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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA A EXTERIORIDADE DA VIOLÊNCIA EM JOGOS NA HORA DA SESTA: considerações a partir da tradução à luz da Análise do Discurso Mestranda: Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso Frederico Westphalen, setembro de 2017.

A EXTERIORIDADE DA VIOLÊNCIA EM · 3.5 Marcas da ditadura: RDs sob análise 100 CONSIDERAÇÕES FINAIS 111 REFERÊNCIAS 115 Anexo 121 . 13 APRESENTAÇÃO DO TEMA E DOS OBJETOS EM

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES

CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

A EXTERIORIDADE DA VIOLÊNCIA EM

JOGOS NA HORA DA SESTA:

considerações a partir da tradução à luz da Análise do Discurso

Mestranda: Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo

Orientadora: Profa. Dra. Maria Thereza Veloso

Frederico Westphalen, setembro de 2017.

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Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo

A EXTERIORIDADE DA VIOLÊNCIA EM

JOGOS NA HORA DA SESTA:

considerações a partir da tradução à luz da Análise do Discurso

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões-URI, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Thereza Veloso, como requisito final para a obtenção do título de Mestre em Letras- Literatura Comparada.

Frederico Westphalen, setembro de 2017.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA COMPARADA

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

A EXTERIORIDADE DA VIOLÊNCIA EM

JOGOS NA HORA SESTA:

considerações a partir da tradução à luz da Análise do Discurso

Elaborada por Cristiane Teresinha Mossmann Quevedo

como requisito parcial e final para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________ Profa. Dra. Maria Thereza Veloso – URI

(Presidente/Orientadora)

__________________________________________ Profa. Dra. Aracy Graça Ernst - UCPEL

(1ª arguidora)

___________________________________________ Prof. Dr. Jorge Sala – UBA

(2° arguidor)

Profa. Dra. Rosângela Fachel de Medeiros - URI (3ª arguidora)

____________________________________________ Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian

Suplente

Frederico Westphalen, 29 de setembro de 2017.

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Dedico este texto a minha mãe (Maria Ivone), ao meu pai (Marcelino), ao meu irmão (Fernando) e ao meu marido (Giovani), por todo o incentivo e apoio durante o Curso!

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Traduzir é como cruzar um rio transportando palavras, imagens,

sentimentos, metáforas, ideias, histórias, culturas. Em cada

margem está um povo, uma língua, uma cultura, cada qual com

seu modo de ver e interpretar o mundo..

Rainer Schulfe1

1Apud MOTTA. Ísis dos Reis. Tradução Publicitária: Proposta Experimental Sob o Viés Funcionalista.

Disponível em: http://bdm.unb.br/bitstream/10483/14877/1/2016_%C3%8DsisDosReisMotta_tcc.pdf . Acesso em: 08 de ago. 2017.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus, por encher meu coração de fé e amor, essenciais para

realizar este trabalho tão importante para mim.

A minha família, por me transmitir fé e motivação nesta caminhada. Em

especial, a minha mãe Maria Ivone Mossmann Quevedo, ao meu pai Marcelino

Quevedo, e ao meu irmão Fernando Quevedo. Vocês são tudo em minha vida!

Aos meus colegas de trabalho, que sempre torceram pelo meu sucesso, e que

me ajudaram sempre que precisei.

Ao SESC, que possibilitou que eu realizasse este sonho. Em especial, ao meu

gerente, Flávio Dias, e a minha subgerente, Josiane Ritter, que organizaram meus

horários e sempre me incentivaram.

Agradeço a você, Giovani Gibetti, que sempre está ao meu lado e motiva e

alegra a caminhada. O sonho é grande, mas a fé e a motivação são maiores ainda!

À minha orientadora Maria Thereza, que sempre confiou em mim, acreditou em

meu trabalho e transmitiu confiança em minha capacidade, desde o momento em

que me conheceu, ainda na graduação. A você, que com sua presença deixa um

grande exemplo de vida, profissionalismo e carinho pelo que faz, agradeço a

paciência, o empenho e o esforço para que o nosso trabalho fosse bem produzido.

Uma vez orientadora, sempre orientadora!

A todos os professores do Mestrado em Letras da URI, que me fizeram

perceber as oportunidades de aperfeiçoamento pessoal e acadêmico. Em especial

às professoras Rosângela e Denise, que acompanharam intensamente meus

trabalhos, me incentivaram e deixaram muitos questionamentos, pois foi através

destes que pude encontrar possibilidades de escrita, importantes para meu

desenvolvimento.

À frase dita muitas vezes pela professora Rosângela: ―Vocês precisam

desacomodar, conhecer novos lugares e se desafiar‖. Foi com o incentivo das

professoras do Mestrado em Letras que me motivei a produzir mais textos,

apresentar em outros eventos e conhecer pessoas diferentes. Durante o curso,

aproveitei as oportunidades de viagens de estudos organizadas pelo Mestrado e

participei de eventos internacionais como a Jornada Literária de Passo Fundo e das

Oficinas de Análise do Discurso na UFRGS. Outro exemplo, é ter o professor Jorge

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Sala na banca de defesa de minha dissertação, foi a nossa Profa Dra Rosângela

que proporcionou este acontecimento.

À Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI e

funcionários, pelo apoio e serviços prestados, e pela oportunidade de fazer um curso

de tamanha excelência como o Mestrado em Letras. Agradeço por ter professores

tão bons que foram essenciais para minha formação e por proporcionar reflexões

únicas em sala de aula. Com toda certeza, em outros lugares, fora do ambiente

acadêmico, eu não teria a mesma oportunidade de desenvolver e rever conceitos

como o da cidadania e do papel de cada um na sociedade.

A Capes, pois foi através dela que consegui subir mais esta escada de minha

formação!

A todos vocês, minha gratidão!!!

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RESUMO

Trabalhos dedicados à relação entre linguística/literatura e tradução corroboram e reafirmam o diálogo cada vez mais intenso entre diferentes culturas, diminuindo os limites artísticos e espaciais. A relação entre os Estudos da Tradução e a Literatura Comparada possibilitam um amplo campo analítico e novos olhares sobre o diálogo com outras manifestações artísticas, como a dança, cinema, pintura, música, entre outras. À vista disso, a interdisciplinaridade, proposta pela relação entre tradução e outras linguagens, reforça as pesquisas Comparatistas e os Estudos Culturais. Nessa perspectiva, o presente estudo resulta em um trabalho comparativo entre duas traduções do texto teatral Juegos a la hora de la siesta (1976), da dramaturga naturalizada argentina Roma Mahieu, sendo uma versão em língua portuguesa, intitulada Jogos na Hora da Sesta (1978), realizada por Eduardo São Martin, e a outra em língua espanhola, Juegos a la hora de la siesta (S/A). Em relação com o contexto sócio histórico e cultural em que ambas as obras foram produzidas, o trabalho concentra-se nas soluções utilizadas pelos tradutores para reproduzir, nas línguas de chegada, no caso o português e o espanhol da Espanha, o discurso carregado de significação na cultura argentina.

Palavras-chave: Tradução. Análise de Discurso. Diálogo dramático. Ideologia.

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RESUMEN

Trabajos dedicados a la relación entre lingüística / literatura y traducción corroboran y reafirman el diálogo cada vez más intenso entre diferentes culturas, disminuyendo los límites artísticos y espaciales. La relación entre los Estudios de la Traducción y la Literatura Comparada posibilita un amplio campo analítico y nuevas miradas sobre el diálogo con otras manifestaciones artísticas, como la danza, cine, pintura, música, entre otras. Así que la interdisciplinaridad, sugerida por la relación entre la traducción y otros lenguajes, refuerza las investigaciones comparatistas y los Estudios Culturales. Frente a esa perspectiva, de este estudio resultó un trabajo comparativo entre dos traducciones del texto teatral Juegos a la hora de la siesta (1976), de la dramaturga naturalizada argentina Roma Mahieu, una de ellas la versión en lengua portuguesa, Jogos na Hora da Sesta (1978), realizada por Eduardo São Martin, y la otra en lengua española Juegos a la hora de la siesta (S/A). En relación con el contexto socio histórico y cultural en que sendas obras fueron producidas, el trabajo se concentra en las soluciones utilizadas por los traductores para reproducir, en las lenguas de llegada, en este caso el portugués y el español de España, el discurso cargado de significaciones en la cultura argentina.

Palabras clave: Traducción. Análisis de Discurso. Diálogo dramático. Ideología.

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LISTA DE ABREVIAÇÕES AD – Análise do Discurso

AIE – Aparelho Ideológico de Estado

FD – Formação Discursiva

FI – Formação Ideológica

LP- Língua de Partida

LCP- Língua de Chegada/Português

LCE-Língua de Chegada/Espanhol

RD- Recorte Discursivo

S/A- Sem Ano

TLCP- Texto em Língua de Chegada/Português

TLCE- Texto em Língua de Chegada/Espanhol

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1.........................................................................................................55

Imagem 2.........................................................................................................99

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO DO TEMA E DOS OBJETOS EM ESTUDO 13

1. TRADUÇÃO E PROCESSOS TRADUTÓRIOS SOB UMA

PERSPECTIVA DISCURSIVA

19

1.1 Tradução como ação criativa: texto original versus tradução 19

1.2 O tradutor literário como investigador da práxis social e a

concepção tradicional de Tradução

30

1.3 (In)Traduzibilidade e cultura: diferenças, aproximações,

delimitações

34

1.3.1 A Perspectiva Contestadora da Tradução 34

1.3.2 Lawrence Venuti e a teoria da (in)visibilidade do tradutor 38

1.4 Sobre arte e sobre literatura dramática: situando o corpus 43

1.5 A propósito dos temas morais e psicológicos no drama 47

2. EXTERIORIDADE NO DISCURSO: IDEOLOGIA, CONTEXTO

HISTÓRICO E A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS

56

2.1 Análise de Discurso: sentidos em “movimento” 56

2.2 A exterioridade na constituição do sujeito discursivo 64

2.3 Análise de Discurso, língua e história 67

2.4 Discurso e Ideologia: uma questão de “fidelidade” na tradução? 69

2.5 Tradução literária e Análise de Discurso 73

3. JOGOS NA HORA DA SESTA: O DISCURSO DRAMÁTICO 79

3.1 Sobre a presença feminina na dramaturgia da Argentina em seus

anos de chumbo

79

3.2 Roma Mahieu: o discurso dramático em seu contexto histórico e

ideológico

80

3.3 Luzes sobre a cena: o contexto de ditadura militar 91

3.4 Cena final: a estética da violência em Jogos na Hora da Sesta 97

3.5 Marcas da ditadura: RDs sob análise 100

CONSIDERAÇÕES FINAIS 111

REFERÊNCIAS 115

Anexo 121

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APRESENTAÇÃO DO TEMA E DOS OBJETOS EM ESTUDO

Escrita no fim da década de 1970, pela dramaturga e atriz Roma Mahieu, polonesa

naturalizada argentina, a peça Jogos na Hora da Sesta é ambientada em um parque de

diversões e coloca em cena crianças que brincam e, aos poucos, são influenciadas a

fazer parte do mundo adulto, pleno de crueldade, sem convites à reflexão ou noção de

culpa. Nesse contexto, a peça pode ser lida como um discurso de denúncia, ao mostrar

que a sociedade, cada vez mais brutal e violenta, torna-se corresponsável pelos atos

cruéis e medíocres de seus membros, configurando-se, no cenário argentino, como uma

dura crítica à sociedade.

Neste país, a estreia de Jogos na Hora da Sesta (Juegos a la hora de la siesta)

ocorreu em 1976. Segundo o site Alternativa Teatral

(http://www.alternativateatral.com/obra29687-juegos-a-la-hora-de-la-siesta), a peça

foi censurada, dois anos mais tarde, pela ditadura militar argentina, por su contenido

manifiesto de postulados disociantes y la descripción de técnicas propias de la

subversión. Sua autora exilou-se depois na Espanha. Conforme as informações do

site da Biblioteca Teatral Alberto Mediza

(http://www.bibliotecateatral.org.ar/mahieu.html), o valor qualitativo de Jogos...

obteve o reconhecimento do público e da crítica, tendo recebido os prêmios Talía,

Molière, Argentores, SGAE (Sociedad general de autores de España, em 1991) e

Prêmio Pepino el 88, da cidade de La Plata, em 2000.

Também, a exposição da violência é muito recorrente no texto de Mahieu, e por

este ter sido produzido em um período conturbado pela ditadura, decidimos que este

corpus seria o foco de nosso trabalho. Conforme Ernst- Pereira (2009), em A falta, o

excesso e o estranhamento na constituição/interpretação do corpus discursivo, a

falta, o excesso e o estranhamento “são conceitos que podem e devem abrigar

incontáveis modos do dizer e do não-dizer‖. Segundo ela,

Numa dada conjuntura histórica frente a um ser dito num dado discurso, constitui-se numa via possível, mesmo que preliminar e genérica, de identificação de elementos a partir dos quais poderão se desenvolver os procedimentos de análise do corpus (ERNST- PEREIRA, 2009, p.2).

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Ernst-Pereira (2009) considera que os três conceitos - a falta, o excesso e o

estranhamento - devem ser analisados na dimensão do Intradiscurso (Materialidade

Discursiva) e a do Interdiscurso (Memória Discursiva), uma vez que a Análise do

Discurso, doravante AD, trabalha com objetos inscritos na relação da língua com a

história. Sobre a falta, explica ela ser uma estratégia que consiste:

1) na omissão de palavras, expressões e/ou orações, consentida inclusive pela gramática, que podem (ou não) ser resgatadas pelo sujeito-interlocutor; 2) na omissão de elementos interdiscursivos que são esperados, mas não ocorrem e podem (ou não) ser percebidos pelo sujeito-interlocutor (2009, p. 4).

Segundo a autora, a falta, no primeiro caso, está relacionada com fins

ideológicos, para que sejam criados espaços de obscuridade e incompletude na

cadeia dos significantes. No segundo caso, afirma, a falta cria um vazio que visa a

encobrir pressupostos ideológicos ameaçadores.

Segundo a mesma autora, o excesso se apresenta como estratégia

discursiva que se caracteriza por aquilo que aparece demasiadamente no Discurso,

seja porque se constitui em ―acréscimos necessários‖ aos sujeitos que querem

estabilizar um efeito de sentido, utilizando incisas, seja com a reiteração incessante

de alguns saberes interdiscursivos que tomam formas diferentes no Intradiscurso,

porém mantendo os pressupostos ideológicos com vistas ao estabelecimento. Ernst-

Pereira (2009, p. 4) afirma que ―trata-se, nos dois casos, de buscar estabelecer

provavelmente a relevância de saberes de uma determinada formação discursiva

através da repetição‖.

Quanto ao estranhamento, a pesquisadora o define como

estratégia discursiva que expõe o conflito entre formações discursivas e consiste na apresentação de elementos intradiscursivos – palavras, expressões e/ou orações – e interdiscursivos, da ordem do ex-cêntrico, isto é, daquilo que se situa fora do que está sendo dito, mas que incide na cadeia significante, marcando uma desordem no enunciado. Aqui se dá o efeito de pré-construído através do qual ´um elemento irrompe no enunciado como se tivesse sido pensado antes, em outro lugar, independentemente´, rompendo (ou não) a estrutura linear do enunciado (ERNST-PEREIRA, 2009, p. 5).

A autora afirma também que o estranhamento tem como características a

imprevisibilidade, a inadequação e o distanciamento do que é esperado.

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Nesse sentido, o tema da violência, por ser recorrente em nosso corpus e

atual em todas as épocas, seja pela existência da ganância, ou, ainda, porque há

sujeitos que veem o diferente como inferior, e porque há discriminação, intolerância

e a utilização do poder para ―manter o poder‖, gerando mais e mais violência no

meio social, é esse tema o que nos traz inquietações de pesquisa. Não falamos aqui

apenas da violência física, mas também da psicológica, entre outras.

Ainda quanto à violência, trazemos considerações do pensador esloveno,

Slavoj Žižek (2013), sociólogo, teórico crítico e cientista social. Ele, no livro

Violência: seis reflexões laterais, parte do princípio de que a violência visível na

sociedade é ela própria produto de uma violência oculta, estruturante do sistema

político e econômico em que vivemos. Segundo ele, existe uma violência invisível

nas relações socioeconômicas.

Segundo Jorge Luiz Souto Maior (in ŽIŽEK, 2014, p. 3) ―Compreender a origem

da violência altera a avaliação sobre o contexto histórico das relações sociais,

permitindo-nos visualizar a essência dos conflitos, caracterizada pelos inúmeros e,

às vezes, sutis processos de exclusão‖.

Ainda segundo Žižek,

Uma das estratégias dos regimes totalitários é terem normas jurídicas e leis criminais tão severas que, se as tomarmos literalmente, todo mundo será culpado de alguma coisa. Mas sua aplicação plena não tem lugar, o que faz com que o regime possa parecer compassivo (ŽIŽEK, 2014, p. 105).

A partir do até aqui exposto, entende-se a violência como relacionada às

relações sociais e de poder.

Dessa forma, a seleção dos objetos de estudos em questão ocorreu devido ao

tema da violência, mas as versões foram definidas pela pouca opção de versões

disponíveis. Como no Brasil e na Argentina não há o texto original em circulação,

optamos por analisar a versão disponível em Espanhol peninsular e a versão em

Português do Brasil, visto que a obra possui importância histórica e social, pelo

caráter questionador e contemporâneo, na perspectiva de Agamben (2009) e Karl

Erik Schøllhammer (2011).

O filósofo e crítico italiano, Giorgio Agamben (2009, p.58), recuperou a leitura

que Roland Barthes realizou de ―Considerações intempestivas‖, de Nietzsche, da

qual resultou o entendimento de que o verdadeiro contemporâneo é um

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intempestivo, ou seja, não é aquele que se identifica com o seu tempo, ou com ele

sintoniza plenamente, mas sim aquele que é capaz de captá-lo e enxergá-lo.

Percebendo a contemporaneidade como uma relação singular com o próprio

tempo, aproximando-se, mas também se distanciando dele, Agamben (2009, p. 59)

entende que ―aqueles que coincidem muito plenamente com a época, que em todos

os aspectos a esta aderem perfeitamente, não são contemporâneos porque,

exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre

ela‖.

Ainda, segundo Karl Erik Schøllhammer (2011),

a literatura contemporânea não será necessariamente aquela que representa a atualidade, a não ser por uma inadequação, uma estranheza histórica que a faz perceber as zonas marginais e obscuras do presente que

se afastam de sua lógica (SCHØLLHAMMER, 2011, p. 10).

Schøllhammer (2011, p. 10) afirma que ser contemporâneo ―é ser capaz de se

orientar no escuro e, a partir daí, ter coragem de reconhecer e de se comprometer

com um presente com o qual não é possível coincidir‖. A partir dessas premissas,

consideramos o texto Jogos na Hora da Sesta como um texto contemporâneo, na

medida em que nos faz refletir sobre a presença da violência nos meios sociais.

Definindo-se como comparativo-interpretativo, este trabalho tem por objetivo

principal contrastar o texto (TLCE2) da peça Jogos na Hora da Sesta, e o texto

(TLCP3), traduzido por Eduardo San Martín, a fim de identificar a presença de

elementos exteriores que influenciam na constituição dos sujeitos discursivos,

personagens-crianças, e constatar a existência de pistas da exterioridade da

violência e de Ideologias nas traduções, no que se refere às noções de Memória e

Identidade, além de analisar como as marcas da memória histórica são encontradas

na obra de Roma Mahieu e nas traduções analisadas.

Quanto à relação que as ideologias e o inconsciente mantêm com o sujeito,

Michel Pêcheux afirma em Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio

que o caráter comum destas estruturas é o de dissimular a sua existência,

produzindo a subjetividade. Também refere o papel da subjetividade ao afirmar que

2TLCE – Texto na língua de chegada, no caso, a Língua Espanhola.

3 TLCP – Texto na língua de chegada, no caso, a Língua Portuguesa.

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...o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências ´subjetivas´, devendo entender-se este último adjetivo não como ´que afetam o sujeito´, mas ´nas quais se constitui o sujeito´... (PÊCHEUX, 2009, p. 139, grifo do autor).

Se o sujeito se constitui na subjetividade e são as ideologias e o inconsciente

que a produzem, pensemos agora em como pode ocorrer este processo de

dissimulação e, para compreendermos melhor o processo de interpelação dos

indivíduos em sujeitos, retornamos a Pêcheux:

o funcionamento da Ideologia em geral como interpelação dos indivíduos em sujeitos (e, especificamente, em sujeitos de seu discurso) se realiza através do complexo das formações ideológicas

4 (e, especificamente,

através do interdiscurso intrincado nesse complexo) e fornece ´a cada sujeito´ sua ´realidade´, enquanto sistema de evidências e de significações percebidas-aceitas-experimentadas (PÊCHEUX, 2009,p.149).

Ainda quanto à ideologia, afirma ele que

em sua materialidade concreta, a instância ideológica existe sob a forma de formações ideológicas (referidas aos aparelhos ideológicos de Estado), que, ao mesmo tempo, possuem um caráter ´regional´ e comportam posições de classe: os ´objetos´ ideológicos são sempre fornecidos ao mesmo tempo que a ´maneira de se servir deles´- seu ´sentido´, isto é, sua orientação, ou seja, os interesses de classe aos quais eles servem-, o que se pode comentar dizendo que as ideologias práticas são práticas de classes (de lutas de classes) na Ideologia (PÊCHEUX, 2009, p.132, grifo do autor).

A partir das considerações expostas, o presente estudo considera: a) o

indivíduo interpelado em sujeito do seu discurso quando e a partir da identificação

deste com a Formação Discursiva5 (FD) que o domina e é nela que ele se constitui

como Sujeito de seu Discurso, mesmo considerando que a interpelação pode falhar;

4Conjunto complexo de atitudes e de representações, não individuais nem universais, que se relacionam às posições de classes em conflito umas com as outras. A FI é um elemento suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social. Pêcheux

(1975) afirma que as palavras, expressões, proposições, mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam, sentidos esses que são determinados, então, em referência às formações ideológicas nas quais se inscrevem estas posições (ver formação discursiva) (FERREIRA, 2005, p. 15. Grifos da autora). 5 Manifestação, no discurso, de uma determinada formação ideológica em uma situação de enunciação

específica. A FD é a matriz se sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que não pode e não deve ser dito (Courtine, 1994), funcionando como lugar de articulação entre língua e discurso. Uma FD é definida a partir de seu interdiscurso e, entre formações discursivas distintas, podem ser estabelecidas tanto

relações de conflito quanto de aliança. Esta noção de FD deriva do conceito foucaulteano (1987) que diz que sempre que se puder definir, entre um certo número de enunciados, uma regularidade, se estará diante de uma formação discursiva. Na AD este conceito é reformulado e aparece associado à noção de formação imaginária

(FERREIRA, 2005, p.15). (Grifos da autora)

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b) todo texto se constitui como memória e identidade de um povo; c) a tarefa do

tradutor é muito difícil, pois ele trabalha com o texto, objeto simbólico, que carrega

consigo história e, portanto, este profissional possui a difícil tarefa de mediar a

comunicação entre diversos povos; d) o contexto histórico, social e ideológico da

dramaturga Roma Mahieu; e) as características próprias da linguagem dramática.

Para fundamentar este trabalho, trazemos as contribuições de estudiosos da arte

teatral, como Vasconcellos, e de pensadores/pesquisadores da área de Análise do

Discurso, como Pêcheux (fundador da Teoria), Althusser, Lacan, Foucault, Orlandi e

Mazière, entre outros, para contribuírem com questões relacionadas ao Sujeito,

Ideologia, psicanálise, e posições sujeito. As características do trabalho e seu

objetivo geral possibilitam a inserção deste estudo na linha de pesquisa

Comparatismo e Processos Culturais, linha 2 do Programa de Mestrado em Letras,

da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões/URI.

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1. TRADUÇÃO E PROCESSOS TRADUTÓRIOS SOB UMA PERSPECTIVA

DISCURSIVA

Todo texto é único e é, ao mesmo tempo, a tradução de outro texto. Nenhum texto é completamente original porque a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lugar, do mundo não-verbal e, em segundo, porque todo signo e toda frase é a tradução de outro signo e de outra frase. Entretanto, esse argumento pode ser modificado sem perder sua validade: todos os textos são originais porque toda tradução é diferente. Toda tradução é, até certo ponto, uma criação e, como tal, constitui um texto único.

Rosemary Arrojo6

1.1 Tradução como ação criativa: texto original versus tradução

Conforme Britto (2012, p.11-12), a tradução é uma atividade tão antiga quanto

a humanidade. Muito antes da invenção da escrita, a comunicação entre grupos

humanos, que falavam línguas diferentes, ocorria através de intérpretes. A

etimologia da palavra tradução aponta para uma rede de significantes. Derivada do

latim traductione, tradução significa transferir, conduzir além. Segundo o Aurélio

(2009),

[Ato ou efeito de traduzir [...] Versão (2). 4. Inform. O processo de converter uma linguagem em outra. [...] * Tradução justalinear. Aquela em que o texto de cada linha vai traduzido ao lado, ou na linha imediata. Tradução literal. A que é feita ao pé da letra. [Opõe-se a tradução livre.] Tradução livre. A que não se atém às palavras do texto original. [Opõe-se a tradução literal.] Tradução simultânea. Interpretação simultânea. (2009, p. 1972, grifos do autor).

Desde a antiguidade clássica, século I a.C., discutem-se os conceitos de

equivalência e fidelidade no processo tradutório. Pensar a fidelidade na tradução nos

faz refletir sobre alguns conceitos importantes, como língua, significado, sujeito e

6ARROJO, Rosemary, Oficina de Tradução. A teoria na prática. Série Princípios. São Paulo; Editora

Ática. 2000.

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tradução. Assim, fazem parte das discussões, que envolvem tradução, também as

semelhanças e as diferenças entre original e tradução.

Com o passar do tempo, acrescentaram-se outros significados ao termo

tradução, como, por exemplo, transpor, transladar de um para outra. Com a

multiplicidade de línguas e dialetos dentro de cada sistema linguístico, a tradução

surge a partir da necessidade de comunicação entre os povos. Por ser uma

atividade tão antiga quanto a existência humana, articula-se com a história das

línguas, da literatura, das formações culturais, religiosas e políticas. Dessa forma,

compreende-se o porquê de os estudos da tradução terem grande importância,

considerando-se que toda a atividade linguística e de aprendizagem associa-se a

este tema.

A teorização sobre a tradução teria iniciado apenas no período romano. No

entanto, foi apenas a partir da década de 1970 que a área de estudos da tradução

se constituiu como campo de saber autônomo, passando, no início deste século, a

ocupar um lugar de destaque no universo das humanidades.

Expandindo-se com o passar do tempo, os estudos da tradução encontraram

afinidades com outras áreas do conhecimento, como a Literatura Comparada. O

trabalho conjunto, entre as duas áreas, contribuiu para a as pesquisas dos estudos

culturais, e a proximidade entre os dois campos possibilitou a ampliação dos estudos

semióticos. Em consequência, houve o enriquecimento das relações, do diálogo

entre o campo da Literatura e de outras disciplinas e linguagens artísticas, como a

arte literária, pintura, dança, cinema, animações, história, filosofia, psicologia e

filosofia.

Lembra-se aqui a professora Tania Carvalhal (2000), quando reafirma a

importância dos diálogos entre os Estudos Comparatistas e os Estudos da

Tradução:

A par de sua função de instrumento a serviço de um acesso a outras literaturas, a tradução adquire um estatuto próprio e ganha, no campo das pesquisas comparatistas, um lugar de relevo. Susan Bassnet em seu livro Comparative literature: a critical introduction (1991) insiste na centralidade desses estudos em literatura comparada, fazendo convergir de tal maneira as duas orientações que, em sua perspectiva, o comparatismo se encontra quase sinônimo de uma teoria da tradução. [...] Em estudo posterior, intitulado ‗What is comparative literature?‘ (1995), [...] George Steiner vê literatura comparada como uma herdeira de Babel e, em consequência, o

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estudo das traduções toma-se indispensável e prioritário neste domínio da investigação literária. (2000, p.85-92).

Segundo Carvalhal, o diálogo entre as duas áreas pode contribuir para o

enriquecimento dos estudos de ambas, diminuindo a existência de fronteiras que

impediam o contato entre duas ou mais linguagens e enriquecer tanto o campo

teórico, analítico, quanto aspectos culturais.

No ensaio intitulado Comparative Literature and Translation: some

observations, Sandra Bermann (2010), apresenta as principais direções ocidentais

contemporâneas das pesquisas nas áreas de Tradução e Literatura Comparada.

Bermann (2010) inicia o texto falando sobre o papel transformador e inovador do

campo da Tradução. A pesquisadora afirma:

Pensar o papel da tradução relativamente à história da literatura e da cultura nos leva a uma aguda percepção de seu potencial transformativo. De Cícero a Lawrence Venuti e Maria Tymoczko, encontramos demonstrações do poder e da complexa e variada gama de funções da tradução. À medida que a tradução se apresenta exaustivamente, hoje, nos contextos pós-colonial, pós-estruturalista e, ainda, pós-nacional, sub-nacional, inter-nacional, torna-se evidente sua capacidade de prolongar a vida de textos literários e culturais e também de intervir nos efeitos desses textos, em âmbito mundial. (2010, p.15, tradução nossa).

Tradução é uma atividade que requer a interpretação de um texto numa

língua de partida para uma língua de chegada, criando assim um novo texto. Apesar

de ser considerada por muitos uma tarefa fácil de concretizar, a verdade é que este

processo de passagem de um texto em uma língua para outra é bastante complexo.

O processo de tradução correlaciona-se ao de interpretação, sendo que o resultado

final, a tradução, decorre do envolvimento do tradutor com o texto.

O pensamento moderno encontra-se extremamente enraizado nos problemas

da tradução. Para Heidegger - como experiência e reflexão - as ações de ―filosofar‖

e ―traduzir‖ estão ligadas:

Toda a tradução é em si mesma uma interpretação. Ela carrega no seu ser, sem dar-lhes voz, todos os fundamentos, as aberturas, e os níveis da interpretação que estavam na sua origem. E a interpretação, por sua vez, é somente o cumprimento da tradução que permanece calada [...]. Conforme às suas essências, a interpretação e a tradução são somente uma e única coisa. (apud BERMAN, 2007, p. 20).

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Conforme Maria Cristina Leandro Ferreira (2005),

Por um efeito ideológico, a interpretação se apaga no momento mesmo de sua realização, dando-nos a ilusão de que é transparente, de que o sentido já existia como tal. Essa transparência é uma ilusão, na medida em que o fato de o sentido ser um e não outro é definido pelas condições de produção em que se dá o movimento interpretativo [...] A interpretação sempre pode ser outra, mas o movimento interpretativo não é um movimento caótico, não regido. As condições de produção e a própria possibilidade de abertura impõem determinações, limites a esse movimento, o que significa dizer que a interpretação pode ser múltipla, mas não qualquer uma (FERREIRA, 2005, p. 18, grifos da autora).

Ressignificando a posição de Eco (2012) para efeitos desta pesquisa, um

texto pode suscitar várias interpretações. Ocorre que

na interpretação, além do fato de que (i) uma expressão pode ser substituída por sua interpretação, também acontece que (ii) esse processo é teoricamente infinito, ou pelo menos indefinido, e que (iii) quando usamos um dado sistema de signos podemos tanto recusar-nos a interpretar suas expressões quanto escolher as interpretações mais adequadas segundo os diferentes contextos. (ECO, 2012, p.185, grifos do autor).

Para Umberto Eco, o ato de interpretar pode gerar infinitas significações, mas

possibilita, a quem interpreta, uma liberdade de adequação a diferentes contextos.

Para realizar uma tradução, o tradutor precisa conhecer e analisar os

sistemas e as estruturas das línguas envolvidas no processo, mas não apenas isso.

Para construir uma nova expressão que produza aos seus leitores efeitos, emoções

e experiências semelhantes àquelas proporcionadas aos leitores do sistema

primeiro, é preciso que ele conheça a língua, objeto simbólico, o contexto histórico,

político e social, além da cultura em que foi produzido o primeiro e aquela para o

qual o texto será traduzido.

Interessa à Análise do Discurso a língua fazendo sentido. Dessa forma, para

a teoria, a língua não é abstrata, mas uma mediação entre o homem e a sua

realidade social. Sob esta perspectiva histórica e social, tem-se a inserção dos

aspectos ideológicos na compreensão do funcionamento da linguagem. Com isso, a

AD introduz uma nova categoria da linguagem, o Discurso, que representa uma

interação na qual se manifestam as Ideologias.

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Segundo Maria Thereza Veloso (2017), o Discurso é

Uma prática de linguagem que, mesmo não se originando no sujeito, necessariamente tem nesse sujeito o seu instrumento de realização. Lembre-se, ainda, que a língua é da ordem do simbólico e a este simbólico acede, como Sujeito, todo ser humano, desde criança, pela prática da língua materna. Acrescente-se que esse sujeito é construtor e construto de si mesmo, em decorrência dos efeitos de sentido originados pelo discurso que mantém dialogicamente com seu interlocutor (VELOSO, 2017, p. 2).

O Discurso se apresenta como indissociável do histórico e do social. Sendo

assim, a Língua mostra-se entrelaçada à exterioridade e é uma materialidade que

constrói, que produz sentido a partir da relação com o ideológico e o histórico.

As línguas não se apresentam como sistemas perfeitos e acabados, mas

heterogêneos, como um sistema em constante movimento e a relação que elas

mantêm com a exterioridade é o que caracteriza a materialidade linguística,

conduzindo os analistas às fronteiras da língua.

Segundo Maria Cristina Leandro Ferreira, a língua da AD é

aquela da ordem material, da opacidade, da possibilidade do equívoco como fato estruturante, da marca da historicidade inscrita na língua. É a língua da indefinição do direito e avesso, do dentro e fora, da presença e ausência. (LEANDRO FERREIRA, 2005, p. 17).

Conforme Veloso (2012), a Língua, na perspectiva da AD, ―não é um

elemento abstrato. É uma realidade existencial concreta, está sempre em

movimento, significando - forma com que exterioriza a relação existente entre ela

própria, o discurso e a ideologia que comporta‖ (2012, p. 39).

Para distinguir o conceito de língua na perspectiva linguística e discursiva,

Leandro Ferreira (1999) certifica:

Na visão do lingüista, a língua – enquanto sistema só conhece sua ordem própria, o que vai impedir-lhe de considerar os deslizamentos, lapsos, mal-entendidos como parte integrante da atividade de linguagem. Já o discursivista, como se sabe, acatando a lição de Pêcheux, incorpora tais desvios ―problemáticos‖, como fatos estruturais incontornáveis e próprios à língua. (FERREIRA, 1999, p.124).

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À vista disso, a língua é susceptível a falhas, rupturas, e de fissuras pelas

quais podem trasbordar outros significados. Segundo Pêcheux, ―Todo enunciado é

intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, de deslocar

discursivamente de seu sentido para derivar para um outro.‖ (PÊCHEUX, 2012, p.

53).

Nessa perspectiva, Stübe Netto (2008, p. 72) destaca a necessidade de

contato da língua com a exterioridade, o que não acarreta perda de sua

particularidade, pois ―[...] apenas o reconhecimento da língua como heterogênea, em

que se articulam e imbricam os aspectos estruturais (formais) atravessados por

questões subjetivas e sociais, permite um deslocamento nas reflexões linguísticas‖.

A AD, desse modo, investiga a produção dos Discursos, não como produto

acabado, mas como resultado do processo enunciativo determinado por fatores

histórico-sociais.

Segundo Grigoletto (2007), a ordem simbólica da materialidade linguística

produz efeitos de sentidos diferentes. Tendo a ideologia e a história como

constitutivas da língua, atesta-se que a exterioridade é parte que constitui a língua,

―[...] movimentando-se entre a ordem da interioridade e da exterioridade.‖

(GRIGOLETTO, 2007, p. 28).

Assim sendo, a Língua é pressuposto para que o analista do discurso analise

a materialidade do discurso. Segundo Leandro Ferreira (2000), ―[...] redefine-se a

noção de língua, descentrando-a e remetendo-a a outra ordem: a ordem do

discurso‖ (2000, p.37). Por conseguinte, para conceber a língua em uma perspectiva

discursiva, é preciso ir além do sistema e da norma. De acordo com Grigoletto

(2007), ―[...] significa considerá-la incompleta, como um corpo atravessado por

falhas, fissuras, lapsos e silêncios, os quais produzem sentidos pela inscrição do

sujeito e, por sua vez, da língua na história‖ (2007, p. 31).

Não obstante, quanto ao caráter constitutivo da Língua, Pêcheux (1997)

afirma que ―fala e sujeito são constitutivos da língua, são inseparáveis porque são

complementares, à medida que a língua é a materialidade do discurso (1997, p.

112).‖

Nesse caminho, aqui consideramos o Sujeito como interpelado por Ideologias

e afetado pelo inconsciente, o que confere a ilusão de transparência de sentidos.

Também, ressaltamos que o Sujeito tem a ilusão de ser a fonte dos seus Discursos,

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mas estes não são indissociáveis do histórico e do social, são entrelaçados à

exterioridade.

Especificamente neste estudo, a exterioridade em evidência na análise é a da

violência, denunciada no Discurso de Jogos na Hora da Sesta, discurso consoante

seu contexto histórico-ideológico, de agitação social, de uso da violência para conter

manifestações e tensão política, pela qual a sociedade argentina, não

diferentemente da brasileira, passava nos fins da década de 70. Faz-se importante,

por isso, ressalvar que na presente análise-interpretativa se deve considerar que os

textos em questão fazem parte de uma cultura que, em suas raízes sócio-históricas

e geográfico-políticas, é muito próxima da brasileira e, portanto, da pesquisadora,

fator esse determinante da sua constituição discursiva e da posição sujeito com que

analisa o corpus.

Dessa forma, o conceito de cultura com que trabalhamos aqui necessita ser

explicitado. Segundo o dicionário Houaiss, o termo cultura significa

ação ou efeito de cultivar a terra, cultivo; criação de certos animais; produto de tal cultivo ou criação; conjunto de padrões de comportamento, crenças, costumes, atividades etc. de um grupo social; forma ou etapa evolutiva das tradições e valores de um lugar ou período específico, civilização; conhecimento, instrução (HOUAISS, 2009, p. 204).

Os significados do termo evoluíram ao longo da história. A partir dessa

evolução, percebe-se que o conceito de cultura está ligado ao seu contexto histórico,

varia de acordo com determinadas épocas e em cada país. Também, os sentidos

para designar o termo não se excluem, mas se complementam. Assim como existe

essa diversidade de definições, não se tem uma cultura, mas várias e diferentes.

Clifford Geertz (2008, p. 4), em A interpretação das culturas, defende um

conceito semiótico de cultura, ―acreditando, como Max Weber, que o homem é um

animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura

como sendo essas teias‖. Dessa forma, infere-se daí que a cultura é um processo de

acúmulo de experiências históricas.

Quanto aos sentidos produzidos pelas culturas, Thaís Valim Ramos, na tese

O sujeito entre culturas: o espaço da diferença no encontro com o outro/Outro,

afirma que

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os sentidos produzidos pela cultura são ideológicos; atribuir significado às práticas e rituais de uma cultura é ideológico e serve para o propósito de regular e reproduzir as práticas existentes. Dito de outro modo, a cultura só passa a ter sentido quando simbolizada, o sujeito só é parte de uma cultura, só participa desta ao se inserir no simbólico (RAMOS, 2017, p. 39).

Segundo Ramos (2017), nesse processo de se tornar sujeito, os sentidos são

fornecidos ao mesmo tempo que a maneira de se servir deles, obtida através das

práticas e rituais da cultura, constituindo o lugar e as condições de

reprodução/transformação das relações de produção. Dessa forma, fornece as

evidências dos sentidos. Afirma, ainda, que

Dentro da cultura, as formações discursivas determinariam em quais rituais e práticas o sujeito deve se inscrever, determinando seu modo de ser e estar dentro dessa sociedade e sendo levado a ocupar seu lugar nesta, bem como a se sentir como parte dessa unidade, criando um efeito de homogeneização, apagando as diferenças existentes e servindo para legitimar o poder, bem como permitindo identificar os sujeitos através do seu comportamento, maneira de falar, ou mesmo pela maneira de vestir, de sorrir, de agir à mesa (RAMOS, 2017, p. 40).

Conforme Ramos (2017), o efeito de unidade cria a ilusão de que o

conhecimento de alguns aspectos de determinada cultura, como se ela fosse

homogênea, e o domínio de sua língua, assegurarão a fluente interação dos sujeitos

com as culturas. Acrescenta ela que

O sujeito em contato com a outra cultura não consegue se despir das suas experiências, enfim, da memória discursiva da qual faz parte para se colocar em outra cultura e perceber seus efeitos de sentido. A interpretação será sempre a partir da memória discursiva que o compõe, e as práticas e sentidos da outra cultura podem causar estranheza (RAMOS, 2017, p. 40).

Segundo Hall (2003, p. 43),

A cultura é uma produção. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu ―trabalho produtivo‖. Depende de um conhecimento da tradição enquanto ―o mesmo em mutação‖ e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que esse ―desvio através de seus passados‖ faz é nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p. 43).

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Logo, os sujeitos mantêm relação de identificação com sua/suas culturas e

isso confere mais uma das dificuldades para o tradutor. Conforme Arrojo (2003),

nenhuma tradução alcança os significados originais em sua totalidade, visto que

qualquer tradução, como qualquer leitura, inevitavelmente refletirá, além do sujeito tradutor, momento histórico e a comunidade cultural que a produziram. [...] nenhuma tradução – mesmo aquelas que pretenderem o contrário – conseguirá preservar intactos os significados originais de um texto – ―técnico‖ ou ―literário‖ – ou de um autor, mesmo porque esses significados serão sempre ―apreendidos‖ ou considerados dentro de uma determinada perspectiva ou de um determinado contexto. (ARROJO, 2003, p. 103).

Britto (2012, p.14) considera a tradução uma tarefa dificílima. A questão é que

as diferenças entre línguas já começam na própria estrutura do idioma, tanto na gramática quanto no léxico; isto é, na maneira de combinar as palavras e no nível do repertório de ―coisas‖ reconhecidas como tais em cada língua. Pois um idioma faz parte de um todo maior, que é o que denominamos de cultura; e as ―coisas‖ reconhecidas por uma cultura não são as mesmas que as outras reconhecem. (BRITTO, 2012, p.14).

Estas diferenças culturais se dão pela constituição histórica de costumes e

adequação de hábitos. Além disso, a delimitação de conceitos próximos, dentro de

um mesmo campo semântico, ocorre de forma diferente entre línguas diferentes.

Como exemplo, tanto em português quanto em espanhol há palavras para designar

as refeições do dia, mas o critério para defini-las não é o mesmo.

No português brasileiro, utilizamos almoço para nos referir à refeição mais

completa do dia, realizada por volta do meio dia, 12 horas, e janta para uma refeição

mais leve, realizada no cair da tarde ou à noite. Em espanhol, o critério para a

tradução não é o peso das refeições, mas o horário em que são feitas. Nos países

hispânicos, o costume é fazer quatro refeições: Desayuno, Almuerzo, Comida e

Cena. O almuerzo ocorre por volta das 11 horas, mas na cultura brasileira é como

um lanche. Já a refeição mais completa do dia é a comida, que é servida por volta

das 14 ou 15 horas e equivale ao almoço em países não-hispânicos. Para evidenciarmos a dificuldade da tarefa do tradutor, pensemos na palavra

saudade, em português. Para lusófonos, é compreendida como um sentimento

melancólico, ocasionado quase sempre por estarmos longe de uma pessoa, uma

coisa ou um lugar, ou por termos vivido uma experiência prazerosa e que no

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momento nos causa saudade, este sentimento nostálgico por querermos revivê-lo.

Na cultura hispânica, este termo não encontra um significado equivalente. Para

Britto,

O principal problema do tradutor não é saber os ‗nomes‘ das ‗coisas‘ no idioma estrangeiro: muitas vezes não é possível estabelecer uma correspondência exata entre os termos de um idioma e os termos de outro; assim, o máximo que o dicionário bilíngue pode fazer é dar algumas sugestões, apontar possíveis soluções e refrescar a memória do tradutor. (BRITTO, 2012, p.18).

A partir disso, Britto (2012) define o trabalho do tradutor como um trabalho

criativo e observa que

nas últimas décadas os estudos de tradução se afirmaram como área de prestígio no mundo das humanidades. Surgiram novas abordagens do fenômeno tradutório; passou-se a valorizar o papel que as obras traduzidas têm numa dada literatura; em suma, pela primeira vez o meio acadêmico passou a dar a devida importância à tradução. (BRITTO, 2012, p.19).

Muitos teóricos contribuíram para o desenvolvimento da área, entre eles

Holmes. É dele a proposta de que se parasse de falar em equivalência entre original

e tradução. Em vez disso, que se utilizasse correspondência, um termo mais

modesto e realista; e chamou a atenção para o fato de que traduzir não é uma

operação realizada sobre sentenças, estruturas linguísticas, mas sobre textos, o que

envolvia muito mais do que estruturas gramaticais.

Desse modo, Holmes, juntamente com outros pioneiros, que veremos

posteriormente, abriu caminho para a que veio a ser chamada de ―virada cultural‖

para os estudos da tradução. Passou-se a enfatizar o valor próprio da obra traduzida

e do trabalho do tradutor.

Esteban Torre (2001), em sua obra Teoría de la Traducción Literaria, afirma

que la traducción no sería otra cosa sino la sustitución de las palabras de una lengua

por las de otra, que tengan un mismo o equivalente significado (2001, p. 7-8). O

pesquisador afirma, ainda, que

la meta de la traducción no es la selección de „equivalentes‟ que reproduzcan en el TLT con “el mismo significado” que en el TLO, mas la selección de equivalentes que reproduzcan en el TLT una “situación” análoga a la del TLO, teniendo en cuenta la estructura lingüística y el contexto cultural de la TL (TORRE, 2001, p. 8)

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Torre (2001) considera a relação entre língua e cultura. Segundo Torre (2001),

Si no vemos el mundo más que a través de los cristales que previamente ha tallado nuestro lenguaje, sucede que, cuando nos referimos a la realidad extralingüística en dos lenguajes diferentes, jamás hablaremos exactamente de la misma realidad y, por lo tanto, la traducción de una lengua a otra sería algo materialmente imposible. (2001, p. 8).

Por isso, para interpretar o sentido, é preciso conhecer a cultura e os sujeitos

envolvidos. Torre (2001) afirma que

para traducir el sentido completo de un enunciado, no basta considerar la forma de las palabras y las frases independientemente una de las otras, sino que hay que atender al discurso en su conjunto, con sus diversos registros, niveles o estilos de lenguaje, y en el marco específico de su situación concreta. Es preciso conocer quién se dirige a quién, con qué intención y en qué circunstancias. (TORRE, 2001, p.68).

Com o desenvolvimento dos estudos da tradução, o foco deixa de estar

centrado apenas nos textos e passa a tomar a cultura como elemento central das

pesquisas. Na introdução da coletânea Translation, history and culture, Lefevere e

Bassnett (1990) explicam que essa seria a chamada virada cultural [cultural turn],

que envolveria também adotar métodos diferentes dos tradicionais:

O leitor não vai mais encontrar minuciosas comparações entre originais e traduções; porque tais comparações, além de falsamente reforçarem a idéia do texto-enquanto unidades tendem a ser vítimas da teoria invisível do tertium comparationis, implicitamente postulado para garantir julgamentos sobre o motivo de uma determinada tradução (normalmente a proposta pelo escritor do trabalho em questão) ser melhor que outra. (Apud RODRIGUES,

2000, p. 125).

Lefevere e Bassnett (1990) evidenciam que a relação entre leitor-texto deve

estar livre de qualquer julgamento ou juízo de valor. Dessa forma, o intérprete não

deve ser julgado por sua interpretação-tradução; com isso é estabelecida uma

relação de entrega de ambos, onde um interpreta o outro.

As décadas de 80 e 90 foram decisivas para os estudos da tradução, na

medida em que ―temas como a fidelidade e equivalência tradutória deram lugar a

outras questões centradas na importância do texto de chegada, ou seja, do texto

traduzido, considerando seus aspectos culturais ademais dos Linguísticos‖

(CLARAMONTE, 2008, p. 77-78.). Nesse momento, a tradução passa a estabelecer

relação entre as diferentes línguas e culturas.

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Os fios que entretecem a trama comum que liga os diversos prismas por que a tradução tem sido estudada nas duas últimas décadas constituem uma ênfase na diversidade e na rejeição da velha terminologia da tradução como fidelidades à tradição de um original, põem em destaque os poderes de manipulação do tradutor e uma concepção da tradução como meio de lançar pontes que anulem o espaço entre o ponto de partida e o ponto de chegada. (BASSNETT, 2003, p. 17).

A tradução é, portanto, uma ação criativa, no sentido de que permite ao

tradutor criar algo novo. Traduzir, definitivamente, não é uma tarefa puramente

mecânica. A análise e a escolha dos elementos a serem utilizados no texto novo se

apresentam como um ato interpretativo complexo e, sobretudo, criativo.

O campo dos estudos da tradução passa a evoluir em conjunto com outras

áreas, como a Literatura Comparada. No entanto, percebemos que duas

concepções de Tradução se chocam em alguns momentos, a concepção tradicional

e a concepção contestadora, e é com o objetivo de diferenciá-las que retomamos a

seguir as duas propostas.

1.2 O tradutor literário como investigador da práxis social e a concepção

tradicional de Tradução

A principal característica da concepção tradicional é a defesa de que a

tradução é uma forma de transportar sentidos e que o tradutor é o meio pelo qual os

sentidos são transportados. Os principais teóricos defensores deste pensamento são

Eugene Nida, tradutor da Bíblia para a Língua Inglesa e um dos estudiosos que

iniciaram os estudos da tradução, Erwin Theodor e Paulo Rónai.

Nida apresenta um lembrete em sua teoria, de que embora não possam existir

equivalentes idênticos na tradução, devem-se buscar equivalentes naturais mais

próximos na língua de chegada.

Ao trabalhar com tradução e discutir sobre sua respectiva importância, Nida

impulsionou os estudos e fez com que mais outros estudiosos focassem na tarefa de

pesquisa sobre tradução. Com o seu trabalho, a Bíblia ficou conhecida e passou a

estar disponível em números muito maiores, até mesmo em países e línguas para as

quais nunca antes havia sido traduzida. A partir desta primeira constatação,

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podemos dizer que traduzir colabora para que muitas pessoas que não tinham

contato com certas obras, com a tradução tiveram acesso a elas.

No entanto, Nida considera a tradução como transferência, como se fosse

possível transportar uma mensagem de uma língua para outra sem intervenções da

subjetividade do tradutor. Nesse sentido, ele trabalha com a ideia de decodificação.

Por ele, o tradutor seria responsável por recebê-la e organizá-la na língua de

chegada.

Quanto à mensagem, o autor destaca que a equivalência não é apenas de

símbolos e estruturas gramaticais entre as línguas, mas pode acontecer de uma

mensagem ser decodificada em um conceito, ou em uma expressão na língua de

chegada. Portanto, nessa perspectiva, busca-se que a mensagem e o estilo sejam

transportados para a língua de chegada com o máximo de neutralidade.

Nida (1964), embora tendo uma visão de significado único, aborda a produção do significado dentro de um contexto, ora orientado ao autor (equivalência formal) — dando atenção à mensagem, abrangendo forma e conteúdo — ora orientado ao leitor (equivalência dinâmica), ou seja, busca-se a essência ou o efeito pretendido pelo texto original para atribuí-lo ao texto traduzido (OLIVEIRA, 2007, p. 103).

O mesmo autor também afirma que não se pode evitar certo envolvimento

pessoal por parte do tradutor. A neutralidade é considerada algo que não se pode

atingir, conforme as orientações do mesmo teórico. Por isso, Nida diz que a

neutralidade seria o ideal na tarefa do tradutor, mas, como isso é impossível, exige

do tradutor o mínimo de intervenção na mensagem do autor da obra original.

A ideia de transferência de sentido, porém, não está somente presente na

concepção de Nida, mas nos estudos de Theodor, como se pode observar na sua

definição quanto ao trabalho de tradução, ―traduzir não significa exclusivamente

substituir palavras de um idioma por palavras do outro, mas transferir o conteúdo de

um texto com os meios próprios de outra língua‖ (THEODOR, 1976, p.21).

Quanto à tarefa do tradutor, Theodor trabalha com a ideia de que este

profissional deve fazer uma decodificação apropriada do discurso, presente na obra

original e, que o trabalho do tradutor ―se estende desde a compreensão adequada

do original até a procura de correspondências aceitáveis‖ (THEODOR, 1976, p.30).

Segundo os estudos de Theodor, a essência do texto deve ser preservada ao

máximo na tarefa de recodificação. Nesse sentido, se compararmos a atividade do

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autor e do tradutor, o autor é o criador e o que pode escrever conforme sua vontade,

e o tradutor seria o decodificador dos sentimentos e das ideias do autor. Sendo

assim, quem produz texto é o autor e o tradutor nada tem a dizer e não deve se

―mostrar‖ no texto.

Ainda, quanto aos desvios, Theodor lastima que as traduções não estejam

livres deles e afirma que ―são motivados pelas diferenças existentes entre as várias

línguas, entre autor e tradutor e pela distinta situação literária, dominante num e

noutro campo linguístico‖ (1976, p. 36). Para o autor, a tarefa de decodificação e

recodificação, com que ele trabalha, exige do profissional da tradução o máximo de

empenho para conhecer os dois idiomas.

Então, o primeiro passo da tarefa do tradutor é codificar as informações do

texto original, doravante TO, e o segundo é a recodificação das informações, sendo

que neste passo, além de decodificar o sentido da mensagem, tem-se a tarefa de

recodificar ―as suas conotações culturais e civilizatórias‖ (THEODOR, 1976, p. 87).

A língua, neste trabalho, apresenta-se como instrumento a ser usado para

transpor o TO para o texto traduzido, doravante TT. Para que a transposição seja

bem sucedida, destaca-se, embora se compreenda a existência de diferenças entre

as várias línguas, que o tradutor deve ser conhecedor da cultura e da história de

ambas as línguas com que está trabalhando, para que assim possa fazer uma

tradução o mais fiel possível.

Paulo Rónai (1981), na obra Tradução Vivida, expõe algumas das muitas

armadilhas da tradução. Ele diz que

a maioria das muitas armadilhas da tradução provém da fé na existência autônoma das palavras, que traz a convicção de que a cada palavra de uma língua corresponde outra noutra língua, o que não acontece na realidade, pois cada palavra só tem sentido na frase e contexto em que está inserida. (1981, p. 34-35)

Outro perigo é nossa busca por compreender o sentido das palavras e

adivinhar o significado delas a partir da tarefa de as etimologizar. Dessa forma,

poderemos compreender o significado, mas estamos propensos a causar confusões,

―já que cada língua evolui de maneira diferente‖ (RÓNAI, 1981, p. 35-36). Um dos

resultados possíveis desse desenvolvimento autônomo das línguas é a polissemia,

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ou seja, uma palavra pode ter mais de um equivalente, dependendo do contexto.

Também,

o tradutor pode, ao traduzir uma palavra estrangeira com dois correspondentes na língua da tradução, ser levado a traduzi-la sempre pela forma mais parecida, ficando ameaçado de nunca usar a mais rara, que é uma riqueza da sua própria língua (RÓNAI, 1981, p. 36-37).

Posteriormente, apresenta-se uma armadilha ainda pior, os falsos cognatos,

palavras parecidas em dois idiomas, mas com sentidos diferentes. Rónai apresenta

exemplos no francês, no inglês, no espanhol e no italiano, e remete ao livro A Arte

de Traduzir, de Brenno Silveira, que contém uma relação de falsos cognatos

franceses, espanhóis e italianos (RONAI, 1981, p. 37-40).

No entanto, para o autor, a tradução não fica apenas nesta soma de palavras e

significados: ―O que devemos traduzir é sempre algo mais, isto é, a mensagem. ‖

(RÓNAI, 1981, p.78). Dessa forma, Rónai afirma que a tradução não é a

transferência do sentido de uma palavra em um idioma para outra equivalente na

língua dois, mas não deixa de ser transferência de uma mensagem para outras

palavras de acordo com as possibilidades da língua para qual está sendo realizada a

tradução. Isto posto, ―a fidelidade seria uma obrigação dupla: para com o conteúdo

da mensagem e para com a praxe expressiva da língua alvo‖ (RONAI, 1981, p.127).

Para a perspectiva tradicional de tradução, qualquer ―interferência‖ do tradutor

na essência do texto seria considerada uma perda. Diante disso, e com base em

Tytler (Apud ARROJO, 2000), citamos três itens que são considerados básicos em

uma ―boa‖ tradução para a perspectiva de tradução em questão:

– a tradução como reprodução em sua totalidade da essência do texto original;

– o estilo da tradução deve seguir o estilo do original;

– a tradução deve ter toda a fluência e a naturalidade do texto original.

Partindo de tais itens, a tarefa é fazer uma tradução que reproduza a

ideia/mensagem, o estilo do texto original e que tenha toda a fluência e naturalidade

dele. Além disso, este texto deve ser o mais fiel possível à mensagem primeira

devendo o tradutor ficar ―invisível‖ no texto traduzido.

Aqui se admite que o tradutor possa ser subjetivo em uma tradução, mas esta

subjetividade é vista como um empecilho para uma ―boa‖ tradução.

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Quanto à perspectiva tradicional e os teóricos que a defendem, Mittmann

afirma que

todos tomam como ponto de partida para um estudo da tradução o texto e a língua. E parece que é apenas sobre o texto e a língua que o teórico da tradução deve trabalhar buscando soluções e fazendo análises. Como se o texto e a língua fossem baús capazes de guardar o sentido, a mensagem, o conteúdo, ou a informação. E como se o sentido fosse universal, possível de ser transferido de uma língua para outra, de um texto para outro. Nem se cogitam as condições de produção. (MITTMANN, 2003, p. 23).

Percebemos que Mittmann compreende a ―boa‖ intenção dos teóricos

tradicionais, mas deixa implícito que não concorda totalmente com eles,

principalmente porque esses estudiosos não levam em consideração as condições

de produção dos discursos.

Ocorre também que mesmo aqueles teóricos que possuem o objetivo de

sistematizar a noção de fidelidade não conseguem esconder a relação de tensão

que o processo de tradução produz. Assim, muitos estudiosos começam a

questionar e a contestar a perspectiva tradicional de tradução, enquanto as teorias

de tradução avançam para uma perspectiva que busca refletir sobre o sujeito

histórico e social.

1.3 (In)Traduzibilidade e cultura: diferenças, aproximações, delimitações

1.3.1 A Perspectiva Contestadora da Tradução

Várias são as divergências entre as perspectivas tradicionais e contestadoras

da tradução, sobretudo quanto ao sentido e à tarefa do profissional que faz a

tradução, o tradutor. Destacamos, dentre os teóricos que contestam a perspectiva

tradicional de tradução, Francis H. Aubert, Rosemary Arrojo, Lawrence Venuti e

Theo Hermans.

Com o aspecto da estabilidade dos sentidos sendo questionado, a noção de

fidelidade também começa a ser repensada. Aubert (1989) define a tradução como

―expressão em língua de chegada (LC) de uma leitura feita em língua de partida (LP)

por um determinado indivíduo, sob determinadas condições de recepção e de

produção‖ (AUBERT, 1989, p.115). Sendo assim, este teórico pensa as condições

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de produção como definidoras do sentido e dos discursos, e passa a questionar

essas condições para entender tanto o TO como o TT.

O mencionado estudioso não vê a tradução como a palavra a partir da palavra,

mas o sentido a partir do sentido. O trabalho central do tradutor, em sua visão, deve

ser trazer para o TT a mensagem, a essência do original, mesmo que, para isso,

seja necessário utilizar-se de organizações textuais e linguísticas diferentes das

utilizadas no original.

Com isso, consideramos que os desvios são necessários para que haja a

busca de uma maior aproximação do sentido da tradução em relação ao original.

Entende-se, portanto, que traduzir também é desviar. Se a tradução fosse realizada

de forma literal, palavra por palavra, o texto segundo seria uma cópia. Além disso,

Aubert (1989) trabalha com a concepção de que a mensagem do texto original pode

gerar várias leituras a partir de cada leitor, visto que estas são frutos das diversas

condições de recepção dos leitores.

Neste momento dos estudos, e com base nas leituras feitas, já podemos

confirmar um dos pontos de vista, quanto à formação dos sujeitos, que nos

proporciona uma aventura de pesquisa, o pressuposto fundamental da teoria da AD,

o de que o indivíduo é interpelado em sujeito do seu discurso quando e a partir da

identificação deste com a formação discursiva que o domina, é nela que ele se

constitui enquanto sujeito do seu discurso, ―e é assim que a língua faz sentido‖

(ORLANDI, 2015, p. 17).

As condições de produção e recepção são determinantes para a produção e

para a compreensão dos indivíduos. Como sujeitos, estamos inseridos de tal forma

no meio social em que vivemos que produzimos os nossos discursos nele e a partir

dele. Sendo assim, estamos muito longe de sermos a fonte única de nossos

discursos.

Mas, voltando à questão da ―mensagem‖, Francis Aubert (1989) diferencia três

tipos de mensagens envolvidas nos atos comunicativos: a mensagem pretendida, ou

seja, aquela que o emissor quis dizer; a mensagem virtual, que se refere a todas as

leituras possíveis a partir das orações linguísticas produzidas; e a mensagem

efetiva, que é a mensagem que se efetivou na leitura feita pelo destinatário.

Para Aubert (1993), o ato da tradução constitui-se num segundo ato

comunicativo, em que o tradutor, ―tomando como ponto de partida a mensagem

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efetiva, a transforma em uma segunda mensagem pretendida (esta não sendo

idêntica àquela)‖ (AUBERT, 1993, p.115).

Assim, a cada ato de leitura, o leitor apreenderá uma mensagem efetiva. A

proposta de Aubert (1993) é de que a mensagem pretendida pelo autor é inacessível

ao leitor e, dessa forma, se a mensagem efetiva através da leitura do tradutor não é

a mesma pretendida pelo autor, não se pode falar de fidelidade ao autor original,

mas em fidelidade à mensagem efetiva, através da leitura do profissional da

tradução.

Os objetivos de Aubert (1993) são contestar o papel do tradutor como ―mero

canal‖ de transposição da mensagem de uma língua a outra, a exigência de

apagamento e auto-anulação do tradutor e, apresentá-lo como ―agente, elemento

ativo, produtor de texto, de discurso‖ (AUBERT, 1993, p. 80).

Dessa forma, na visão de Aubert (1993), a tradução não é mais o transporte,

mas a leitura de uma determinada mensagem, sendo que toda leitura traz consigo

história e é marcada por suas condições de produção. Assim, ―o tradutor passa a ser

visto como inserido em um contexto cultural, ideológico, político que não pode ser

eliminado ou ignorado ao elaborar uma tradução‖ (ARROJO, 2003; BERMAN, 1981).

Arrojo, assim como Aubert, contesta a visão tradicional de tradução, que

considera que o tradutor deve extrair do TO os significados da mesma forma como

foram empregados, ou seja, não deve contaminá-lo, nem realizar acréscimos de

acordo com sua perspectiva. Esta autora contesta a concepção tradicional da

tradução a partir da teoria construtivista. Segundo ela, existe tamanha cobrança do

tradutor, de fidelidade ao texto original, devido à existência de uma concepção de

texto como sendo um tecido que recebe significados estáveis e que estão envolvidos

com a intenção do autor.

Dessa concepção de texto, oriunda das teorias da linguagem, resulta outra

concepção de leitura que ―atribui ao leitor a tarefa de ‗descobrir‘ os significados

‗originais‘ do texto (ou de seu autor)‖ (ARROJO, 1993, p.16). Nessa visão

tradicionalista, a tarefa do tradutor é realizar o transporte de significados,

aparentemente estáveis, para outra língua, para outro texto.

Arrojo questiona afirmando que os significados são produzidos

a partir de um ato de interpretação, sempre provisória e temporariamente, com base na ideologia, nos padrões estéticos, éticos e morais, nas

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circunstâncias históricas e na psicologia que constituem a comunidade sociocultural [...] em que é lido (1993, p. 19).

Se o sentido não está no texto, mas nas interpretações produzidas pelo ato de

leitura, a tradução só poderá manter relações de fidelidade com estas interpretações

e não haverá mais a determinação de que há apenas o autor do texto original.

O tradutor e os leitores possuem um papel ativo como autores do texto. Para

Arrojo, contestar a estabilidade do sentido não significa que o leitor possa dar

qualquer sentido ao texto. Pelo contrário, ela defende que há uma série de normas

que regem o trabalho e os sentidos nas comunidades dos sujeitos, que os fazem

realizar as interpretações e as escolhas na produção de uma tradução.

Assim, também um texto pode estabelecer relações de sentidos diferentes, de

acordo com o espaço-tempo em que é produzido. Antunes (2007) diz que

a tradução existe devido à necessidade de tornar compreensível o incompreensível, de permitir aceder a um conteúdo que se encontra num registro diferente de quem o lê. Existe porque existem línguas e linguagens diferentes (ANTUNES, 2007, p. 2).

Não negamos a existência de diferenças de sentidos para um mesmo texto

original, mas Antunes (2007) defende a ideia de tradução como possibilidade, os

sujeitos pensam diferente e as culturas são diferentes. Nesse sentido, a tradução

permite que se ultrapasse a barreira das diferenças de línguas distintas, além das

barreiras do tempo, de ordem de classe social, étnicas, entre outras. Steiner (2005)

também amplia o conceito de tradução e afirma que

A barreira é o fato óbvio de que uma língua difere da outra, de que uma transferência interpretativa (algumas vezes descrita, de forma bastante inadequada como codificação e decodificação) deve ocorrer de modo a garantir que a mensagem

7 ‗passe‘. Exatamente o mesmo modelo — e isto

raramente recebe o devido destaque — está em funcionamento do interior de uma única língua (STEINER, 2005, p. 53).

Nesta perspectiva, a tradução é situada como forma de mediação para o

discurso. Consideramos o tradutor um profissional com tarefa essencialmente

produtora de significados, com trabalho pelo menos tão difícil quanto o trabalho de

autores ou escritores de textos originais. Fica evidente que não existe fórmula

7 Mensagem é termo usado aqui na perspectiva tradicional de tradução e não da AD, base teórica

que fundamenta a presente pesquisa.

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mágica para traduzir, se houvesse e se para traduzir fosse necessário apenas

decorar regras, ou conhecer uma língua estrangeira, as máquinas já estariam

substituindo a tarefa do tradutor.

Quanto à fidelidade ao original, Britto (2012) argumenta que

é impossível se ter acesso ao sentido único de um original [...] os textos admitem múltiplas leituras; tampouco se pode ter acesso à intenção do autor ao escrever o texto- aliás, o autor pode ter sido movido por impulsos

inconscientes, e por isso ele próprio pode não saber qual a sua intenção. (BRITTO, 2012, p. 24).

Argumenta, portanto, que até mesmo o autor da obra original pode ser traído

por seu inconsciente, da mesma forma não podemos exigir que os tradutores sejam

fiéis ao texto original, mas sim a sua interpretação.

1.3.2 Lawrence Venuti e a teoria da (in)visibilidade do tradutor

[…] traduzir, editar uma tradução, não significa apenas se ocupar com uma operação de natureza lingüística, é também tomar uma decisão que põe em jogo um equilíbrio cultural e social.

Yves Chevrel8

A partir dos anos 80, a tradução, pensada como disciplina, passa a ter como

foco de questionamentos a sociedade e a cultura. Como afirma o tradutor e teórico

norte-americano, Lawrence Venuti (2008), a tradução passou a ser vista como una

práctica cultural que permite la consideración de cuestiones tales como el

nacionalismo, el colonialismo y el poscolonialismo, la identidad sexual y el género, y

la globalización (2008, p. 295).

Nessa perspectiva, de acordo com Venuti, os novos enfoques possibilitaram a

formulação de novos conceitos, reconstrução de momentos históricos e sociais,

entre outros. Consequentemente, com o desenvolvimento no campo dos estudos da

tradução a área literária avistou novos horizontes de estudos, revendo suas relações

com questões sociais e culturais, até então deixadas de lado.

8CHEVREL, Yves. Le traductions: um patrimoine littéraire? Revued‟ Histoire Littéraire de la France. n.

3, Paris, p. 355-360,Mai-Juin, 1997.

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Venuti busca se opor à ideia de fidelidade ao texto-autor original e, se

apresenta como um divisor de águas para os estudos da tradução, questiona o

papel do tradutor e a sua invisibilidade, propõe a opacidade através do que ele

chama de ―fidelidade abusiva‖ ao texto primeiro. Ele sugere que o tradutor produza

um texto que contenha sentenças gramaticalmente incorretas. Dessa forma, poder-

se-ia explorar as diferenças, entre as duas línguas, e facilitar que o leitor veja o

potencial das mesmas. A partir desse estranhamento, Venuti (1992) propõe uma

tarefa de apagamento, de conservação e valorização das diferenças, em que não é

possível separar a voz do autor do texto original, nem o leitor, e, muito menos, que o

próprio tradutor possa identificar sua voz na obra.

No livro The Translator‟s Invisibility: A History of Translation (1995), Venuti

preocupa-se em denunciar a situação atual de invisibilidade do tradutor nas culturas

britânica e norte-americana. No capítulo definido como Invisibility, o autor afirma que

o objetivo do livro é ―tornar o tradutor mais visível, de modo a combater e mudar as

condições sob as quais a tradução é teorizada, estudada e praticada hoje,

particularmente em países de língua inglesa. ‖ (1995, p. 13).

Venuti preocupa-se em mostrar que, no processo de tradução, a autoria se

manifesta através das escolhas feitas pelo tradutor, conferindo a este um papel

ativo. Daí a existência de traduções diferentes, porque diferentes tradutores podem

fazer diferentes escolhas em posição de autoria. Essas escolhas são estabelecidas

de acordo com as especificidades internas do texto e de elementos do contexto

social que, mesmo externos, ―são inscritos em sua materialidade‖ (1995, p. 115).

Além disso, o teórico argumenta que as escolhas de um termo ou outro, de um

sentido ou outro, não são tão livres assim, mas determinadas pela ideologia. Venuti

define ideologia como ―um conjunto de valores, crenças e representações sociais

que são concretizados na experiência vivida e servem, em última instância, aos

interesses de uma classe definida‖ (1995, p. 116).

Portanto, os argumentos de Venuti, que aceitam a concepção de texto que

mantém certa opacidade a partir das ideologias e das formações discursivas,

contestam o que mais a concepção tradicional de tradução defende, a ideia de

sentido único, a transparência do sentido, tanto no original quanto na tradução.

Mittmann, em sua obra Notas do Tradutor e Processo Tradutório: análise e reflexão

sob uma perspectiva discursiva, afirma que

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A proposta de Venuti, [...], é manter visível a opacidade, através de um uso da língua que resista à leitura fácil e que faça o leitor perceber o texto traduzido como resultado de um trabalho de transformação, quer dizer, percebê-la como tradução e não deixar-se cair na ilusão de estar lendo um texto original (MITTMANN, 2003, p.31).

A tradução, nesse sentido, faz parte do processo de comunicação que se

estabelece entre o leitor/interpretador/tradutor e da leitura/interpretação/tradução.

Para a corrente contestadora, o tradutor tem papel de destaque no processo de

comunicação. Briks (2012) lembra que

O tradutor, nesse caso, fica no centro desse processo dinâmico da comunicação, no qual as condições sociais sob as quais a atividade da tradução é levada não podem ser omitidas ou deixadas de lado. Essa nova concepção de língua reflete em uma concepção de interpretação, na qual o subjetivo não é mais descartado e, muito além de atribuir significado (descendente), também considera a interação entre o sujeito e o texto. (BRIKS, 2012, p. 7).

Antunes (2007, p. 2) amplia o conceito de tradução e diz que ela existe devido

à necessidade de tornar compreensível o incompreensível, de permitir aceder a um

conteúdo que se encontra num registro diferente daquele que lê. Existe porque

existem línguas e linguagens diferentes.

Venuti propõe uma nova definição de tradução como autoria, prática, no

sentido althussereano, como produção da matéria-prima em um produto e, quanto

ao produto original (o texto original), diz que este também foi produzido a partir de

um conjunto de matérias-primas: ―a língua estrangeira; os diversos tropos, gêneros e

convenções, ideias e movimentos culturais existentes na história daquela língua; a

experiência vivida no país estrangeiro‖ (1995, p.115).

Dessa forma, a autoria, no produto traduzido, é marcada pela intervenção do

tradutor, na produção do texto, pelas suas escolhas. A proposta de Venuti, de

manter visível a opacidade, possibilita que não haja a ilusão de estar lendo o

original, mas, sim, um produto que foi produzido na cultura desse leitor.

Hermans (1998) contesta o aspecto da transmissão/recuperação cultural e a

interpretação através da explicação/comentário. O primeiro aspecto refere-se à ideia

de que a tradução é como uma ponte que permite que haja transporte de

significados e o tradutor remove as barreiras que impossibilitam esta reprodução. O

segundo aspecto vê a tradução como uma reprodução do produto primeiro e, neste

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contexto se exige do tradutor que seja capaz de reproduzir o produto original com

perfeição.

No entanto, para que se tenha a ilusão de que a tradução reproduz fielmente o

original, exige-se do tradutor o seu apagamento. Como afirma Hermans, ―uma

tradução, diríamos, é melhor sucedida quando o fato de ser uma tradução passa

despercebido, quando consegue não nos lembrar de que é uma tradução‖ (1998,

p.11).

Segundo Hermans (1998), em uma tradução se rompe com a ideia de que

quem fala no texto é o autor do texto original, enquanto a voz do tradutor é uma

intrusa e deve ser apagada. Ele defende que na tradução o outro é o autor do

original. Quanto às vozes presentes no texto, defende a ideia de que ―os textos

traduzidos, como os outros textos, apenas um pouco mais, são sempre, de forma

inerente, plurais, instáveis, descentralizados, híbridos.‖ (1998, p.12). Segundo o

pesquisador, várias vozes estão presentes nos textos e, na tradução, não se podem

apagar as vozes, tanto do tradutor quanto do autor do texto original, mas isso não

implica que haja uma coincidência total entre as duas.

Portanto, se a pluralidade é algo presente em todos os textos, também no

original, o que a tradução faz é aumentar ainda mais esta pluralidade. Assim, a

função do tradutor é necessária para ―conter o aumento exponencial em significação

e pluralidade que a tradução ocasiona‖ (1998, p. 15-16).

Pensemos agora sobre a tarefa do tradutor. Se ele é sujeito social e realiza

suas escolhas, toma suas decisões a partir das formações discursivas e da cultura a

que pertence, a tradução não pode ser vista como inocente, como se fosse uma

imagem refletida no espelho, mas pode ser vista como uma construção ideológica e

histórica, guiada pela voz do tradutor, mas que permite que as vozes de sua cultura

façam parte deste produto.

Destacamos, a partir das teorias contestadoras e da nova perspectiva sobre

tradução e o trabalho do tradutor, que o sentido é o foco na realização das

traduções, não é a intenção do autor da obra original, pois as próprias intenções

deste não são totalmente acessíveis ao tradutor e ao leitor. O sentido, dessa forma,

não pode ser interpretado integralmente, mesmo que o leitor ou o tradutor conheçam

o autor, as formações discursivas do qual ele faz parte, e o momento histórico em

que o discurso foi produzido. Pode haver um entendimento o mais aproximado

possível, mas não total fidelidade.

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Além disso, o sentido não está presente no texto disponível para decodificação

e recodificação. O sentido para o autor é o resultado do texto em seu contexto, para

o tradutor e os leitores é uma imagem construída a partir do ato de interpretação que

é determinado pelos fatores externos, como as ideologias, que agem sobre os

tradutores/leitores e mantêm relações específicas com cada língua.

Por isso, porque os textos/ discursos e sujeitos mantêm relações com fatores

externos e também internos, o sentido se apresenta como uma imagem que para o

sujeito autor e tradutor/leitor parece totalmente fiel. São as ideologias e o

inconsciente que criam a ideia de entendimento, mas o que há é uma compreensão

a partir da bagagem histórica, social e cultural e da posição do sujeito no interior das

formações discursivas e sociais das quais participa.

Além disso, o tradutor é um leitor que tem um importante papel para a

sociedade. Ele possui a tarefa de realizar escolhas, transformar e produzir a

tradução para que faça sentido na língua dois. Também, não se pode negar que a

voz do tradutor está em todo o texto da tradução e não é possível pensar a sua

invisibilidade senão como uma ilusão, pois a voz do tradutor está presente em cada

escolha realizada.

Após situarmos a concepção tradicional e a contestadora, percebemos que a

principal divergência entre as duas é o modo como veem o tradutor e o sentido: a

primeira vê o tradutor como instrumento de transporte e o sentido como único, já a

segunda compreende o tradutor como produtor do texto, da tradução, e o sentido

como fruto da interpretação do sujeito tradutor/leitor que é influenciado em suas

escolhas por fatores externos.

Quanto à perspectiva contestadora e ao papel dos fatores externos na

interpretação da tradução, Mittmann afirma que

Na perspectiva contestadora, a exterioridade é fundamental para a análise da tradução, já que a tradução se dá a partir da interpretação pelo tradutor, o que ocorre em condições específicas, e o texto da tradução, como produto, só pode ser analisado quando posto em relação ao processo que o produziu, quer dizer, ao tradutor e às condições a que está exposto - ideologia, visão de mundo, padrões estéticos etc. (MITTMANN, 2003, p. 36).

Dessa forma, traduzir é uma tarefa que contribui para o enriquecimento cultural

dos povos, além de permitir que se conheça mais sobre a cultura e a história da

sociedade da língua de partida. Destacamos que, a complexa tarefa de traduzir

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exige do tradutor que conheça as línguas envolvidas no processo e a exterioridade,

além do momento histórico e contexto social em que o texto é produzido.

Nesse sentido, para traduzir é preciso aprender a ―ler‖, compreender os

significados, a partir do texto em questão, que se apresentem como ―aceitáveis‖ para

a comunidade cultural da qual o leitor faz parte. Além disso, ele, o leitor-tradutor,

deve ser um bom escritor para que a comunidade que venha a receber a tradução

possa fazer a leitura e considerar a tradução uma boa obra e que possa reconhecê-

la como fazendo parte de sua cultura.

1.4 Sobre arte e sobre literatura dramática: situando o corpus

A arte existe porque a vida não basta. Ferreira Gullar

9

Para iniciarmos a sessão, apresentamos a contribuição do professor Luiz Paulo

Vasconcellos (1987) que, em sua obra Dicionário de Teatro, traz uma definição para

drama. Ele diz:

Segundo a tradição ocidental, o drama tem origem na Grécia, no século V a. C. A forma dramática caracteriza-se pela ênfase dada ao objeto de narração, sem uso, pelo menos aparente, de um NARRADOR. O elemento propulsor da narrativa é o conflito, ou seja, o enfrentamento direto dos agentes da AÇÃO. [...] A narrativa dramática pode ser apresentada num só fôlego, sem interrupções, como nas tragédias gregas, ou com divisões em ATO ou CENA. Considerando que a ação do drama envolve o choque entre personagens, o vocábulo passou a ser usado de forma generalizada para definir qualquer situação que seja conflitante, literária ou não. A arte e a ciência de escrever drama é chamada DRAMATURGIA e o autor de drama, DRAMATURGO. (VASCONCELLOS, 1987, p.71).

A arte dramática, fascinante pela natureza discursiva, é articulada de maneira

a produzir significado a partir da utilização de linguagem verbal e não verbal, é um

gênero discursivo10 e, juntamente com o lírico e o épico, compõe a Literatura.

9 Apud TRIGO, Luciano. 'A arte existe porque a vida não basta', diz Ferreira Gullar. 07 ago. 2010. Disponível

em: http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao-basta-diz-ferreira-

gullar.html . Acesso em: 10 ago. 2017. 10Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana, o que não contradiz a unidade nacional de uma língua. A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos

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Do grego, a palavra ―drama‖ significa ―ação‖. A principal característica do

gênero dramático é que possibilita a apresentação e a encenação, sendo o diálogo

um dos recursos utilizados.

Na Antiguidade, o gênero dramático, originário na Grécia, era composto por

textos encenados, nas festas religiosas, essencialmente como adoração aos

deuses.

Observando os estudos desenvolvidos sobre linguagem e discurso ao longo

dos anos, principalmente nas áreas da Linguística e da Análise do Discurso em

particular, percebemos que, mesmo sendo dois gêneros discursivos da Literatura,

cada vez mais passou-se a enfatizar as práticas cotidianas e linguageiras de

interação, e as pesquisas distanciaram-se do texto literário, aumentando ainda mais

o afastamento já existente.

A Literatura é um campo que se desenvolve ao mesmo tempo em que contribui

para o desenvolvimento social e cultural do homem. Por representá-lo e concebê-lo

em seu caráter universal, apresenta-se com inúmeras possibilidades de pesquisas.

Nesse contexto, o drama é o gênero discursivo que consideramos com maiores

possibilidades de pesquisas.

Mesmo com toda a reverência dos gregos, o texto teatral encontrou muitas

barreiras de estudo. Durante séculos perdeu seu estatuto para a narrativa, que foi

amplamente difundida desde a Idade Média e largamente pesquisada pela Teoria

Literária moderna. Conforme Mello (2004), isso ocorreu porque ―os pesquisadores

dispõem de poucos instrumentos conceituais e metodológicos para dar conta do

caráter particular do texto dramático e negligenciam, muitas vezes por falta de

conhecimentos, as condições particulares de sua existência.‖ (2004, p. 89).

A linguagem teatral, juntamente com outras representações artísticas - dança,

música, artes visuais, pintura - é utilizada pelo homem para estabelecer relações do

mundo consciente com o inconsciente, e essa é uma das áreas que deve receber

maior atenção dos pesquisadores.

Tendo seus alicerces no princípio da interdisciplinaridade, a linguagem teatral

se utiliza tanto de palavras quanto de signos de outros sistemas não-verbais, como

sonoplastia, cenário, vestuário, iluminação, etc. Estes elementos em cena compõem

e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. [...] Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 1992, p.279).

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o espetáculo, mas nem todos são obrigatórios em uma peça de teatro. Como

exemplo, citamos o teatro mudo, em que o discurso é apresentado sem a utilização

da linguagem verbal, porém proporciona experiências únicas para a plateia,

permitindo-lhe sintonia e produção de significados mais individuais. Neste caso, um

dos recursos bem utilizados é o silêncio cênico.

A partir das contribuições da AD, consideramos o discurso relacionado com a

significação. Assim, todos os elementos da cena significam, e o silêncio significa

muito para o sentido, não devendo ser interpretado como pausa ou momento de

introspecção dos atores. Na perspectiva discursiva, é o lugar que permite à

linguagem significar.

Orlandi, na obra As formas do silêncio: No movimento dos sentidos, afirma que

―o silêncio não é vazio, ou sem-sentido; ao contrário, ele é o indício de uma instância

significativa‖ (2007, p. 68). Nessa perspectiva, é possível significá-lo. A

pesquisadora assegura que o silêncio ―não é mero complemento da linguagem‖,

mas que ―ele tem significância própria‖ (2007, p. 23). Dessa forma, o silêncio permite

sentido através do não dito, posto que muitas possibilidades de interpretação se

estabelecem através do que ―não foi dito‖. Para a pesquisadora (2007),

a incompletude é fundamental no dizer. É a incompletude que produz a possibilidade do múltiplo, base da polissemia. E é o silêncio que preside essa possibilidade. A linguagem empurra o que ela não é para o ―nada‖. Mas o silêncio significa esse ―nada‖ se multiplicando em sentidos: quanto mais falta, mais silêncio se instala, mais possibilidade de sentidos se apresenta. (ORLANDI, 2007, p. 49.)

Consideramos o silêncio como possibilidades de significados, pois expressa.

Ao não dizer, diz. Quando palavras não podem ser evidenciadas, ―chora‖, quando os

atores precisam manter-se calados. As palavras e o silêncio não são transparentes e

atuam no imaginário humano. No entanto, não podemos cair no equívoco quanto à

natureza do silêncio. Ele não deve ser visto como um complemento da linguagem,

ou como algo implícito nos textos, dado que o implícito, podendo ser sugerido pelos

atores, precisa das palavras para significar, enquanto a natureza do silêncio é

apenas significar. Conforme Orlandi (2007),

O implícito é um subproduto desse trabalho do silêncio, um efeito particular dessa relação mais de fundo e constitutiva. O implícito é o resto visível dessa relação. É um resíduo, um epifenômeno. O silêncio, tal como o

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concebemos, não remete ao dito; ele se mantém como tal, permanece silêncio. (2007, p. 45).

Deste modo, o teatro, por ser uma arte da categoria das linguagens, permite

interpretação de todos os elementos que compõem a arte, sendo alguns deles:

Tempo: que, de acordo com a função que desempenha, pode ser classificado

de três maneiras: tempo real, aquele no qual decorre a narrativa; tempo dramático,

aquele em que acontecem os fatos da narrativa; e tempo da escrita, aquele em que

a obra foi produzida.

Espaço: local/locais em que decorrem os fatos, podendo ser considerado o

espaço real (cênico) e o espaço psicológico.

Personagens: as pessoas que fazem parte da história, podendo ser

protagonistas (principais) ou coadjuvantes (secundárias). Também, os figurantes,

que possuem papel terciário e aparecem para preencher lacunas de espaço.

Plateia: o público que assiste à peça, fundamental para a linguagem teatral,

visto que a plateia desempenha papel ativo ao significar a arte.

Cenário: os elementos que compõem o espaço da representação.

Figurino: as vestimentas utilizadas pelos atores durante as cenas.

Iluminação: faz parte do cenário, e compreende as luzes nos espaços e nos

atores, é essencial por criar efeitos de contraste, de luz e sombra.

Sonoplastia: os sons que fazem parte do espetáculo podem ser decorrentes

de música, ruídos, as falas, etc.

Como demonstrado, o teatro mostra-se como uma arte com muitas

possibilidades de pesquisa, e, nessa perspectiva, o discurso da peça Juegos a la

hora de la siesta, com expressões de violência através da linguagem verbal, e

também pelo constante contato humano em situações simuladoras de agressão

física, provoca estranhamento nas plateias e, particularmente, pela natureza do

questionamento que propõe à nossa sociedade, motiva-nos a refletir e realizar este

trabalho pela singularidade de que se reveste, sob nossa percepção de analista de

discurso.

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47

1.5 A propósito dos temas morais e psicológicos no drama

―Onde o mundo interior e o exterior se tocam, aí se encontra o centro da alma‖. Novalis

11

O drama Juegos a la hora de la siesta, da dramaturga argentina Roma Mahieu,

proporciona reflexões profundas sobre moralidade numa perspectiva conservadora,

além de apresentar momentos de intensa violência psicológica.

Após as grandes investidas governamentais contra escritores, artistas, ou

quem quer que fosse que tentasse manifestar opinião contrária ao governo e às

suas ações, e tendo sido a obra proibida no ano de 1978, pela ditadura militar,

Mahieu teve de deixar a Argentina e residir na Espanha, país onde vive até hoje. O

argumento apresentado pelo governo ditatorial foi o de que a peça promovia práticas

de agitação e conflitos de ordem moral e social.

Escrita há 41 anos, a obra foi uma resposta da escritora à situação de

contenção criada pela ditadura militar. Jogos na Hora da Sesta se mostra atual

porque o tema da violência sempre esteve presente na sociedade, e se mantém hoje

em dia de uma forma, parece, até mais exacerbada. Além disso, o teatro enquanto

linguagem propõe aos espectadores uma experiência de estranhamento da

condição humana, não é apenas um retrato da vida cotidiana.

Jogos... é um texto dramático que coloca em evidência situações que

denunciam, pela ótica de crianças, a prática da violência psicológica que perpassa

as relações no mundo adulto. Na peça, essa forma de violência se traduz por um

comportamento agressivo dos envolvidos, seja como autores ou como vítimas, com

intenção de ridicularizar, humilhar, manipular ou ameaçar. Importa ressaltar que este

tipo de violência, por ser silenciosa e não sempre ser de ordem física, é mais difícil

de ser percebido até mesmo pela vítima, como bem mostram algumas cenas da

peça. Situações de violência psicológica acontecem, por exemplo, quando alguém

quer ridicularizar o outro, expondo segredos, falando mal do jeito como a outra

pessoa se veste; quando menospreza a família; quando tudo que a outra pessoa faz

é rotulado como ruim ou errado; quando a vítima é exposta a situações humilhantes

11

(NOVALIS apud BOSI, 2000, p. 53).

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em público; quando alguém tem seu corpo criticado de forma ofensiva, mesmo que o

agressor considere tal comportamento como apenas uma ―brincadeira‖.

A violência psicológica se diferencia da violência física por ter caráter mais

subjetivo. Por isso, muitas vezes, passam despercebidas no dia a dia, mas podem

deixar marcar profundas na vítima.

O espetáculo criado por Roma Mahieu apresenta crianças brincando em uma

praça, enquanto seus pais descansam durante o horário da sesta.

Concomitantemente, mostra um retrato duro e questionador da sociedade argentina.

Os diálogos, os comportamentos, os jogos, as atitudes e as ações dos personagens

pontuam os valores, os preconceitos e a cultura decorrente das vivências diárias,

principalmente no contexto familiar. Percebe-se que as crianças aos poucos vão

retratando o jogo de poder e autoritarismo do mundo adulto.

Um dos exemplos de julgamento moral, apresentado na peça, é evidenciado no

diálogo entre as personagens Cláudia e Susana, como reproduzimos a seguir.

RD1: Susana pede uma bala para a outra criança, que já havia distribuído

algumas das guloseimas para o restante do grupo.

LCE:

Susana: - ¿Y por qué, a ver?

Claudia: - Porque no me dejan que me junte contigo, por eso.

Susana: - ¿Y a mí, ¿qué me importa?

Claudia: - No me dejan que me junte contigo porque tu madre es una mujer

de la calle... porque dice mi mama que tu madre es una mala mujer!

Susana:- Tía guarra12. ¡No te metas con mi madre!

Claudia:- Y también dice que tú serás igual que tu madre!

12

Uso coloquial. Indecoroso, ofensivo. Remete à ausência de moral, especialmente se referido à conduta sexual de alguém.

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(Susana salta sobre Claudia y la agarra del pelo).

Susana: - ¡No te metas con mi madre! ¡No te metas con mi madre!

LCP:

Susana: – Por quê?

Cláudia: – Porque não querem que eu ande contigo.

Susana: – Eu não tô nem aí.

Cláudia: – Porque a sua mãe é uma mulher da rua.

Susana: – Não se mete com a minha mãe!

Cláudia: – E você vai ser igual a ela.

Neste trecho, Cláudia e Susana discutem sobre a mãe da primeira, pois

pessoas da comunidade julgam a mãe de Susana uma ―vagabunda‖, uma mulher

―da rua‖. Percebe-se também o quanto a influência dos adultos afeta a relação e os

julgamentos das crianças. Neste caso, a criança é julgada pelas atitudes da mãe.

A concepção de família e de valores é refletida na obra de Roma Mahieu

através das ―brincadeiras‖ das crianças, que têm entre cinco e dez anos, e um

deficiente mental, Julito, que tem vinte anos. Os atos de violência vão se

intensificando ao longo da peça e isso configura uma tensão dramática.

A maneira como as crianças se referem à Susana é reflexo da formação que

está se constituindo a partir das relações sociais, principalmente familiares. A

Ideologia das religiões cristãs, sobre a organização familiar, ainda é muito forte nos

países da América Latina, mantém o ideal de casal formado por homem, mulher e

filhos. Além disso, mesmo com as modificações deste pensamento, ainda se

percebe grande preconceito em relação a famílias constituídas por parceiros do

mesmo sexo, ou com uma mãe e filhos, ou um pai e filhos. O preconceito se estende

inclusive àqueles que não querem ter um companheiro(a). O que deveria ser uma

escolha é, na verdade, uma ―exigência‖ social.

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No diálogo inicial, percebe-se que muitas das palavras, ditas para ferir a outra

criança, foram ensinadas e orientadas pelos pais.

RD2: Andres e Alonso brincam de general e soldado e o primeiro busca,

através de violência psicológica, firmar-se como o dominante na brincadeira. Já

Alonso busca se defender, valendo-se de ameaças.

LCE:

Andres: - ¡Cómo me tocas los cojones, tío! - ¡Dale que te pego... Dale que te pego...

¿Acaso no sabes que eso se gana en el campo de batalla?- ¡Vete antes de que te

meta una hostia... -¡Vete!

Alonso: - ¡No me da la gana! Y me dijo mi papá que si me echas otra vez viene y te

rompe la cara...

Alonso: - y dijo mi papá que si me llegas a levantar la mano llama a la guardia civil y

terminas en la cárcel de menores...

Andres: - Dile a tu viejo que si se lo cuento a mi viejo, viene y lo hace picadillo...

LCP:

Andres: – Como você enche o saco... Meta é meta. Por acaso você não sabe que

isto se conquista no campo de batalha? Vai brincar no outro lado.

Alonso: – Não quero, pô. E meu pai me disse que se você me mandar embora de

novo, ele vem aqui e te quebra a cara. Meu pai disse que, se você me bater de

novo, ele chama a polícia e leva você pro Juizado de Menores.

Andres: – Diz pro seu velho, que se eu contar pro meu velho, ele vem aqui e

transforma o seu em mingau. E depois junta com uma colherinha...

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A forma como Alonso tenta se defender do outro é através da violência

psicológica. Ele ameaça Andres, dizendo que o seu pai havia avisado que, se

Andres o machucasse novamente, ele bateria no rosto do menino, e o mandaria

para o órgão de reclusão de menores. Também, Andres ameaça Alonso dizendo

que o seu pai bateria no pai do outro e o juntaria com uma colherinha, na versão em

português. Percebemos que tanto o texto da versão em espanhol, quanto a tradução

para o português mantêm este diálogo com grande tensão dramática.

A construção ―E meu pai me disse‖, utilizada por Alonso, revela que entre pai e

filho há uma relação de diálogo sobre o que ocorre com Alonso. Já no caso de

Andres, o que fica evidente é que não existe uma relação tão aberta, visto que o

menino formula a frase da seguinte forma: ―Diz pro seu velho, que se eu contar pro

meu velho...‖.

Ainda, quanto a este RD, percebe-se que as duas crianças veem os seus pais

como mais fortes. Alonso utiliza ―... ele vem aqui e te quebra a cara‖. Neste caso,

Alonso sugere que o seu pai é mais forte que Andres e, por isso, poderia ―bater‖ em

Andres.

No discurso de Andres o que se interpreta, na construção ―...ele vem aqui e

transforma o seu em mingau. E depois junta com uma colherinha...‖, é que a sua

figura paterna é a ―melhor‖. A partir desta organização de orações, interpreta-se que

as crianças consideram que o melhor pai, o mais forte, é aquele que submete os

outros indivíduos à violência e a sofrimentos.

Na versão em português há a utilização da expressão ―...e transforma o seu

em mingau‖, já na versão em espanhol a expressão é ―...lo hace picadillo...‖. Ambas

as traduções utilizam expressões para representar o estado como ficaria o pai de

Alonso após o encontro com o pai de Andres, já que utilizam picadillo e mingau. No

entanto, pormenorizando os significados são diferentes.

Em espanhol, chama-se picadillo a qualquer prato cujos ingredientes são muito

picados e, em particular, a um prato tradicional de muitos países latino-americanos e

das Filipinas, feito com carne picada, tomate e outros ingredientes, que mudam em

função da região. Este prato é normalmente servido com arroz, ou recebe recheios

de outras receitas, como os tacos, os croquetes, entre outros.

Já o termo ―mingau‖ refere-se a um alimento de consistência cremosa, feito

usualmente de água ou leite, em que se cozinha um cereal, aveia, farinhas variadas,

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entre outros; muitas vezes, é adoçado com açúcar. É, tipicamente, o primeiro

alimento dado às crianças, quando é necessário algo mais que o leite.

Mesmo Andres não machucando Alonso, após ser ameaçado de violência

física, sua expressão de raiva e desconforto com as palavras ficam evidentes na

apresentação da peça realizada pela Associação Grupo Ninho de Teatro e

Produções Artísticas.

IMAGEM 1: (Fonte: Youtube- apresentação Espetáculo Jogos na Hora da Sesta- Associação

Grupo Ninho de Teatro e Produções Artísticas. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=t35jlPiSOIE&t=2507s. Acesso em 16 ago., 2017).

Dessa forma, Mahieu critica a sociedade que educa seus filhos para que

ameacem os outros. Percebemos que há uma tentativa muito forte,

principalmente de Andres, para dominar o espaço, para marcar território.

Gifford (1997) traz uma definição de territorialidade que se constituiria em

[...] um padrão de comportamentos e atitudes por parte de um indivíduo ou grupo, baseado no controle percebido, pretendido ou real de um espaço físico, objeto ou ideia definíveis, que pode envolver ocupação habitual, defesa, personalização e marcação (GIFFORD, 1997, p.120).

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Na ―brincadeira‖, o espaço é, aos poucos, marcado e definido através de

muitos simbolismos e da prática da violência permeando a relação do grupo. Apesar

de os personagens serem crianças, fica claro que a metáfora se refere à dominação

no mundo adulto. A escritora cria um reflexo do que ocorre na Argentina oprimida

pelo poder do período ditatorial.

A autora do texto, durante entrevista ao Teatro Atómico, na época de estreia da

peça na cidade de Madrid, em 25 de novembro de 2010, afirmou que ―[...] Jogos na

Hora da Sesta seguramente não é uma obra sobre crianças, mas sim sobre adultos.

As crianças são apenas reflexos sem disfarces do que são seus pais [...]‖. E

prosseguiu dizendo que o texto surgiu de observações feitas a partir de

comportamentos vistos no convívio social: ―[...] O que pude observar, e qualquer um

pode observar, é que uma criança saída de um meio onde as pessoas convivem em

harmonia e respeito (me refiro a respeito real e profundo do próximo), é

evidentemente menos agressiva que os outros‖.

A peça é uma obra de temática forte, com discussão de muitas questões

políticas, ideológicas, morais e psicológicas, constituindo-se em uma forte crítica ao

período violento então vivido pela sociedade argentina. Resulta ser uma obra

contemporânea a todas as épocas, visto que a violência é um problema presente

desde o surgimento da humanidade.

A origem do teatro, como a arte da representação, remonta a Atenas, na

Grécia antiga, associado aos cultos de adoração a Dionísio, Deus do vinho e das

festividades. As apresentações podiam ocorrer em lugares livres, ou em estruturas

construídas para aquele fim. Os gregos investiram em palcos semi-arenas para que

todos pudessem assistir às apresentações.

Como uma apresentação artística, o teatro é um fazer que contribui para o

desenvolvimento social e cultural. Alfredo Bosi (2000), professor da Universidade de

São Paulo, afirma que a arte é uma forma de transformar. Diz ele que

A arte é um fazer. A arte é um conjunto de atos pelos quais se muda a forma, se transforma a matéria oferecida pela natureza e pela cultura. Nesse sentido, qualquer atividade humana, desde que conduzida regularmente a um fim, pode chamar-se artística. Para Platão exerce a arte tanto o músico encordoando a sua lira quanto o político manejando os cordéis do poder ou, no topo da escala dos valores, o filósofo que desmascara a retórica sutil do sofista e purga os conceitos de toda ganga

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de opiniões e erro para atingir a contemplação das Ideias. (BOSI, 2000, p.13, grifo do autor).

Vista como transformadora, a arte assume papel significativo na gradação do

nível intelectual da sociedade. Conforme Bosi (2000),

Que a obra de arte deite raízes profundas no que se convencionou chamar ‗realidade‘ (natural, psíquica, histórica), constitui uma destas evidências fulgurantes que deveriam dispensar qualquer discurso demonstrativo, bastando-lhe a constatação a olho nu. (BOSI, 2000, p. 27).

Os apontamentos de Bosi (2000) sobre arte ascendem a partir da ideia de

criação, reconhecendo que o ―conceito de criação (poiesis) é muito amplo, já que

seguramente tudo aquilo que é causa de que algo (seja o que for) passe do não ser

ao ser é criação” (BOSI, 2000, p.14).

Já o escritor e historiador da arte, Arnold Hauser (1973), em sua obra Teorias

da Arte, fala sobre a relação de técnica e força inventiva, que são inseparáveis para

que uma expressão artística resista ao tempo.

Nenhum modo de expressão, por mais pessoal e vital que possa ter sido em outros tempos, poderá reter o seu caráter espontâneo durante mais que um determinado período e, do mesmo modo, nenhuma forma, por mais rígida que seja, começou a sua existência como convenção. Até mesmo o soneto e a pastoral foram invenção de poetas isolados e tornaram-se convencionais à medida que cada vez mais poetas os adotaram e os aplicaram indiferentemente a material adequado e inadequado. Esse processo tem, sem dúvida, os seus perigos, mas uma forma artística não perde necessariamente o valor artístico por se tornar convencional; na verdade, pode ganhar em expressão e adaptabilidade. O monólogo dramático, por exemplo, foi originalmente uma solução notavelmente desastrada e sem atrativos pela dificuldade que surgia quando era necessário relatar acontecimentos que, por qualquer razão, não podiam ser discutidos no diálogo. Mas desenvolveu-se gradativamente no sentido de uma convenção artística útil, em parte pelo fato de as pessoas se terem habituado a esse artifício e não se sentirem incomodadas pela sua artificialidade, mas em parte também porque os dramaturgos descobriram nele a possibilidade de novos efeitos dramáticos. (HAUSER, 1973, p. 427-428).

O drama se apresenta como uma possibilidade de representação de maneira

crítica, reflexiva e com ações dinâmicas. Nesse contexto, os atores e suas atuações

permitem a interpretação dos discursos, através de falas de expressões, gestos, ou

até mesmo pelo seu silêncio.

No caso deste trabalho, o drama em análise coloca em cena um dilema moral,

que sugere às plateias pensarem sobre a realidade cruel e dolorosa de que padece

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grande parte da humanidade, sobre os reflexos dessa realidade sobre a infância e

sobre como agir concretamente para amenizar seus efeitos sobre personalidades

em formação.

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2 EXTERIORIDADE NO DISCURSO: IDEOLOGIA, CONTEXTO HISTÓRICO E

A CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS

2.1 Análise de Discurso: sentidos em “movimento”

Se prestares atenção no teu discurso, perceberás que ele é guiado pelos teus propósitos menos inconscientes.

George Eliot13 A disciplina de Análise de Discurso compreende a exterioridade como

elemento que compõe a Língua a que o Sujeito, mesmo inconscientemente, está

subordinado. Com esta inter-relação, a materialidade da Língua reúne em si o

histórico (através do acontecimento) e o linguístico (através dos arranjos dos

significantes), configurando a maneira como o Sujeito diz e materializa seus

Discursos.

É porque as pessoas sofrem influências de Ideologias que dizemos que elas

são assujeitadas, e não podemos dizer que a Ideologia é ―X‖, mas sim que ela é o

mecanismo que faz com que alguém produza ―X‖.

Lacan, em suas postulações teóricas, retoma a concepção de um Sujeito

imerso na história, determinado socialmente em forma de indivíduo. Salienta que o

Sujeito é imerso na cadeia significante, na história que o constitui e o determina. ―A

psicanálise como corpo teórico tem como objeto de estudo o sujeito na história,

efeito da História e da Cultura‖ (VOLNOVICH, 1991, p. 51). O campo de estudo da

Análise de Discurso é, assim, facilmente definido: é o campo dos sentidos. Com

estes, vêm a Ideologia, os Sujeitos, a Língua e a História.

Nessa linha de pensamento, podemos dizer que a História não pode ser

concebida como cronologia, pois ela está relacionada com o sentido. Qualquer

acontecimento histórico só permanece ―vivo‖ e adquire seu lugar na Memória porque

faz sentido quando suscita uma interpretação; as próprias condições sócio-históricas

constroem outras interpretações ao longo dos tempos, pois não temos acesso aos

13

Apud MARTINS, Helen Fernanda Alves. Emoções que Falam. Goiânia, 19 fev. 2013. Disponível

em: http://emocoesquefalam.blogspot.com.br/2013/02/. Acesso em: 18 jul. 2017.

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57

próprios acontecimentos, devido à barreira do tempo. Na perspectiva psicanalítica, a

interpretação é vista como ―intervenção do analista, que procura fazer surgir um

novo sentido além do manifesto, apresentado por um sonho, um ato falho, ou até

mesmo alguma parte do discurso do sujeito‖ (CHEMAMA, 1995, p. 109).

Quanto a isso, Paul Henry afirma que a História não é cronologia, mas

sentido.

É ilusório colocar para a história uma questão de origem e esperar dela a explicação do que existe. Ao contrário, não há ―fato‖ ou ―evento‖ histórico que não faça sentido, que não peça interpretação, que não reclame que lhe achemos causas e consequências. É nisso que consiste para nós a história, nesse fazer sentido, mesmo que possamos divergir sobre esse sentido em cada caso. Isto vale para a nossa história pessoal, assim como para a outra, a grande História (HENRY, 2003, p. 51-52).

A partir do exposto, podemos dizer que os sujeitos são essencialmente

históricos. Segundo Orlandi,

Diferentemente da análise de conteúdo, a Análise de Discurso considera que a linguagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é: como este texto significa? (ORLANDI, 2015, p.17).

A mesma pesquisadora afirma que ―Nos anos 60, a Análise de Discurso se

constituiu no espaço de questões criadas pela relação entre três domínios

disciplinares que são ao mesmo tempo uma ruptura com o século XIX: a Linguística,

o Marxismo e a Psicanálise‖ (ORLANDI, 2015, p.19). O materialismo histórico

contribui como teoria das formações sociais, compreendidas aí a teoria das

Ideologias; a Linguística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de

enunciação ao mesmo tempo; e a teoria do Discurso, como teoria da determinação

histórica dos processos semânticos. Convém aqui explicitar que estas áreas também

são, de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade (de

natureza psicanalítica).

Orlandi (2015) explicita mais sobre esta articulação entre as três áreas ao

afirmar que,

se a Análise do Discurso é herdeira das três regiões do conhecimento - Psicanálise, Linguística (sic), Marxismo - não o é de modo servil e trabalha uma noção- a de discurso- que não se reduz ao objeto da Lingüística, [...] interroga a Lingüística pela historicidade que ela deixa de lado, questiona o

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Materialismo perguntando pelo simbólico e se demarca da Psicanálise pelo modo como, considerando a historicidade, trabalha a ideologia como materialmente relacionada ao inconsciente sem ser absorvida por ele (ORLANDI, 2015, p. 20).

Cabe aqui situarmos historicamente como se constituiu a disciplina de Análise

de Discurso (doravante Análise de/o Discurso, ou AD). O conceito de História é tão

importante à AD iniciada por Michel Pêcheux que aparece incluído no quadro

constitutivo dessa teoria.

Em relação ao materialismo histórico, Althusser foi responsável por

contribuições relacionadas com o conceito de Ideologia, sendo que elaborou sua

Teoria da Ideologia em Geral sublinhando questões da produção da subjetividade.

Na obra Aparelhos Ideológicos do Estado, ele afirma que a Ideologia está

relacionada com a psicanálise, é uma relação imaginária, estabelecida com as

condições reais existentes, e que se materializa em práticas.

Segundo o teórico, os estudos sobre Ideologia relacionam-se com o

inconsciente, e o conceito de Ideologia deriva dos conceitos do inconsciente e da

fase do espelho (de Freud e Lacan, respectivamente). Neste texto, ele descreve

estruturas e sistemas que exercem poder sobre os indivíduos. Estas estruturas, para

Althusser, são tanto agentes de repressão, como são responsáveis por reproduzir as

relações vigentes, quanto são inevitáveis –sendo assim, é impossível se esquivar

das Ideologias.

Para ele, as Ideologias possuem a função de interpelar os indivíduos como

Sujeitos; assim, a AD entende o indivíduo como assujeitado pela Ideologia. O termo

assujeitamento é definido por Ferreira como

um movimento de interpelação dos indivíduos por uma ideologia, condição necessária para que o indivíduo torne-se sujeito do seu discurso ao, livremente, submeter-se às condições de produção impostas pela ordem superior estabelecida, embora tenha a ilusão de autonomia (FERREIRA, 2001, p. 12, grifo da autora).

Segundo Althusser, os indivíduos vivem na Ideologia e, por isso, não é

possível separar a existência da Ideologia e a interpelação do sujeito por ela. Orlandi

explica que

O que ocorre é um movimento de dupla constituição: se o sujeito só se constitui através do assujeitamento, é pelo sujeito que a ideologia torna-se possível já que, ao entendê-la como prática significante, concebe-se a

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ideologia como a relação entre sujeito, língua e história na produção dos sentidos (ORLANDI, 1999, p. 76, grifo da autora).

Conforme a afirmação da pesquisadora, a Ideologia é resultado da relação

intrínseca entre os Sujeitos, a Língua e a História.

Trazemos agora à discussão contribuições de Althusser acerca da Ideologia e

a manutenção de ordens sociais. Afirma ele que

uma formação discursiva existe historicamente no interior de determinadas relações de classes; pode fornecer elementos que se integram em novas formações discursivas, constituindo-se no interior de novas relações ideológicas, que colocam em jogo novas formações ideológicas. Por exemplo ( e isso seria igualmente objeto de verificação histórica), podemos adiantar que as formações discursivas evocadas acima, desaparecidas enquanto tais, forneceram ingredientes que foram ―retornados‖ em diferentes formas históricas de ateísmo burguês e reapropriados na dominação ideológica da classe burguesa, sob a forma de novas formações discursivas (integrando, por exemplo, certos discursos parlamentares da Revolução de 1789) (ALTHUSSER, 1970, p.33 apud GADET & HAK, 1990, p. 167-168).

Conforme Althusser, as Ideologias ajudam na conservação da ordem social e

na manutenção do poder. Na obra Aparelhos ideológicos do Estado, ele discute a

forma como instituições sociais conseguem se manter com poder. Para ele,

instituições como a Igreja, a escola e a família apresentam discursos ideológicos que

contribuem para essa manutenção. Também, segundo ele, "A ideologia não tem

exterior (a ela)". Sem dúvida, para ele, há diferentes Ideologias, diferentes posições

ideológicas. Assim, podemos afirmar que para o filósofo uma Ideologia tem um

"exterior", mas este exterior também é de outras Ideologias. No meio social há

diferentes Ideologias e posições de pensamento. Com isso, dizemos que se há

teoria que estuda as Ideologias e a sua presença no meio social, o melhor lugar de

estudo e observação do trabalho delas é no ―entremeio".

Dito de outra forma, para Althusser o Sujeito é o Sujeito da Ideologia, o Sujeito

que cresce sem saber que sua constituição é ideológica e é o resultado do trabalho

das Ideologias das Formações Discursivas das quais participa. Para este filósofo,

não há outro Sujeito senão este, da Ideologia. O objetivo dos estudos de Althusser

foi contribuir para a renovação do marxismo e do materialismo histórico com a ideia

de que o Sujeito e a relação ideológica que ele mantém com instituições sociais são

os pontos-chave para compreender melhor a sociedade. O estudioso não busca

simplesmente refletir sobre a relação entre os autores dos enunciados e aquilo que

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ele disse, quis dizer ou disse sem querer. Para ele, analisar um Discurso é

determinar a posição que o indivíduo ocupa, pode ou deve ocupar, para ser Sujeito

de seu Discurso.

A relação entre linguagem e Ideologia explica o porquê de as contribuições de

Althusser terem se tornado importantes para os trabalhos de Pêcheux e da AD. A

teoria de Pêcheux busca analisar a relação que a linguagem mantém com as

Ideologias. Para isto, ele iniciou seus trabalhos a partir da indicação formulada por

Althusser sobre o paraíso entre a evidência da transparência da linguagem e o

"efeito ideológico elementar". Segundo esta ideia, somos Sujeitos.

Com relação aos analistas de discurso, é importante lembrar o ponto de vista

do fundador da teoria. Segundo Pêcheux (1997), ―Em suma, interpretar, para os

analistas do discurso, não é atribuir sentidos, mas expor-se à opacidade do texto‖

(1997, p. 60), ou, como propõe Orlandi, ―é compreender, ou seja, explicitar o modo

como um objeto simbólico produz sentido, o que resulta em saber que o sentido

sempre pode ser outro‖ (1996, p. 64). Ou seja, para esses autores interpretar é

compreender como o Sujeito produz o sentido, pois o Sujeito que articula o Discurso

o elabora a partir da exterioridade e das condições de produção.

Na concepção da Análise de Discurso, segundo Orlandi,

a interpretação é uma injunção. Face a qualquer objeto simbólico, o sujeito se encontra na necessidade de ‗dar‘ sentido. O que é dar sentido? Para o sujeito que fala, é construir sítios de significância (delimitar domínios), é tornar possíveis gestos de interpretação (ORLANDI, 1999, p. 64).

Apresentamos na sequência considerações quanto à noção de Sujeito para a

AD e para a Psicanálise lacaniana. Para a primeira, o foco de análises é o

assujeitamento do Sujeito em relação a estruturas de funcionamento da Ideologia.

Explica-se: o Sujeito se vê como senhor do seu Discurso; no entanto, é um produto

resultante de Ideologias e do inconsciente. Já para a Psicanálise, o Sujeito não é

indivíduo (biológico), mas produto da linguagem, da relação entre os significantes.

Porém, mesmo sendo duas concepções diferentes, não são opostas, ou seja,

apesar de algumas diferenças, para ambas as postulações o Sujeito tem seu lugar,

seja inscrito pelo sistema de produção (Althusser), seja pelas leis da cultura (Lacan).

Nesse sentido, o Sujeito do Discurso não é nem totalmente livre, nem

totalmente determinado por mecanismos exteriores. É, sim, resultado da relação

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com a linguagem e a História. Ele é constituído através de relações com o outro14,

sem ser ele elemento de origem do Discurso, nem fonte única de sentido. Como

esclarece Ferreira, ―ele estabelece uma relação ativa no interior de uma dada

Formação Discursiva (FD); assim como é determinado, ele também a afeta e

determina em sua prática discursiva‖ (2001, p. 7). Assim, sua identidade resultará da

constante necessidade de completude, pois a incompletude é constitutiva do Sujeito.

Por ser uma constante de interpretações por parte dos Sujeitos é que a

História para a Análise do Discurso é produção de sentidos. A posição da História

em relação ao Discurso é interna, pois ela é responsável pela construção dos

sentidos. Conforme Orlandi,

podemos dizer que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Elas 'tiram' seu sentido dessas posições, isto é, em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem (ORLANDI, 2015, p. 42 e 43).

As pesquisas da área da AD remodelaram-se pouco a pouco. A AD de

primeira geração, do início dos anos 60 e início da década de 70, buscava colocar

em evidência as especificidades das Formações Discursivas (mostrando o discurso

socialista, ditatorial, entre outros) que eram apreendidas a partir do vocabulário. Já a

de segunda geração se mostrou ligada as teorias enunciativas e se apresentou

como uma reação sistemática contra a anterior.

Assim como a disciplina de AD, a noção de Discurso também não se

apresenta estável. Por este termo é preciso entender o que Pêcheux chama de

―superfície discursiva‖, que corresponde ao conjunto de enunciados realizados,

produzidos a partir de certa posição; mas também se pode interpretá-lo como o

sistema de restrições que permite analisar a superfície discursiva.

Quanto ao processo de produção do Discurso, destacamos que o ato de se

enunciar constitui como um ato de definir os lugares dos interlocutores. Por exemplo,

a partir do momento da enunciação eu me concedo um lugar, mas também eu

atribuo um lugar ao meu interlocutor.

14O outro, com letra minúscula, refere-se ao sujeito empírico, a pessoa a quem o sujeito se dirige. Já o Outro, com letra maiúscula, é o grande Outro, o da Psicanálise, cujo discurso é o inconsciente, manifesta-se nos sonhos, lapsos e sintomas, pois faz parte da ordem do simbólico.

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Para Pêcheux (1990), num Discurso estão presentes um Sujeito A e um

destinatário B, que se encontram em lugares determinados na estrutura de uma

formação social. Sendo uma prática social que permite a persuasão, os Discursos

podem ser transformados. Eles não só representam os lugares sociais dos

interlocutores, mas também são uma das possibilidades de modificação. Por isso,

dizemos que os Discursos não são meras trocas de informações, mas atos que

podem ser vistos como um jogo de ―efeitos de sentido‖ entre os participantes.

O imaginário, que é o social, confere as relações aos interlocutores a partir do

resultado das relações entre poder e sentidos. Nesse contexto, as Ideologias são as

responsáveis por fazer com que nossos Discursos produzam efeitos de sentidos,

que podem ser observáveis na materialidade linguística, e as práticas discursivas

trabalham para que haja a ilusão de que o efeito de sentido constituído seja único. A

ilusão de autoria do que falamos existe, como veremos mais adiante, devido ao

Esquecimento n 1 (este esquecimento dá ao sujeito a ilusão de que ele é a fonte

única do sentido) e o Esquecimento n 2 (que é responsável para que o Sujeito

pense que tem domínio do que diz).

Segundo Indursky (1994), essas duas ilusões apontam para a questão da

constituição ideológica e psíquica do Sujeito do Discurso. Desse modo, há um

processo de constituição do Sujeito que está estreitamente ligado com o imaginário

e o simbólico.

Para o sistema de lugares, esta organização é essencial, visto que pensamos

em termos de Formações Discursivas. Michel Foucault, filósofo, historiador das

ideias, teórico social e crítico literário, contribuiu para a teoria da AD com o conceito

de Formação Discursiva. Trata-se de ―determinar qual é a posição que pode e deve

ocupar cada indivíduo para dela ser o sujeito‖ (FOUCAULT, 1972, p.126). Dessa

forma, a teoria do Discurso é uma teoria do Sujeito no momento da enunciação, no

momento do efeito da enunciação. Esta instância de subjetividade enunciativa

possui duas interfaces, uma que constitui o indivíduo como Sujeito do seu Discurso

e outra que o torna assujeitado.

Ao mesmo tempo em que submete o indivíduo às suas regras, a subjetividade

também torna um Discurso legítimo. Para a AD não é possível desvincular o Sujeito

de seus Discursos.

Para Foucault (1972),

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O sujeito do enunciado não é a causa, origem ou ponto de partida do fenômeno de articulação escrita ou oral de um enunciado e nem a fonte ordenadora, móvel e constante, das operações de significação que os

enunciados viriam manifestar na superfície do discurso. (FOUCAULT, 1972,

p.93).

Pensamos, então, as Ideologias fazendo sentido. Não devemos concebê-las

como ―visão de mundo‖, mas como um modo de organização dos Discursos dos

Sujeitos em uma dada realidade.

Podemos dizer que a Ideologia é a condição para a constituição dos Sujeitos

e dos sentidos. Assim como ―[…] não há discurso sem sujeito. E não há sujeito sem

ideologia. Ideologia e inconsciente estão materialmente ligados. Pela língua, pelo

processo que acabamos de descrever‖ (ORLANDI, 2015, p. 47).

Orlandi (2015), em sua obra Análise de Discurso: princípios e procedimentos,

fala sobre os estudos da linguística e afirma que uma linguística imanente, que se

limita a estudar o interno da Língua, não poderá dar conta de seu objeto. Segundo

ela, ―É necessário que ela traga para o interior mesmo do seu sistema um enfoque

que articule o linguístico e o social, buscando as relações que vinculam a linguagem

à ideologia‖ (ORLANDI, 2015, p. 9).

A AD oferece uma grande quantidade de contribuições sobre a estrutura de

um texto ou de um determinado tipo de texto, ou, ainda, sobre o papel de cada

elemento linguístico nessa estrutura. O campo da Análise do Discurso se fortaleceu

a partir de trabalhos do linguista americano Z.S. Harris. Em 1952, ele assim a

descrevia:

A análise do discurso dá uma multiplicidade de ensinamentos sobre a estrutura de um texto ou de um tipo de texto, ou sobre o papel de cada elemento nessa estrutura. A linguística descritiva descreve apenas o papel de cada elemento na estrutura da frase que o contém. A AD nos ensina, além disso, como um discurso pode ser construído para satisfazer diversas especificações, exatamente como a linguística descritiva constrói refinados raciocínios sobre os modos segundo os quais os sistemas linguísticos podem ser construídos para satisfazer diversas especificações. (HARRIS, 1952, p.22 apud MAZIÉRE, 2007, p. 7).

Em AD, enunciado é um dado e Discurso é efeito de sentido entre

interlocutores que possibilita investigações interpretativas. Essa passagem nos

mostra que os estudos produzidos em AD tiveram contribuições da Linguística.

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Além disso, é importante destacar que o Sujeito da AD é um ―lugar de sujeito‖

que pode ser investigado em função de sua posição quanto à Língua, e dentro da

Formação Discursiva em que se constitui.

Sendo assim, não é apenas a História que existe para a constituição de

indivíduo em Sujeito, mas também o Sujeito se apresenta como agente construtor e

transformador da História.

2.2 A exterioridade na constituição do sujeito discursivo

Para a realização deste trabalho de pesquisa, um olhar para a exterioridade é

fundamental para compreender os Sujeitos dos Discursos da peça de teatro que

constitui o corpus sob análise.

É essencial falarmos sobre um conceito muito importante para a disciplina de

AD, o conceito de Formações Discursivas. Este, para a AD, apresenta-se como ―a

matriz de sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que

não pode e não deve ser dito‖ (COURTINE, 1994 apud FERREIRA, 2001, p.15).

Também, trazemos a concepção de Michel Foucault, teórico e crítico social,

que entende Formação Discursiva como ―um conjunto de regras anônimas,

históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma

época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as

condições de exercício da função enunciativa‖. (FOUCAULT, 2008, p.153).

Para a AD, as Formações Discursivas funcionam como uma forma de

organizar as enunciações e determinar os Discursos.

É de ressaltar que mesmo não sendo profissionais, a todo o momento nos

apresentamos como analistas, pois estamos analisando e buscando o significado do

que lemos, ouvimos ou vemos. No entanto, o que diferencia um profissional analista

do discurso é a busca por explicitar como um objeto simbólico produz sentido e o

pensamento de que o sentido sempre pode ser outro e, possibilita outras

interpretações. Por isso, para o analista do discurso é importante compreender a

Formação Discursiva em que é produzido o Discurso e de quais Formações

Discursivas o Sujeito traz marcas ideológicas.

Lembremos que o processo de interpelação do indivíduo em Sujeito ocorre a

partir da existência de Ideologias. O funcionamento da Ideologia neste processo de

interpelação se realiza, então, através do complexo das Formações Ideológicas,

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mais especificamente através do Interdiscurso15 que, de forma intrínseca, está neste

complexo e fornece a cada Sujeito uma realidade de evidências e significações.

Quanto ao Interdiscurso, Jean-Jacques Courtine afirma:

O interdiscurso de uma FD deve assim ser pensado como um processo de reconfiguração incessante pelo qual o saber de uma FD é conduzido, em função das posições ideológicas que esta FD representa em uma conjuntura determinada, a incorporar os elementos pré-construídos produzidos no exterior dela mesma, para gerar sua redefinição ou retorno; para suscitar também a retomada de seus próprios elementos, a organizar a repetição, mas também para lhe provocar, eventualmente, seu apagamento, esquecimento ou mesmo sua degeneração. O interdiscurso de uma FD, como instância de formação/repetição/transformação dos elementos do saber daquela FD, pode ser referido como aquele que rege o deslocamento de suas fronteiras. (COURTINE, 1982, p. 250).

O conceito de Ideologia permite pensarmos o homem como ser ideológico e

social. Por isso, interpretar o Discurso é interpretar o Sujeito, pois os Discursos são

únicos e constituem os seres sociais e a constituição dos sentidos se junta à

constituição dos Sujeitos. Em meio a isso, também é substancial pensar estes

Sujeitos como constituídos também por Ideologias presentes no inconsciente e em

mais de uma Formação Discursiva, o que permite que as Ideologias interajam e

façam com que os limites das fronteiras de uma FD sejam alargados.

Sobre o papel da Ideologia e do inconsciente, Pêcheux (2009), na obra

Semântica e Discurso, afirma que

o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências ´subjetivas´, devendo entender-se este último adjetivo não como ´que afetam o sujeito´, mas ´nas quais se constitui o sujeito´ (PÊCHEUX, 2009, p. 139, grifos do autor).

Pêcheux contribui com seus estudos para mostrar que os Sujeitos se

constituem na subjetividade e a Ideologia e o inconsciente, possuindo o caráter de

dissimular sua própria existência, permitem que os Sujeitos tenham a ilusão de

serem autores e origem dos Discursos.

15Segundo Ferreira (2005, p.17) o Interdiscurso compreende o conjunto das formações discursivas e se inscreve no nível da constituição do discurso, na medida em que trabalha com a ressignificação do sujeito sobre o que já foi dito, o repetível, determinando os deslocamentos promovidos pelo sujeito nas fronteiras de uma formação discursiva. O interdiscurso determina materialmente o efeito de encadeamento e articulação de tal modo que aparece como o puro ―já-dito‖.(grifos da autora).

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Isso acontece devido a dois processos psíquicos denominados ―Esquecimento

nº 1‖ e ―Esquecimento nº 2‖. Por ―Esquecimento nº 2‖ concordamos em chamar o ato

do Sujeito-falante de selecionar, no interior de uma determinada Formação

Discursiva, que se apresenta como dominante, formas e sequências determinadas

para atingir seus objetivos discursivos.

Para Pêcheux este Esquecimento é de caráter pré-consciente ou

semiconsciente. Dessa forma, o Sujeito privilegia algumas formas enunciativas e

―apaga‖ outras no momento de escolha do Discurso. Com isso, o Sujeito pensa que

o que ele diz tem apenas um significado e que os interlocutores compreenderão

suas intenções e sua mensagem da mesma forma. O ―Esquecimento n 2‖ situa-se

na fronteira entre o dito e o não-dito, haja vista que o dizer pode ser outro. Ou seja,

quando falamos (utilizamos a linguagem), e fazemos de uma forma e não de outra,

acreditamos que podemos dizer apenas com aquelas palavras e não com outras.

Por isso, o modo de dizer não é indiferente aos sentidos, somos seres sócio-

históricos e de linguagem e, como históricos falamos de uma posição histórica e isso

também nos confere certos limites para a utilização da linguagem, pois as

faculdades da língua também condicionam as formas como os Sujeitos a utilizam.

Já quanto ao ―Esquecimento n 1‖, Pêcheux (2009) esclarece:

Apelamos para a noção de ´sistema inconsciente´ para caracterizar um outro ´esquecimento´, o esquecimento nº I, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no interior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o esquecimento nº I remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que esse exterior determina a formação discursiva em questão (PÊCHEUX, 2009, p. 162, grifos do autor).

Conforme o mesmo autor, o ―Esquecimento nº 1‖ é aquele em que o Sujeito se

coloca como origem de tudo o que diz. Esse esquecimento é de natureza

inconsciente e ideológica: o Sujeito procura rejeitar, apagar, de modo inconsciente,

tudo o que não está inserido na sua Formação Discursiva, o que lhe dá a ilusão de

ser o criador absoluto de seu discurso.

A ideia de um Sujeito que tem a ideia de centro, de ser a origem dos Discursos

e dos sentidos, constitui-se, no entanto, como um pensamento necessário para que,

segundo Pêcheux, o Sujeito continue a produzir Discurso. Mesmo assim, este

Sujeito, como origem do sentido, passa a ser questionado devido a este ―situar seu

Discurso em relação aos Interdiscursos‖, em relação aos Discursos do outro e, por

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ser um Sujeito essencialmente ideológico e histórico e por viver em um determinado

espaço e tempo, o seu Discurso está imbricado com a exterioridade que o constitui e

determina.

A partir disso, relembramos a tarefa do analista do discurso que, segundo

Pêcheux, deve procurar interpretar o Discurso considerando sua opacidade. Ainda,

segundo o criador da AD, ―a interpretação é um ―gesto‖, isto é, um ato no nível

simbólico. É o lugar próprio da ideologia em que a interpretação é ‗materializada‘

pela história‖ (PÊCHEUX, 1997, p.55-56).

O trabalho do analista do discurso se mostra como uma tarefa delicada e de

importância social significativa, já que busca interpretar o gesto simbólico fazendo

sentido. Esta é uma das razões pela qual compreendemos a teoria de Análise do

Discurso (AD) como sendo de grande relevância social, pois, além de ser base para

a interpretação dos Discursos, é uma das bases que permitem que possamos

buscar a compreensão de nossa história, de nossa cultura e, acima de tudo, de nós

mesmos.

A disciplina de AD nos permite pensar sobre a constituição dos Sujeitos e

principalmente como as Ideologias chegam até estes. Além disso, faz-nos pensar

que não podemos olhar de forma inocente para o nosso entorno. Para

compreendermos o que está próximo de nós e para nos compreendermos é

necessário um olhar crítico e questionador.

A seguir, apresentamos reflexões sobre a Língua enquanto produto social e

histórico.

2.3 Análise de Discurso, língua e história

As línguas se constituem como produto social, histórico e cultural. Não é

possível dissociá-la desta relação devido à forma como se constitui. As línguas,

sendo um produto social, têm formas particulares vinculadas com a história e a

sociedade. Assim, justifica-se a existência das disciplinas de interpretação. Michel

Pêcheux (1997), afirma que

É porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio ao linguajeiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes

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de significantes (1997, p. 54, grifo nosso).

Sempre haverá o outro, ou o Outro, em nosso convívio e em nossos discursos

e, essa existência permite que nos vejamos como historicamente marcados pela

existência dos outros e Outros. Essas filiações históricas e esse tipo de organização

de significantes nos mostram que somos constituídos de memórias e discursos e

nos permitem o sentimento de unicidade. Por isso, as disciplinas de interpretação

mostram-se tão importantes para o conhecimento dos sujeitos, da história, da cultura

e das memórias.

O trabalho orientado pela AD é compreender o texto, o enunciado, e a

linguagem fazendo sentido no discurso, na história e na cultura. Por isso, para

analisar o discurso, é importante conhecer a cultura, o momento histórico e a

história, além da língua, vista aqui como idioma. Também, não se deve deixar de

lado o inconsciente e os elementos simbólicos significantes para os sujeitos, as

vivências e as ideologias que os constituem.

Michel Pêcheux compreende o Discurso como um acontecimento e ligando

acontecimento e Memória. Para lembrar o que diz Pêcheux, trazemos sua reflexão

sobre a fragilidade do processo de inscrição do acontecimento no espaço da

Memória. Segundo ele, o processo ocorre de duas formas: ―o acontecimento que

escapa à inscrição, que não chega a inscrever-se; e o acontecimento que é

absorvido na memória como se não tivesse ocorrido‖ (ORLANDI, 2012, p. 65).

Ainda sobre a construção da Memória e a relação Discurso e Memória,

contrariando uma concepção estrutural (foucaulteana) da discursividade, Orlandi

(2012) lembra Pêcheux que, em sua obra Discurso em Análise: sujeito, sentido,

ideologia, afirma que

o discurso não é independente das redes de memórias e dos trajetos sociais nas quais ele irrompe, mas, só por sua existência, ele marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e trajetos. É um efeito das filiações sócio-históricas de identificação e, ao mesmo tempo, um trabalho de deslocamento no seu espaço. (ORLANDI, 2012, p. 57).

Para a AD, referir-se à História é pensar o trabalho da Ideologia sobre as

práticas dos Sujeitos. É afirmar que o que movimenta a construção da História é a

defesa de Ideologias. Para sustentarmos o que estamos afirmando, tomamos como

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exemplo uma narrativa de acontecimentos; são possíveis várias narrativas, pois

cada uma delas estará de acordo com a relação do autor com os fatos que narra.

Conforme a definição de Orlandi (2015, p. 25), a AD é uma disciplina de

entremeio; ela se faz na contradição da relação entre as outras disciplinas,

principalmente no campo da intersecção entre as Ciências Sociais e a Linguística.

Sua especificidade está, sobretudo, na leitura que faz sobre a noção de ideologia,

conceito que atravessa suas formulações teóricas.

Na obra O Discurso: Estrutura ou Acontecimento, Michel Pêcheux afirma que

um dos maiores problemas é determinar, nas práticas de análise do discurso, o lugar

e o momento de interpretação em relação aos momentos da descrição. Afirma,

ainda, que: ―A análise do discurso, tal como ela se desenvolve atualmente [...], se dá

precisamente como objeto explicitar e descrever montagens, arranjos sócio-

históricos de constelações de enunciados‖ (PÊCHEUX, 2012, p. 60).

Defende ele, também, que a Análise do Discurso não trabalha com um ser

onipotente e nem com um sistema totalmente autônomo. Conforme diz, o Discurso é

um efeito de sentidos entre interlocutores. Sendo assim, é um objeto sócio-histórico

em que a língua, o linguístico, está pressuposto.

2.4 Discurso e Ideologia: uma questão de “fidelidade” na tradução?

As contribuições do materialismo histórico para a disciplina de AD e para os

trabalhos de Michel Pêcheux foram significativas, principalmente quando se refere à

relação entre Discurso e Ideologia.

O Discurso, como instância carregada de significações e Ideologias, apresenta-

se como uma das melhores possibilidades para ajudar na manutenção do poder das

instituições. Inicialmente, pode-se pensar em um discurso único e com uma única

significação, mas essa ideia é abandonada quando entramos em contato com a

disciplina de AD. Por isso, consideramos esta disciplina e suas reflexões como

essenciais para quem deseja pensar criticamente a sociedade.

O Discurso pode carregar sentidos diversos. No entanto, a produção de sentido

é realizada através dos Discursos, que se apresentam como uma prática histórica e

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esta também é uma prática ideológica que segue regras de uma determinada

sociedade.

De Certeau (2002), ao se referir aos discursos, define-os como históricos

porque estão ―ligados a operações e definidos por funcionamentos‖ e ainda porque

―também não se pode compreender o que dizem independentemente da prática de

que resultam‖. (CERTEAU, 2002, p. 32).

Por isso, dizemos que a História está ligada às práticas que fazem com que os

discursos se inscrevam no tecido histórico e social e não ao tempo cronológico em

si. Segundo Orlandi, a História ―se organiza tendo como parâmetro as relações de

poder e de sentidos, e não a cronologia: não é o tempo cronológico que organiza a

história, mas a relação com o poder (a política)‖ (2008, p.42 apud LAGAZZI, 2011,

p.69).

Orlandi (2009) defende que a Ideologia da classe dominante não se torna

dominante pela ―graça do céu‖. Ela explica o que isso quer dizer:

os aparelhos ideológicos de Estado não são a expressão da dominação, isto é, da ideologia da classe dominante (sabe Deus onde a ideologia dominante obteria, então, sua supremacia!), mas sim que eles são seu lugar e meio de realização: ‗é pela instalação dos aparelhos ideológicos de Estado, nos quais essa ideologia [ a ideologia da classe dominante] é realizada e se realiza, que ela se torna dominante [...]‘ (ORLANDI, 2009, p.131).

É através dos aparelhos ideológicos de Estado que a Ideologia se realiza e se

torna dominante. Isso não quer dizer que estes aparelhos ideológicos do Estado são

somente instrumentos das classes dominantes, mas sim que estas instituições

contribuem para reproduzir as relações de poder existentes. Por isso, é nestes

aparelhos que há uma ininterrupta luta de classes e dominação, pois a dominação

destes aparelhos indica também a manutenção do poder e maior influência social,

visto que se mostram como o lugar e com as condições ideológicas de transformar e

dominar as relações de produção.

No entanto, Foucault diz que temos de deixar de descrever sempre os efeitos de

poder em termos negativos: ele ―exclui‖, ―reprime‖, ―recalca‖, ―censura‖, ―abstrai‖,

―mascara‖, ―esconde‖. Na verdade, ―o poder produz; ele produz realidade; produz

campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se

pode ter se originam nessa produção‖ (FOUCAULT, 2006, p.161).

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Para o progresso social e intelectual, o estabelecimento de relações políticas é

essencial. Falar de luta de classes é falar de nossas lutas diárias, tanto por nossos

direitos quanto pelos deveres de todos. Sabemos que esta luta é, sobretudo,

ideológica.

Na ordem do dia, a globalização ―é o destino irremediável do mundo, [...] afeta a

todos na mesma medida e da mesma forma‖, ela ―tanto divide como une; divide

enquanto une e as causas da divisão são idênticas às que promovem a

uniformidade do globo‖ (BAUMAN,1999, p. 7-8).

Considerando a importância do real histórico e que ele participa na significação

da compreensão dos Discursos, podemos afirmar que o que possibilita a

compreensão dos sentidos é a Memória Discursiva.

Trazemos a citação de Pêcheux que vem ao encontro de nossas reflexões.

Segundo ele,

Considerando que o real histórico faz pressão, lembro que ele faz com que algo irrompa nessa objetividade material contraditória (a ideologia). O que foi censurado não desaparece de todo, Ficam vestígios, de sentidos in-significados e que têm com a memória discursiva uma relação equívoca com as margens dos sentidos. [...] Memória aqui entendida como entendemos na análise dos discursos, não a memória psicológica, mas ‗nos sentidos entrecruzados da memória do historiador‘ (PÊCHEUX, 2010, p. 50).

Além do conhecimento da Memória Discursiva, para analisar o Discurso é

essencial o conhecimento dos elementos exteriores a ele. É bom lembrar: na AD,

não menosprezamos a força que o Imaginário tem na constituição do dizer. ―O

imaginário faz necessariamente parte do funcionamento da linguagem. Ele é eficaz.

Ele não ‗brota‘ do nada: assenta-se no modo como as relações sociais se inscrevem

na história e são regidas, em uma sociedade como a nossa, por relações de poder‖

(ORLANDI, 2015, p.42).

Considerando que, para analisar um Discurso e compreender sua significação

é essencial conhecer o contexto em que vive o sujeito, observamos que conhecer a

cultura, os modos de organização familiar ou de vida em sociedade, como exemplo,

se a sociedade é socialista ou capitalista, prestar atenção nas formas de expressão,

além de visualizar ou escutar a frase em si, são as únicas formas de realizar uma

análise de discurso realmente coerente com a teoria de Michel Pêcheux.

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A partir disso, vemos que o trabalho do analista do discurso exige dedicação

e olhar crítico, sendo essencial para muitas áreas. Neste trabalho, que tem como

Discurso um texto dramático, apresenta-se como desafio realizar a Análise dos

Discursos dos personagens-chave da trama da peça dramática Juegos a la hora de

la siesta na TLCE e da tradução para o português, TLCP.

O objetivo foi a realização de um trabalho que pudesse contribuir para o

desenvolvimento crítico e científico do Discurso que vaza pela voz das personagens

dos diálogos, talvez vindo a contribuir com estudiosos da teoria que tenham

interesse em acessá-lo pela proposta discursivo-comparatista que contém.

Considerando que a análise pretendida envolve a linguagem teatral e também

um momento muito significativo da política argentina, partimos da premissa de que

nenhum Discurso é inocente e que este, o Discurso teatral da dramaturga Roma

Mahieu, também não se apresenta dessa forma, mas sim que ele pode ser uma

maneira de referir aquilo que no dado momento de seu surgimento possa ter sido

visto como uma forma de expressão social.

Portanto, este trabalho recupera o pressuposto de que todo Discurso faz parte

de um momento histórico, e que só pode ser compreendido se lançarmos um olhar

sobre a Memória social de uma comunidade e sua História.

Ainda quanto à Memória e à História, Achard afirma que ―a memória não pode

ser provada, não pode ser deduzida de um corpus, mas ela só trabalha ao ser

reenquadrada por formulações no discurso concreto em que nos encontramos‖

(ACHARD, 1999, p. 8).

A partir disso não podemos analisar Discurso, Memória e História

separadamente, mas sim, precisamos levar em consideração que estes três itens

estão de tal maneira entrelaçados que é um engano vê-los separadamente.

Jean Davallon aponta, na obra Papel da Memória, que

depois do aparecimento da imprensa, o desenvolvimento dos meios de registro da imagem e do som como fatores que deslocam a questão da memória social, que não se encontraria mais nas ≤cabeças≥ dos indivíduos, mas nas mídias[...] Davallon lança a hipótese de que os objetos culturais (livros, escritos, imagens, filmes, arquiteturas, etc.), como operadores de memória social, trabalham no sentido de entrecruzar memória coletiva (lembrança, conservação do passado, foco da tradição, monumento de reminiscência) e história (quadro dos acontecimentos, conhecimento, documento histórico) (DAVALLON& ACHARD, 1999, p. 9).

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Davallon lança a hipótese de que os objetos culturais são operadores de

Memória social. Assim, também nós partimos deste pressuposto, levando em

consideração que a peça Juegos a la hora de la siesta foi escrita em um momento

político conturbado para a Argentina.

2.5 Tradução literária e Análise do Discurso

O diálogo entre a Análise do Discurso e a Tradução possibilita pensarmos os

processos discursivos em diferentes materialidades. A Literatura (tomada em sua

generalização) congrega a relação do homem com a língua. Segundo Compagnon

(2012, p 31), ―exercício de reflexão e experiência de escrita, a Literatura responde a

um projeto de conhecimento do homem e do mundo‖. A Língua é tão importante

para a disciplina de Análise do Discurso que aparece na tríade de formação

enquanto disciplina - língua, história e psicanálise.

Para a AD, é através da Língua que os Sujeitos manifestam seus Discursos, e

é com estes que as Ideologias se materializam.

O Sujeito, identificado em uma posição-sujeito, aciona, através da Memória

Discursiva, os Discursos já-ditos, em outros momentos e em outros tempos, que

ficaram materializados na história. A AD compreende o Sujeito, que se envolve na

produção de um tecido discursivo, enquanto sujeito-autor, e aquele que o interpreta

como sujeito-leitor.

O texto se apresenta como uma ilusão de unidade e completude. Para a AD, a

análise do texto não deve ficar apenas no nível linguístico, mas é preciso vê-lo

relacionado com o discursivo e o histórico. O analista do discurso, segundo

Mittmann (2007, p. 153), ―não faz uma descrição do texto, mas uma teorização sobre

o discurso‖.

O texto literário, dessa forma, é o resultado, na Língua, da relação do Sujeito

com a História, sendo esta que envolve e constitui os elementos linguísticos,

proporcionando-lhes a capacidade de se tornarem texto.

A Literatura, portanto, apresenta-se como um modo próprio de materialização

do Discurso, permitindo uma ligação primordial dos Sujeitos com suas próprias

subjetividades e com a impossibilidade de tudo dizer. Conforme Pêcheux (2006,

p.53), a literatura não pode ser encarada à parte do trabalho com o textual, como

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mero exercício criativo ou fruitivo, mas sim, como materialidade linguística, portanto,

atravessada pela história e ideologicamente determinada.

Com a aproximação entre a AD e a Literatura, tem-se a evidência de que

também no discurso literário a língua não pode ser vista como transparente e tida

como resultado literal dos espaços estabilizados, mas apresentando opacidade,

sendo espaço de materialização de discurso.

Deste modo, o texto é determinado ideologicamente e caracteriza-se como

tecido histórico e lugar de materialização do discurso. Quanto à tarefa do tradutor,

Arrojo (1993) afirma que ela não deve ser vista como uma simples transposição de

significado e salienta que

nenhuma tradução pode ser exatamente fiel ao ―original‖ porque o ―original‖ não existe como um objeto estável, guardião implacável das intenções originais de seu autor. Se apenas podemos contar com as interpretações de um determinado texto, leituras produzidas pela ideologia, pela localização temporal, geográfica e política de um leitor, por sua psicologia, por suas circunstâncias, toda tradução somente poderá ser fiel a essa produção. De maneira semelhante, ao avaliarmos uma tradução, ao compararmos o texto traduzido ao texto ―original‖ estaremos apenas e tão somente comparando a tradução à nossa interpretação do ―original‖ que, por sua vez, jamais poderá ser exatamente a ―mesma‖ do tradutor. (ARROJO, 1993, p. 19-20).

Assim, confirma-se que a interpretação é que torna limitada a tarefa do tradutor

e esta limitação está na compreensão do que ele lê no texto, já que realiza a

interpretação a partir de seus conhecimentos, tanto de línguas quanto de mundo.

Seguindo a perspectiva da AD, a tradução, enquanto processo tradutório, deve

ser vista como produção de Discurso, levando-se em conta as condições de

produção, isto é, as condições históricas de constituição do Sujeito e dos

enunciados. Dessa forma, a AD ajuda o tradutor a perceber equivocidades e

evidencia sua função, que é analisar/interpretar o processo de produção de sentidos

que um texto desencadeia.

Pelo viés discursivo, a tradução é inicialmente definida por Mittmann (2003, p.

42) como processo de produção de um discurso que se materializa no texto da

tradução, e que tem como especificidade partir da leitura de um texto específico

anterior, o texto original.

Nesse contexto, o tradutor é produtor de texto, indivíduo que, assim como o

autor do texto original, está inserido em um dado momento histórico e que é

determinado por questões ideológicas.

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Como já referimos, o Discurso apresenta-se como produção de sentido entre

interlocutores, e a ideia de que a tradução é apenas o transporte de sentido,

mensagem, ou ainda, das intenções do autor, torna-se contraditória, pois tanto o

autor do texto original quanto o do traduzido são produtores de sentido. No entanto,

o tradutor não é considerado um Sujeito que produz sentido a partir do ―nada‖, mas

ele também está inserido em dadas Formações Discursivas (FDs) que o determinam

pelo processo de interpelação. Nossa intenção, nesta altura, é apresentar o tradutor

como produtor do texto e não apenas como codificador de mensagens. Afinal, o

texto para a AD é visto como Discurso e não como mensagem.

Segundo Mittmann (2003),

É preciso considerar a interpelação que transforma este individuo tradutor em sujeito tradutor, que não está fora de seu discurso, controlando-o, mas se inscreve no discurso como uma posição-sujeito. A interpelação causa não só o efeito de reconhecimento do indivíduo como sujeito de seu discurso e do sentido como único, universal e transparente, mas também o efeito de desconhecimento do próprio fato da interpelação e dos outros sentidos possíveis que estão presentes no interdiscurso. É a interpelação – que se realiza na Formação Discursiva – que gera a ilusão de que o sujeito tradutor sabe do que fala como deve falar e que está apenas reproduzindo os sentidos que supõe estarem contidos no texto original. Esta ilusão é necessária para que o processo tradutório se realize. (MITTMANN, 2003, p. 173).

O processo de interpelação cria a ilusão de que o tradutor compreende o

significado do texto original. O que ocorre, no entanto, é que ele realiza uma das

interpretações possíveis oferecidas pelo Interdiscurso.

O Interdiscurso é definido por Pêcheux (2009) como o que fala antes, em

outro lugar, independentemente do que está na base de todo o dizer (Intradiscurso)

e se apresenta sob a dominação do complexo das Formações Ideológicas. As

Formações Ideológicas (FIs) são representadas pelas Formações Discursivas (FDs)

que, devido à luta de classes, determinam o que pode e deve ser dito. Daí dizer que

"as palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu sentido da formação

discursiva na qual são produzidas [...]" (PÊCHEUX, 2009, p. 160-161).

Desse modo, o indivíduo, inscrito em uma dada Formação Discursiva, é

interpelado em Sujeito de seu Discurso, e pode sustentar uma posição discursiva.

Nesse contexto, o processo de interpelação se realiza de forma inconsciente, de

maneira que o Sujeito não tem conhecimento do exterior determinando seu

Discurso.

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Pêcheux define duas formas de Interdiscurso: "pré-construído" e "articulação".

O pré-construído, já colocado por nós na definição de Sujeito, é um efeito discursivo

de Memória, o que nos "fornece-impõe a 'realidade' e seu 'sentido' sob a forma da

universalidade" (PÊCHEUX, 2009, p. 164). Já a articulação estabelece, a uma

relação, uma forma de encadeamento, de enunciados que atravessam o Discurso,

sob forma de Discurso transverso, com os efeitos do pré-construído, produzindo as

evidências de sentido.

Segundo Courtine, o conceito de Iinterdiscurso de uma formação discursiva é

um ponto crucial da teoria desenvolvida por Pêcheux, porque é a partir da teorização

do interdiscurso que podemos analisar o assujeitamento do sujeito (COURTINE,

1981, p. 35).

Como, além da interpelação, a Ideologia também gera a ideia de unicidade,

parece que o texto traduzido é apenas uma reprodução do original. Nessa

perspectiva,

A noção de posição-sujeito nos permite considerar que o discurso da tradução é constitutivamente heterogêneo, pois apresenta a posição-sujeito do autor, do tradutor e de tantas outras advindas do interdiscurso. Permite-nos ainda ressaltar que a posição-sujeito do autor é, na verdade, a imagem que o tradutor e o leitor fazem dessa posição, e que o tradutor não é um enunciador homogêneo, centralizado, mas funciona aí uma função tradutora, que é responsável pela ilusão de unidade e pelo efeito de correspondência por aquilo que considera o ―seu‖ dizer. (MITTMANN, 2003, p. 174).

Com isso, destacamos que a interpelação pela FD e o Interdiscurso possibilita

que haja a produção de novos discursos. Desse modo, a tarefa do tradutor é, além

de muito desafiadora, uma prática que contribui para a expansão dos estudos sobre

Literatura e Cultura, e a AD, nesse sentido, proporciona a base teórica para que,

tanto os campos da Tradução, da Literatura, quanto da própria AD possam ampliar

suas pesquisas. Rosângela Fachel de Medeiros, no texto A transculturação como

estética dos Cinemas Latino-americanos, propõe o reconhecimento das ações do

―contrabando‖ e da ―tradução‖ como ferramentas de transculturação, na configuração dos

Cinemas Latino-americanos, e como estética para as produções.

O etnólogo e antropólogo cubano Fernando Ortiz (1940), em Contrapunteo

cubano del tabaco y el azúcar, trabalha com o conceito de transculturação,

relacionando-o com o processo de constituição do ser humano. Ele concebe que

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O vocábulo transculturação expressa melhor o processo de transição de uma cultura para outra, porque este processo não consiste somente em adquirir uma cultura diferente, o que, a rigor, significa o vocábulo anglo-saxão acculturation, porém o processo implica [...] na perda, no desenraizamento de uma cultura anterior, o que se poderia chamar de uma desculturação parcial, e, além do mais, significa a criação conseqüente de novos fenômenos culturais, que se poderiam denominar neo-culturação [...] em todo enlace de culturas ocorre o mesmo que na cópula genética dos indivíduos: a criança sempre tem algo de seus progenitores, mas sempre algo diferente de cada um dos dois. Na sua totalidade, o processo é uma transculturação, e esse vocábulo compreende todas as fases da sua parábola. (ORTIZ, 1940, p. 142).

Nessa perspectiva, Larissa Paula Tirloni (2013), afirma que ―os ‗transculturadores‘

seriam os responsáveis pelo enlace de culturas, auxiliando na permanência desse

equilíbrio, ou seja, na manutenção de uma heterogeneidade cultural‖.

Quanto ao processo de transcriação, Tirloni (2013, p. 38) afirma que ―as soluções

encontradas para que o texto transcriado se mantenha esteticamente semelhante ao original

não diminuem sua legitimidade‖, e que, nesse processo de transcriação, ―cabe ao tradutor a

tarefa de também ser um artesão, visto que traduzir é um intenso trabalho de criação‖. Nesta

perspectiva, o tradutor é autor criador de um texto em uma nova cultura, e a tradução é um

texto novo, uma criação do tradutor/leitor que a partir do texto 1.

Segundo Medeiros (2012, p.15), ―o contato e a articulação entre as diferentes culturas

no território latino-americano ocorrem principalmente graças à tradução e ao contrabando‖.

Quanto à participação da tradução e do contrabando para a formação do ―novo‖, ela afirma:

A criação do ―novo‖ na América Latina (e na América como um todo) sempre ocorreu a partir de elementos culturais advindos de diversas origens. Os fenômenos de hibridação de materiais culturais e de subversão de modelos estão na gênese das manifestações culturais latino-americanas e implicam sempre o cruzamento de fronteiras (legal ou ilegalmente) e a tradução em todas as suas vertentes. A esse processo de choque de culturas, transição, passagem e contrabando de uma cultura a outra, no qual, além de apagamento ou apropriação, ocorre também a criação de novos produtos, Fernando Ortiz denominou de transculturação (MEDEIROS, 2012, p. 14).

A tradução é uma via de mão dupla para o enriquecimento cultural dos povos,

entendendo-se aqui enriquecimento como o processo de acesso aos produtos da

indústria cultural. Dessa forma, ela não deve ser vista apenas como meio de

tradução de idiomas e linguagens, mas também como mecanismo de interrelação

entre as culturas, pois ―a tradução é um processo de leitura ativa que nunca é neutro

ou inocente, uma vez que carrega em si todo o universo variado e heterogêneo de

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informações que compõe a identidade cultural do leitor/tradutor‖ (MEDEIROS, 2012,

p. 10).

Medeiros (2012) cita Carvalhal (1997) e afirma que,

A nacionalidade é uma construção cultural. E, como observa Tania Carvalhal, se antes buscava-se reidentificar as diversas formulações da nação, que era tomada como um conceito pronto na literatura e, também diríamos, nas manifestações culturais, ―agora, trata-se de questionar o próprio conceito‖ de nação (Carvalhal, 1997: 296). Pois se as identidades nacionais foram uma vez centradas, coerentes e inteiras, agora elas estão sendo deslocadas pelos processos de globalização (MEDEIROS, 2012, p.3).

Falamos em culturas latino-americanas porque, apesar de os povos

americanos terem elementos culturais comuns, eles apresentam, como aponta Hugo

Achugar (2004), heterogeneidades, baseadas nos lugares, nas paisagens, nos

territórios, que os distanciam. Sendo assim, utilizamos ―culturas‖, empregando o

termo no plural, para sinalizar as diferenças culturais.

Por conseguinte, os estudos da tradução e a prática da tradução estão

relacionados com a transculturação, na medida em que são possibilidades para

compreendermos as teorias da tradução e permitem que várias culturas tenham

acesso a determinadas produções, respectivamente.

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3 JOGOS NA HORA DA SESTA: O DISCURSO DRAMÁTICO

3.1 Sobre a presença feminina na dramaturgia da Argentina em seus anos de

chumbo

Por ser o teatro uma arte coletiva e social, e sendo a posição da mulher, até o

século XX, uma das questões de gênero a ser pensada, os trabalhos, nesta área,

não foram muito ampliados. Por ser uma arte que exige do autor um envolvimento

mais direto e aberto com a sociedade, também exigiu da mulher a conquista de uma

posição de maior influência e atividade no meio social, para que seus trabalhos

fossem tidos como ―valiosos‖ para a história da expressão teatral. Tivemos bons

exemplos de mulheres que se destacaram na literatura hispano-americana, como

podemos exemplificar citando Juana Inés de la Cruz, no século XVI.

Pensando que as mulheres se destacaram primeiro nas narrativas e na poética

e só mais recentemente começaram a se destacar em maior número como

dramaturgas, partimos da premissa apresentada por Griselda Gambaro, em uma

mesa redonda, durante a Conferência Interamericana de Escritoras, na Universidade

de Ottawa. Disse ela, naquela ocasião, que

La escritura teatral es una escritura agresiva por su misma naturaleza, está hecha para ser llevada a la escena y la escena tiene, no solo la falta de pudor de todo arte, donde la forma y el contenido dicen siempre „cómo soy yo,‟ sino un subrayado agregado por la corporeidad de los actores, por la confrontación física entre lo que sucede en este escenario y el espectador que escucha y sobre todo „ve‟ (MARTÍNEZ, 2017).

A participação das mulheres, durante a temporada argentina de teatro de 1976,

foi significativa, sobretudo com a participação de Roma Mahieu, autora de Juegos a

la hora de la siesta, peça de maior êxito na temporada e que marcou o surgimento

de uma nova autora no teatro hispano-americano.

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3.2 Roma Mahieu: o discurso dramático em seu contexto histórico e

ideológico

Assim como em outros países da América Latina, o teatro argentino se

desenvolveu a partir de bases estrangeiras, sobretudo dos países colonizadores. Até

finais do século XIX, houve uma grande dependência do teatro europeu (espanhol,

italiano e francês). Entre as estruturas físicas de teatros mais conhecidos,

construídos até 1900, podemos citar o Colón, o Liceu, Politeama e o Nacional. A

arquitetura dos prédios chama atenção por sua grandiosidade e detalhes. No

entanto, o que desperta maior interesse é a influência dos estilos estrangeiros,

principalmente espanhóis e italianos. O teatro Colón, por exemplo, é a mais famosa

casa de ópera da Argentina e acusticamente é considerado um dos cinco melhores

teatros do mundo. O primeiro prédio foi inaugurado em 1857 e, o atual, em 25 de

março de 1908, após 20 anos de obras, com a apresentação da ópera Aida, de

Giuseppe Verdi. Sobretudo, foram italianas as apresentações que mais se

destacaram inicialmente neste teatro. O estilo arquitetônico atrai a atenção pelo

ecletismo de formas, a grande influência da arte europeia desperta o interesse pelos

estilos diversos, formas variadas, e pela qualidade dos materiais.

Apesar das estruturas grandiosas construídas neste país, por muitos anos

careceu-se de obras, assim como de elencos formados por artistas nacionais, que

fossem originais do meio social argentino e que, sem nenhuma distorção cultural,

representasse o país.

A influência das vanguardas se apresentou como um marco importante para o

teatro dos países latino-americanos durante todo o século XX. Os movimentos

literários e teatrais de vanguarda surgiram e se manifestaram como uma forma de

romper com os cânones culturais anteriores. Em geral, no continente americano as

vanguardas foram vistas como tendo um espírito de mudança e renovação do fazer

teatral.

Em relação à arte dramática, as vanguardas tiveram suas ideias difundidas,

principalmente do começo do último século até os anos trinta, com as expressões do

dadaísmo, futurismo, surrealismo, com as próprias expressões locais do

modernismo, entre outras, e também, logo após os anos trinta, com o surgimento de

grupos e atores, até então pouco visíveis no cenário artístico, que passaram a se

nutrir com os ideais do período. Até os anos trinta do século XX, o teatro latino

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americano era dominado, sobretudo, pelo estilo realista-naturalista, ficando a época

conhecida como período criolista, ainda que começasse a surgir o teatro nacional,

sob formas como o sainete e as comédias dramáticas.

Os sainetes acabam por ser introduzidos na cultura argentina pelos imigrantes

espanhóis. Segundo Vasconcellos (1987, p. 172), esse tipo de peça era encontrado

na Espanha do século XVII, consistindo numa cena cômica curta, destinada a ser

representada no entreato de peças sérias longas, diferenciando-se pelo uso de

música e pela crítica social que, embora muito superficial, mostrava-se sempre

presente. O principal escritor de sainetes foi Ramón Francisco de la Cruz (1731-

1794), que tem seu nome associado à reformulação da Zarzuela, um gênero lírico-

dramático espanhol em que se alternam cenas faladas, outras cantadas e danças

incorporadas. Acredita-se que o nome deriva do pavilhão de caça homônimo,

próximo a Madrid, onde, no século XVII, eram encenadas estas apresentações à

Corte espanhola.

Na Argentina, o sainete, combinado com características circenses, deu origem

ao sainete crioulo. Este ficou conhecido principalmente durante a segunda década

do século XX e se destacou por evidenciar costumes da vida cotidiana, utilizando-se

de elementos humorísticos e de conflitos sentimentais e uma ação trágica.

Destacaram-se autores como Carlos M. Pacheco e Alberto Vacarezza, além de

Florencio Sánchez, Gregorio de Laferrere e Roberto Payró.

A partir dos anos trinta surgem as renovações denominadas universalistas e

que marcam o florescimento do teatro moderno latino-americano. Na literatura, no

teatro e em outras expressões artísticas, houve uma preocupação com a harmonia

na vida social. Neste momento, o homem começa a reconhecer a falibilidade da

poesia, e consequentemente de sua própria existência. Os autores buscaram então,

através da metáfora e das imagens, refletir sobre questões de suas próprias vidas. A

preocupação não é mais, sobretudo, a forma, mas o sentido. Procura-se, a partir da

segunda metade do século, refletir sobre a realidade do povo mediante o

pensamento dos autores latino-americanos. O que passa a alimentar as produções

são questões que fazem parte da nossa realidade, as crenças, os ideais, as

memórias, as angústias e os objetivos de conquistas e de lutas. Nesse sentido, tanto

o teatro como a literatura da América Latina contribuíram para a construção da

história do continente sul-americano. A cena assumia, assim, uma tarefa de

identificação com os problemas dos respectivos povos.

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Na Argentina dos anos trinta, assim como em outros países do continente, a

depressão econômica dos Estados Unidos repercutiu nos setores sociais. Entre os

reflexos da crise, podem-se citar o aumento do número de desempregados, pressão

social e a baixa no nível de vida. Governava o país Hipólito Irigoyen, do partido

Radical. No entanto, a pressão social sobre o governo era tanta que o presidente

Hipólito não teve condições políticas para resolvê-la, acabando por ser deposto por

um governo militar. Este foi o primeiro de uma série de golpes militares que só foram

interrompidos nos anos oitenta, com a volta da democracia. No mesmo período, no

teatro já surgiam as primeiras manifestações de resistência e oposição, que se

tornariam mais visíveis a partir da segunda metade do século XX.

No teatro dos anos trinta se destacaram obras de Roberto Arlt, de Armando

Discépolo e de Scalabrini, entre outros. Já neste período se falava de teatro

independente. Sobre estas bases artísticas, sociais e ideológicas, o Teatro do Povo

ou Independente, a partir dos anos de 1943, apresentava-se em lugares públicos:

praças, parques e sindicatos, a fim de atrair a atenção do público para os problemas

do povo argentino e lutar contra a comercialização do teatro. Esta forma de

organização introduziu técnicas e estéticas vanguardistas, afirmou-se como um

teatro de orientação popular. Com claras conotações ideológicas, tinha como

objetivo transformar a cultura do povo frente à política de reação, tanto empresarial

como oficial.

Em síntese, o teatro independente se mostrou como uma forma de resistência

a um estado nacional em deterioração; também tomou posse da cadeia de produção

teatral, que logo passou a estar nas mãos de autores, técnicos e atores do

movimento.

Em meados dos anos sessenta, teatro e sociedade alcançam uma relação de

culminância de identificação com os problemas sociais. Destaca-se na cena da

América Latina o teatro de criação coletiva, uma técnica de criação que aos poucos

foi surgindo no continente. Este novo caráter teatral insistiu na propagação da arte

como uma atividade humana que extrai da realidade temas e formas que servem de

pano de fundo para os espetáculos.

Mais recentemente, nas décadas de setenta e oitenta do último século, o teatro

chamou atenção pelas temáticas e formas. Sérios problemas sociais e econômicos

que assolavam a população e os autores não foram deixados de lado no âmbito

teatral.

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Durante a temporada argentina de teatro de 1976, autores argentinos

mostraram ao público que as expressões argentinas da arte dramática já haviam

chegado a um estado de maturidade. Argentinos como Florencio Sánchez, Griselda

Gámbaro, Agustín Cuzzani, Ricardo Halac, Alberto Adellach, Ricardo Talesnik, entre

outros, e novos dramaturgos, como Luís Macchi e Roma Mahieu, figuraram entre os

nomes de autores mais importantes para o cenário argentino.

A peça Juegos a la hora de la siesta é um discurso sobre o medo e a violência.

A obra apresenta oito crianças que brincam em uma praça e que aos poucos

representam como elas veem a sociedade e como agem os adultos frente aos

problemas sociais. A peça permite instantes de reflexão sobre temas como,

exemplificando, a violência, a opressão e selvageria com as quais alguns membros

da sociedade agem em relação a outras pessoas.

No entanto, esta não é apenas uma obra dramática que mostra a visão das

crianças em relação ao mundo adulto. É, antes, uma peça em que diálogos, ações e

reações dos personagens crianças são utilizados para levar ao olhar e à reflexão da

plateia atitudes mesquinhas comuns no cotidiano dos adultos. O que as crianças

fazem é imitar os comportamentos selvagens dos adultos. Esta é uma parábola que

apresenta reflexões sobre a crueldade e o poder na sociedade.

Em entrevista ao Teatro Atómico, na época de estreia, em Madrid, no dia 25

de novembro de 2010, a autora definiu a peça como um discurso sobre a violência e

sobre o que ela gera nas demais pessoas. Também afirmou que, na época em que o

texto foi escrito, durante a ditadura militar, havia uma grande pressão sobre todas as

pessoas. O objetivo da dramaturga diante daquela realidade foi falar sobre a

violência, na expectativa de que o texto apresentado na linguagem dramatúrgica

passasse despercebido pela censura. Como a peça traz crianças brincando, faz com

que cada um da plateia pense em sua infância. Dessa forma, com facilidade se

esboça o entendimento sobre o enredo proposto.

Na mesma entrevista, Mahieu informou que os personagens nasceram a

partir da observação das crianças que brincavam perto de sua casa. Além disso,

comentou: ―[...] enquanto não morrem as ideologias, também esta obra serve porque

é uma obra que faz as pessoas refletirem e é uma obra contra a violência‖.

Nesse sentido, à luz da teoria da AD e dos Estudos da Tradução, passamos a

analisar os RDs selecionados.

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Os recortes discursivos sob análise são apresentados com a indicação (RD)

seguidos do número indicativo da ordem em que se apresentam no texto. A

indicação sobre idioma será feita com o uso das letras LCE, significando Língua de

Chegada (Espanhol), e LCP significando Língua de Chegada (Português).

Apresentamos na sequência o Recorte Discursivo 3 (RD3), em que, pela

forma como estão redigidos os diálogos – com frases curtas, expressões cunhadas

no modo imperativo e repetidas insistentemente – a dramaturga pontua o diálogo

entre as crianças como se fosse um diálogo entre adultos.

RD3: Apresenta parte da brincadeira em que Andres e Alonso interpretam um

General e um soldado, respectivamente.

LCE:

Andres: - ¡A callar! - ¡No me desacate soldado! - ¿Listo?

Alonso: - ¡Siempre listo, señor!

Andres: - ¡Cuerpo a tierra! - ¡Arriba! - ¡Cuerpo a tierra! -¡Arriba! - ¡Cuerpo a tierra! -

¡arriba! - ¡Cuerpo a tierra! - ¡Cuerpo a tierra!

Alonso: - Estoy cansado...

Andres: - ¡Cuerpo a tierra! - ¡Y no replique sargento! - Arriba ¿jura por la patria y por

la bandera roja y gualda ser un fiel y obediente soldado y ofrecer su alma y su vida

cuando se lo manden?

LCP:

Andres: - Não me desacate soldado.... Deitado. De pé. Deitado. De pé.

Alonso: - Hei, tô cansado...

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Andres: - Não responda soldado. De pé. Bom. Então jura, em nome da pátria e da

bandeira nacional, ser um soldado fiel?

O personagem Andres, como General, utiliza tom de comando militar ao

dirigir-se ao personagem Alonso, colega de brincadeira que atua no papel de um

Sargento, posição hierarquicamente inferior àquela de Andres. A linguagem de

Andres é dura, quer pela escolha do vocabulário, quer pelo tom imperativo da voz,

próprio da posição sujeito como comandante.

Já a posição Sujeito de Alonso impõe um Discurso de obediência ao seu

superior. No entanto, ―numa posição de rebeldia‖, o Sargento desaponta seu

superior, que desejava ouvir um discurso disciplinado, de aceitação à ordem

recebida, discurso de acato, de observância e cumprimento à voz imperativa, voz do

poder advindo da Formação Discursiva militar, predominante naquela posição

Sujeito exercida por ele, de Comandante, no posto de General. No entanto, a

reação de Alonso, esperada pela posição Sujeito hierarquicamente subalterna,

desempenhada por ele na cena, não acontece na prática. Alonso inclusive tenta

atemorizar o ―General‖, ameaçando-o com a presença do pai dele.

Junto à plateia, essas duas posições Sujeito podem originar múltiplos

sentidos, dos quais destacamos dois. Um deles é levar a entender a cena discursiva

como um hábito, compatível com a Formação Discursiva militar, de características

ideológicas radicalmente disciplinadoras, mas vistas pelo senso comum como

adequadas e necessárias ao alcance das metas de ordem, disciplina e obediência,

ditadas para a vida militar. Outro sentido possível é de, em não se estabelecendo na

plateia, no todo ou em parte dela, a percepção de que as relações interpessoais do

mundo adulto tornam-se referência para o mundo infantil, rotular-se a peça como um

espetáculo criado para chocar e/ou desestabilizar a instituição familiar, tanto por

colocar crianças em situações-limite, próprias do mundo adulto, quanto por antecipar

a crueza das situações de violência verbal e atitudinal, em relação à vida e à morte,

a uma plateia infantil ainda não preparada para entendê-las.

Percebe-se que Andres brinca conforme ele imagina que seja o

comportamento de um general, ao se dirigir aos soldados sob seu comando. Na

sequência ―Não me desacate soldado... Deitado. De pé. Deitado. De pé!‖, percebe-

se presente a relação de poder que há na brincadeira, uma representação da

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sociedade que eles veem. A partir disso, nota-se que a repetição das ordens

―Deitado. De pé. Deitado. De pé!‖ mostra que eles observam que na estrutura

organizacional do exército, neste trabalho entendido como um dos aparelhos

ideológicos de Estado, também há relações de poder e que este poder pode ser

utilizado para dominar. Podemos observar aqui que o poder é utilizado por aqueles

que o detêm para asseverar o uso da força e da dominação.

No diálogo, mesmo que o personagem Alonso diz que não tem vontade de

brincar, que está cansado, ele se submete ao papel de soldado:

“Alonso – Hei, tô cansado...

Andres – Não responda, soldado. De pé. Bom. Então jura, em nome da pátria e da

bandeira nacional, ser um soldado fiel?‖

Fica evidente a intenção de Andres de fazer com que o jogo prossiga de uma

forma diferente, mas que ele continue dominando. Fica claro que ele não pensa em

momento algum deixar a outra criança ser o general para que se motive a brincar,

mas, pelo que é apresentado, ele decide mudar um pouco a brincadeira, talvez para

que Alonso continue ali, e não tente ser tão abusado com o poder, mandando o

outro deitar e ficar de pé, e novamente repetir as ações. Então, pede que o outro

jure em nome da pátria e da bandeira que é um soldado fiel.

Relacionando esta ―brincadeira‖ com as atitudes dos grupos militares, que

induziam as sociedades civis, durante os períodos de ditadura, a pensarem que as

suas ações eram necessárias para o bem do país, percebe-se que a representação

que as crianças fazem nos jogos condiz com as ações de domínio ideológico que

existem em tempos de ditadura e pós-ditadura, e fazem com que grande maioria das

populações pense que morrer pela pátria e ser leal a ela é uma atitude patriótica. De

certa forma, a ação do personagem Andres faz com que Alonso participe da

brincadeira com uma representação de sentimento de lealdade e importância.

Na versão da língua espanhola, quando Andres diz para Alonso jurar pela

bandeira nacional, ele afirma: - arriba, jura por la patria y por la bandera roja y

gualda ser un fiel y obediente soldado y ofrecer su alma y su vida cuando se lo

manden?. Vê-se que, além de ser um fiel soldado que oferece a vida pela pátria,

Alonso deverá oferecer su alma e su vida se lo manden, como se o mais importante

fosse a obediência ao poder, e a vida das pessoas não tivesse tanto valor, sendo

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que este foi um dos Discursos que mais se propagaram através das músicas no

período da Guerra Civil na Espanha. A expressão deixa uma possibilidade de

reflexão sobre o momento tenso de ditadura e pós-ditadura vivenciado pela

população espanhola, e a música foi o recurso para fortalecer o pensamento de

pertencimento e fortalecer os ideais autoritários de Franco.

O regime franquista utilizou músicas como forma de solidificar os seus ideais,

os de uma Espanha forte, imperial, sob o comando do general Franco, e também de

uma Espanha religiosa, casta, pura, devido ao apoio da Igreja Católica ao regime.

Para isso, as músicas criadas com esse objetivo eram veiculadas muitas vezes pelo

rádio para que a população as ouvisse, e, principalmente, os jovens das Frentes de

Juventudes, que eram vistos como o futuro do país. As veiculações eram, sobretudo,

nacionalistas e religiosas e visavam a reerguer a ―velha‖ Espanha dos destroços da

Guerra Civil, selecionando as mulheres como símbolo máximo desse novo país.

―Construiu-se‖, assim, a imagem feminina da castidade, da pureza, da religiosidade.

Afinal, frente ao sentimento de evasão do povo espanhol, era mais fácil fugir através

dos ouvidos do que ver a dura realidade vivenciada, a situação de destruição do

país.

Esse recurso foi utilizado para propagar um sentimento de pertencimento e

patriotismo, e foi uma das principais armas para legitimar o regime de Franco frente

à população espanhola. Apesar de a Espanha iniciar um período de transição para

um regime democrático, em 1975, com a morte de Franco, ficou como resultado uma

Memória Discursiva de que a população deve dar a ―vida‖ pelo país.

Já, na tradução de Eduardo San Martin, a expressão de comprometimento

com as Ideologias militares se expressa com a utilização da fala de Andres ―– Não

responda, soldado. De pé. Bom. Então jura, em nome da pátria e da bandeira

nacional, ser um soldado fiel?‖.

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O Discurso de Jogos na Hora da Sesta, dessa forma, apresenta-se como uma

possibilidade de interpretação e reflexão sobre os reflexos que as ditaduras militares

e as ações pela conquista do poder deixaram tanto na Argentina, quanto no Brasil e

na Espanha.

No Brasil, o Decreto nº 57.654, de 20 de Janeiro de 1966, regulamenta a lei

do Serviço Militar (Lei nº 4.375, de 17 de agosto de 1964), retificada pela Lei nº

4.754, de 18 de agosto de 1965.

Segundo o Artigo 217, dessa Lei, disponível no site Jusbrasil, em

https://www.jusbrasil.com.br/topicos/11982042/artigo-217-do-decreto-n-57654-de-20-

de-janeiro-de-1966, as cerimônias cívicas para entrega aos brasileiros, em idade de

prestação do Serviço Militar, dos Certificados de Dispensa de Incorporação, de que

trata o § 6°, do Art. 107, deverão ser realizadas sob a direção do Presidente ou

Chefe de órgão alistador, sendo que é obrigatório que seja cantado o Hino Nacional

e prestado perante a Bandeira Nacional, e com o braço direito estendido

horizontalmente à frente do corpo, mão aberta, dedos unidos, palma para baixo,

pelos dispensados do Serviço Militar inicial, o seguinte compromisso:

Dispensado da prestação do Serviço Militar inicial, por fôrça de disposições legais e consciente dos deveres que a Constituição impõe a todos os brasileiros, para com a defesa nacional, prometo estar sempre pronto a cumprir com as minhas obrigações militares, inclusive a de atender a convocações de emergência e, na esfera das minhas atribuições, a dedicar-me inteiramente aos interêsses da Pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei, com o sacrifício da própria vida (JUSBRASIL, 2017).

No texto teatral não é apresentado um detalhamento do que viria a ser, no

entendimento do personagem, um soldado fiel. No entanto, há uma concepção

social de ordem e subordinação, em que o poder e/ou a posição social confere

poder e, esse, na visão das crianças, é visto como possibilidade de mando e

dominação. Isso se confirma quando Andres diz a Alonso ―Não responda, soldado‖,

mesmo o segundo tendo dito ―Hei, tô cansado...‖.

Embora na tradução deste fragmento ao português não haja detalhes

minuciosos como no texto em espanhol, consideramos que, em ambas as versões,

os tradutores adequaram o texto para a sua realidade histórica, de forma a

possibilitar reflexão sobre a violência e a utilização do poder, dos aparelhos

ideológicos de Estado e das alternativas para instaurar ideologia.

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A análise do próximo RD revela que o mesmo tem caráter simbólico muito

parecido nos países mencionados.

RD4: trata do momento em que Andres manda Alonso jurar pela bandeira:

LP: - “y por la bandera roja y gualda ser un fiel y obediente soldado y ofrecer

su alma y su vida cuando se lo manden”.

LC: - ―Então jura, em nome da pátria e da bandeira nacional‖.

Neste trecho, o termo roja se refere ao simbolismo da bandeira nacional da

Espanha, que possui o vermelho e o amarelo em suas cores.

Mahieu utiliza gualda, termo utilizado para se referir à cor amarela da

bandeira da Espanha, também conhecida por Rojigualda pelos espanhóis. A

bandeira da Espanha é bicolor, formada por três faixas horizontais: vermelha (no

topo), amarela (no centro) e vermelha (em baixo). Mesmo não tendo um significado

oficial, a cor vermelha seria uma referência à valentia e conquista do povo espanhol,

enquanto a cor amarela serve para simbolizar as riquezas (o ouro) do país e

a alegria dos espanhóis.

Na ocasião em que ela utilizou por la bandera roja y gualda poderia estar se

referindo à bandeira da Espanha, mas, referindo-se à bandeira argentina ou

espanhola, o que se destaca, nas obras e nas entrevistas da dramaturga, é o grande

carinho que mantém pelos dois países.

A tradução, enquanto um texto novo, deve ser compreendido como tal. Não é

possível traduzir para outra língua toda a História e as lutas de determinada

sociedade. Por isso, toda a tradução é um texto novo. Podemos afirmar que os

textos são únicos e que cada tradução se apresenta como uma das possibilidades

de como podem ser interpretados e traduzidos, mas cada tradução também é um

texto único e diferente, e de forma alguma deve ser visto como inferior.

Pensamos em uma situação como a de análise de uma obra de arte, em que

dois observadores estão à frente de um objeto, sendo um deles o artista e o outro,

alguém que não conhece a história da criação. Se fosse possível questionar os dois

sobre a obra, o artista falaria sobre a história do objeto a partir de sua história

pessoal, a partir de sua bagagem cultural e de conhecimento da produção do objeto.

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Já o outro, que está ao seu lado, observando, pode apreciar o resultado da imagem

e fazer constatações diferentes a partir de seus conhecimentos e visão de mundo.

Em uma dinâmica de observação e conhecimento sobre o que o artista falou,

neste caso, o segundo observador, sabendo que o primeiro é o artista, poderia falar

com a maior aproximação de sentido ao texto do outro, mas o que não é possível

reproduzir é o sentimento de quem presenciou o ato de produção do objeto e o

conhecimento que este tem do contexto. Por isso, assim como na reflexão da

observação e constatação sobre o objeto de arte, os textos carregam um teor

histórico e cultural que é impossível de ser traduzido.

Passamos, então, ao seguinte RD.

RD5: Andres fala sobre política. Pensemos na tradução, seguindo os

princípios da perspectiva contestadora, a partir da qual o discurso traduzido é visto

como produto da ação e das escolhas do sujeito-tradutor a partir de fatores externos.

LP: “- ¡Dice mi padre que los políticos son todos una puta mierda y que por

eso él es „apolítico‟. Yo también soy apolítico y mi abuelo era de la falange. ¡Algún

día voy a ser… algún día los voy a reventar a todos!”.

LC: - ―Meu pai é integralista... eu também sou integralista‖.

Vemos que o Discurso de Andres é traduzido para o português, por Eduardo

Martin, como ―Meu pai é integralista... eu também sou integralista‖. Não podemos

afirmar que a tradução é certa ou errada, ou ainda, que é a melhor tradução possível

porque, para o tradutor, estas orações são as que soam mais adequadas ao

contexto da língua, segundo sua interpretação. No entanto, em uma tradução

consoante a realidade da organização político-partidária e ideológica brasileira,

integralista teria a ver com uma Ideologia definida, o Integralismo, explicado pelo

dicionarista Houaiss como movimento político de extrema-direita, denominado Ação

Integralista Brasileira, de inspiração fascista, fundado em 1932 e extinto em 1937,

que foi revivido em 1945, sob a sigla PRP (Partido de Representação Popular). Já o

termo políticos, pelo uso no plural no texto em espanhol pode remeter a uma

generalização – todos os políticos seriam una puta mierda e não apenas alguns.

Uma possível indicação ideológica singular permanece inicialmente opacificada pela

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generalização obtida pelo emprego do adjetivo no plural e somente vaza quando é

feita a referência ao avô - mi abuelo era de la falange. Ou seja, o personagem, ao

lembrar o pertencimento do avô à falange, recupera a historicidade contida no termo

que, na Espanha da época, distinguia ideologicamente um movimento político,

denominado Falange Espanhola, agrupação política fundada por José Primo de

Rivera (1903-1936), baseada no ideário fascista italiano. A partir de 1937, o

falangismo foi o componente ideológico mais identificável do franquismo, mediante

um perfil de discurso político revolucionário, de concepção totalitária e fascista de

organização estatal e social.

Como visto, os RDs até aqui apresentados contém diálogos hostis entre os

personagens, mas não é o que chama mais atenção para a concepção de violência

cruel, que alguém pode realizar ao próximo. Mais adiante, veremos recortes

discursivos que mostram que o que parece uma simples brincadeira, pode se

transformar em um ato de crueldade extrema.

As apresentações da peça foram um sucesso, mas o que veio a ser um

problema foi a compreensão do significado da parábola, e do caráter de manifesto,

por parte dos militares. Em meados do ano de 1978, a apresentação do texto foi

proibida. Mesmo que muitas pessoas se divertissem ao ver o espetáculo, o que não

se pode negar é a mensagem de brutalidade que pode haver na sociedade e que o

poder pode ser utilizado para domínio de outros sujeitos.

3.3 Luzes sobre a cena: o contexto de ditadura militar

Um dos períodos mais conturbados da história argentina iniciou com o golpe de

estado que destituiu do poder o então presidente constitucional do país, Arturo Illia,

em 28 de junho de 1966. Dessa forma, iniciou-se um novo período de governos

militares, que resultou na volta do peronismo ao poder, em 1973. Assim como outros

períodos, este foi marcado por agitação social e de censura contra descontentes

com o então regime político.

Nestes anos, o país foi regido pelo ―Estatuto da Revolução Argentina‖, que foi

redigido no mesmo nível jurídico da Constituição do país. Por todo o país, umas das

palavras de ordem repetidas eram ―a Revolução Argentina tem objetivos, mas não

prazos‖. Aí se mostravam as expectativas dos militares que estavam à frente do

golpe. Assim como qualquer tipo de participação política, os políticos estavam

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proibidos de fazer manifestações. Vigorou quase que permanentemente o estado de

sítio, e direitos civis, sociais e políticos foram cortados sem questionamentos.

O general que encabeçou o golpe de Estado foi Juan Carlos Onganía, que

também presidiu a primeira gestão do período, conhecida como Onganiato. Durante

sua gestão, foram adotadas medidas econômicas que visavam a liberar o mercado e

a facilitar a instalação de grandes monopólios internacionais, mas, ao mesmo tempo,

eram reprimidas manifestações de atitudes contra o governo, realizadas pelo

proletariado e por associações que tinham direito a se manifestar, frente ao

momento político insatisfatório para a população.

Onganía também era representante da facção azul do Exército Argentino e

ficou no poder de junho de 1966 a junho de 1970, quando teve de entregar o poder

devido a movimentos de agitação social, como o Cordobazo, um movimento de

agitação popular, ocorrido em 29 e 30 de maio de 1969, em Córdoba, uma das

cidades estudantis e industriais mais importantes do país, que foi violentamente

reprimido.

Sua gestão foi marcada pela intolerância e pelo desprezo para com as

universidades argentinas, que eram consideradas pelo governo como berço de

comunismo e subversão, resultando que até mesmo atividades promovidas por

centros estudantis foram reprimidas. A noite de 29 de julho de 1966 ficou conhecida

como a ―noite dos cassetetes‖. Cerca de cinco Universidades de Buenos Aires foram

invadidas por manifestantes. Forças policiais entraram em Universidades e

desalojaram a cassete tanto professores quanto alunos, além de destruírem prédios,

entre eles laboratórios e bibliotecas. Essa ação das forças, a favor da ditadura, fez

com que muitos docentes e intelectuais se exilassem, e que a comunidade cultural,

científica e universitária ficasse seriamente prejudicada.

No mês de junho de 1970, o presidente Onganía foi substituído pelo general

Roberto Marcelo Levingston, designado por uma junta de comandantes formada por

chefes das três forças armadas. Levingston, um militar da força de inteligência

pouco conhecido e que executava suas funções nos Estados Unidos, permaneceu

no poder até março de 1971. Ele foi substituído pelo general Alejandro Agustín

Lanusse porque não conseguia controlar a situação política, social e econômica,

turbulenta e complexa que vivia a sociedade argentina daquele momento.

O período, de março de 1971 a maio de 1973, governado por Lanusse, assim

como os de seus antecessores, foi visto com muita antipatia e revolta por parte da

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população. Seu governo se caracterizou por grandes investimentos em infraestrutura

nacional (estradas, pontes e represas). No entanto, a revolta social não

desapareceu.

No ano de 1972, ocorreram chacinas, como, por exemplo, a do Massacre de

Trelew, que deixou 19 mortos e aconteceu de forma brutal, e aumentaram as ações

da população que desejava mudanças no governo. O site

http://operamundi.uol.com.br/ resume a chacina em um simples texto, que mostra a

brutal ação do governo ditatorial frente a um grupo de não simpatizantes:

Em 22 de agosto de 1972 foram fuzilados, na base aeronaval argentina Almirante Zar - uma dependência da Marinha argentina, próxima da cidade de Trelew, província de Chubut, na Patagônia austral - 19 militantes de distintas organizações guerrilheiras que haviam se rendido a forças da Marinha com a condição que suas vidas fossem respeitadas. Às 03h30, porém, os 19 presos foram obrigados a sair de suas celas, parar em fila no corredor, onde foram metralhados a queima-roupa. Sete sobreviventes foram levados à enfermaria, porém nenhuma assistência médica lhes foi prestada, ocasionando a morte de quatro deles. Os outros três foram transferidos no dia seguinte a Puerto Belgrano, onde foram operados. Ao amanhecer da terça-feira, 22 de agosto, a Marinha fez circular a versão de que as mortes tinham sido o resultado de uma nova tentativa de fuga. Somente três deles sobreviveram. Anos mais tarde, estes foram mortos, sequestrados ou desaparecidos, durante a seguinte ditadura militar. O episódio ficou conhecido como o Massacre de Trelew. (ALTMAN, 2016).

Havia simpatizantes e não simpatizantes do governo por toda parte. O desejo

de ter no poder um governante de seu partido, ou grupo, já havia se transformado

em uma guerra em que o poder era usado para não deixar que os ―contrários‖

tivessem voz ou vez.

A pressão passou a aumentar cada vez mais com a ação dos simpatizantes

peronistas, e por conta do próprio Perón, que estava em seu exílio em Madri. Com

isso, Lanusse começou a organizar o cenário para a volta de um governo civil, na

tentativa de criar um ―peronismo sem Perón‖, a partir de um projeto político sem

sucesso, batizado de ―Grande Acordo Nacional‖ (GAN).

No ano posterior, com o insucesso do projeto político de Lanusse e com a

pressão dos revolucionários, em 1973 o atual presidente convocou eleições gerais e

suspendeu a proibição ao Partido Justicialista, mas a manteve sobre Juan Domingo

Perón, com a elevação dos anos de residência necessários para se tornar

presidente, sob a argumentação de que Perón esteve exilado por 18 anos na

Espanha e, portanto, não cumpria esta exigência.

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O mais curioso foi que, nas eleições, foi eleito Héctor José Cámpora, pelo

partido da Frente Justicialista de Liberación (FreJuLi). Este foi o nome que o Partido

Justicialista usou, na oportunidade, com a própria orientação de Perón e com o

apoio de outros partidos políticos aliados. Mais uma vez Perón estaria em meio ao

poder de governo. O próprio slogan da campanha apresentava ―Cámpora ao

Governo, Perón ao poder‖.

Assim como a história e a própria imprensa mostrou e mostra, o período de

1966 a 1973 foi de grandes manifestações sociais. No entanto, muitas atitudes

foram reprimidas e abafadas frente à Revolução Argentina, como a própria ditadura

se autodenominou.

Este período foi importante tanto para a história, quanto para a memória social

da população argentina e, assim como foi tema de muitas manifestações e ações

nas ruas, também marcou as manifestações artísticas como a literatura, o teatro, as

artes, entre outros.

No teatro, destacamos que muitas peças sofreram censura e não puderam ser

apresentadas, devido ao seu caráter questionador frente ao momento histórico.

Também, destacamos o caráter crítico quanto aos problemas sociais, a ganância

pelo poder, por grande parte dos políticos, e a falta de liberdade democrática em

relação a muitas questões, principalmente, quanto à liberdade de escolha do

representante no governo.

Mesmo que o período de 1966-1973 tenha sido muito conturbado, ele foi

apenas o que levou a outro mais difícil ainda, o da Ditadura Militar, ocorrido entre

1976 e 1983.

No período de 24 de março de 1976, iniciou no país o golpe militar, organizado

pelas três forças armadas com a denominação de Processo de Reorganização

Nacional. À frente do golpe estava Jorge Rafael Videla, que organizou acentuada

repressão e levou a cabo perseguições, torturas e execuções de presos políticos.

Assim como em outros países que fazem parte do Cone Sul, o governo da Argentina

participou da Operação Condor, também conhecida no Brasil como Carcará, em que

Videla prestou apoio ao crescente terrorismo que era praticado por grupos de

militares, entre eles estava o grupo Aliança Anticomunista Argentina.

O período de administração de Videla foi marcado por angústia, desrespeito

aos direitos humanos, guerra nos ambientes estudantis e terrorismo de Estado,

principalmente nos limites com o Chile. O clima tenso, que chegou próximo a um

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conflito armado, foi uma questão mediada diplomaticamente por João Paulo II. No

ano de 1977, com o grande aumento do número de pessoas que eram detidas e

desapareciam, surgiu um grupo de Mães, as ―Mães da Praça de Maio‖, que

reivindicavam saber o paradeiro dos filhos. Até o ano de 2006, em todas as quintas-

feiras ocorriam caminhadas em memória dos desaparecidos.

Este arquivo de Daniel Garcia, registrado em 1º de janeiro de 1982, mostra ato

das Mães da Praça de Maio, cujos filhos desapareceram durante a ditadura

argentina.

Imagem

2: COLOMBO, Sylvia. Argentina cria precedente e decide veredito sobre Operação Condor.

Disponível em: ˂ http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/05/1775398-argentina-cria-precedente-e-

decide-veredito-sobre-operacao-condor.shtml ˃. Acesso em: 10 set. 2017.

A economia do país, que era próspera até a metade do século XX, e o padrão

de vida das famílias começaram a encontrar problemas devido às políticas

econômicas impostas pelo governo. Os planos neoliberais causaram colapso no

setor industrial, extinguiram-se sindicatos, aumentou a concentração de riquezas e

as diferenças sociais aumentaram cada vez mais. Com a política de Videla, a

inflação aumentou exorbitantemente e a dívida externa argentina, que era de 7

bilhões de dólares em 1976, passou a ser de 66 bilhões em 1983. No ano de 1978,

os planos neoliberais para recuperação da economia, do ministro Martinez de Hoz,

se mostraram um fracasso e, a inflação daquele ano chegou a 160%. Já em 1979, a

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inflação chegou a 139,7%, e a economia estagnou. A grande crise econômica levou

muitas pessoas aos bancos e Jorge Rafael Videla e José Alfredo Martínez de Hoz

renunciaram em 1981. Com isso, assumiu a presidência o militar Leopoldo Galtieri.

Leopoldo Galtieri esteve na presidência de 1981 a 1983 e, em 1982, as tropas

argentinas disputaram as ilhas Malvinas com o Reino Unido, na que ficou conhecida

como a Guerra das Malvinas. O fracasso das investidas das tropas argentinas e a

morte de aproximadamente 600 jovens soldados, além das violações aos direitos

humanos, impulsionaram o término do regime militar. Disso tudo, o resultado foi um

número de vítimas do governo estimado em 10 mil pessoas, a forte marca da

ditadura, a repressão, sendo este processo condenado por grande parte da

população. O término da guerra e a derrota obrigaram o regime a convocar eleições

no país.

Em 30 de outubro de 1982, Raúl Alfonsín, do partido da União Cívica Radical,

foi eleito com 52% dos votos. Na Câmara dos Deputados, o radicalismo também

obteve a maioria dos votos, mas no Senado o peronismo ganhou. Em 10 de

dezembro de 1983, a democracia voltou no país, quando o governo democrático

assumiu a presidência. Em 1989, um presidente entregou o poder para um

presidente de outro partido, e isso também aconteceu em 1999, mostrando que a

democracia se consolidara no país.

Foram estes tempos difíceis de ditadura militar, no país latino-americano, que

inspiraram o drama de Jogos na Hora da Sesta. Mahieu testemunhou as lutas por

democracia e liberdade de expressão, da década de 70. Na peça, através de

aparentemente simples brincadeiras de crianças, os personagens exercitam

relações de poder e abrem espaço para nossos trabalhos de analistas do discurso.

A própria autora do texto disse que o drama surgiu a partir da observação dos atos

de violência entre crianças que brincavam em uma praça. A comédia dramática

chegou a ser censurada pelo governo argentino, mas, com isso, percebeu-se que

este não era ―mais um‖ texto, mas ―um‖ texto que, por proporcionar a quem a ele

assiste uma ―profunda‖ reflexão, deve ser apresentado por todo o mundo.

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3.4 Cena final: a estética da violência em Jogos na Hora da Sesta

O autor do texto para o teatro também é um Sujeito histórico e, a partir disso,

pensamos o trabalho de Roma Mahieu ao escrever esta peça. Não podemos

generalizar, afirmando que um dramaturgo é um profissional como o escritor de

literatura. Não menosprezando o escritor, nem vangloriando o dramaturgo, podemos

citar uma diferença significativa entre os dois. O escritor dramaturgo prepara sua

peça para ser encenada, para significar a partir do texto e com o aporte do meio

cênico, além do suporte acústico e da plateia.

A palavra teatro nos remete a duas acepções importantes: o imóvel, a

estrutura onde se realizam os espetáculos, e a arte específica, elaborada a partir da

ação dos atores e da reação da plateia. Pensar nesta segunda acepção, sem pensar

no papel do público, torna-se irrelevante. Não pode haver espetáculo sem plateia.

Diferentemente do cinema, o teatro requer a presença física de um artista que

―exibe‖ seu trabalho para uma audiência. Já a linguagem cinematográfica

subentende a imagem, substituindo, assim, a figura humana real. Além disso, a

apresentação de algo no cinema pode ser feita várias vezes da mesma forma, com

os mesmos detalhes, ou melhor, existe a possibilidade de apresentação exatamente

igual, já que um filme, por exemplo, é gravado para ser apresentado várias vezes. A

diferença, no caso, dá-se pela interação com a plateia, quase sempre

majoritariamente diferente a cada projeção e, portanto, interagindo de forma distinta

diante dos sentidos provocados pelo discurso dos personagens a cada cena

reprisada tal e qual na primeira vez. A peça de teatro, cada vez que é apresentada,

mostra-se como uma nova possibilidade de significação, inclusive a partir da

interpretação dos atores, já que é passível de improvisos, modificações de cenário,

de acordo com o palco em que é apresentada e, é claro, a plateia.

Mesmo que os atores sigam o mesmo texto e o mesmo ritmo de

apresentação, pequenos detalhes podem significar muito para o Discurso da peça.

Para citar um exemplo: uma flor que fica no chão do cenário, e que se perde em

meio ao figurino, já deixará de significar para a plateia.

Assim como pensamos cada apresentação como única, pensamos cada

expectador como único. O teatro, assim como outras expressões artísticas, não é

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livre de Ideologias e, também pode ser visto como uma importante função social. A

peça, por ser escrita por um Sujeito social, possui uma carga social e histórica

significativa, mas destacamos aqui o objetivo primordial desta expressão de arte:

fazer os espectadores refletirem sobre a vida.

Flávio Desgrandes, em sua obra Pedagogia do Teatro: provocação e

dialogismo, diz que

O espectador diante de uma encenação, bem como o sujeito diante de um fato existencial, um acontecimento cotidiano, necessita, para interpretá-lo, imprimir um ritmo próprio, interrompendo o movimento ritmado, tanto da obra quanto da vida. Todo ato de compreensão, portanto, implica uma atitude rítmica, que estabeleça espaço e tempo para a efetivação de uma atitude criativa. A compreensão estética de algo que nos diga respeito na vida, aponta Bakhtin, se assemelha ao movimento último do contemplador na arte. (DESGRANDES, 2011, p. 31).

O mesmo pesquisador, utilizando-se de Bakhtin para falar da compreensão

estética, quando afirma que o espectador diante de uma encenação necessita de um

ritmo próprio para interpretar a arte, deixa subentendido que cada Sujeito é

diferente. Não se pode negar a existência de uma possível intenção do criador da

obra de arte, assim como de cada atitude que tomamos no dia a dia, por mais

simples que seja, mas cada indivíduo vai apreciar, entender ou sentir a arte, a partir

de sua constituição, de seu ―eu‖ interior.

Toda interpretação ou contemplação é um ato de compreensão, e só podemos

compreender a partir de nossa constituição, se tivermos como segurar a ponta da

linha que nos guiará até o final do novelo, ou seja, podemos chegar a uma opinião

mais crítica, se tivermos bagagem teórica e cultural que nos impulsione a refletir.

Dizemos cultural pensando no quanto é difícil, quase impossível, um indivíduo de

uma sociedade outra, compreender uma manifestação, no caso, tomando uma

expressão artística como fazendo parte da história, que significa na Memória social e

no Inconsciente de um povo.

Sabemos que vários textos são traduzidos, de um idioma para outro, para

divulgar as expressões artísticas nacionais para o meio internacional, mas

entendendo estes textos e expressões como fazendo parte daquela formação social,

destaca-se aqui a difícil tarefa de um tradutor.

Sabemos que a tradução é um texto novo, que visa a assegurar a essência de

significados do texto, e também de falas de um idioma para outro, mas o tradutor é

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intérprete, pois lê o texto primeiro e o leva para uma segunda língua/cultura. Para

isso, precisa dominar o vocabulário, a gramática, as gírias, as expressões

idiomáticas, as expressões coloquiais da língua de partida (LP) e da língua de

chegada (LC), além de conhecer a história e a cultura daquele povo, ou seja, precisa

dominar o idioma no qual o texto foi dito, ou escrito, originalmente e aquele para o

qual irá traduzi-lo.

Mesmo com uma boa tradução, o sentido único que o texto produz na

sociedade da LP nunca se apresentará da mesma maneira na sociedade da LC,

visto que a Memória social e as lutas de um povo não podem ser traduzidas. Não é

possível carregar o texto de todo o simbólico, que é entendido e sentido de uma

forma única pelos Sujeitos que participaram da construção da história.

Para ampliarmos a discussão em relação ao simbólico, pensemos agora no

que significa a palavra ―sesta‖ para os argentinos, que costumam realizar esta

prática. O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa traz, ―Sesta s.f. 1 repouso após

o almoço 2a hora desse descanso 3 a hora de calor mais intenso durante o dia;

meridiana/ a.s. dormir depois do almoço; descansar * ETIM lat. Sexta (sc.hora) ‗

meio-dia (a sexta hora do dia)‘ * PAR cesta/ ê/ e sexta/ ê/ ( f. sexto/ ê/ e s.f.)

(HOUAISS, 2009, p.1738)‖.

Assim, também a Wikipédia traz um verbete que expressa o significado da

palavra sesta:

A sesta é uma breve cochilada no início da tarde, geralmente depois do almoço. Esse período de sono é uma tradição em alguns países, particularmente naqueles onde o clima é quente. A palavra tem origem na expressão latina hora sexta, que no calendário romano correspondia à sexta hora a partir da manhã

[1], ou seja, ao meio-dia. Um estudo publicado

[2] em

Setembro de 2002 sobre o efeito dos cochilos na produtividade demonstrou que 10 minutos de sono tendem a melhorar a produtividade de modo mais efetivo do que os cochilos mais longos. (WIKIPEDIA, 2016).

Conforme as duas fontes, sesta é um momento do dia reservado para

descansar, logo após o almoço. Esta prática é tradição em alguns países,

principalmente os de clima quente, como a Espanha e, por influência da cultura

espanhola, em muitos latino-americanos. Além do clima quente, o consumo de

alimentos pesados na refeição também contribui para a sensação de sonolência,

após o almoço, a tradição da sesta. Outros países e regiões que realizam a prática

são China, Portugal, Norte da África, Vietnã e índia. Nesses países o calor pode ser

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muito forte no início da tarde. No entanto, em algumas regiões desses países, como

o norte da Espanha, sul da Argentina, e do Chile, o clima é semelhante ao do

Canadá e, mesmo assim, a população possui esta tradição.

Para estes países, esta prática faz parte da cultura, mas pode ser tida como

estranha em outro.

3.5 Marcas da ditadura: RDs sob análise

Assim como os outros países da América do Sul, o Brasil e a Argentina são

historicamente marcados por lutas pela democracia e pela liberdade de expressão.

Apesar das diferenças linguísticas e sociais, os países da América do Sul são

detentores de histórias políticas que se aproximam, a maioria dos países sofreram

com a exploração de países europeus e passaram por ditaduras militares que

repercutem ainda hoje em nossa sociedade.

Segundo Ludmila Franca (2017), as ditaduras militares ocorridas na América

Latina durante os tempos da Guerra Fria decorreram de determinados elementos,

referidos a um conjunto de postulações comuns, convencionalmente alcunhadas de

―Doutrina da Segurança Nacional‖. Sob essa escusa, as Forças Armadas

engendraram e levaram a cabo um discurso político-econômico que expressava uma

série de elementos homogêneos nos países da região, a despeito das diferenças de

formas e estilos na implantação da doutrina.

Conforme Franca (2017), é possível estabelecer certos aspectos comuns que

conformam a ideologia dessa doutrina, no caso brasileiro, a partir de 1964, assim

como no Chile e Uruguai, em 1973 e ainda na Argentina de 1976. O aspecto que

mais se destaca nessa ideologia é a construção da figura do “inimigo público

interno‖, que incutia nos sujeitos a necessidade ideológica de uma guerra interna

constante e permanente contra a influência do comunismo internacional (o ―perigo

vermelho‖), impondo a adoção de um projeto de desenvolvimento com segurança,

que colocava os militares como salvaguardas dos anseios nacionais no terreno das

políticas sócio-econômicas, na medida em que se entendia que estes compunham o

único corpo social apto a transformar o caos instalado pelos subversivos em paz e

estabilidade duradouras.

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Desse modo, o Estado se fortalece em sua pseudo-legalidade, exercendo o

poder normativo da forma que lhe aprouvesse, legitimando meios – na maioria das

vezes nada éticos nem tampouco humanitários – para identificar e eliminar qualquer

organização que fosse entendida como contrária a seus objetivos.

Além desses elementos ideológicos apresentados por Ludmila Franca,

destaca-se nos cenários de ditaduras militares o ―bonapartismo‖, a tendência de a

classe burguesa ascender ao poder e de trabalhar em função da sua manutenção.

Essa ideologia política se destaca no cenário político dos países latino-americanos,

nas décadas de 60 e 70, o que culminou nas ditaduras militares.

O que observamos é que a burguesia, compreendendo-se incapaz de manter a

dominação sobre os trabalhadores em regimes democráticos, alia-se aos militares

para manter o poder. Além disso, para conter os ―subversivos‖, aqueles que são

considerados uma ameaça à ideologia bonapartista, são postas em prática

violências extremas. Dessa forma, o regime visa a garantir a exploração dos

trabalhadores e, acima de tudo, manter o fluxo do sistema capitalista, enriquecendo

cada vez mais a burguesia.

São exemplos disso a ditadura de Alfredo Stroessner (Paraguai), da Argentina

(1976), Chile (1973), Uruguai (1973) e Brasil (1964). Esses regimes se estenderam

até os anos 80, apresentando-se como ―aliados‖ contra o comunismo.

O escritor e jornalista uruguaio, Eduardo Galeano, em sua obra As Veias

Abertas da América Latina, afirma que a América Latina é uma peça fundamental

para o enriquecimento das nações dominadoras, restando, como consequência

disso, o subdesenvolvimento do nosso continente e inúmeras crises sociais que

existem porque nunca conseguimos nos desvencilhar do status de Colônia. Ele

assegura que ―Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória alheia, nossa riqueza

gerou sempre a nossa pobreza para alimentar a prosperidade dos outros: os

impérios e seus agentes nativos‖ (GALEANO, 2010, p. 5-6).

Conforme Galeano, a exploração, iniciada pelos espanhóis e europeus no

século XV e, mais tarde, também realizada pelos ingleses, reflete-se em nossa

estrutura econômica e social até hoje. A América Latina é repleta de exemplos de

exploração e de que regiões ricas no passado passam por pobreza atualmente. Um

deles é constituído pelas minas de Potosí, na Bolívia. Região que fornecia ouro e

prata para os espanhóis é, atualmente, o distrito mais pobre da Bolívia.

Segundo o blog A História Presente, Potosí, na Bolívia,

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Constituiu o principal centro produtor de prata durante o período colonial. A sua exploração em grande escala foi possibilitada pela descoberta, em 1563, de jazidas de mercúrio em Huancavelica. O sistema de exploração mineira era baseado no trabalho indígena, por meio da mita. A prata foi o produto americano mais apreciado pela metrópole. Estima-se que 1/3 da produção tenha circulado às margens dos controles fiscais (SILVEIRA, 2017).

O Nordeste brasileiro, que foi grande produtor de açúcar nos séculos XVI e

XVII, é outro exemplo. A região sofreu com o declínio do açúcar devido a

concorrência com a Holanda, sendo hoje uma das regiões mais pobres do Brasil.

A estrutura combinada da plantação funcionava, e assim funciona também o latifúndio, como um coador armado para a evasão de riquezas naturais. Ao integrar-se no mercado mundial, cada área conheceu um ciclo dinâmico; logo, pela competição de outros produtos substitutivos, pelo esgotamento da terra ou pela aparição de outras zonas com melhores condições, sobreveio a decadência. A cultura da pobreza, a economia de subsistência e a letargia são os preços que cobra, no transcurso dos anos, o impulso produtivo original. O Nordeste era a zona mais rica do Brasil e hoje é a mais pobre (GALEANO, 2010, p.43).

Os Estudos Culturais, neste sentido, ajudam-nos a refletir sobre as relações

sociais e os efeitos do contexto de ditadura em nossa sociedade contemporânea.

As marcas das ditaduras ainda compõem a identidade da população latino-

americana, refletindo-se nas culturas e nos Discursos, sobretudo, nas produções

artísticas. No exemplo da Argentina, tão variada como a sua geografia, assim é sua

cultura. O país é composto por uma mistura étnica de nativos e estrangeiros,

sobretudo da Europa, principalmente espanhóis, alemães, italianos, ingleses e

irlandeses. O grande número de imigrantes europeus influenciou no

desaparecimento de culturas pré-colombianas, o país deixou de ter como população

predominante a indígena e passou por um processo intenso de imigração. Segundo

o site El Rincón Del Vago (http://html.rincondelvago.com/inmigracion-en-la-decada-

de-los-80.html), a Argentina é considerada um país de imigrantes. Estima-se que,

entre os anos finais do século XIX e metade do XX, por volta de 6 milhões de

estrangeiros tenham vindo para o território argentino. Destes, por volta de 3 milhões

se radicaram definitivamente no país.

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Com a diversidade populacional, intensificou-se a busca por expressões

artísticas e culturais. Isso contribuiu para a constituição de uma cultura única e com

expressões características singulares. Quanto às Ideologias, destaca-se a fé na

liberdade, na democracia, no respeito aos direitos humanos e o pensamento e a

linguagem social-democrata. Há no país atividades culturais de renome

internacional, dentre elas a música, a pintura, o teatro e o cinema. Uma das

expressões, amplamente divulgada e respeitada no mundo, é o cinema, usado

também como veículo para manifestar os horrores do período da Guerra Suja, como

ficou conhecido o período da ditadura militar argentina, caracterizado pela violência

indiscriminada, perseguições, torturas e desaparecimentos.

Quanto a passagem do governo militar para um governo escolhido pelo povo, o

escritor Osvaldo Bayer diz:

Depois (dos anos de crimes sórdidos e de condutas obscenas) veio a passagem alegre, plena de frivolidade, com a qual se passou de uma ditadura sóbria e corrupta a um governo constitucional por cima dos fantasmas sempre presentes dos desaparecidos e das tumbas das Malvinas. A sociedade argentina, repentinamente, havia se lavado na democracia com o ato formal de pôr o voto em uma urna. [...] A família argentina se havia reunido novamente no domingo, em paz, depois de tanto sufoco. Mas alguém bateu à porta. Eram as Madres, que queriam saber onde estavam seus filhos (BAYER apud CARREIRA, 2016, p. 84).

Na área do teatro, várias foram as peças que fizeram, e fazem, seus

espectadores pensarem e refletirem sobre a violência e a crueldade presentes na

sociedade, principalmente a sofrida no período da Guerra Suja.

Segundo Piedras e Sala (2017, p. 1), A partir de la segunda mitad de los

cincuenta se produjo en Argentina un proceso de modernización que abarcó

distintas esferas de la producción cultural. Estes autores expõem, no texto Realismo

y subjetividad en el teatro y el cine argentinos de la década del sesenta, que as

décadas de 50 e 60 foram decisivas para o surgimento de debates orientados por

uma perspectiva de associação entre a prática estética e o contexto histórico.

Também En este punto, los discursos en torno al realismo se vuelven pregnantes, en

tanto el término sirvió de horizonte de referencia desde el que se asentaron las

posturas de los grupos emergentes (PIEDRAS e SALA, 2017, p. 1). As análises,

apresentadas no respectivo texto, evidenciam a existência de tensão entre as

propostas que comunicam um enunciado de forma transparente e outras que

pretendem deixar vestígios da subjetividade autoral no processo de enunciação.

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Quanto ao papel dos atores neste cenário, Piedras e Sala (2017) seguem

Domenèc Font (2003) e situam estes profissionais como agentes de mutaciones

históricas, em cujos corpos e formas de trabalho é possível ver a vontade de ruptura

com o passado.

Nessa conjuntura, as propostas artísticas tendem a repensar a visão de

personagem, as produções passam a conceber os sujeitos não mais como bons ou

ruins, como heróis ou vilões, mas com uma perspectiva mais subjetiva e realista.

Como exemplo disso, Jogos na hora da sesta mostra que os sujeitos-crianças

não são totalmente bons, que também possuem atitudes ruins e maldosas. Ao

tomarmos a peça como Discurso, ela deixa de ser apenas representação da

realidade, apresentação artística; passa a ser um apelo discursivo, uma proposta de

reflexão sobre a exterioridade e a Ideologia da violência. Possibilita que o sujeito

interlocutor referencie toda a sua história de luta e busca pela democracia. A

Memória Discursiva da busca pela voz e pelo respeito faz desse Discurso a própria

voz.

Os artistas e intelectuais que tiveram coragem para enfrentar a força de

opressão encontraram na arte uma forma de ter voz e, mesmo que muitos tenham

tido suas obras censuradas, o que fica na história das lutas pela democracia são

suas contribuições discursivas, que deixaram um legado para que as futuras

gerações não esqueçam quais são as marcas desse período de opressão.

A seguir, apresentamos a análise da cena 14 (anexo 1) que trata da morte de

Susana. Nesse fragmento, identificamos a representação de duas Formações

Discursivas diferentes, quais sejam, a dos que pensam que o poder deve ser algo

mantido nas mãos de poucos, que querem manter o poder a todo custo, mesmo este

custo sendo a morte de muitos outros, e os que querem e que lutam em favor da

democracia e da não manipulação do poder.

Compreendemos Susana como uma representante da Formação Discursiva de

oposição ao grupo político adepto ao ―bonapartismo‖, que luta por seus direitos, por

ter voz, e que é composta, sobretudo, por civis argentinos que não têm seus direitos

respeitados, e por intelectuais que compreendem o estado de dominação que

predomina no país.

Comparamos Susana ao povo, que é marcado por uma série de violências,

sejam psicológicas ou físicas. No texto analisado, tais atitudes e palavras cometidas

por aqueles que a consideram indigna de respeito e voz, e que vão ao extremo para

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105

manter o poder. Na peça, temos como Sujeitos da Formação Discursiva dominadora,

sobretudo, o personagem Andres e o restante que, no exemplo do episódio da morte

do passarinho, têm alguma consciência da brutalidade e da violência exercida contra

a pequenina ave, mas que são neutros quando Susana é ofendida em decorrência

de atitudes consideradas erradas, contra a moral, de sua família.

A relação estabelecida entre Andres e as outras crianças, com exceção de

Susana, é de ordem e execução. Andres manda e as crianças obedecem, ou ele

não as deixa brincar. Além disso, neste mesmo exemplo, observamos que a forma

de manutenção do poder é com ameaças, caso o indivíduo não queira cooperar.

Alonso deixa transparecer que não pensa ser correto matar o passarinho, mas após

a ameaça de Andres de que iria contar a todos o segredo de infidelidade do pai de

Alonso, o menino decide cooperar e apertar corpo do pardal até matá-lo. No caso do

RD abaixo, Susana não concorda com a forma como segue a brincadeira e Andres a

provoca com palavras como hijoputa, ofendendo a mãe da menina e a expondo para

todos do grupo de crianças.

Hijoputa é uma expressão utilizada habitualmente como insulto,

principalmente na Espanha. Segundo o dicionário de espanhol, é uma forma vulgar

de denominar alguém como uma pessoa que não tem moralidade. De caráter

ofensivo, o termo descende da utilização da palavra ―puta‖, forma pejorativa de

prostituta. No Brasil, a expressão equivale a ―filha da puta‖.

O RD6: trata da ―brincadeira‖ realizada pelas crianças, em que é feito o velório do pardal. LCP:

Andres: - Porque viemos da terra e a ela voltamos. (Susana volta a atacar as

crianças, que se defendem). Andres, entretanto, começa a revidar aos ataques. E

com um gesto chama os outros a ela. (O grupo responde e todos começam a atacá-

la. Andres se joga sobre Susana, sentando-se sobre sua cabeça e imobilizando-a.

Ela esperneia.) Avancem. Avancem. (As pernas de Susana se movem cada vez

menos. Diego se incomoda com a briga).

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106

LCE:

Andres: - ¡Porque de la tierra venimos y a la tierra volvemos! (a Susana) ¡Basta

ya te digo! ¡Basta ya! (a los chicos) - ¡A ella!

(El grupo responde y todos comienzan a tirar arena encima de Susana que

sigue respondiendo. Andres se abalanza sobre ella, se traban en lucha y el la reduce

quedando encima de Susana y se sienta sobre su cabeza inmovilizándola en parte.

Susana esta boca abajo. Patea y da manotazos mientras los chicos siguen

cubriéndola de arena.)

Andres: - ¡Tapadla! - ¡Tapadla! - ¡tapadla!

Neste RD, é perceptível, na sequência ―A ela.‖ e ―Avancem. Avancem‖, o

Discurso autoritário de quem se considera o ―general‖ do grupo e que as crianças,

com exceção de Susana, veem como tal, representativo da Formação Discursiva

militar. Os verbos no imperativo – Avancem!, a ela! ¡Basta ya te digo! ¡Basta ya! (a

los chicos) ¡A ella! - intensificam a ordem, o mandato, a autoridade exercida por

Andres junto as outras crianças. Percebe-se aqui a influência do menino

repercutindo no comportamento dos demais.

Neste momento do Discurso destacado no RD, observa-se o quanto Andres

exerce influência no grupo. Percebe-se que eles pouco apresentam decisões ou

reflexões sobre as ações realizadas. O ato de agredirem Susana deixa vazar um

sentido simbólico neste Discurso, o de que a menina é um empecilho para a ordem

pré-estabelecida. Para o grupo, a menina estava subvertendo com violência à

ordem, à normalidade necessária ao convívio socialmente aceito, e eles se veem

com o direito de usar de violência para adequar a ―brincadeira‖ conforme seus

interesses. A utilização dos mandatos, das ordens destacadas anteriormente, sugere

que Susana é alguém que vai contra o que deve transcorrer. Em oposição, a atitude

de Susana é reagir da mesma forma que as outras crianças, com violência.

Žižek (2017), em entrevista ao programa televisivo Roda Viva, afirma que

A violência é algo que abala o ritmo natural das coisas. Quando alguma coisa interrompe o fluxo normal [...] acho que devemos mudar a perspectiva e ver a violência invisível que precisa estar presente o tempo todo para que

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107

as coisas aconteçam como normais. Esse é o tipo de violência que me interessa. Pode ser econômica, por parte da polícia[...] O aspecto da violência política que me interessa não é tanto a violência física, o matar as pessoas etc. Se você realmente deseja mudar o funcionamento básico da ordem existente, isso é, por definição, percebido como violência (2017).

O RD também sugere que Susana não é bem aceita pelas outras crianças. Ela

tenta integrar-se ao grupo, mas os demais não a aceitam e utilizam de violência para

que desista. Com a construção ¡Porque de la tierra venimos y a la tierra volvemos! (a

Susana) ¡Basta ya te digo! ¡Basta ya! (a los chicos) ¡A ella!, Andres se dirige

inicialmente a Susana. Este pode ser interpretado como um discurso para que a

menina se conforme com a situação de exclusão, de violência contra sua moral,

porque sua mãe não está agindo de acordo com o que é considerado ―certo‖ pela

sociedade a que o grupo pertence.

A construção ¡Basta ya te digo! ¡Basta ya! (a los chicos) ¡A ella!, é dirigida às

outras crianças. Andres encoraja as outras crianças a agredirem Susana, e segue

com a atitude de sentar-se sobre a cabeça da menina. Em nossa interpretação,

Susana é a representação daqueles grupos que lutam por ter voz, que agem com a

esperança de que um dia serão ouvidos, que buscam a democracia e querem ser

considerados iguais perante a pátria-mãe, a sociedade onde residem, conforme a

Formação Discursiva a que pertencem.

Os períodos de agitação e de luta pela democracia resultaram na Argentina, no

Brasil e na Espanha, assim como nos outros países que tiveram períodos de

ditadura, em muitos mortos. Segundo o site Wikipedia (2017), o número de mortos é

―estimado em mais de 1 milhão de mortos na Espanha, durante a Guerra Civil e o

período Franquista‖. Estima-se que no Brasil ―houve 434 pessoas entre mortos e

desaparecidos durante o regime, além de um genocídio de cerca de 8,3 mil índios‖.

―As estimativas para o número de pessoas que foram mortas ou "desapareceram",

durante a ditadura Argentina, variam de 9.000 a 30.000‖.

Muitos dos mortos e desaparecidos foram considerados subversivos pelo

governo, ou seja, eram aqueles que se posicionavam politicamente contrários à

ordem pré-estabelecida, não se subordinando às normas, autoridades, instituições e

leis. Além disso, o termo também se refere àqueles que agem para perturbar o

desenvolvimento normal de ―algo‖, podendo ser um sistema político, econômico ou

social, ou ainda, aquele que vai contra a ordem moral.

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Pensando o conceito de subversivo sob esta perspectiva, as próprias ditaduras

são subversivas, pois vão contra a ordem pré-estabelecida.

Já no fragmento abaixo, identificamos a subjetividade do tradutor, presente na

escolha de expressões como balas asesinas, segaron cobardemente su vida, murió

por nosotros. Essas são expressões que indicam que o autor do texto, em espanhol,

tem em sua Memória Discursiva o já-dito, que significa que os soldados mortos em

guerras morreram para defender a população.

RD7: quando Andres caracteriza um soldado valente.

LCE:

Andres: - ¡Porque fue un gran soldado mientras estuvo entre nosotros, así lo

fue también en el momento de su muerte cuando las balas asesinas de los apátridas

segaron cobardemente su vida! ¡Murió por nosotros! ¡Por la tranquilidad de nuestras

mujeres, de nuestros hijos; de nuestras calles!

LCP:

Andres: - Foi um valente soldado e assim morreu. Abaixem a cabeça e rezem.

Hei, rezem. Lutou como um valente contra os maus, defendendo os cidadãos

honestos. Cantemos um hino em honra deste valente soldado que caiu cumprindo o

seu dever.

Neste caso, consideramos que o tradutor também faz parte de Formações

Discursivas específicas. Dessa forma, ele não é livre em suas escolhas. Através das

expressões citadas acima, identificamos marcas da ação da Ideologia que considera

os soldados como guardas do que é certo para o meio social. Além disso, apresenta

balas asesinas de los apátridas, daqueles que não são da mesma nacionalidade,

que foram banidos, ou que são considerados como avessos a uma determinada

Ideologia política.

Abaixo, apresentamos o RD que expressa como os tradutores caracterizam um

soldado valente, sendo que o tradutor para o espanhol refere ao soldado valente a

ação de morrer por nuestros hijos, sendo ―Lutou como um valente contra os maus,

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defendendo os cidadãos honestos‖ a respectiva tradução ao português. O Discurso

em espanhol sobre o que é um soldado valente apresenta-se mais intenso na

medida em que, ao utilizar a expressão morrer por nuestros hijos, ele recupera um

já-dito, induz o leitor a que faça uma relação com o acontecimento histórico e

discursivo da morte de Jesus na cruz.

Comparando as duas traduções, salientamos que estabelecem a relação entre

o acontecimento histórico e o discursivo no processo de constituição de sentidos

sobre como entende seja um soldado valente.

O Discurso em análise significa, como representação da violência que se

instaurou durante as ditaduras militares, tanto a violência física e psicológica quanto

a violência invisível, considerada por Žižek como necessária para que haja

mudanças.

RD8 (ANEXO 1): que trata da morte de Susana durante uma brincadeira no

parque.

Com as atitudes do grupo, orientadas por Andres, o final do drama expõe a

culminância do texto, a morte de Susana. O que fica evidente é que entre os

personagens há pouca reflexão a respeito da ação violenta contra a outra criança.

Na LCP, Diego interfere por um momento, chamando a atenção para o que está

acontecendo.

A utilização de ―-Hei...‖, no português, e de “-¿Pero tío, qué haces? -¿Qué

haces? -¿Qué están haciendo?”, em espanhol, representa um RD em que uma das

crianças mostra a atitude de questionar e refletir, a partir das ações e sobre elas.

Sendo essas atitudes o que pode influenciar no resultado final das ações,

percebemos que nesta trama o ato de ―pensar‖ não influenciou para a mudança de

atitude das crianças. O que se evidencia é que Diego se perturba ao ver os demais

atacando Susana.

Na versão em português, o autor opta pela observação de que o menino fica

em estado de dúvida e sai correndo. Já no espanhol, ele questiona o que Andres

está fazendo, possibilitando a interpretação de que eles não sabiam o que estava

acontecendo, mas que estavam agindo assim como Susana, com violência, para

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resolver um suposto problema. No caso dessa, a não aceitação por partes dos

outros, e para o restante do grupo o impasse de não conseguirem fazer Susana se

comportar conforme eles queriam.

Nessa situação, o Discurso de Jogos na Hora da Sesta enfatiza que a violência

gera violência, e esta realmente não surge com a ausência da ―guerra‖, mas sim,

quando não existem esforços suficientes para que haja paz.

Isto posto, é no momento de agressão a Susana que todos estão ―junto com

ela‖. Exterioriza-se como um momento tenso, mas em que a criança, antes excluída

e desprezada, recebe atenção dos outros. O desfecho do drama apresenta a

violência sendo buscada para manter o ―equilíbrio‖ de paz, para aqueles que ―não

conseguiram‖ manter a ordem que queriam com as ―regras criadas‖ através da

―brincadeira‖ hierárquica.

Além de Diego, Alonso, que observava consternado, sai correndo, e o que

ocorre é que, após o acontecimento, todos seguem Diego e saem correndo do

quadro de areia. Por fim, a cena do corpo inerte de Susana sobre o quadro de areia

permite ao leitor uma análise da brutalidade das ações realizadas. Neste RD, as

duas traduções trazem à reflexão a violência física realizada contra a criança.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Literatura e as linguagens se entrecruzam. A primeira permite conhecer, criar

e recriar a realidade, enquanto as segundas são as que permitem que tudo faça

sentido. Dessa forma, o diálogo entre Literatura e Linguística permite a realização de

trabalhos como este, no Curso de Mestrado em Letras- Literatura Comparada, da

URI. Com a base teórica da Análise do Discurso e da Tradução é que o presente

trabalho se tornou significativo para a autora.

A partir do texto da peça Jogos na Hora da Sesta, integrante da literatura

argentina, e das cenas que expressam violência física e psicológica, esta pesquisa

foi produzida. O contexto histórico da população da Argentina está presente em toda

obra, reproduzindo a violência, através da Memoria Discursiva, tanto da própria

dramaturga, como da memória social dos povos latino-americanos.

Com a análise dos recortes discursivos-RDs, buscamos compreender o que

simboliza no Discurso a violência realizada pelas crianças, investigamos as marcas

do contexto histórico e ideológico, da exterioridade da violência, no texto. Bem mais

que um Discurso da violência entre crianças, o Discurso de Roma Mahieu

apresenta-se como uma metáfora da violência, um Discurso de vidas transformadas

pelo contexto social, é uma proposta de reflexão sobre o mundo ―adulto‖.

Roma Mahieu, em sua narrativa ficcional e de denúncia, através dos ―jogos

infantis‖ apresenta uma representação do universo ―adulto‖, pleno de crueldade e

ganância pelo poder. Como a própria autora revelou, a obra é resultado da

observação das ―brincadeiras‖ realizadas por crianças, da rua em que ela residia, à

época, na Argentina.

As escolhas linguísticas da escritora apresentam-se como essenciais para a

interpretação dos Recortes Discursivos, sendo ela, também, representante do grupo

que viveu o período conturbado da Guerra Suja na Argentina. Não sendo escritora

parcial, mas atenta às circunstâncias político-culturais de seu tempo de permanência

naquele país, sua obra marca a História tanto da sociedade argentina, quanto de

todas as que têm acesso a seu texto. Este, que era inicialmente visto como de

caráter lúdico e infantil, passa a ser visto pela censura como um Discurso contra as

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Ideologias do grupo militar, razão de haver sido proibido na Argentina e, ainda hoje,

após 40 anos, não ser de acesso fácil nos países da América Latina.

Após a definição do corpus, a escolha da teoria base para a análise discursivo-

interpretativa, e da Teoria da Tradução, foi decisiva e desafiadora, já que, no

Programa de Mestrado em Letras-Literatura Comparada e na Graduação em Letras,

a base teórica da Análise do Discurso e da Tradução não integravam a grade

curricular dos mencionados cursos. Dessa forma, a busca por conhecimento da

teoria foi compartilhado com a orientadora que orientou a pesquisadora e a inseriu

em eventos da área.

Com o embasamento teórico, buscamos significados nos recortes discursivos,

refletimos sobre as condições de produção, sobre as Formações Discursivas e

Ideológicas. Além disso, buscamos conhecer os períodos complicados de ditadura

militar, que deixaram marcas na História de países como a Argentina e o Brasil. Foi

pela revisão da memória social que pretendemos identificar a presença da

exterioridade na constituição do Discurso, enquanto os RDs foram selecionados por

seu caráter dramático, consideradas a subjetividade e a Memória Discursiva.

Concebemos a Memória Discursiva não como as ―memórias individuais‖, mas

em esfera coletiva e social, como responsáveis por produzir as condições

necessárias para o funcionamento dos Discursos e, dessa forma, também para a

interpretação dos mesmos. Nesse sentido, Pêcheux (2010) argumenta que

―memória deve ser entendida […] não no sentido diretamente psicologista da

―memória individual‖, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da

memória social inscrita em práticas, e da memória construída do historiador‖

(PÊCHEUX, 2010, p.50). Dessa forma, são as redes de memórias que permitem que

sejam retomados os já-ditos e que haja a atualização da história dos acontecimentos

discursivos.

Para Pêcheux (2010), a memória seria aquilo que permite que sejam

restabelecidos os implícitos, face a um texto que surge como acontecimento a ler.

―(quer dizer, mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e relatados,

discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a condição do legível em

relação ao próprio legível‖ (PÊCHEUX, 2010, p. 52).

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Segundo Davallon, ―a capacidade de conservar o passado e sua fragilidade

devida ao fato de que o que é vivo na consciência do grupo desaparecerá com os

membros desse último‖ (1999, p. 25). Assim sendo, pretendemos que, de alguma

forma, este trabalho possa contribuir para aprofundar os diálogos entre a Literatura e

a Linguística, e, por mais básico que se apresente, objetivamos, com esta pesquisa,

contribuir com os esforços para preservar a memória social e política dos países que

passaram por ditaduras.

Textos como o de Roma Mahieu constituem-se como memória histórica pelo

caráter questionador e social, trazendo à tona temas de interesse global como o

problema recorrente da utilização da violência para a manutenção do poder.

Também, traz memórias latino-americanas e, por considerarmos que necessita ter

espaço e voz, deve circular para que a liberdade de produção e a democracia não

fiquem apenas em nosso pensamento.

Mais do que ficção, Jogos na Hora da Sesta é um retrato do que ocorreu em

muitos países da América Latina e Europa. Pelo valor histórico e por colocar em

discussão as leituras do passado e os conceitos e dúvidas do presente, esperamos

que este trabalho reflexivo possa contribuir para a busca pelo conhecimento da

nossa memória histórica. Em um momento, no qual a política brasileira nada mais é

do que uma luta por poder e domínio, conhecer o nosso passado é o que pode nos

desviar do caminho de repetir a história. Assim sendo, esta peça talvez tenha muito

mais haver com nosso presente angustiante do que com o passado, pois mesmo

significando daquele, traduz um pouco da tensão e das inquietações da atualidade.

Durante a pesquisa em questão, observamos que, tanto para traduzir quanto

para analisar traduções e comparar, é preciso, além de conhecimentos linguísticos,

conhecer o contexto histórico da sociedade que recebe o texto, para que as

condições de produção e a exterioridade fiquem em evidência no cotejo dos textos.

Dessa forma, o presente trabalho compreende a Tradução como uma tarefa

dificílima, já que o tradutor também é um sujeito histórico e constituído, enquanto

sujeito, através do processo de interpelação das Ideologias. Assim, consideramos,

com base na teoria contestadora, que toda tradução é um texto novo, afinal é

impossível que o tradutor tenha acesso à intenção do autor do texto primeiro.

Igualmente, consideramos que com o diálogo entre a AD e a Tradução foi

possível refletir sobre os textos, tanto como, no óbvio dos significados linguísticos,

buscar nos enunciados selecionados significados não evidentes, mas que se

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apresentam na superfície discursiva e estão passíveis de interpretações. No entanto,

a aqui apresentada é uma dentre as múltiplas interpretações possíveis, já que o

Discurso, sendo construído entre interlocutores, não esgota seus sentidos e é

passível de múltiplas reflexões.

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122

ANEXOS

ANEXO 1:

RD8: que explicita a morte de Susana.

LCE:

Andres: - ¡Tapadla! - ¡Tapadla! - ¡Tapadla!

Diego: - Pero tío, ¿qué haces? - ¿Qué haces? - ¿Qué están haciendo?

(Nadie le presta atención con el tam tam del bacalao detrás siguen tapando a

Susana que va dejando de moverse. Diego retrocede y de pronto sale corriendo de

escena. Susana ya no se mueve. Los chicos dejan de amontonar arena sobre

Susana. Andres está sentado, sudoroso y agitado).

Andres: - ¡Ya está!

(Todo parece haberse relajado. Los chicos van saliendo del cuadrado, están un

tanto sorprendidos, un tanto asustados).

Carolina: - ¡Tengo hambre, me llama mi mamá!

(Carolina sale corriendo, al verla correr la sigue Sergio. Andres se incorpora. Alonso

retrocede hasta salir corriendo. Claudia busca la bolsa de plástico, saca un resto de

sus golosinas y se las mete en la boca. Andres se acomoda el casco y la metralleta

a la espalda y sale marchando seguido por Claudia mientras el escenario es

inundado por una luz violeta, el ritmo del bacalao y centenares de pájaros gritando).

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LCP:

Diego – Hei... (Em dúvida, ele dá meia volta e sai correndo. Susana não se move.

As crianças param de atacar. Andres está sentado sobre ela.)

Carolina – Tô morta de fome... minha mãe tá me chamando...

Sérgio – Eu também tenho que ir.

Andres – (Saindo de cima do corpo de Susana) Pronto. (Alonso, que olhava

consternado, sai correndo. Cláudia retira sua bolsa do meio dos brinquedos

esquecidos e sai atrás do irmão. O que resta é o corpo de Susana).

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ANEXO 2:

Cena 14:

LCE:

Andres: - ¡Queridos hermanos!

Sergio: - ¡Dame la camisa!

Andres: - ¡No interrumpas!

Sergio: - ¡Dame la camisa que es de mi papá!

Andres saca la camisa de un tirón y sale volando un montón de arena.

Andres: - ¡Si serás maricón!

Sergio: - ¡El lazo también!

Andres: - El lazo también.

(Revuelve la arena, le tira el lazo, con los objetos en la mano Sergio se incorpora al

rito grupal).

Andres: - ¡Hermanos! - ¡Nos hemos reunido para decir nuestro último adiós a

nuestro valiente compañero hacia su última morada, donde el Todo Poderoso lo

recibirá en sus brazos!

(El discurso de Andres va subiendo de tono, así como el apoyo tácito del grupo que

se va poniendo de rodillas y va golpeando el suelo con los puños al ritmo de la

marcha, al cual también se acopla el discurso. Y de a poco Susana comienza a

echar arena sobre el grupo entero sin que nadie parezca darse por enterado, salvo

la irritación creciente).

Andres: - ¡Porque fue un gran soldado mientras estuvo entre nosotros, así lo fue

también en el momento de su muerte, cuando las balas asesinas de los apátridas

segaron cobardemente su vida! - ¡Murió por nosotros! - ¡Por la tranquilidad de

nuestras mujeres, de nuestros hijos; de nuestras calles!

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(Susana alza con fuerza la pierna y una lluvia de arena cae sobre Andres, quien

sigue dándole la espalda).

Andres: - ¡No me jodas, tía! (al grupo) - ¡Preparad vuestros corazones, inclinad

vuestras cabezas y rezad! Rezad, hermanos!

(Aumenta la lluvia de arena y de objetos sobre los chicos, el canto de estos se

vuelve feroz).

Andres: - ¡Me cago en la madre que te parió! - ¡Rezad! - ¡Rezad! - ¡Rezad por este

patriota que luchó por la sucia subversión! - ¡Contra esta basura, contra esta lacra

social! - ¡Basta ya, tía! - ¡Hijoputa! ¡Cantemos, hermanos!

(El canto y golpes del grupo se ven apoyados por el tam tam del bacalao. Andres

traza una cruz por encima de las cabezas de los chicos).

Andres: - ¡Porque de la tierra venimos y a la tierra volvemos! (a Susana)

- ¡Basta ya, te digo! - ¡Basta ya! ( a los chicos) -¡A ella!

(El grupo responde y todos comienzan a tirar arena encima de Susana, que sigue

respondiendo. Andres se abalanza sobre ella, se traban en lucha y el la reduce

quedando encima de Susana y se sienta sobre su cabeza, inmovilizándola en parte.

Susana está boca abajo. Patea y da manotazos mientras los chicos siguen

cubriéndola de arena).

Andres: - ¡Tapadla! - ¡Tapadla! - ¡Tapadla!

Diego: - ¿Pero tío, ¿qué haces? - ¿Qué haces? -¿Qué están haciendo?

(Nadie le presta atención con el tam tam del bacalao, detrás siguen tapando a

Susana que va dejando de moverse. Diego retrocede y de pronto sale corriendo de

escena. Susana ya no se mueve. Los chicos dejan de amontonar arena sobre

Susana. Andres está sentado sudoroso y agitado).

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Andres: - ¡Ya está!

(Todo parece haberse relajado. Los chicos van saliendo del cuadrado, están

un tanto sorprendidos, un tanto asustados).

Carolina: - ¡Tengo hambre, me llama mi mamá!

(Carolina sale corriendo, al verla correr la sigue Sergio. Andres se incorpora.

Alonso retrocede hasta salir corriendo. Claudia busca la bolsa de plástico,

saca un resto de sus golosinas y se la mete en la boca. Andres se acomoda

el casco y la metralleta a la espalda y sale marchando seguido por Claudia

mientras el escenario es inundado por una luz violeta, el ritmo del bacalao y

centenares de pájaros gritando).

Cena 14:

LCP:

Andres – Queridos irmãos...

Sérgio – Me dá a camisa.

Andres – Não me interrompa.

Sérgio – Você disse que ia devolver. E a camisa é do meu pai.

Andres – Não seja fresco. (Andres devolve a camisa)

Sérgio – Me dá a gravata. (Andres a lança para Sérgio)

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Andres – Puta merda... Irmãos, estamos reunidos aqui para acompanhar nosso

querido irmão e amigo até a sua última morada, onde o Todo Poderoso vai receber

ele em seus braços. Foi um valente soldado e assim morreu. Abaixem a cabeça e

rezem. (Susana ataca todos) Hei, rezem. Lutou como um valente contra os maus,

defendendo os cidadãos honestos. Cantemos um hino em honra deste valente

soldado que caiu cumprindo o seu dever. (Todos cantam) Porque viemos da terra e

a ela voltamos. (Susana volta a atacar as crianças, que se defendem. Andres,

entretanto, começa a revidar os ataques. E com um gesto chama os outros) A ela.

(O grupo responde e todos começam a atacá-la. Andres se joga sobre Susana,

sentando-se sobre sua cabeça e imobilizando-a. Ela esperneia). Avancem.

Avancem. (As pernas de Susana se movem cada vez menos. Diego se incomoda

com a briga)

Diego – Hei... (Em dúvida, ele dá meia volta e sai correndo. Susana não se move.

As crianças param de atacar. Andres está sentado sobre ela)

Carolina – Tô morta de fome... minha mãe tá me chamando...

Sérgio – Eu também tenho que ir.

Andres – (Saindo de cima do corpo de Susana) Pronto. (Alonso, que olhava

consternado, sai correndo. Cláudia retira sua bolsa do meio dos brinquedos

esquecidos e sai atrás do irmão. O que resta é o corpo de Susana).