariado so mais afectados. A desagregaodas estruturas familiares rt est relacionada, por outro lado, quercom o prestgio do dinheiro e com a mobilidade social rpida, quercom as situaes de dependncia ou de rejeio.

    No interior do casal, o tema da igualdade dos sexos, que desen-volvemos algures a partir de inquritos em curso em diversosmeios e em vrios pases64, um dos que se prestam a maiornmero de confuses. Cada vez mais evidente numa parte cada

    2 9 CHOMBART DE L A U W E , P.-H. , La Vie QuoUdienne...t cit. n a t a ( 4 ) ,

    supra.30 LACROIX, Jean, op. cit. nota (6).3 1

    CHOMBART DE LAUWE,M. - J . , Psychopatologie Sociale..., cit. nota (1 6) ,supra.

    32 N. da T.: Os colarinhos brancos white-collar, p a r a os americanos

    so os membros das novas classes mdias assalariadas, que na sociedademoderna se tm vindo a desenvolver: empregados, funcionrios, quadros tc-nicos e administrativos, e t c , que, no participando embora nas classes pro-pr ie tr ias , nem exercendo profisses liberais, constituem, no entanto, estratossociais nitidamente diferenciados das camadas operrias.

    3 3 M U R Y , G., Sociologie e t act ion familiale, Information Sociale, 1959.

    3 4 N. da T.: Vejam-se Images de Ia Femme dans Ia Socit (Recherche

    in te rna t iona le ) , P a r i s , Ed . Ouvrire, 1964, e CHOMBART DE L A U W E , M. J .e t P . H. , H U G U E T , M., PERROY, E . e t B I S S E R E T , N. , La Femme dans Ia Socit;son image dans les diffrents milieux sociaux, Pa r i s , C.N.R.S., 1963.

    US6

  • vez maior da humanidade, essa igualdade no pode ser confundidacom a uniformidade total dos papis sociais, como o pretende,muitas vezes, um feminismo agressivo que gostaramos de verultrapassado. A mulher vai alcanando, em quase toda a parte,uma igualdade de direitos com o homem. Isto no quer dizer que sedeva tornar semelhante a ele. A mulher imitadora do homem ummodelo que perde toda a seduo para ambos os sexos. A igualdadede direitos deixou de nos parecer incompatvel com uma diferen-ciao profunda, necessria ao dilogo do casal85. A mulher temum papel a desempenhar em todos os campos: familiar, profissio-nal, poltico e outros;, papel que to importante como o do homem;mas imprime-lhe uma nota pessoal diferente36. Os trabalhos queprosseguimos sobre as atitudes dos homens e das mulheres relati-vamente posio da mulher na sociedade permitir-nos-o preci-sar estes diferentes pontos. Nos estudos que efectuam actualmente,outros investigadores, como Viviane ISAMBERT-JAMATI (sobre a edu-tao das raparigas), tambm nos traro certamente teis ele-mentos de reflexo. O estudo das necessidades permitir-nos- verat que ponto uma transformao geral das estruturas necess-ria para permitir mulher o desempenho dos seus diferentespapis, sem ser esmagada por um trabalho excessivo.

    Ao passo que a mulher ocupa uma posio social mais ampla,o homem encontrasse muitas vezes separado da famlia pelo seutrabalho profissional e pelos seus horrios3T. Deixou de ser o nicomuniciador da famlia do ponto de vista financeiro. Dentro decasa participa mais nos trabalhos domsticos, apesar do poucotempo de que dispe. Simultaneamente, solicitado a preenchero seu papel de pai de uma maneira nova, particularmente juntodos filhos de tenra idade, cuja necessidade de presena paterna vaisendo cada vez mais sublinhada.

    As crianas tm papis sociais mais nitidamente caracterizadosdo que outrora, na medida em que deixam de ser consideradas comopessoas grandes inacabadas, para passarem a ser encaradascomo tendo personalidades que so caractersticas das suas idadese sexos. As novas correntes educativas progridem rapidamente emodificam as relaes entre pais e filhos; o desenvolvimento dasescolas de pais , neste ponto, muito significativo.

    Os adolescentes foram, at agora, mal estudados. Desde hpouco tempo porm, so tambm considerados como personagensque tm na sociedade papis que so especficos da sua idade.

    Os velhos deixaram de ter, como outrora, o seu lugar na casafamiliar.

    35 CHOMBART DE LAUWE, P.-H. et CHOMBART DE LAUWE, M.-J., Trans-formations des roles..., cit. nota (20), supra.86

    Sociologie Compore..., cit. nota (6)> supra.37 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La Vie Quotidienne..., cit. nota (4), supra.

    W

  • As dificuldades de relaes entre geraes so muitas vezespostas em relevo; no entanto, comea-se a sentir a falta de contac-tos entre os jovens e os seus avs, os quais tinham talvez umaimportncia maior do que aquela que se supunha.

    ! preciso acrescentar, para ter um quadro completo do mnageno alojamento, os empregados domsticos, que desaparecem cadavez mais sob a sua forma antiga. A me-de-f amlia pode ser auxi-liada por uma mulher-a-dias, que est presente em casa, diaria-mente, durante um certo nmero de horas; mas a antiga criadatende a ser suprimida quase por toda a parte, excepto nos meiosmais abastados.

    A famlia conjugal, tal icomo a vemos evoluir, encontra-se,pois, marcada por uma maior individualizao das diferentes per-sonagens, por um lugar mais importante dado criana e ao ado-lescente, por uma maior complexidade das relaes internas, poruma forma mais democrtica de educao. Mas sobretudo a posi-o privilegiada do casal que notria. Certos autores julgarampoder falar de uma regresso da famlia como instituio, dandoesta lugar a uma unio muito mais livre do homem e da mulher,sob a forma de um companheirismo'38. No se trata, porm,duma supresso da famlia, mas apenas de uma evoluo tendentea alicer-la unicamente sobre o amor recproco. O dilogo docasal tornasse o ponto de convergncia de toda a vida do grupofamiliar restrito. Para os prprios filhos esta condio parececapital: as graves repercusses e perturbaes de comportamentoque neles se manifestam, quando h dissociao aparente ou latentedo casal, so bastantes para o demonstrar. No entanto, falta aindafazer uma verdadeira psicossociologia do casal.

    Compreende-se, ento, at que ponto so importantes as mo-dificaes de atitudes do homem e da mulher com respeito po-sio desta ltima na sociedade, tal como a estudmos em inqu-ritos recentes. As noes de igualdade e liberdade da mulher, ex-pressas pelos dois sexos, constituem o ponto difcil de toda a evo-luo do casal39.

    O grupo familiar insere-se na sociedade por intermdio dasrelaes exteriores: grupos de parentesco, grupos de vizinhana,associaes das quais fazem parte os membros das famlias, movi-mentos familiares, etc.

    Dissemos que o grupo de parentesco tinha perdido grandeparte da sua importncia, menos talvez nos pases latinos do quenos anglo-saxnicos, apesar de alguns autores afirmarem que ele

    38 BURGESS, E. W. and LOCKE, M. J., Th Family, from Institution ta

    Companionship, New York, American Books, 1953.8s YOUNG, M. and WILMOT, R, Kinship in Eastern London, Londres,

    Routledge and Kegan Paul, 1957.

  • continua a exercer um papel ignorado 40. No interior de cada pas,as variaes so alis considerveis; mas a tendncia geral pareceser a independncia progressiva do grupo conjugal em relao famlia extensa (compreendendo, alm do casal e dos filhos, osdemais parentes).

    A vizinhana desempenhava, at recente data, um papel muitomais importante nos bairros populares do que nos sectores habi-tados por famlias menos modestas. Mas uma evoluo muito re-cente deu vizinhana nova importncia nos grupos de habitaesconstrudos nos arredores das grandes cidades ou a escassa dis-tncia dos aglomerados urbanos. As famlias de elevado nvel devida, que a vo habitar, organizam muitas vezes entre si umavida de vizinhana muito mais desenvolvida do que outrora. Dumamaneira geral, o estudo desses novos ncleos urbanos revela-nostransformaes muito rpidas de certos aspectos de grupo fami-liar. Trata-se, por vezes, de verdadeiros laboratrios, nos quais seelaboram as estruturas sociais do futuro41.

    A participao dos membros da famlia em diversas associa-es, cada vez mais numerosas, tem por consequncia um alarga-mento dos contactos e o desenvolvimento da independncia de cadaum dos membros. A coeso do grupo familiar corre o risco desofrer com isso, considerando a famlia em termos tradicionais.

    Finalmente, as famlias experimentam cada vez mais a ne-cessidade de serem representadas, como tais, na vida social e pol-tica, por movimentos que defendam os seus interesses. As dificul-dades surgem quando alguns desses movimentos so demasiadonitidamente orientados por famlias pertencentes somente adeterminados meios sociais. As categorias que se no consideramsuficientemente representadas formam ento outros movimentos.Esta diversidade no tem inconvenientes, a no ser que as reacesde oposio sobrelevem aos esforos de compreenso e de reco-nhecimento duma complementaridade necessria.

    Se levarmos em conta as mudanas de actividades, de papissociais e de relaes no interior da famlia, e as modificaes intro-duzidas nas relaes entre o grupo familiar e a sociedade, pode-remos ter uma ideia da evoluo das estruturas familiares. Afamlia deixou de apresentar uma figura to rgida como outrora;as personagens esto mais desligarias de imagens pr-estabelecidas,que implicavam o desempenho de papis sociais cujos mais pe-quenos pormenores estavam socialmente fixados. A vida familiar, assim, uma perptua criao. Por vezes, parece resultar umaincerteza desta situao nova. Inverses de papis, demisses de

    4 0 Idem, ibidem.

    4 1 CHOMBART DE LATJWE, FamiUe et Habitation, cit. no ta ( 2 ) , supra .

  • responsabilidades e mesmo revoltas so as consequncias de trans-formaes demasiado rpidas e da falta de adeso a formas novas.

    Mas a famlia comea a corresponder s aspiraes dos jo-vens de que falmos mais acima. Deixando de ser o grupo pres-sionante que os jovens recusam, pode transformar-se num grupomais livre, ao qual eles se encontraro ligados pelo clima afectivoe pela resposta s suas verdadeiras necessidades, numa sociedadeque se modificou no seu conjunto. No entanto, esta evoluo dasrelaes entre os membros da famlia concretizou-se talvez dema-siado rapidamente e com desequilbrios. De facto, os papis sociais,embora mais maleveis, continuam a ser muito distintos: porexemplo, os jovens seriam desorientados por pais que se tornassemsomente seus camaradas. Estudos em curso sobre a maneira comocada personagem v as novas estruturas familiares permitir-nos-oresponder a certas perguntas que continuam de p.

    II. A EVOLUO DAS NECESSIDADESA evoluo das necessidades resulta, em grande parte da evo-

    luo das funes, das estruturas e dos papis sociais, acerca dosquais acabmos de falar. Mas a prpria noo de necessidadeprecisa de ser esclarecida, bem como as relaes entre a evoluodas necessidades e a evoluo do conjunto das estruturas sociais.Abordmos este problema fundamental, observando diversos as-pectos da vida social42, e teremos ocasio de voltar a ele num estudoespecial sobre o assunto. So, no entanto, necessrias algumasbreves referncias respeitantes a certos autores que dedicaramparticular ateno ao estudo do problema43.

    1. A noo de necessidadeA noo de necessidade tem preocupado principalmente eco-

    nomistas, filsofos, psiclogos e socilogos (s nos referiremosincidentalmente aos trabalhos dos bilogos e dos fisiologistas). Emeconomia, a necessidade s raramente, excepto em alguns autoresrecentes, distinguida da procura. Em psicologia, aparece comouma motivao do comportamento; em sociologia, como um motorda transformao social e, s vezes, como o motor essencial**.

    Utilizada na Antiguidade e na Idade Mdia, a noo de neces-sidade reapareceu tardiamente, sob formas novas, no sc. XVIII es se definiu realmente no sc. XIX. J nos referimos, no nosso

    4 2 CHOMBART DE L A U W E , P . - H . , Famille et Habitation e La Vie Quoti-

    dienne..., cits. no ta s (2) e ( 4 ) , supra .43 Renouveau des Ides sur Ia Famille, cit. no ta (), supra .4 4

    SMALL, A. W., Introduction to the Study of Sociology, 1894.

    90

  • trabalho de equipa sobre a famlia e a habitao 45, ao seu papelna histria do funcionalismo arquitectnico. Nas teorias econmi-cas, os fisiocratas no consideraram as necessidades seno emrelao com a lei da oferta e da procura, e um autor recente,Yves CALVEZ, tem razo, para sair deste crculo estreito, em re-ferir-se a HEGEL e ao seu sistema das necessidades, em relaocom a sua concepo de famlia46. Para HEGEL, O sistema das ne-cessidades corresponde ao mundo moral e social (Sittlichkeit), noseu estado de disperso, pelo qual se encontra envolvido o homemquando sai da sua vida familiar e escapa aos laos patriarcais.As necessidades multiplicam-se, decompem-se e particularizam^se,paralelamente diviso do trabalho.

    At a uma poca recente, a necessidade, em economia, foiapresentada com um carcter individual, abstracto, formal. Aeconomia interessou-se pelos objectos teis reclamados na procurado mercado por um conjunto de indivduos. Ora, actualmente(constatmo-lo a propsito das condies de vida das famlias),trata-se de estudar a necessidade mais como um estado do quecomo um objecto. !, por exemplo, a necessidade de alojamento, etoisi mesma, que deve ser considerada e estudada, e no somente onmero de alojamentos necessrios47. Analogamente, a necessi-dade fisiolgica de alimentao' correspondente a uma determi-nada carncia (de calorias, de vitaminas, etc.) no seno umdos aspectos da necessidade alimentar, da qual o aspecto psicol-gico assume uma importncia cada vez maior48.

    No devemos admirar-nos, por conseguinte, com o apareci-mento de uma psicologia econmica, cujo estudo incide cada vezmais sobre as opinies dos consumidores e mais ainda sobre assuas atitudes, com o fim de definir a necessidade como a atracoglobal que o indivduo experimenta por determinado produto 49.Mas a psicologia permite-nos ir mais longe nas investigaes sobremotivaes. A necessidade considerada como um estado de ten-so que tende a ser reduzido por uma satisfao, uma recom-pensa 50, e muito mais latamente, segundo PRADINES, como umatendncia que nos atrai para um objecto ou um ser, no sentido deum amor elementar 51.

    Situando essas necessidades1 no quadro da vida social-, veri-ficamos que so prprias de determinadas categorias de indiv-duos. Deixa de ter sentido a distino entre o somatrio das neces-sidades individuais subjectivas e as necessidades de um grupo ou

    45 Famille et Habitation, cit. no ta ( 2 ) .

    46 H E G E L , Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1821.

    47 CHOMBART DE L A U W E , R - H . , Famille et Habitationy cit . no t a ()..48 CHOMBART DE L A U W E , P . -H. , La Vie Quotidienne..., cit . n o t a ( 4 ) .

    49 REYNAUD, P.-L. , La Psychologie Economique, P a r i s , M. Rivire , 1954.

    50 La Motivabion. Symposium, Paris, P.U.F., 1958.

    51 PRADINES, Trait de Psychologie, Tome 1, Paris, P.U.F., 1948.

    191

  • de ioda a sociedade t todas as necessidades individuais s se com-preendem, com efeito, no contexto de um dado meio social, emligao com determinada cultura.

    A evoluo das necessidades, tal como foi estudada porHALBWACHS, salienta outros asipectos das reljaes entre as neces*sidades e a sociedade. Sabe-se que HALBWACHS insistiu primeira-mente, a partir de 1913, sobre a elasticidade das necessidades52 ;depois, em 1933, salientou a sua apario durante os perodos deexpanso econmica e a sua regresso nos perodos de recesso a3.Para ele, a evoluo das necessidades desenvolve-se atravs defases de extenso e de consolidao. ainda nesta perspectivaque trabalham alguns organismos recentes, tais como, em Frana,o C. R. E. D. O. C, quando estudam a elasticidade do consumo,a fim de orientar a produo54. Qualquer planificao moderna,quer se trate dos pases ocidentais, quer da U. R. S. S., , alis,obrigada a ter cada vez mais em conta as necessidades das fam-lias, observadas atravs dos oramentos familiares, para poderpreparar os programas econmicos.

    Podemos, assim, medir melhor as repercusses das tendnciasque nascem no grupo familiar. A famlia um laboratrio ondese elaboram necessidades. Consoante as relaes dos seus mem-bros, os modelos culturais a que se reportam, o sistema de valoresao qual aderem, assim se modificam a intensidade e a hierarquiadas necessidades. Mas a situao na sociedade e as condies devida transformam esta psicologia do grupo familiar. A oposioentre as necessidades subjectivas e as necessidades do grupo ouda sociedade cai por terra, a partir do momento em que situamos,deste modo, o indivduo no meio social ide que faz parte. O grupofamiliar , precisamente, um dos intermedirios entre o indivduoe a sociedade; mas alm de no ser o nico, temporrio. A fam-lia no pode fechar-se em si prpria, nem ser exclusiva para osseus membros. Uma vez mais, ela deve ser considerada como umgrupo de aspirao e no como um grupo pressionante.

    As diferentes categorias de necessidades que aparecem nafamlia podem, ento, ser agrupadas em duas grande divises:necessidades-obrigaies ((regressamos, embora de maneira dife-rente, definio de necessidade em MARX) e necessidades-aspi-raes. ! com base nesta distino que iremos prosseguir a nossaexposio.

    52 H A L B W A C H S , Maur ice , La Classe Ouvrire et les Niveaux de Vie,

    Paris, Alcan, 1913.53

    HALBWACHS, Maurice, Uvolution des Besoins ans les Classes Ou-vrires, Paris, Alcan, 1933.

    54 C.R.E.D.O.C., Revista Consommation, Paris. Publica-se desde 1957.

    492

  • 2. As necessidades-obrigaes

    Existe um certo nmero de necessidades ligadas ao quadrode vida, a que chamaremos necessidades-obrigaes55, cuja satis-fao vital para a vida familiar. Desde que no sejam satisfeitas,no pode existir equilbrio no grupo familiar, nem consequente^mente, nos membros desse grupo. Portanto, cada problemapsicolgico que se levanta no grupo familiar deve estar relacio-nado com o contexto sociolgico no qual podemos observ-lo. Asociologia deve permitir estudar o homem em dadas situaes,relacionadas com a vida social no seu conjunto. Cada comporta-mento, cada atitude, cada tipo de relaes entre indivduos nopode ser compreendido, se no for estudado em relao com omeio.

    As necessidades econmicas so as mais evidentes. Sem omnimo vital, a sade fsica e mental corre o risco de ser afectada,o quadro de vida deteriora-se e so suprimidas as possibilidadesde educao, de cultura, de distraco etc. Mas o mnimo-vitalno permite mais do que a sobrevivncia. uma noo que deveser substituda pela de oramento-tipo, calculado a partir dasvrias necessidades familiares, no esquecendo as necessidades deauxiliares domsticas. At agora, com efeito, os oramentos fami-liares foram estabelecidos com base em escalas que no levam emconta o aumento do trabalho domstico da me, e muitas vezesdo pai, quando o nmero dos filhos aumenta. Em tais condies,deixam de existir tempo e meios financeiros que possam ser con-sagrados s distraces e cultura.

    Segundo os clculos efectuados, possvel determinar limia-res. J apontmos muitas vezes os limiares crticos de super-fcie da habitao por pessoa ou de rdito por unidade de con-sumo, abaixo dos quais so cada vez mais provveis comporta-mentos patolgicos. Existem tambm limiares de satisfao,abaixo dos quais a preocupao domina o interesse livre nos com-portamentos quotidianos56. Por vezes, tambm limites superio-res poderiam ser precisados, por exemplo em habitao, por-quanto certas situaes, aparentemente muito favorveis, tm con-sequncias perturbadoras para as relaes pais-filhos57.

    Para que os oramentos familiares sejam equilibrados, ohomem e a mulher devem estar seguros de encontrar um trabalhoque seja suficientemente remunerado e estvel e que se adapte ssuas competncias. Donde a necessidade de conhecer a evoluo domercado de trabalho, quando se orientam os jovens para tal ou tal

    55 CHOMBART DE LAUWE, P.-H., La Vie Quotidienne..., cit. nota (4), supra.

    56 lidem, ibidem.

    57 CHOMBART DE L A U W E , P . -H. , n o t a s (4) e ( 2 0 ) , s u p r a .

  • profisso. A necessidade de um salrio suficiente e, por isso, a deum trabalho bem remunerado, so, por conseguinte, as necessidadeseconmicas prioritrias para permitir, a um tempo, viver mate^rialmente e dar aos pais um lugar bem definido na sociedade.

    A segunda categoria de necessidades-obrigaes correspondes necessidades de espao e de tempo. A sua falta muitas vezesconsequncia da insuficincia do poder-de-compra, que obriga aviver num espao exguo ou a consagrar demasiado tempo a umtrabalho mal remunerado. Quando estes dois constrangimentos seexercem simultaneamente, tendem a limitar e a tornar difceis asreunies dos diversos membros do grupo familiar, cujo papel no entanto fundamental.

    O termo espao familiar entende-se de vrias maneiras57.O alojamento representa um espao essencial: importa que esteespao tenha as dimenses suficientes, e tambm que seja orga-nizado e estruturado de forma a permitir s diversas pessoas,quer isolar-se, quer agrupar-se. As diferentes funes da habita-o, correspondentes aos ritmos da vida do grupo e s suas vriasnecessidades, devem poder ser distinguidas sem que, no entanto,se alcance um funcionalismo habitacional demasiado rgido, quese torne um constrangimento para a famlia. Finalmente, umequipamento domstico racional parece indispensvel, para limi-tar o trabajhio da taie e evitar-lhe fadigas inteis. Todos estespontos foram objecto de estudo no Grupo de Etnologia Social, deParis 58.

    A par deste espao ntimo, que para a famlia o alojamento,a organizao do espao ao nvel do grupo de habitaes ou dobairro responde a necessidades de relaes sociais. neste nvelque a presena de espaos verdes, de centros de actividades recrea-tivas, desportivas, culturais, para os jovens, etc, se torna neces-sria, do mesmo modo que as creches para as crianas e as orgar-nizaes auxiliares das mes nos seus trabalhos domsticos69.

    tambm vital para a famlia dispor de tempo para os seusmembros se encontrarem e reunirem s refeies ou em activi-dades de tempo livre, ou mesmo em simples dilogo e convvio'*informal. A ausncia prolongada do pai, retido por uma vidaprofissional muito absorvente ou pela obrigao econmica deefectuar numerosas horas suplementares de trabalho, nefastapara o grupo familiar. Contando o almoo tomado fora de casae o tempo de transporte, apercebemo-nos que, no presente, as rela-

    58 Idem, Famille et Habitation e La Vie Quotidienne..., cits. no tas (2)

    e ( 4 ) , supra .59

    Idem, Famille et Habitation, cit. nota (2), supra.

  • es entre o pai e os filhos deixam praticamente de existir, muitasvezes. Nalguns casos no se encontram seno ao domingo60.

    Quando a me tem um emprego, procura geralmente limitaras suas horas de actividade profissional; mas as tarefas doms-ticas so tais, ao regressar a casa, que deixa de ter tempo paraconsagrar aos filhos. Mesmo quando permanece no lar, se aconteceter muitos filhos e nenhuma ajudante, fica absorvida pelo trabalhodomstico. Devido ao cansao de que sofre, a sua presena deixaento de ter para os filhos o valor educativo suficiente. O estudodos horrios das mes-de-famlia e a observao dos seus compor-tamentos so particularmente significativos neste aspecto61. Otrabalho profissional no domiclio prprio (como costureira, borda-dora, etc), que parece exteriormente uma soluo interessante,tem, de facto, consequncias em geral lamentveis, devido explo-rao de que so vtimas as mulheres e ao salrio irrisrio queobtm62.

    Em terceiro lugar, incluiremos nas necessidades-obrigaes asnecessidades de segurana e de estabilidade. As modificaes fre-quentes, a inquietao, perturbam as relaes no interior do grupo:o facto no novo, mas esta necessidade de segurana e de esta-bilidade talvez mais sensvel num perodo que se encontra aindamarcado pelas alteraes radicais trazidas pela ltima guerra.No se trata somente da segurana material, cujo papel eviden-temente primordial. As crianas de tenra idade tm, pelo menos,uma igual necessidade de segurana afectiva. O receio de sentirquebrados os laos familiares uma das causas mais impressio-nantes que deparamos no estudo da gnese das perturbaes docomportamento infantil e juvenil.

    Seja como for, as necessidades-obrigaes no podem mudar.O que pode variar so somente os meios de as satisfazer, ou talvezos nveis a partir dos quais se podem dizer satisfeitas em diferen-tes meios sociais ou em diferentes culturas.

    3. As necessidades-aspiraes

    A par das necessidades-obrigaes, falmos de necessidades--aspiraes. Estas do famlia a possibilidade de se situar como

    60 Idem, op. cit, nota ( 5 8 ) .

    6 1 Idem, La Vie Quotidienne..., cit. no ta ( 4 ) ; STOETZEL, J . e t GIRARD, A.,

    Une tude du budget-temps...f cit. nota (10), supra.2 GUILBERT, M. et ISAMBERT-JAMATI, Viviane, Statut prefessionnel et

    role traditionnel des femmes. A props d'une enqute sur le travail do-micile, Cahiers Internationaux de Sociologie, 17, 1954; CHOMBART DE LAUWE,P.-H., Les Altitudes Vgard de Ia position de Ia femme dans Ia socit,cit. nota (27), supra.

  • clula social elementar. A transformao das estruturas da fam-lia tornou algumas delas mais imperiosas, enquanto que outrasforam simplesmente objecto de uma tomada de conscincia.

    A primeira necessidade-aspirao, a necessidade fundamental,que existe mesmo antes do nascimento dos filhos e cuja insatis-fao suprime afinal a existncia da famlia, a necessidade deharmonia e unio do casal. Voltamos aqui s consideraes feitasna primeira parte deste artigo. Os casamentos acordados e regu-lados pelos grupos de parentesco, previstos para preservar umalinhagem, para equilibrar as foras,, para transmitir uma herana,at mesmo para assegurar simplesmente a procriao, so substi-tudos por unies livremente consentidas, em que, no ponto departida, o fim nico uma descoberta mtua do amor, no maisamplo sentido da palavra, tanto no aspecto fsico, como no planoespiritual.

    Ora, a realizao de tais unies supe efectuadas as transfor-maes dos papis sociais masculino e feminino tradicionais, dasquais j falmos. A libertao da mulher particularmente essen-cial, para que o dilogo no casal possa exprimir-se harmoniosa-mente, a um tempo na igualdade dos sexos e na sua diferenciao.

    As condies desta libertao no podem ser obtidas senoatravs de transformaes muito importantes na empresa, naorganizao da vida residencial, nas regras jurdicas, nos mode-los culturais. Mas tal libertao, e a forma nova de unio que elatorna possvel, no devem e no podem operar-se em desfavor dacriana, visto que ela , afinal, a plena realizao do amor. Certospreconceitos e entraves tendem, por vezes, a desviar a mulher eo casal da alegria da procriao. que, com efeito, na sociedadeactual, o filho pode parecer um handicap para o desenvolvi-mento do casal. Ora, a verdadeira libertao consiste em permitirao casal ter ou no ter filhos e? se deseja t-los, que os possacriar e educar nas melhores condies, sem ter de sofrer por issouma espcie de penalizao pelos encargos demasiado pesados quelhe sejam impostos.

    Por seu lado, a criana no pode desenvolver-se plenamenteseno sombra dum casal livre e harmonioso. Isso representapara ela a garantia daquela segurana afectiva de que falmos;e tambm a nica possibilidade de abordar a vida na alegriae na esperana duma realizao completa, da qual sente quotidia-namente o atractivo e o gosto, na sua prpria famlia.

    Este desabrochar da criana est ligado satisfao de ne-cessidades culturais, particularmente de necessidades de instruoe de informao. O desejo de prolongar ao mximo a instruodos filhos uma aspirao cada vez mais generalizada nas fam-lias dos diferentes meios sociais. Mas a par desta instruo es-

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  • colar, que ser possvel estender cada vez mais, se as famliasalcanarem um standing suficiente, apareceu uma necessidadeeducativa especial. Trata-se da informao que necessrio for-necer s famlias sobre conhecimentos relativos vida do casal(psicolgicos, fisiolgicos, etc), vida do mnage e educaodos filhos. A multiplicao rpida das escolas de pais em vriospases exprime bem o crescimento dessa necessidade. Ao lado dosconhecimentos prticos, tais como noes de higiene, de formaodomstica, cuja posse se torna to necessria, as famlias maisconscientes e esclarecidas reclamam meios para continuarem amanter-se ao corrente da evoluo das cincias, das artes e dosmovimentos de ideias. De igual modo, os probletmas polticos^econmicos e sociais interessam-lhes muitas vezes directamenteenquanto famlias. Evocamos aqui toda a pedagogia dos adultose a educao popular.

    Chegamos, assim, presena duma necessidade de comuni-cao, de possibilidades de conhecimento do prximo e de dilogocom ele. Trata-se tanto da comunicao no interior da famlia,sem a qual a famlia deixa de existir, como da comunicao entreos membros da famlia e as pessoas exteriores. A comunicao uma defesa e uma garantia contra as presses internas no grupoe contra o isolamento em relao ao mundo exterior.

    A estes problemas de comunicao esto ainda ligadas outrasvipessidades de relaes sociais e de considerao social. A pro*psito da necessidade de espao, j salientmos a necessidade deuma disposio do habitai que permita relaes harmoniosas entreos membros da famlia. Mas a receipo de visitantes, estranhos famlia, deve ser cuididosamente estudada pelos arquitectos epelos organizadores: a fsimlia tem necessidade de se abrir parao exterior, de se mostrar sob um aspecto que lhe parea favo-rvel. Em vrios inquritos nos meios populares, salientmos aesse respeito a necessidade de ser bem considerado. Ora, aconsiderao est ligada a uma concepo da vida e a um sistemade valores que variam, no s segundo os pases e as regies, mastambm segundo os nveis de vida e as classes sociais.

    Seria ideal ver abolidas as barreiras que separam as fam-lias1 d!os diferentes meios sociais; mas, de facto, as segregaesa que aludimos existem e manifestam-se muitas vezes com vigor.O estudo das relaes de vizinhana nais unidades residenciaispe-se em evidente relevo6*3. Enquanto as estruturas econmicase as diferenas de condies de vida das famlias, que daquelasdependem, no forem profundamente modificadas, os ensaios dearquitectos e urbanistas para suprimir as barreiras sero ino-perantes.

    63 CHOMBART DE LAUWE, P.-H,., Famille et Habitation, cit. nota (2), supra.

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  • Em funo do que dissemos acerca da evoluo das estruturasfamiliares na sociedade, necessrio prever relaes de vizi-nhana ao mesmo tempo mais fceis e mais livres. Nesse aspecto,a organizao do espao desempenha um papel importante. Toda-via os grupos de parentesco e os sistemas de relaes (grupos deamigos e conhecidos) continuam a ser importantes, embora a suaimportncia dependa das situaes consideradas.

    Com maior amplitude, o estudo da famlia na civilizao in-dustrial requer a definiro das necessidades relativas aos papisa preencher pelo grupo familiar na sociedade. Regressamos, assim,ao problema do lugar ocupado por este grupo no conjunto dasestruturas sociais. Assinalmos que, na civilizao urbana ondedeparamos sociedades abertas, as famlias conjugais tendem afechar-se sobre si prprias, enquanto que na aldeia fechada asfamlias estavam mais disponveis para os outros. Interessa,efectivamente, permitir que as famlias conservem uma aberturalarga no meio urbano, o que possvel desde que se definam maisclaramente as unidades de vizinhana e as relaes entre os dife-rentes grupos sociais com os quais a famlia se relaciona.

    Acaso s conseguiro as famlias encontrar o seu verdadeirolugar na vida social, quando puderem tomar a seu cargo a organi-zao da vida residencial? Tratar-se-ia, ento, de criar apenas ser-vios sociais e caixas de abonos de famlia, ou igualmente de revera prpria organizao administrativa dos grupos de habitaes edos bairros? Levanta-se deste modo o problema da representaosocial e poltica da populao e da expresso das suas aspiraes.Uma vez mais, examinando as necessidades familiares, pe-se emevidncia a necessidade de largas reformas de estruturas para oconjunto da sociedade.

    III. NECESSIDADES E LIBERDADE

    Se certo que os indivduos aspiram, como vimos, a umaliberdade cada vez maior no seio de uma famlia que desejam real-mente acolhedora e atraente, mas no constrangedora,, a prpriafamlia parece querer tambm tornar^se livre na sociedade. Porum lado, a famlia exprime a necessidade de se alojar em habi-taes cujo tipo lhe no seja imposto, de escolher as suas relaes,de exprimir-se como famlia no plano social e poltico; por outrolado, parece procurar libertar-se, cada vez mais, das pressesexercidas pela famlia extensa (parentesco), pelo grupo de vizi-nhana, pela propaganda, a imprensa, a rdio, que ameaamencerr-la numa determinada linha de pensamento, numa culturaque nem sempre corresponde sua expresso real. O desenvolvi-mento, em diversos pases, dos movimentos familiares obriga os498

  • poderes pblicos a prestar uma ateno cada vez maior s suasaspiraes.

    Estes movimentos familiares manifestam tendncias diver-sas, por vezes opostas, que exprimem a variedade das necessi-dades, consoante os meios e as classes sociais. Tal pluralidade actualmente necessria e garantia de liberdade. Todos esses movi-mentos mostram, com efeito, o desejo de ver revalorizar gruposintermedirios entre o indivduo e o Estado, para preencher umvazio muito dolorosamente sentido, particularmente nos meiosurbanos. Mas surge imediatamente o perigo de se restabeleceruma ordem social, que criticmos acima, onde a famlia seria,uma vez mais, utilizada como instrumento do Poder Poltico. por isso que o desenvolvimento duma concepo dinmica da fa-mlia til e urgente.

    Estudando as necessidades das famlias, esse perigo pode sermais claramente acentuado. Definindo necessidades puramenteindividuais, o economista ou socilogo no contribui para umaverdadeira libertao dos homens. MARX teve razo, ao> salientaro carcter social das necessidades; mas foi justamente censuradopor t-lo feito quase exclusivamente em relao ao mundo do tra-balho64. Por outro lado, quando uma necessidade encarada so-mente do ponto de vista da sociedade, transforma-se em necessi-dade abstracta de um Estado fatalmente totalitrio. a variedadedas necessidades! socializadas que se deve procurar definir noconjunto das estruturas sociais. As necessidades familiares devemsituar-se nesse quadro geral.

    As necessidades das famlias no podem ser estudadas isola-damente. Por um lado, dependem das necessidades de cada umdos seus membros, dos papis que desempenham, das relaes quemantm entre si; esto, portanto, relacionadas com a estruturada famlia. Por outro lado, variam consoante as funes que seatribuem famlia na sociedade, bem como segundo os modelosculturais e os sistemas de valores que orientam essas definiesde funes.

    O objectivo essencial a atingir a harmonizao das necessi-dades, de tal maneira que cada homem possa, a todo o instante,respeitar as necessidades dos outros, as necessidades sociais doseu grupo e as necessidades de toda a sociedade. por isso qtiea procura de um sistema de necessidades, ao modo de HEGEL, podedesempenhar um papel muito importante. Nesta perspectiva,assume toda a sua importncia a distino que fizemos entrenecessidades-0&n#a

  • De facto, na vida das famlias, satisfazer as necessidades-obri-gaes permite aos indivduos sobreviver; mas para os levar aparticipar numa verdadeira marcha em frente, so as necessida-des-aspiraes que devem ser tomadas em considerao. No difcil, de resto, compreender que o inventrio das necessidades--obrigaes revela sobretudo as ligaes entre a evoluo dafamlia e as transformaes tcnicas e econmicas; as necessi-dades-aspiraes tornam principalmente notrias as ligaes dafamlia com o meio cultural.

    (Traduo por um grupo de estudantes de Arquitectura;reviso e notas de A. Sedas Nunes).

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