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A EXPERIÊNCIA DA MULHER NO CONTEXTO DA MEDICALIZAÇÃO DO
SOFRIMENTO: ENTRE A EXPLORAÇÃO DO TRABALHO E A
DOMINAÇÃO DE GÊNERO “Com quantos “transtornos” se faz uma depressão?”
(KEHL, p. 107, 2011)
Laura Basoli1
Resumo
O presente projeto de pesquisa propõe o desenvolvimento de uma análise acerca das determinações do processo de sofrimento psíquico que aflige as mulheres, trabalhadoras qualificadas, na faixa etária dos 30 anos, bem como as respostas dadas a ele. A partir da década de 1970, com o advento da reestruturação produtiva, observou-se mudanças qualitativas nas relações de trabalho que se refletiram, tanto na esfera pública das relações entre os trabalhadores e suas atividades produtivas, quanto na esfera privada das relações familiares e afetivas. Neste sentido, entende-se que as transformações ocorridas no mundo do trabalho, orientadas pelo modelo toyotista de produção, intensificaram o processo de alienação/estranhamento engendrado pelo capital, na medida em que se passou a exigir cada vez mais, tanto dos corpos, quanto da subjetividade dos trabalhadores. No bojo deste processo, atenta-se para as contradições que recaem particularmente sobre as mulheres trabalhadoras. A hipótese que norteia esta pesquisa é a de que existe dentro deste contexto uma estreita vinculação entre as transformações ocorridas na esfera do trabalho, a continuidade das relações de dominação/exploração inerentes ao patriarcado e a elevação do nível de sofrimento psíquico entre estas trabalhadoras, expresso, sobretudo, pelo consumo fetichizado e pelo aumento expressivo da busca por tratamentos medicamentosos. Para o desenvolvimento deste estudo pretende-se recorrer à história oral, mais especificamente à técnica de análise de depoimentos orais, como um método de pesquisa potencialmente crítico ao paradigma positivista de análise sociológica. Esses procedimentos metodológicos são considerados adequados aos propósitos desta investigação, na medida em que possibilitam um encontro com a subjetividade dos sujeitos deste processo de sofrimento, permitindo analisar as determinações do trabalho e da condição de gênero sob este quadro, a partir da narrativa das próprias entrevistadas acerca de sua experiência como trabalhadoras e mulheres, enquanto forma de compreensão de aspectos importantes do fenômeno de crescimento da medicalização do sofrimento, que transcendem as particularidades estritas do individuo como se faz parecer em outras abordagens com as quais debateremos. Palavras-chave: trabalho; gênero; sofrimento psíquico.
1. Introdução
1 Graduada em Ciências Econômicas pela Unesp de Araraquara e graduanda em Psicologia pela Unesp de Assis; Rua Dr. Fernando Costa, 345; (14) 8112 4668; [email protected]
Conforme mostra a reportagem escrita por Érica Fraga e Venceslau Borlina
Filho2
Neste mesmo sentido, conforme mostra um estudo realizado por Dal Rosso
(2008), mais de um quarto dos trabalhadores que responderam a sua pesquisa
declararam já ter tido algum tipo de problema de saúde – seja físico, ou mental – em
decorrência do trabalho. Nessa mesma pesquisa, quase um terço dos trabalhadores
entrevistados afirmaram ter tirado pelo menos um atestado médico nos últimos cinco
anos em decorrência da sobrecarga de trabalho (DAL ROSSO, p. 140, 2008).
, os “Afastamentos por doenças mentais disparam no país”. A manchete assusta e
os dados estatísticos comprovam: de 2010 para 2011 aumentaram em quase 20% os
afastamentos relacionados a transtornos mentais e comportamentais concedidos pelo
INSS. Segundo a reportagem, “O mercado de trabalho tornou-se um foco de doenças
como depressão e estresse. A tendência já se reflete em forte aumento no número de
brasileiro afastado pelo INSS por esse tipo de problema de saúde (...)”.
Conforme mostram também os estudos de psicopatologia do trabalho,3
(...) a organização do trabalho exerce, sobre o homem, uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições, emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais conforme às suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada (DEJOURS, p. 133, 1992).
o
sofrimento descrito por esses trabalhadores decorre diretamente da organização do
trabalho. Dessa forma, o sofrimento representa a contradição entre as aspirações dos
trabalhadores e o comando do patrão:
Dentro do contexto de crise estrutural do capital, a indústria farmacêutica,
assume a função de transformar em doença medicalizável o sofrimento psíquico
vivenciado pelos trabalhadores. Sentimentos como ansiedade, insatisfação, medo,
fadiga, cansaço, falta de identificação com a tarefa, tornam-se possíveis de serem
tratados enquanto patologias desvinculadas da esfera produtiva.
2http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1011732-afastamentos-por-doencas-mentais-disparam-no-pais.shtml 3 “A Loucura do Trabalho: estudos sobre psicopatologia do trabalho”, Christophe Dejours (1992)
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM),4
Esta forma de mal-estar tende a aumentar, na proporção direta da oferta de tratamentos medicamentosos: há vinte anos, 1,5% da população dos Estados Unidos sofriam de depressões que exigiam tratamento. Hoje este número subiu para 5%. Já no início do século XXI, a OMS divulgou que os “transtornos depressivos” tornaram-se a quarta causa mundial de morte e incapacidade, atingindo cerca de 121 milhões de pessoas no planeta – sem contar, evidentemente, os que nunca se fizeram diagnosticar” (KEHL, p. 107, 2011).
utilizado
pela psiquiatria médica a partir dos Estados Unidos, classifica o que deve – ou não – ser
considerado doença mental e assim tratado como tal. Convenientemente, a publicação
de sua quinta versão ampliada, faz emergir a discussão sobre a medicalização do
sofrimento psíquico, entendendo-o enquanto um desequilíbrio químico passível de ser
solucionado por meio da prescrição de medicamentos. As queixas cotidianas dos
trabalhadores rotuladas como depressão impulsionaram o mercado de medicamentos
nas últimas três décadas. Os laboratórios, legitimados pelo discurso dos psiquiatras,
afirmaram: o sujeito não está triste, bravo, entediado, confuso, estressado, com medo,
inseguro, de luto ou até mesmo sentindo-se explorado, ele está deprimido, ele está com
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), e existe uma “pílula” para
isso. Para Kehl (2011):
Deste modo, a classificação em forma de transtornos oferecidos pelos DSMs
impede uma abordagem metapsicológica do sofrimento psíquico, que seria mais
adequada ao entendimento e superação de suas determinações. Este segmento da
indústria capitalista, a “indústria da doença”, que tem tido extraordinários lucros num
momento em que inúmeros outros setores encontram-se em crise, cresce na mesma
proporção em que o estranhamento avança sobre o sujeito, penetrando a sua
subjetividade, esvaziando seu cotidiano de sentido, entorpecendo seu domínio sobre o
próprio corpo, roubando seu saber, aprisionando sua inteligência e domesticando sua
rebeldia. Às listas exaustivas de transtornos, o monopólio dos fármacos tenta responder
4 O DSM é um manual para profissionais da área da saúde mental que lista diferentes categorias de transtornos mentais e critérios para diagnosticá-los, de acordo com a Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA). É usado ao redor do mundo por clínicos e pesquisadores bem como por companhias de seguro, Indústria Farmacêutica e parlamentos políticos. Existem quatro revisões para o DSM desde sua primeira publicação em 1952. A maior revisão foi a DSM-IV publicada em 1994. O DSM-V está atualmente em discussão, planejamento e preparação, para uma nova publicação em maio de 2013. O contexto político do DSM é um tópico controverso, dado seu uso por indústrias farmacêuticas e seguradoras. O potencial conflito de interesses tem surgido em decorrência de uma possível relação entre os autores, que previamente selecionaram e definiram as desordens psiquiátricas do DSM, e a Indústria Farmacêuticas.
a cada um com uma “solução” medicamentosa, acenando com a esperança de que o
sujeito possa rapidamente normalizar sua conduta sem ter que se indagar sobre seus
desejos e frustrações relacionados ao trabalho:
quanto mais aqueles que sofrem depositam nos efeitos dessubjetivantes da medicação sua esperança de cura, mais se afastam da possibilidade de retomar uma via singular de compromisso com o desejo... (KEHL, p. 124, 2011)
Diante desse quadro de barbárie e colapso social decorrente da crise
estrutural do capital, assiste-se a um processo de intensificação do trabalho,
devido em grande parte a reestruturação produtiva, ao aumento das
exigências de produtividade e ao acirramento da exploração da
subjetividade do sujeito: a ordem hoje é “dar o sangue” pela empresa! São
os chamados “colaboradores”. Ou seja, existe uma introjeção das
responsabilidades do lucro da empresa na vida psíquica do trabalhador,
independente do setor em que atua.
Na vivência desta trama articulada de exploração e intensificação do
trabalho, homens e mulheres em diferentes exercícios profissionais vêm
sendo cada vez mais atingidos pelos mais diversos distúrbios emocionais e
físicos. Por sua vez, esses mesmos trabalhadores alimentam o círculo
vicioso tão lucrativo do capital: seja pela sublimação do sofrimento no
consumo de outras mercadorias fetichizadas pela mesma lógica que os
desumaniza e empobrece, seja pela transformação de seus sofrimentos em
demanda direta para a "indústria da doença" em franco desenvolvimento no
contexto atual. Essas condições estruturais que definem o mundo do
trabalho hoje, atingem de modo particular os diferentes sujeitos do
processo histórico. Deste modo, a despeito da universalidade da exploração
capitalista e da intesificação do trabalho, cabe considerar a forma específica
com que essas estruturas sociais atingem homens e mulheres. Assim,
partindo desse cenário, trata-se de analisar essas determinações do mundo
trabalho sobre a condição psíquica das mulheres trabalhadoras no contexto
da medicalização do sofrimento, levando em consideração as relações
capitalistas e patriarcais de dominação.
2. Problematização sociológica
O esforço teórico empreendido por Dal Rosso (2008) ajuda a
compreender que um trabalho é mais intenso quando, sob as mesmas
condições técnicas e durante o mesmo período de tempo, os trabalhadores
que o realizam despendem mais energias vitais, sejam físicas ou
intelectuais, com o objetivo de alcançar resultados mais elevados. Esses
resultados mais elevados são obtidos em consequência de uma maior
quantidade de energia empregadas pelo trabalhador na produção, e não do
avanço técnico-científico. De qualquer forma, a lógica da acumulação
capitalista continua baseada na apropriação do trabalho excedente. Na
dinâmica examinada, o que se constata é a apropriação desigual dos frutos
do trabalho e a exploração das forças vulneráveis do trabalhador.
A nova onda de intensificação do trabalho, segundo Dal Rosso
(2008), transfigura “empregos” em “trabalhos”5
5 “(...) “empregos” compreendia aquelas condições que os assalariados conseguiram obter em séculos de lutas e estariam se tornando um peso muito grande para as empresas, as quais enfrentavam a moderna competitividade, e um luxo para os trabalhadores. A noção de “empregos” deveria ser, com o tempo, substituída pela noção de “trabalhos”.” (DAL ROSSO, p. 12, 2008)
. Isso significa que as
condições de trabalho conquistadas pelos assalariados no seu percurso
histórico de lutas é substituída por uma forma flexível e mutável. É o
mundo contemporâneo dos negócios que, à partir da reestruturação
produtiva, reduz a “trabalhos flexíveis” os “empregos estáveis”, gerando
insegurança e sofrimento. Esse novo tipo de trabalho, além de colocar o
trabalhador em uma situação desconfortável, exige mais de sua capacidade
psíquica na medida em que introduz o sistema de polivalência6
Essa nova onda contemporânea de intensificação do trabalho tem
início por volta de 1980 e continua até os dias de hoje. Mais
especificamente, Taiichi Ohno, o engenheiro criador do sistema toyotista
de produção, insiste que foi 1973, ano do primeiro choque do petróleo, o
marco a partir do qual seu sistema se impôs ao mundo. Este sistema parte
de uma crítica ao modelo fordista, mostrando os desperdícios e a
inconsistência em se continuar produzindo em massa para uma sociedade
que não mais consumia dessa forma. Para dar conta de uma época de baixo
crescimento econômico, a produção é que deveria se ajustar ao consumo:
daí a idéia de produção “Just in time”.
em
substituição ao de cargos com funções específicas.
A flutuação na produção decorre da condição da demanda por parte
do mercado e repercute sobre a força de trabalho empregada. Agora é a
força de trabalho que se adéqua à produção, não mais o seu contrário. Esse
é o primeiro elemento do sistema toyotista que influencia no processo de
intensificação do trabalho. As possíveis elevações da demanda são
satisfeitas por um trabalho mais intenso, com horas extras e contratação de
adicional. Da mesma forma, as baixas na demanda do mercado são
respondidas com desemprego em massa.
Conceitualizando melhor a questão da intensificação, esta é um
processo que tem a ver com a maneira pela qual é realizado o ato de
trabalhar. Segundo Marx, “O trabalho é a transformação da natureza
realizada pelos seres humanos empregando para isso meios e instrumentos
a seu dispor e seguindo um projeto mental”7
6 A polivalência seria o meio pelo qual o trabalho ganharia em intensidade, já que faria com que o trabalhador se desdobrasse em várias tarefas ao mesmo tempo, exigindo maior empenho e consumindo mais energias pessoais, emocionais e cognitivas. Ela implica num esforço adicional de trabalho tanto mental quanto emotivo e de mais atenção e concentração por parte do trabalhador.
. Quando um projeto se realiza
na prática, os sujeitos que o executam gastam um volume variável de suas
7 DAL ROSSO apud MARX, p. 20, 2008
energias físicas ou psíquicas. A intensidade se refere ao grau de dispêndio
de energias realizado pelos trabalhadores em sua atividade concreta.
Quando falamos em intensidade no trabalho, estamos pensando
especificamente no trabalhador, de quem será exigido algo mais, um
empenho maior, física, psíquica ou intelectualmente. Quanto maior é a
intensidade, tanto mais trabalho será produzido no mesmo período de
tempo considerado. Esta pode ser compreendida sob outra perspectiva: O que é explorado pela organização do trabalho não é o sofrimento, em si mesmo, mas principalmente os mecanismos de defesa utilizados contra esse sofrimento. (...) A frustração e a agressividade resultantes, assim como a tensão e o nervosismo, são utilizadas especificamente para aumentar o ritmo de trabalho (DEJOURS, p. 104, 1992).
Segundo Dal Roso, no mundo contemporâneo, o trabalho imaterial vem
ganhando cada vez mais espaço, já que as atividades produtivas de hoje passam a
incorporar cada vez mais tecnologias de informática, de comunicação e de automação,
que por sua vez ocupam muito mais a dimensão do conhecimento, da inteligência
prática e emocional, da criatividade e da resiliência do trabalhador do que em épocas
anteriores. O trabalho é cobrado por cada vez mais resultados e por maior envolvimento
do trabalhador com a empresa em que trabalha. Nessas atividades não-materiais, a
prática de intensificação do trabalho pode ser observado no cotidiano de diversos
campos de trabalho.
A transição do paradigma da materialidade para a imaterialidade é acompanhada
por conseqüências de amplas implicações para a vida do trabalhador. As fronteiras
passam a ficar mais difusas e o tempo de trabalho invade os tempos de não-trabalho,
afetando a vida individual e coletiva desses sujeitos. A internet e o telefone impõe uma
relação de 24 horas do trabalhador com seu patrão, que se sente à vontade para entrar na
esfera privada de seu empregado e o requisitar a qualquer momento. Assim, o conceito
de intensidade não se restringe à dimensão da fadiga física ou do cansaço corporal, mas
dos esforços cada vez mais crescentes exigidos pelos empregadores das condições
psíquicas e emocionais de seus trabalhadores. É urgente que a dimensão do desgaste
psíquico advindo desse aumento da pressão e da exigência sobre a atividade produtiva
realizada seja levada em consideração. É preciso aprofundar a análise do caráter
patogênico do trabalho, bem como suas repercussões sobre o plano psíquico do sujeito.
Neste sentido, este estudo propõe desenvolver a análise do sofrimento psíquico
enfrentado cotidianamente por esses sujeitos, devido à demanda de trabalho cada dia
mais elevada.
O padrão da relação trabalho-saúde em atividades imateriais revela problemas de
saúde de natureza diferente daqueles apresentados pelos acidentes de trabalho em
campos materiais. Este refere-se principalmente à saúde psíquica e a problemas
decorrentes de um tipo de trabalho que é emocional, cognitivo, intelectual e relacional.
Nesse caso o estresse, por exemplo, está ligado à crescente pressão vivida por esses
trabalhadores sobre o excesso do fluxo de suas atividades.
Tratados juntos os diversos tipos de lesões por esforços repetitivos mais estresse, depressão, hipertensão e gastrite começa-se a obter um perfil dos problemas de saúde decorrentes da intensificação do trabalho imaterial. De alguma maneira, esse conjunto de condições negativas da saúde do trabalhador decorre de qualidades próprias do trabalho imaterial denso: tarefas que se repetem ininterruptamente por períodos prolongados, pressão sobre os trabalhadores sob a forma de controle sobre a quantidade e a qualidade do trabalho realizado, pressão por parte das exigências da clientela que impõem um esforço mental e um controle sobre-humanos e efeitos sobre o lado psíquico e relacional do trabalhador, que deixam marcas sobre o corpo nas formas de tendinites, gastrites, hipertensões e que extrapolam o ambiente de trabalho com reflexo sobre a vida familiar e societária dos indivíduos (DAL ROSSO, p. 145, 2008).
A intensificação se manifesta concretamente por meio de cinco mecanismos que
possuem em comum a característica de fazer com que o trabalho produza maiores
resultados: ritmo e velocidade; cobrança de resultados; polivalência, versatilidade e
flexibilidade; acumulação de tarefas; alongamento da jornada. Sobre a saúde mental do
trabalhador, acredita-se que os que mais influenciam no processo de sofrimento
psíquico seja a elevação na cobrança por resultados e o aumento das exigências sobre
polivalência, versatilidade e flexibilidade. Estas ideologias são introjetadas no
funcionamento psíquico do trabalhador a partir das formas contemporâneas de gestão do
trabalho e pela naturalização da lógica da modernidade. A implementação da
intensificação do trabalho vai depender do convencimento – e aí vale avaliar as
condições dessa introjeção no mundo interno dos trabalhadores – o qual se valerá de
argumentos como o discurso da modernidade, da racionalidade, das formas de obtenção
de vantagens, dos altos salários, ou simplesmente a repressão pela força, dada a posição
de dependência na qual se encontra o trabalhador. Assim, o processo de intensificação
do trabalho ocorre com efeitos sobre os corpos, a inteligência e a psique dos
trabalhadores: O resultado de trabalhar mais e mais não beneficia os produtores diretos nem o conjunto da sociedade. Trabalhar mais e mais se traduz, objetivamente, em maiores lucros que, devido ao enfraquecimento e à fragmentação das forças sociais do trabalho, são apropriados por segmentos específicos da classe capitalista (CATTANI, p. 10, 2008).
Fundamentada nesta problematização acerca da intensificação do trabalho no
mundo contemporâneo, esta pesquisa pretende colocar as trabalhadoras qualificadas no
foco central da análise deste processo, com o propósito de avaliar as condições
concretas do sofrimento psíquico na interface do trabalho e do gênero. Somente
mediante o auxílio dos instrumentos de análise das ciências sociais poder-se-á avaliar de
forma aprofundada a maneira como o corpo, o intelecto e a psique dessas mulheres
estão enfrentando as mudanças na forma atual do trabalho então apontadas. Ademais,
este projeto de pesquisa considera que o fenômeno estudado será melhor percebido e
capturado se a problematização teórica se fizer a partir da análise da experiência
concreta daqueles que vivem cotidianamente essa realidade social, sendo necessário,
portanto, ir ao encontro dos sujeitos concretos do processo histórico.
Assim, a partir do contato preliminar com a bibliografia específica sobre a
condição feminina no mundo do trabalho, bem como a partir do trabalho de campo
piloto realizado para a elaboração deste projeto de pesquisa, pode-se afirmar que, a ida
da mulher ao mercado de trabalho formal produziu uma situação de intensa sobrecarga
de trabalho. Considerando a intensificação sob o olhar da jornada de trabalho, a
reestruturação produtiva, em função da imposição dos horários flexíveis extenuantes,
cria sérios problemas para as pessoas encarregadas das tarefas domiciliares – trabalho
invisíveis esses que ainda costumam ser exercidos sobretudo pelas mulheres, dado a
permanência de formas de dominação patriarcal que ainda se encontram latentes na
forma de ser da sociedade e das subjetividades humanas.
Dessa forma, pretende-se, com o desenvolvimento desta análise, trazer à luz da
reflexão sociológica algumas das principais determinações do sofrimento psíquico de
mulheres trabalhadoras da faixa etária dos 30 anos, levando em conta os papéis sociais
dessa nova mulher no espaço público do trabalho formal e no espaço privado do
trabalho doméstico, bem como considerando o processo de alienação/estranhamento na
atual forma de ser do mundo do trabalho contemporâneo em que elas estão inseridas.
No caso específico que se está investigando, trata-se de compreender melhor as
particularidades da condição de gênero da mulher trabalhadora que vive as contradições
da relação capital/trabalho, tendo de encontrar sua forma própria de agir e sentir dentro
de um universo de representação social ainda moldado por dois extremos, a imagem da
mulher-mãe-esposa-submissa e a imagem da mulher-trabalhadora-independente.
Deste modo, a despeito do lugar central que a crítica do sistema capitalista ocupa
na construção deste projeto de pesquisa, a problematização do objeto do estudo não
pode perder de vista também a crítica a outro sistema social de exploração/dominação.
Segundo Saffioti (2000), o esquema patriarcal de dominação/exploração é um processo
em curso que vem ocorrendo há cerca de 6500-7000 anos, sendo assim: (...) Foi nas sociedades de caça e coleta, nas quais reinava a igualdade de gênero, que os homens, desfrutando do seu tempo livre (a caça sendo atividade praticada uma ou duas vezes por semana), criaram os sistemas simbólicos que inferiorizaram socialmente as mulheres. Tais sistemas operacionalizam-se, materializando-se em práticas sociais, em mercadorias, em rituais religiosos, além do infanticídio de meninas, do aborto seletivo de fetos femininos, etc (SAFFIOTI, p. 72, 2000).
Assim, conforme Saffioti (2000), a moderna sociabilidade não é produto de uma
única contradição. Para a socióloga, assim como para outras teóricas feministas que
tenham uma visão política mais global, existem pelo menos três categorias
fundamentais que se articulam para definir as relações de dominação/exploração
marcantes entre os seres humanos – a de gênero8
Portanto, entendendo que não há uma relação de causalidade linear entre essas
diferentes contradições que estruturam as relações de poder, dominação e exploração, se
empregará nesta proposta de estudo a metáfora do “nó” desenvolvida por Saffioti, cuja
noção foi estruturada para alertar para a necessidade de se utilizar essas categorias de
forma simultânea e não hierarquizadas. Entendemos que nenhum dos dois é causal, mas
que os dois “operam simultaneamente para reproduzir as estruturas sócio-econômicas e
as estruturas de dominação masculina de uma ordem social particular”
, a de raça/etnia e a de classe – segundo
as quais as desigualdades de poder são organizadas.
9 10
8 Organização social da relação entre os sexos. (SCOTT, 1990)
.
9 SCOTT apud Joan Kelly, p. 10, 1990 10 Também para Scott, outra teórica importante na definição do que é gênero, as estruturas sócio-econômicas de exploração do trabalho e as estruturas de dominação masculina não se opõe ou hierarquizam. A ênfase estrita às relações de gênero é uma opção analítica e política do feminismo pós-moderno e não uma determinação.
Neste sentido, a reconstrução histórica que Rago (2006) faz sobre os papéis
sociais das mulheres é muito importante para o desenvolvimento desta proposta de
estudo. De acordo com Rago (2006), as barreiras enfrentadas pelas mulheres para
participar do mundo do trabalho, independente da classe social a que pertencessem,
sempre foram muito grandes: “Da variação salarial à intimidação física, da
desqualificação intelectual ao assédio sexual, elas tiveram sempre de lutar contra
inúmeros obstáculos para ingressar em um campo definido – pelos homens – como
“naturalmente masculino”.” (RAGO, 2006, p.581-582)11
No modelo de família branca, de classe média, nuclear e hierárquica, os papéis
eram bem definidos: ser mãe, esposa submissa e dona de casa era considerado o destino
natural feminino; a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e a
autoridade eram definidas como qualidades masculinas. Dessa forma, “O pensamento
conservador toma a família como uma entidade supra-histórica, uma instituição sempre
idêntica, na qual as funções e os papéis são “naturalmente” dados como masculinos e
femininos.”(MORAES, p. 90, 2000). Essa ideologia do “natural” objetivaria justamente
o obscurecimento da família enquanto uma instituição socialmente construída e,
portanto, das funções nela desempenhadas pelas mulheres. Porém, as ousadias sexuais
de algumas mulheres, seus questionamentos e contestações colocaram em perigo essas
normas de comportamento e contribuíram para a ampliação dos limites estabelecidos
para o feminino.
.
Por fim, tendo em vista toda a problematização desenvolvida até aqui, a hipótese
que norteia esta investigação sobre o processo de sofrimento psíquico vivido por
mulheres trabalhadoras qualificadas, leva em conta duas ordem de determinações: a
intensificação do trabalho na organização produtiva do mundo contemporâneo e as
desigualdades de gênero nesta sociedade de classes, chamando a atenção para o sobre-
desgaste imposto de modo geral às mulheres, no âmbito das transformações do universo
público e privado do trabalho. Assim, convém perguntar: a somatória das exigências na
realização profissional , dentro dos moldes capitalistas de sociabilidade, com a
11 Ainda segundo Rago, teóricos e economistas ingleses e franceses afirmavam que o trabalho da mulher fora do lar destruiria a família e debilitaria a raça humana. Assim podemos perceber toda a responsabilidade atribuída à mulher pela formação dos filhos e organização doméstica; inclusive a felicidade conjugal dependeria exclusivamente dos esforços femininos. Considerar a esposa a principal responsável pela felicidade doméstica significa reforçar o papel central da família na vida da mulher e sua dependência em relação aos laços conjugais. Fazia parte da realização da mulher ser casada, independentemente de com quem, como ou quais eram os custos dessa relação.
responsabilidade pelo desenvolvimento e manutenção do grupo familiar, nos moldes
patriarcais de organização social, definem uma forma de ser particular do sofrimento
psíquico enfrentado pelas mulheres?
3. Justificativa
Segundo Michelle Bertrand, “É no real exterior ao homem que se encontra a
origem de seu sofrimento.” (BERTRAND, p. 18, 1989) e assim, enquanto a base social
não for transmutada, o sofrimento subjetivo não poderá ser definitivamente apaziguado.
Restaria ao “sujeito clivado”12
As formas sociais de produção capitalista mutilam os homens de uma parte de
suas capacidades, provocando efeitos subjetivos que equivalem perfeitamente à
clivagem. Pela via do consumo, a medicalização do sofrimento se apresenta como uma
das expressões concretas de saída fetichizada encontradas por essas mulheres. A
medicação tem uma especificidade, por conta do poder atribuído à ciência positivista,
que tende a fragmentar o sujeito na medida em que se apóia numa concepção cartesiana
e funcionalista. O processo de criação do DSM tem muito a dizer a respeito dessa saída.
a impossibilidade de ser “reconhecido pelo que é em si
mesmo, como sujeito;” (BERTRAND, p. 20, 1989), o que causaria, em si, enorme
sofrimento. Da mesma forma, a mulher por muito tempo não foi reconhecida pelo que
era em si mesma, como sujeito; ela precisava da mediação da família e da conseqüente
maternidade. No âmbito da subjetividade, essas mudanças não se dão de forma
imediata. Provavelmente a mulher ainda custa a se reconhecer enquanto sujeito histórico
e, muitas vezes, acaba precisando do status do casamento, da profissional bem sucedida,
ou da função materna, para se entender como tal.
A criação do DSM, está muito mais ligada a motivos burocrático, políticos e
econômicos do que científicos, pois “o DSM jamais pôs em evidência nenhum quadro
clínico novo, não propôs novos tratamentos, nem trouxe novas explicações para as
doenças mentais” (ESPERANZA, p. 53, 2011). Nele, “doença mental” foi substituída
por transtorno mental, já que este conceito pode parecer mais elástico e assim mais
facilmente manipulável de acordo com os interesses daqueles que o sistematizam, dos
profissionais que o legitimam e da indústria que o valida. As substituições operadas são
as seguintes: o transtorno substitui o sintoma, o organismo substitui o corpo, o indivíduo
12 BERTRAND, M. “O homem clivado”, 1989
(isolado) substitui o sujeito (social) e as determinações inconscientes desaparecem
colocando em seu lugar comportamentos e condutas a serem modificadas.
O DSM é uma tentativa de classificação das doenças mentais em transtornos
diagnosticáveis. Como os transtornos estão descritos de tal modo que não seguem uma
sequência clássica da descrição de doenças nem se agrupam pela causalidade, o
tratamento é sobre as condutas descritas e não sobre as causas das doenças. Na realidade
não há doenças, mas transtornos de comportamento. Essa classificação pode ser
considerada um fracasso, já que não consegue cumprir seu objetivo capital, que é
estabelecer uma classificação que resulte em algo útil na prática clínica, de forma a
aliviar de fato o sofrimento dos sujeitos. Em parte, consideramos que o motivo do
fracasso dessa classificação se deve ao pressuposto de que:
(...) Não há classificação que não seja arbitrária, conjuntural e interesseira. Com efeito, há aqueles que se dedicam a fazer crer que dispõe de recursos para se pôr a salvo da inconsistência classificatória. Postulam-se como cientistas puros e duros, campeões de um empirismo que garante seriedade científica, quando a única coisa de que sem dúvida se asseguram é do benefício econômico ligado à indústria dos psicofármacos, cuja magnitude em escala mundial é comparável à industria armamentista e ao tráfico de drogas (BEKERMAN, p. 27, 2011).
Aqueles que defendem a medicalização para suprimir os conflitos lançaram-se
em uma série de ataques na avidez de conquistar um público desejoso de respostas
prontas e imediatas para os problemas cotidianos na relação conjugal, na família, no
trabalho, na escola, ou até mesmo – e principalmente – em seu próprio mundo interno.
A presteza e a imprecisão com que as pessoas são transformadas em
anormais é diretamente proporcional à velocidade com que a psicofarmacologia e a
psiquiatria contemporânea expandem seu mercado. Em um mundo em que o sujeito é
obrigado a aceitar (e até mesmo a formular) respostas para tudo, surgem e proliferam
“patologias” que consistem na verdade em sintomas daquilo que falta no indivíduo, de
sua capacidade de desejar algo que seja intrinsecamente interno, não imposto pelo
discurso vigente. Acontece que o modelo proposto atualmente substitui a experiência
pela informação, a falta pela completude, a busca pela resposta, a singularidade pela
repetição do igual, o enigma do passado e do futuro pela pretensa certeza do momento
presente.
4. Objetivos Gerais e Específicos
O objetivo geral desta investigação é analisar como se constitui a subjetividade
da mulher que sofre tanto do novo perfil de adoecimento psíquico advindo das atuais
condições do trabalho contemporâneo, quanto das contradições de uma sociedade que a
quer ao mesmo tempo emancipada (pelas vias do sucesso profissional) e submissa (aos
valores do patriarcado).
O objetivo específico é perceber se a mulher que foi educada para ser
economicamente independente e emancipada está conseguindo atingir os ideais de
estabilidade emocional e financeira impostos a ela; é saber como a mulher tem sentido
as transformações que lhe são colocadas, tanto aquelas que foram conquistadas de
acordo com seus desejos e vontades quanto as que foram impostas mediante as relações
de dominação/exploração inerentes aos sistemas de produção e organização patriarcal
vigentes; é entender melhor a condição específica da mulher trabalhadora qualificada, se
existe um grau de verdade na “emancipação feminina” ou se o papel associado à mulher
continua sendo o da mãe de família, o que faria com que ela continuasse procurando no
casamento – e na conseqüente maternidade – a saída para seus conflitos internos; é
ouvir a experiência de vida dessa mulher: se ela casou realmente – e quais foram as
motivações, se tem filhos – e de que forma lida com eles, se mora sozinha – e como
sente essa situação, se trabalha e/ou estuda – e com quais recursos enfrenta as
exigências; enfim, como ela está sentindo todo esse processo em seu cotidiano.
5. Metodologia de Pesquisa
Partindo do pressuposto da urgência em se desnudar as contradições que recaem
sobre o universo feminino do trabalho e das relações familiares, essa pesquisa recorrerá
aos procedimentos metodológicos da história oral, uma vez que essa metodologia de
pesquisa se constitui enquanto crítica ao paradigma positivista de análise psico- social.
Conforme o método de ciência positivista inaugurado por Durkheim, dever-se-ia
considerar “os fatos sociais como coisas ”13
13 “A primeira regra e a mais fundamental consiste em considerar os fatos sociais como coisas.” (DURKHEIM, p. 13, 1978)
. Nessa perspectiva, o correto seria buscar
um objeto de estudo que não fosse próximo da realidade do pesquisador, para não
despertar-lhe paixões; só assim poderia ser produzida uma ciência isenta de
pressupostos ou juízo de valor. O distanciamento entre o sujeito e seu objeto de estudo
seria a garantia da neutralidade necessária ao projeto científico a ser construído. Os
fenômenos sociais seriam considerados em si mesmos e, portanto, estariam livres de
qualquer relação com os indivíduos que os vivenciam. Para possibilitar uma ciência
dessa natureza – que fosse capaz de produzir um saber objetivo –, foi preciso excluir o
sujeito da história. Mesmo que essa exclusão fosse tentada, sua realização seria
impossível, pois, entre o homem que vivencia o processo histórico e aquele que o
analisa cientificamente, existe um mar de sentimentos, desejos e relações de poder que
se entrecruzam durante todo o percurso.
Na contramão do positivismo, o método da história oral é um processo de
transmissão de conhecimento que implica um narrador (dotado de experiência) e um
ouvinte (disposto a aprender); na passagem do oral para a escrita analisada, surge o
pesquisador, este se coloca como um intermediário entre o narrador e o público. O
método utilizado para sistematizar esse procedimento é o “relato”; denominado hoje de
“história oral”, este é encarado como uma técnica possível de contrapor-se aos dados
quantitativos. O relato oral apresenta-se como técnica útil para registrar tanto aquilo que
ainda não se cristalizou em documentação escrita quanto “para captar o não-explícito,
quem sabe mesmo o indizível” (QUEIROZ, p. 2, 1991). Para a autora, o relato oral
constituiria importante fonte humana de conservação e difusão do saber, tanto que ele
estaria na base da obtenção de variado tipo de informação e seria o antecedente de todas
as outras técnicas.
Dentro dessa metodologia que reconstrói a relação entre o sujeito e o objeto –
transformado em “coisa” pelos pressupostos da neutralidade positivista –, existem
diferentes formas de interação entre o pesquisador e seu objeto de estudo.14
14 No grande campo de pesquisa da história oral, temos três formas de interação entre o sujeito e seus entrevistados. O primeiro é a entrevista, que pressupõe uma conversa entre informante e pesquisador, onde o último escolhe o tema do colóquio. O segundo é a história de vida, a qual subentende uma narrativa linear e individual dos acontecimentos que o sujeito narrador considerar significativos, cabendo ao pesquisador desvendar os determinantes das relações que poderão então emergir. A terceira técnica é a dos depoimentos, que difere das histórias de vida pela forma específica de agir do pesquisador: nessa última técnica o colóquio é dirigido diretamente pelo pesquisador, cabendo a ele conduzir a entrevista.
Dentre essas
possibilidades optaremos por desenvolver uma abordagem de pesquisa de campo
inspirada tanto na técnica do depoimento quanto na da história de vida, por se
aproximar do método de associação livre proposto pela psicanálise, o qual pressupõe
uma menor intervenção do pesquisador na narrativa do depoente. Assim, será feita a
coleta de depoimentos, mas com a postura do pesquisador proposta pela técnica da
história de vida. Nesta – ao contrário do proposto pelo método positivista – empreende-
se um estudo do fato social a partir do seu interior, o que permitiria a uma abordagem
interior de fatos que antes só eram observados do exterior.
A Sociologia contemporânea passou por transformações nas quais se percebeu
que valores e emoções permanecem escondidos nos dados estatísticos, o que poderia
influenciar o levantamento, desviando sua interpretação muitas vezes do rumo que
deveria seguir. A Sociologia se tornou, então, uma “ciência da observação”15
A psicanálise surge como um desses novos instrumentos que auxiliariam a
análise sociológica, na medida em que a mesma constitui, simultaneamente, uma técnica
e um método de investigação:
, e os
sociólogos ganharam, por conseqüências, novos instrumentos para investigar o
comportamento humano de outros pontos de vista.
A principal importância da Psicanálise, para o sociólogo, estava na solução encontrada por Freud para os problemas da observação, da análise e da interpretação dos processos mentais. (...) [muito] porque assentou a descrição e a interpretação dos dados psicológicos em bases puramente qualitativas. A observação em situações clínicas tornou-se o sucedâneo da observação em situações experimentais, (...) A situação clínica fez com que a unidade básica de investigação fosse o paciente e com que a comunicação verbal se constituísse como o instrumento fundamental da observação. Em semelhantes condições, o investigador tinha que usar, regularmente, duas técnicas de investigação, que permitiam conhecer e reconstruir as experiências anteriores ou atuais do paciente: a entrevista e o estudo de caso, sendo que este tendia para o modelo da história de vida, (...) ela fornecia ao investigador exemplos concretos da capacidade de ajustamento e de interação emocional ou social do paciente; (...) (FERNANDES, p. 379, 1960).
Transitando ainda pelo universo proposto pela psicanálise, ela, como técnica
terapêutica, auxilia na investigação acerca dos impactos das condições de vida nas
grandes cidades, mostrando as relações existentes entre o sofrimento psíquico e a
organização social. Foi através dos materiais recolhidos pelos psicanalistas que o exame
sociológico de alguns problemas fundamentais provenientes dessa interação foi
possível. É da interação das duas disciplinas que advém a condição de utilizar-se a
história de vida como técnica frutífera na produção de conhecimento e como forma de
analisar a sociabilidade do mundo contemporâneo.
Embora interessada na trajetória de vida dessas mulheres, levando em
consideração as experiências vividas no espaço público e privado da sociedade, não se
desenvolverá propriamente a técnica da história de vida na medida em que o objetivo 15 FERNANDES, F. (1960)
dessas entrevistas não será a construção de biografias desses sujeitos, mas apreender, da
trajetória, as determinações do trabalho e da condição de gênero sobre o processo de
sofrimento psíquico, bem como analisar as respostas elaboradas por esses sujeitos
diante do sofrimento.
A escolha das depoentes se fará a partir do próprio universo social no qual a
pesquisadora está inserida – o que faz da endopatia (auto-análise e auto-crítica do
pesquisador) uma prática necessária. Acredita-se que a estima mútua, devido aos
contatos previamente estabelecidos, pode exercer influências positivas para os dois
sujeitos envolvidos na conversação, já que essa confiança pode dar ao sujeito
pesquisado maior segurança no momento de compartilhar experiências tão particulares.
Constituir-se-á, deste modo, uma rede de contatos que levará em consideração a
diversidade desse grupo social ao qual o estudo se volta.
Pretende-se trabalhar com uma amostragem qualitativa, envolvendo cerca de dez
mulheres com trajetórias distintas, sejam elas casadas, solteiras, mães, homossexuais,
com relacionamentos alternativos ao padrão hegemônico; enfim, desde que tenham em
comum a condição de ser mulher e trabalhadora qualificada, na faixa etária dos 30 anos,
inseridas no processo produtivos da sociedade contemporânea e que tenham – ou não –
se submetido ao processo de medicalização do sofrimento psíquico.
Essas entrevistas serão feitas privilegiando três fases da trajetória de vida:
infância, adolescência e o processo de profissionalização dessas trabalhadoras. A
respeito da infância, interessam observar as memórias das brincadeiras na medida em
que é nessa fase da vida que o sujeito desenvolve um primeiro mecanismo de
elaboração das formas de interação entre seus desejos e o mundo externo, as quais ficam
esboçadas simbolicamente no brincar. É no brincar que a criança elabora suas
experiências afetivas – sejam elas frustrantes ou não – e ensaia os movimentos para a
vida adulta.
Para tentar captar a continuidade dessas experiências afetivas iniciais na
transição para a vida adulta, pretende-se instigar a depoente a narrar episódios que elas
considerem relevantes do período da adolescência, buscando refazer o caminho que
logo cedo norteou as escolhas profissionais destas mulheres trabalhadoras.
Por fim, nos atentaremos aos caminhos e descaminhos percorridos pelas
entrevistadas ao longo de seu desenvolvimento profissional. Além disso, acerca das
narrativas sobre a vida adulta se estará atento também às experiências dessas mulheres
no seu espaço privado, seja em suas relações amorosas ou familiares, ou seja em relação
à divisão sexual do trabalho.
Após o processo de construção da narrativa sobre o desenvolvimento de suas
subjetividades, levando em conta esses três principais momentos, solicitar-se-á das
entrevistadas um esforço em formular qual a condição física e psíquica – na interação
entre o corpo, a mente e o ambiente – em que se encontram no momento da entrevista.
Pressupõe-se que o exercício da fala constitui um profundo esforço de elaboração – em
palavras ou silêncios – da experiência cotidiana, assim como pode-se apreender desse
discurso as determinações sociais que o permeiam, sendo a história de vida, portanto, a
técnica que capta aquilo que acontece no cruzamento entre a vida individual e a vida
coletiva:
Ainda que o subjetivo seja entendido como as sensações intraduzíveis, é próprio do indivíduo tentar compreendê-las primeiramente, e transmitir aos outros o que compreendeu; porém, ao fazê-lo forçosamente utiliza os mecanismos que tem à sua disposição e que lhe foram dados pela família, pelo grupo, pela sociedade. A história de vida pode tentar desvendar o ponto em que características destas coletividades se juntam às sensações cenestésicas buscando a interação entre ambas, e esclarecendo quais os instrumentos sociais utilizados para a tradução (QUEIROZ, p. 23, 1991).
A sociologia do século atual assumiu o inconsciente “como o repositório das agressões
e das opressões do meio social, e portanto material revelador para a análise de controles
e coerções.” (QUEIROZ, p. 22, 1991). Através de uma investigação cuidadosa acerca
das representações inconscientes – desenvolvidas individualmente e numa coletividade
– seria possível compreender as determinações desta sobre as ações, emoções,
repressões, enfim, sobre a vida afetiva dos sujeitos estudados. Por exemplo, a avaliação
do “grau de intensificação” aceito pelos trabalhadores pode estar relacionado à essa
introjeção inconsciente das opressões e das coerções. Para a psicanálise, o sujeito
“introjeta e dirige contra si sentimentos ambivalentes em relação aos objetos
identificados narcisísticos.” (PACHECO,p. 28, 2005) e o “ideal do eu”16
A história de cada um é a marca indelével que coloca em evidência a construção da identidade numa relação interativa com o outro e com a sociedade em que está inserido. A história de vida é uma forma de
, modelo social
introjetado que o sujeito aspira imitar, é produto da sociedade, dos seus discursos,
crenças e ideologias:
16“(...) ideal do eu é a agência cujo olhar eu tento impressionar com minha imagem do eu, o grande Outro que me vigia e me impele a dar o melhor de mim, o ideal que tento seguir e realizar;” (ZIZEK, p. 100, 2010)
explorar as relações entre o contexto histórico e a memória. O processo de vida de cada um está registrado na memória. Pode parecer individual, próprio de cada um, mas ela deve ser entendida também ou, sobretudo, como um fenômeno coletivo e social, (...) (PACHECO, p. 30, 2005).
Vale lembrar a importância de que a pesquisadora assuma uma postura
cuidadosa em relação aos silêncios, aos ocultamentos, aos gestos, às emoções
transmitidas, ou seja, todo o universo do não-dito que permeia essa experiência
metodológica.
Devido às interações subjetivas entre o pesquisador e seu objeto – e “daí a
necessidade de combinar dados que tenham sido coletados através do emprego de
técnicas variadas” (QUEIROZ, p. 85, 1991) – buscar-se-á dar uma maior consistência
para as interpretações do estudo através da utilização de outras fontes de pesquisa que
também poderão ser consultadas, como, por exemplo, dados estatísticos sobre
adoecimento, licença-saúde dessas trabalhadoras, informações jornalísticas sobre a
temática do estudo e também as discussões em torno da publicação do DSM-V.
6. Cronograma de trabalho
1º bi 2º bi 3º bi 4º bi 5º bi 6º bi 7º bi 8º bi 9º bi 10º bi 11º bi 12º bi
Cumprimento dos créditos x X x x X x Levantamento bibliográfico x X x x X x
Coleta de dados x X x
Trabalho de campo x X x x x x Análise dos dados coletados x x x x x X
Escrita da dissertação x x x x x X
Qualificação x
Relatório final / Defesa x
REFERÊNCIAS BERTRAND, M. “O homem clivado – a crença e o imaginário”, in: “Elementos para uma teoria marxista da subjetividade”, Paulo Silveira e Bernanrd Doray, organizadores – São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1989. BEKERMAN, J. “ ’Não há classificação que não seja arbitrária e conjuntural’ ”, in: “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”/ Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.). – São Paulo: Via Lettera, 2011. CATTANI, A. D., “Apresentação”, in: “Mais Trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea / Sadi Dal Rosso”. – São Paulo: Boitempo, 2008.
COSTA, A. M. M. da, “Classificação e medida comum de gozo”, in: “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”/ Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.). – São Paulo: Via Lettera, 2011. DAL ROSSO, S. “Mais trabalho!: a intensificação do labor na sociedade contemporânea / Sadi Dal Rosso”. – São Paulo: Boitempo, 2008. DURKHEIM, E. “As Regras do Método Sociológico”. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. ESPERANZA, G. “Medicalizar a vida”, in: “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”/ Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.). – São Paulo: Via Lettera, 2011. FERNANDES, F. “Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada”, Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais: Sociologia. São Paulo: Livraria Pioneira Editora. KEHL, M. R. “A atualidade das depressões (como pensar as depressões sem o DSM-IV)”, in: “O Livro Negro da Psicopatologia Contemporânea”/ Alfredo Jerusalinsky e Silvia Fendrik (orgs.). – São Paulo: Via Lettera, 2011. MORAES, M. L. Q. de, “Marxismo e Feminismo: afinidades e diferenças”, Crítica Marxista. 2000. Nº 11 PACHECO, J. L. “Elos refeitos: aposentados contam e refazem suas trajetórias de vida” Campinas (SP) UNICAMP/CMU; Holambra (SP) Editora Setembro, 2005. QUEIROZ, M. I., “Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva” – São Paulo: T. A. Queiroz, 1991. RAGO, M. “Trabalho feminino e sexualidade”, in: História das Mulheres no Brasil, org.: Mary Del Priori, 8.ed. – São Paulo: Contexto, 2006. SAFFIOTI, H. “Quem tem medo dos esquemas patriarcais de pensamento?” Crítica Marxista. 2000. Nº 11. SCOTT, J. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”, Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, 16 (2): 5-22, Jul/dez. 1990. ZIZEK, S. “Como ler Lacan”, Rio de Janeiro: Zahar, 2010.