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A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA

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A FACE REVERSADA EDUCAÇÃO MÉDICA

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

M887f Moura, Luís César Souto deA face reversa da educação médica : um estudo sobre a forma-

ção do habitus profissional no ambiente da escola paralela / LuísCésar Souto de Moura. – Porto Alegre, RS : AGE : SIMERS, 2004.

14x21 cm. ; 160p.

ApêndiceInclui bibliografiaISBN 85-7497-235-5

1. Educação médica. 2. Pessoal da área médica – Treina-mento. I. Título.

04-2592. CDD 610.7CDU 614.252

LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

UM ESTUDO SOBRE A FORMAÇÃO DO HABITUSPROFISSIONAL NO AMBIENTE DA ESCOLA PARALELA

PORTO ALEGRE 2004

A FACE REVERSADA EDUCAÇÃO MÉDICA

© Luís César Souto de Moura, 2004

Capa:MARCO CENA

Diagramação:LAURI HERMÓGENES CARDOSO

Supervisão editorial:PAULO FLÁVIO LEDUR

Editoração eletrônica:AGE – ASSESSORIA GRÁFICA E EDITORIAL LTDA.

Reservados todos os direitos de publicação ao

SIMERS – SINDICATO MÉDICO DO RIO GRANDE DO SUL

Rua Cel. Corte Real, 975Fone (51) 3027-3737

90630-080 Porto Alegre, RS, Brasilwww.simers.org.br

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EDITORA AGE LTDA.

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[email protected]

Impresso no Brasil / Printed in Brazil

Agradecimentos

Aos meus filhos, Ricardo e Artur, pelas horas de lazer em queprescindiram involuntariamente da companhia do pai para

que este trabalho fosse realizado.À minha mulher, Gisela, que já passou por isso, cuja contri-

buição foi decisiva em todos os sentidos para que este estudo fosseviável.

À minha mãe, Myrtes, também titulada como mestre, mi-nha referência intelectual e moral, a qual me ensinou que a educa-ção é um processo que nunca está concluído.

Ao meu pai, Carlos Alberto (in memoriam), guerreiro queme instruiu e treinou para a luta da vida; filósofo da prática queme ajudou no desenvolvimento do espírito crítico.

Ao Prof. Renato de Oliveira, orientador e amigo que foi quemmelhor entendeu o que eu queria mesmo estudar; analista queincorporou um entendimento fantástico do mundo e da almamédica; parceiro no jogo da “Conciliação de Agendas”.

A ciência está longe de ser um instru-mento perfeito de conhecimento. É ape-nas o melhor que temos. Neste aspecto,como em muitos outros, ela se parece coma democracia.

Carl Sagan

Sumário

Apresentação (Renato de Oliveira) ............................................................ 11Introdução ................................................................................................. 19

Explicações introdutórias ....................................................................... 19Delimitação do tema, hipótese e objetivos ............................................ 22

CAPÍTULO 1

UMA REVISÃO DA BIBLIOGRAFIA SOBREA SOCIOLOGIA DAS PROFISSÕES

1.1 Opção epistemológica .......................................................................... 351.2 A sociologia e as profissões ................................................................... 371.3 A profissão como categoria analítica .................................................... 491.4 Profissão, profissionalização e profissionalismo ................................... 55

CAPÍTULO 2

MEDICINA E PROFISSIONALISMO

2.1 A medicina como profissão típico-ideal ............................................... 582.2 Cultura profissional médica ................................................................. 672.3 Medicina e profissionalismo no Brasil ................................................. 702.4 A escola médica como reprodutora de uma

cultura profissional unificada metanacional ........................................ 73

CAPÍTULO 3

EDUCAÇÃO MÉDICA E FORMAÇÃODO HABITUS PROFISSIONAL

3.1 Educação médica e conversão à cultura profissional ............................ 753.2 A formação de um habitus profissional médico ................................... 87

3.3 Ação pedagógica e reprodução das relaçõessociais em um campo ........................................................................... 89

3.4 Habitus e estratégias profissionais ........................................................ 92

CAPÍTULO 4

METODOLOGIA

4.1 A medicina na confluência de paradigmas ........................................... 974.2 O emprego de uma metodologia crítico-dialética de análise ............. 1044.3 A entrevista como técnica .................................................................. 109

CAPÍTULO 5

TRABALHO DE CAMPO E ANÁLISE DE DADOS

5.1 Classificação dos dados e definição de categorias operativas ............. 1135.2 Análise de dados sintetizados ............................................................. 115

CAPÍTULO 6

CONCLUSÕES

6.1 Considerações finais ........................................................................... 1516.2 Da escola formal à Escola Paralela:

O trânsito da formação do habitus profissional ................................. 152

Bibliografia consultada ............................................................................. 158

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Apresentação

O presente livro é o trabalho apresentado pelo autor para a obten-ção do grau de Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-

Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grandedo Sul em 3 de dezembro de 2001, quando, por maioria da bancajulgadora, obteve conceito máximo. Tive o prazer e a honra de orientareste trabalho.

Para elaborá-lo, o autor contou antes de tudo com sua fina capaci-dade de percepção das coisas e pessoas, que se traduz num gosto caracte-rístico e muito próprio em observar a vida, resultando antes de tudonuma personalidade cativante. Tais características o fizeram guardar namemória uma infinidade de fatos aparentemente pequenos e sem im-portância, banais até, vividos ou observados durante sua vida de estu-dante. Fatos paralelos à formação médica propriamente dita, desses quevão aos poucos constituindo o folclore de uma instituição, e que o autorgosta de relatar aos amigos pelo puro prazer do bom-humor.

Em segundo lugar, contou com o conceito de habitus, do soció-logo francês Pierre Bourdieu, recentemente falecido.

Bourdieu é um sociólogo exigente, que não admite contempla-ções para com a “sociologia dos sábios”. Bourdieu entende como talaquela sociologia que coloca o sociólogo acima do seu objeto de es-tudo, enquadrando-o em esquemas teóricos previamente definidos,dos quais se deduzem as “leis” que determinam o comportamento deagentes sociais mais ou menos ignorantes sobre os fundamentos desuas preferências e escolhas. Para Bourdieu, a sociologia é um “espor-te de combate”, que coloca o sociólogo lado a lado com seu objeto,engajando-o numa luta que é a um só tempo de compreensão e des-mitificação das ilusões que envolvem o objeto. Por isso mesmo, éuma sociologia com exigências éticas rigorosas e muito definidas,que obrigam o sociólogo, antes de tudo, a colocar-se em guarda con-tra as armadilhas da sua formação.

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O médico Luís César sentiu-se à vontade nesta sociologia. Nãoapenas por ser médico – obviamente! –, mas por ter aprendido, aolongo de sua história de relacionamento com seu objeto de trabalhomédico, o paciente, a abrir um olho com respeito à sua própria for-mação profissional. Que está entre as melhores do país, digamo-lologo: o Dr. Luís César é formado pela Faculdade de Medicina daUniversidade Federal do Rio Grande do Sul – cujo folclore já cente-nário é riquíssimo e saborosíssimo!

O conceito de habitus Luís César foi aprendendo aos poucos, coma dificuldade própria de alguém que, como costumava dizer em nossassessões de trabalho, “vem de uma outra formação”. De fato, o Dr. LuísCésar não entrou na sociologia pela porta mais comumente utilizadapelos médicos que a buscam, a porta da medicina de saúde pública e daepidemiologia – o Dr. Luís César é médico clínico, especializado emcirurgia geral. Em suma, uma outra formação. Mas as inúmeras históriasdos seus tempos de aprendizado médico, um folclore inteiro que povoa-va sua memória, estavam lá, como material bruto a ser trabalhado, e LuísCésar ia avançando em seu novo aprendizado teórico com o visível fascí-nio de quem volta e meia se parava dizendo: “Tchê, mas então é isto?!”

Através do conceito de habitus Bourdieu deita raízes em Aristó-teles, desconfiado de uma razão que fosse capaz de libertar-se de to-das as contingências da vida e chegar a uma pureza de intençõesdeterminada unicamente por ela própria, a Razão. Kant tem algo aver com isso, e não é à toa que Kant é tão citado por doutrinadoresde uma ética médica que seria capaz de insurgir-se contra as contin-gências do exercício profissional e submeter o médico ao seu únicoimperativo: primum non nocere, o bem-estar do paciente em primei-ro lugar. Aristóteles é mais complexo. Para ele, a razão humana estáindissoluvelmente ligada à vida prática, que não é resultado, esta,nem dos desejos ou do simples querer afetivo, nem tampouco dateoria ou da sabedoria, mas da sua combinação no ato, no agir efeti-vo. Para Aristóteles, é sobre as circunstâncias que o ser humano deli-bera. E se a deliberação é um ato de razão, a matéria sobre a qual elase exerce é antes sentida irracionalmente na esfera do desejo.

Esse primórdio de uma teoria da ação está presente no conceitode habitus. Através dele, Bourdieu procura explicar a ação humana

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como resultado das escolhas do próprio indivíduo. Essa ação, no en-tanto, bem como as escolhas em que ela se baseia, realizam-se nummundo de relações sociais objetivadas, cuja expressão maior são asinstituições. Face a tais relações, há, em primeiro lugar, uma disposiçãopermanente do indivíduo em adaptar-se a elas. Essa disposição é da or-dem do inconsciente. Por outro lado, é graças a essa adaptação que aação se torna possível e, mais importante, socialmente relevante.

Se entendermos a ação como fundamentalmente distinta do com-portamento, na medida em que este é uma incorporação passiva dascircunstâncias, reproduzindo-as, enquanto aquela é resultado de umavontade capaz de ir contra e alterar as circunstâncias (o comporta-mento é conforme à regra, a ação é conforme à liberdade), o ditoanteriormente pode parecer um paradoxo. Mas não o é. Bourdieuprocura demonstrar justamente que é por identificar-se com as rela-ções sociais objetivadas em seus respectivos “campos” (o científico, oreligioso, o econômico, etc.) e as distintas práticas sociais e formas deconhecimento a eles associadas, que o indivíduo é capaz de decidir-se a agir. Em outras palavras, é antes de tudo a familiaridade com oconjunto de práticas sociais e conhecimentos correspondentes a um“campo” específico de atividades que dá suporte à ação.

O médico é um excelente exemplo de como isso se processa.Pensemos no cirurgião que, da sala de urgências do Hospital de ProntoSocorro, viu entrar um indivíduo pálido estendido sobre uma maca,apresentando um pequeno orifício no abdômen (“bala calibre 22” –pensa ou ouve falar!). Imediatamente saca do bisturi, faz uma incisãoprecisa no abdômen da vítima, literalmente enfia a mão incisão aden-tro e segura o vaso por onde se esvai o sangue1. Tudo se passa muitorapidamente, sem que tivesse havido tempo para que o médico exa-minasse o caso, imaginasse a trajetória da bala no interior da cavida-de abdominal e concluísse, com base no seu conhecimento teóricodessa parte da anatomia humana, que muito provavelmente o vaso“x” havia sido perfurado, submetendo a vítima a intensa hemorragiainterna, e, com base nesta hipótese, avaliasse as possíveis conseqüên-

1 Uma cena como esta é consistentemente referida, no meio médico, como tendoefetivamente acontecido no Pronto Socorro Municipal de Porto Alegre.

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cias, sobre o estado da vítima, do tempo necessário para a chegada aobloco cirúrgico, os procedimentos de anestesia, assepsia de campo,etc., para então decidir, argumentativamente, que o melhor seria nãoesperar e agir ali, naquele preciso momento. Nada disso ocorreu: omédico olhou o paciente, ato contínuo avançou com o bisturi e ime-diatamente estava com a mão no interior da cavidade abdominalacompanhando a maca até a sala de cirurgia, onde se comprovou oacerto da sua intervenção.

Alguém poderia sugerir que isso foi possível pelo “hábito” domédico em questão. De tanto executar cirurgias abdominais, o mé-dico “habituou-se” e sua ação foi, como se diz, “automática”. Estaresposta, no entanto, é altamente insatisfatória. O “hábito” só se tor-nou possível através da repetição sucessiva de eventos em condiçõesidênticas: eu reajo sempre da mesma forma quando ouço o ruído docarro de minha mulher aproximando-se do portão da casa (e nissotalvez não me diferencie muito do meu cachorro...); ou, quando sen-to confortavelmente ao final do dia para ler o jornal levo automati-camente a mão ao bolso do paletó em busca do maço de cigarros –apesar de já ter deixado de fumar há alguns anos; ou cultivo o hábitode, nos finais de tarde, encontrar os mesmos amigos para um chopeno mesmo bar, de preferência na mesma mesa e para debater os mes-mos assuntos, até que num certo dia, encontrando o bar fechado,deparamo-nos com um problema insolúvel. Em suma, o hábito nãorequer deliberação – antes dispensa-a. Ora, o evento acima referidofoi absolutamente singular. Nunca havia ocorrido daquela forma ejamais voltou a ocorrer. No entanto, sua ocorrência deu-se num con-texto (um “campo”, para utilizarmos a linguagem do próprio Bour-dieu) com o qual o médico estava extremamente familiarizado. Con-texto formado por conhecimentos teóricos, formas próprias de co-municação e relações entre seus integrantes, estruturadas segundovalores típicos, resultados almejados, etc. Essa familiaridade não éoutra coisa senão o fato de o médico tomar esse contexto como sen-do seu, interiorizá-lo, transformando-o no elemento estruturante doseu equipamento mental, a ponto de poder decidir e agir criativa-mente sobre ele de forma aparentemente instantânea. É a isso que Bour-dieu chama de habitus, distinguindo-o do simples “hábito”.

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Luís César estende o modo de análise próprio a esse conceito àexperiência dos estudantes de medicina. Trata-se, em suma, de ten-tar compreender o processo de formação da “maneira médica de vero mundo” – uma maneira que não se restringe aos assuntos médicospropriamente ditos. A suposição básica de sua análise é que essa for-mação não depende apenas, nem principalmente, dos conteúdos teó-ricos aprendidos em sala de aula. A formação em medicina á umaformação envolvente como poucas. A experiência de lidar com umser humano em situações-limite, não raro entre a vida e a morte; deconviver com a dor alheia, tanto de pacientes quanto de pessoas nomomento da perda de entes queridos; de fazer experiências em ani-mais in vivo; de manipular e cortar cadáveres humanos com espírito“objetivo”, dentre outras, e tudo isso pouco após a adolescência, noinício da formação da personalidade adulta, só é possível se os estu-dantes de medicina contarem com um suporte emocional, psíquicoe afetivo ímpar dentre as formações profissionais de nível superior. Éesse suporte que será decisivo para a formação da personalidade dofuturo médico, inclusive da sua formação ética. Os “conceitos” rela-tivos a esse suporte estão, obviamente, no mais das vezes, presentesnas disciplinas que compõem o currículo de um curso de medicina.Mas as relações vivenciais que o garantem não estão aí. Elas estãopresentes no universo de relações sociais nas quais o estudante demedicina imerge no momento de ingresso no seu curso, e que daí emdiante constituirão o seu mundo – o seu “campo”, para utilizarmos alinguagem de Bourdieu. “Campo” onde aparecem professores, pes-quisadores, médicos assistentes, pacientes, funcionários da faculda-de, profissionais de enfermagem, pessoal auxiliar, estudantes, etc.,mas, sobretudo, onde são constituídas e vividas relações sociais espe-cíficas entre esses distintos personagens.

“Campo”, no sentido que lhe dá Bourdieu, é literalmente “campode forças”, e podemos pensá-lo por analogia ao conceito físico de“campo”. Na física concebe-se a coexistência de campos distintos nummesmo espaço, como, por exemplo, um campo magnético e o cam-po gravitacional. No entanto, as forças de um deles (as do campomagnético, por hipótese) podem ser tão intensas que torne irrele-vante, em seu interior, a ação das forças do campo gravitacional. A

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analogia, no entanto, pára por aí: num “campo social”, os indivíduosagem, ao contrário de partículas metálicas num campo magnético,por exemplo. Ora, o que caracteriza a abordagem de Bourdieu, é queesta ação se realiza no “quadro de forças” que caracteriza o “campo”respectivo, e só é possível porque os indivíduos internalizam tais for-ças como se fossem suas próprias, ou seja, seu modo natural de ser. Éessa internalização que Bourdieu chama de habitus.

Tais forças, nos “campos” sociais, são constituídas pelas tradições,ritos, linguagem, valores, pela cultura enfim, no sentido amplo destetermo, característica de cada setor de atividade humana. Se elas, de umaforma ou de outra, refletem a cultura de uma sociedade como um todo,assumem, no entanto, no interior de cada “campo”, formas específicas euma intensidade tal que podem tornar irrelevantes, para a conduta dosseus integrantes, valores institucionalizados da sociedade. Pensemos, porexemplo, na anulação da eficácia dos valores ligados à solidariedade hu-mana no interior do “campo” econômico.

Ora, a cultura de um “campo” não é inteiramente instituciona-lizada. Ela se expressa e adquire tão maior vitalidade quanto mais éimpregnada no dia-a-dia dos indivíduos, em seus hábitos, etc., trans-mitindo-se geração após geração de forma não sistematizada, e so-bretudo pelo “folclore” típico de cada setor de atividade humana.

Daí a hipótese que permeia todo o trabalho de Luís César: nas salasde aula, os estudantes aprendem medicina; no entanto, eles aprendem aser médicos num espaço de baixa institucionalidade que circunda as salasde aula, onde convivem com as práticas da sua futura profissão. É nesseespaço de baixa institucionalidade que, aprendendo o folclore da profis-são e, através dele, tornando-a sua, eles aprendem também a praticar osvalores ligados à hierarquia entre os diversos personagens do “campo”médico, encontrando o seu lugar nesse campo, ensaiando-se nas suasrelações internas. O que torna esse aprendizado prático altamente eficazé, provavelmente, o fato de que ele funciona também como suporte paraas emoções vividas por um pós-adolescente na sua formação médica,seja anulando-as ritualmente, seja estereotipando-as.

A importância do trabalho de Luís César, portanto, vem dofato de ele desviar o foco comumente utilizado nos debates sobre aformação médica, que tendem a centralizar a atenção nos problemas

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dos currículos e na ordenação dos conteúdos teóricos – enfim, nosproblemas típicos do espaço de forte institucionalidade da formaçãoprofissional, espaço, conseqüentemente, público e submetido a con-troles formais, como se fosse aí que o estudante aprendesse a ser mé-dico. Ora, diz Bourdieu, retomando Aristóteles, a forma de os médi-cos agirem não é nem o resultado das suas impulsões subjetivas, nemda sua formação teórica, tomadas isoladamente. Ela é resultado dacombinação peculiar desses dois componentes – um “prático” e ou-tro “teórico” – em cada situação concreta.

A pergunta que resulta dessa hipótese é: quais valores estão sen-do transmitidos aos nossos estudantes de medicina, ou seja, aos nos-sos futuros médicos, nesses espaços de baixa institucionalidade, alheiosa qualquer controle formal, que circundam as salas de aula dos nos-sos cursos de medicina? Como os estudantes estão sendo ensinados,aí, por exemplo, a enfrentarem a “selva” do mercado de trabalhonum estado como o nosso, que já tem um médico para cada 240habitantes, dos quais pelo menos a metade são pessoas pobres quenão podem pagar uma consulta ou um seguro privado de saúde?Como aparecem, para esses estudantes, seus futuros pacientes habi-tantes dessa selva que eles visualizam a partir do seu “campo” especí-fico de formação nas práticas profissionais?

Olhando as coisas por esse ângulo, começaremos a entender osentido de expressões como “tigrão”, “jacaré”, “cabeção” e outras,que povoam o folclore desses espaços de baixa institucionalidade – edeveríamos começar a nos preocupar profundamente...

Oxalá as dificuldades inerentes a algumas das atuais atividadesdo Dr. Luís César o animem a retomar esta linha de pesquisa! En-quanto isso, seu trabalho deveria urgentemente ser levado em contapelos responsáveis pela educação médica em nosso país, bem comopela ética dos nossos futuros profissionais médicos. Caso contrário,continuaremos almejando a ética do reino dos anjos enquanto cáembaixo os demônios andarão à solta.

PROF. RENATO DE OLIVEIRA

Programa de Pós-Graduação em SociologiaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul

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IntroduçãoOs erros da religião são perigosos; os da filosofia,apenas ridículos.

David Hume

EXPLICAÇÕES INTRODUTÓRIAS

As relações da medicina como profissão instituída, tomadacomo um agente social coletivo, com o conjunto da sociedadesão marcadas por oscilações entre tensão e harmonia, antago-nismo e cooperação, ressentimento e gratidão, dominação esubordinação.

A profissão médica instituída apropriou-se progressivamente deum bem social, produzindo um conhecimento de base científica queestrutura uma prática, que tem valor econômico e político e que res-ponde a uma necessidade universal da sociedade, ou seja, uma neces-sidade que atinge todos os seus agentes individualmente.

Em suas relações com outros agentes sociais, tais como pacientese outros profissionais de saúde, a medicina usa esse bem apropriadocomo fonte de poder e como estratégia de dominação e hegemoniano campo da saúde, já apontada por Pires (1989).

Tal fonte de poder, como é fácil imaginar, não foi subtra-ída ao conjunto da sociedade de forma espontânea, mas frutode um longo processo ativo que acabou reservando esse corpode conhecimentos legitimamente a alguns indivíduos que, aele tendo acesso, vêem-se moralmente obrigados à sua guardae se tornam coletivamente responsáveis por mantê-lo ao abri-go de olhos leigos.

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Para que este poder siga servindo à categoria profissional queo detém, constituiu-se um discurso que legitima essa restrição deacesso. Formulou-se uma linguagem hermética e não muito lógi-ca para que não seja facilmente decifrável pelos não-iniciados, eum conjunto de salvaguardas ideológicas que apresentam essesprofissionais como os guardiões da saúde, como os detentores doconhecimento e do código que dá acesso à longevidade possível ea uma vida útil, prazerosa e autônoma.

Essa hegemonia histórica não foi conquistada sem sacrifício.Antes mesmo de se configurar como uma profissão acadêmica, amedicina teve de competir com diversas categorias de práticos quese dedicavam à arte da cura e do tratamento de doentes e feridos.Barbeiros, curandeiros, bruxos, sacerdotes, druidas e cirurgiões –estes últimos assim tratados antes de sua agregação à medicinaclínica – são os melhores exemplos dentre os postulantes ao statusque hoje é concedido aos médicos.

Cabe ainda uma explicação. O que aqui viemos chaman-do de medicina, como profissão instituída, ou médicos, seusagentes individuais, se refere ao paradigma médico chamadopor Luz (1995, p. 114) de medicina ocidental contemporânea.Essa autora identifica pelo menos três outros paradigmas, ouracionalidades médicas, que seriam: a medicina homeopática,a medicina tradicional chinesa e a medicina ayurvédica. Nestetrabalho nos restringiremos ao estudo e a citações do que pre-valece em nosso meio: o paradigma médico ocidental contem-porâneo.

A construção da hegemonia desse modelo veio a consolidar-se com a adesão do discurso médico à vertente científica do co-nhecimento. A consagração do paradigma científico modernocomo formulação epistemológica dominante trouxe a reboque amedicina científica moderna. Sua complexidade se multiplicou eo acesso social aos seus conteúdos, princípios e preceitos se redu-ziu na mesma proporção.

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Ser médico não foi sempre uma escolha do candidato, senãodo mestre que, em aceitando um discípulo e reconhecendo suashabilidades e sua vocação, incorporava-o à sua prática cotidianana qualidade de aprendiz, num programa de treinamento infor-mal e sem duração definida.

A ascensão da medicina ao status de profissão de nível acadêmi-co e de base científica consagrou-a, juntamente com o paradigmacientífico, como a única, ou pelo menos como a fórmula dominante,com credibilidade pública e legitimidade garantida pelo arcabouçojurídico-institucional e cultural nos países ocidentais.

Em alguns países o poder da corporação médica, assimcomo o de outras profissões, é tão grande que chega mesmo asuperar o poder do Estado. Exemplifiquemos com um fatoparticular que carrega uma eloqüente carga simbólica. Ao con-cluir o curso de graduação em medicina em uma faculdade ouescola de uma universidade publicamente reconhecida e auto-rizada a formar médicos pelo Ministério da Educação, da Re-pública Federativa do Brasil, o graduando recebe seu diplomaoficial e reconhecido formalmente pelo mesmo ministério. Essediploma, no entanto, não o autoriza a exercer a profissão. So-mente a apresentação deste documento à profissão instituída,através dos Conselhos Federal e Estaduais da categoria, e aobtenção de uma autorização caracterizada por um registropodem permitir ao médico graduado o exercício da medicina.O Ministério da Educação tem seu poder restrito à fiscalizaçãodo processo de “produção de médicos” (Larson, 1977). O mer-cado de produção de assistência médica, por sua vez, é contro-lado, formal e legalmente, pela profissão.

De fato o poder de licenciar a prática profissional é, efetiva-mente, delegado pelo Estado às profissões organizadas. Ocorreque esta delegação, no caso da medicina, não é considerada comotal e sim como natural e devida ao grupo, como o demonstrouOliveira (1997).

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DELIMITAÇÃO DO TEMA, HIPÓTESE E OBJETIVOS

A percepção dessa manifestação de poder de uma categoria profissio-nal em relação ao conjunto da sociedade, já referida, foi que desenca-deou o processo de sensibilização necessário para a identificação deoutras tantas evidências do poder profissional, o que, por sua vez, nosestimulou à realização deste trabalho e nos conduziu à busca de umabrigo teórico que permitisse a sua realização.

O estranhamento de que aqui se trata implica no que Bour-dieu chama de “vigilância epistemológica” (1994, p. 27). Para ele,a proximidade e a familiaridade com o objeto de estudo são osprincipais obstáculos epistemológicos ao caráter científico do tra-balho do sociólogo.

Da mesma maneira, o esforço para superar uma natural tenta-ção moralista teve que ser incorporado às operações intelectuais deconcepção, de criação e, principalmente, de trabalho de campo.

Estando clara a existência de uma relação social entre medi-cina e sociedade, surgiu então a curiosidade de refletir sobre asmaneiras como esta relação se estrutura, sobre a construção histó-rica da dominação médica nesse campo e sobre as estratégias ideo-lógicas de manutenção dessa ordem.

Quanto a este último fato, salta aos olhos a importância doprocesso de recrutamento, de seleção e de treinamento de novosmédicos na manutenção do poder da profissão.

Larson (1977) acredita que, para fins de estabelecer e assegurar acatividade de um mercado para a profissão médica, foi fundamentalunificar a medicina em torno de um único paradigma e incorporarbases científicas à prática médica. Esta manobra, além de facilitar aunificação, simplificou o processo de “produção de produtores”, comose referia ao treinamento de novos profissionais, o qual, acredita, cons-titui-se no centro sociológico do problema (1977, p. 34).

A fase do processo de produção de médicos que chamamosde recrutamento é espontânea. Candidatam-se a um curso demedicina tantos quantos nutrem a aspiração de atingir tal propó-

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sito, movidos pelo prestígio e por apelos românticos ligados à pro-fissão que os próprios médicos se encarregam de difundir. Nadapode ou deve ser feito para restringir tais aspirações. Pelo contrá-rio, quanto mais candidatos – em especial quanto mais candida-tos não lograrem êxito em atingir o desiderato – mais prestígioamealha a profissão.

Ao segundo aspecto, a seleção, deve ser dedicado uma espe-cial atenção. O grande número de candidatos torna imperativoum alto rigor na seleção para evitar a banalização. Tornar-se médi-co deve ser algo restrito a poucos.

Este é um dos cânones do discurso da profissão instituída.Seus porta-vozes apelam para argumentos vagos, como indicado-res preconizados pela Organização Mundial da Saúde, que apon-tam para uma proporção de um médico para cada mil habitantes,para manter um esquema de regulação da produção de novosmédicos.

Mesmo assim, como estudar medicina e tornar-se médicoparece ser uma das mais procuradas estratégias de mobilidade so-cial no Brasil, o afluxo de candidatos é enorme e alguns acabampor furar o bloqueio e formar-se médicos a despeito de origenssociais e com sacrifícios inacreditáveis.

Os métodos seletivos não se encerram aí, permanecem e sedistribuem ao longo de todo o curso de graduação até o seu final,como veremos, pois a prática da medicina pressupõe um longo epenoso caminho para seus candidatos. Tal caminho é constituídode um conjunto seqüencial de desafios e provações, formais ounão, que permite uma analogia com os ritos iniciáticos das cultu-ras primitivas.

O primeiro desafio que se interpõe entre os candidatos a umavaga em medicina e seu objetivo, no Brasil, é o do concurso vesti-bular. Os cursos médicos de qualquer universidade são sempremuito concorridos e a competição por uma de suas vagas é extre-mamente dura. Exige de seus postulantes muito esforço, estu-do, autodisciplina e compromisso com o objetivo. Não é infre-

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qüente alguém classificar-se em medicina após cinco ou seistentativas em vestibular.

Para aqueles que logram sucesso neste primeiro obstácu-lo, se inicia uma nova fase, igualmente difícil, que se convencio-nou chamar de ciclo básico, no qual o aluno é exposto às disci-plinas consideradas instrumentais para o ciclo clínico que osucede. O ciclo básico é estruturado com base nos conheci-mentos de biologia celular e molecular, na organização micros-cópica dos tecidos vivos, na química e na física da vida, nafisiologia decorrente delas, na morfologia corporal humana eno estudo da ação dos fármacos sobre a fisiologia humana. Nesseagregado estaria o núcleo científico do conhecimento que pro-porciona as condições para a prática clínica.

A medicina clínica não é reconhecida por alguns autores (Par-sons, s.d.; Wright Mills, 1969) como uma ciência emancipada,como veremos, mas como uma tecnologia, um conjunto de conhe-cimentos, especialmente princípios científicos, que se aplicam a umdeterminado ramo de atividade (Ferreira, 1986, p. 1656).

A medicina clínica pode ainda ser considerada uma arte.Trata-se da aplicação de conhecimentos técnicos na tentativade solução de casos particulares e diferentes entre si. Dependefundamentalmente do talento de quem a exerce – e de sua so-litária deliberação – o sucesso ou fracasso no propósito de curaralguém, reduzir seu sofrimento ou aliviar a dor. Além disso, namaioria das situações que se apresentam ao médico, há mais deuma opção de conduta tecnicamente correta e sua escolha sebaseia em critérios muito pessoais, geralmente baseados emexperiências pregressas com aquela situação específica ou apli-cando, por analogia, condutas utilizadas em casos parecidos.

A possibilidade de solução dos problemas trazidos pelos pa-cientes passa pela habilidade do médico em aplicar seus conheci-mentos não apenas de forma racional. Uma fração marcadamenteintuitiva faz parte do conteúdo do trabalho desse profissional noque se refere à escolha entre opções de tratamentos a ser instituí-

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dos. Temos observado que essa questão, essa polêmica entre intui-ção e prática médica baseada apenas em evidências científicas, tem-se exacerbado nos últimos anos, gerando violenta controvérsia emalguns fóruns sobre o trabalho médico1.

Como já foi citado, o fato é que não se pode falar, sem riscode contestação imediata, de uma ciência médica. Pode-se catego-rizar a medicina como uma aplicação de princípios e conheci-mentos científicos para proceder o mais apurado diagnóstico dedoença, buscar a mais detalhada informação sobre sua extensãonum corpo doente, selecionar o método terapêutico mais adequa-do e, ao empregá-lo, tentar prever o desfecho mais provável masque nem sempre se confirma.

Parsons (s.d., p. 456), por sua vez, ao tratar da cientificidadeda medicina escreve:

Um fato básico sobre a ciência é que a estrutura das discipli-nas científicas “puras” se entrecruzam com a estrutura doscampos de aplicação da ciência às questões práticas. O termo“ciência médica” é, neste sentido, um termo algo equivocado.Não é a designação de uma única disciplina teoricamenteintegrada, senão de um campo de aplicação. Muitas ciênciasdiferentes encontram aplicação no campo médico ou sanitá-rio: a física, a química, toda a gama das ciências biológicas,a psicologia e – como agora podemos ver – a sociologia, ainda

1 Recentemente, conforme o Jornal “Informes Cooperativos”, órgão de divul-gação da UNIMED Porto Alegre, de julho de 2001, essa cooperativa informater hoje um consultor em Medicina Baseada em Evidências (MBE). Esta va-riante da técnica clínica defende que nenhum procedimento, tratamento oumedicamento deve ser aplicado a pacientes vivos sem que haja suficiente evi-dência científica de sua eficácia. A adoção da MBE é considerada por algunsprofissionais como uma forma de alienação da autonomia técnica, com a fina-lidade de conter custos e tornar-se competitiva no mercado das operadoras desaúde privadas.

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que esta última seja apenas reconhecida neste contexto (tra-dução minha)2.

Sendo ou não uma ciência, o fato é que o processo de ensino-aprendizagem, quando aplicado ao caso específico da educaçãomédica, se constitui na incorporação instrumental de conhecimen-tos tidos como objetivos e oriundos de fontes científicas, no trei-namento de habilidades compreensivas ou manuais e na incorpo-ração de atitudes e comportamentos que visam a capacitar o alu-no à aplicação prática e integrada dessas dimensões da educação asituações de repercussões e desfechos não totalmente previsíveis.Não é, portanto, um processo passivo ou contemplativo de umdeterminado aspecto da realidade. Pelo contrário, visa a formaçãode um sujeito ativo, cuja função precípua é intervir sobre a reali-dade de forma a modificá-la instantaneamente ou alterar os ru-mos indesejados que se podem prever.

Freidson (1988) nos aponta que o exercício prático da medi-cina clínica guarda visíveis diferenças do exercício acadêmico, teó-rico ou investigativo. Do clínico se espera menos demonstraçãode erudição médica e mais ação, no sentido de intervenção sobre arealidade indesejável constatada. Diz ainda que a intervenção comchance de sucesso é ideal e preferível a qualquer intervenção, masque qualquer intervenção, por mínima que seja a chance de suces-so, é preferível a nenhuma. Segundo esse autor, os médicos envol-vidos com a prática curativa individualmente orientada se carac-

2 Un hecho básico sobre la ciencia es que la estructura de las disciplinas cien-tíficas “puras” se entrecruza com la estructura de los campos de aplicación de laciencia a las cuestiones prácticas. El término “ciencia médica” es, en este senti-do, un término algo equívoco; no es la designación de una única disciplinateóricamente integrada, sino de un campo de aplicación. Muchas diferentesciencias encuentran aplicaciones en el campo médico sanitário: la física, laquímica, toda la gama de las ciencias biológicas, la psicologia y – como ahorapodemos ver – la sociologia, aunque esta última todavia apenas es reconocidaen este contexto (Parsons, 19XX, p. 456).

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terizam pela fé no que fazem e tendem a acreditar mais na suaexperiência pessoal do que nos “conhecimentos de livros”.

Neste sentido, a formação de um médico articula uma di-mensão intelectual com um treinamento de habilidades quase ar-tísticas e com a incorporação de atitudes e comportamentos que odistingue, refletindo uma visão ativa de mundo.

Talvez por este motivo, a organização dos cursos médicosseja tradicionalmente dividida em dois ciclos claramente distintose praticamente estanques: um ciclo básico, em que predomina oconhecimento científico puro – considerado instrumental para oque vem a seguir – e um ciclo clínico, no qual o aluno deixa osbancos escolares e os laboratórios, adentrando ao hospital-escola.

No primeiro, a exposição inicial dos alunos recém-chegadosàs chamadas ciências básicas é, por vezes, organizada por professo-res e alunos mais antigos, de maneira a produzir uma experiênciade impacto traumático.

Laboratórios de anatomia onde jazem cadáveres humanos;centros cirúrgicos onde se podem observar corpos abertos e, pelomenos temporariamente, mutilados; unidades de tratamento in-tensivo e salas de emergência – onde o sofrimento humano che-ga ao limite do suportável e a diferença entre vida e morte setorna de difícil distinção – são os locais mais procurados paraesse evento que visa expor os alunos novos ao que a medicinatem de mais violento.

A abordagem de Parsons sobre este aspecto específico tor-na evidente que esta prática está muito além de uma simplesbrincadeira de boas vindas, trata-se de uma tradição, senãouniversal, pelo menos amplamente difundida nas escolas mé-dicas do ocidente.

Se o médico não tende, em geral, em nossa sociedade, a tomaro lugar formalmente ocupado pelo sacerdote – o que com fre-qüência se diz, porém sujeito a consideráveis cautelas –, temao menos uma associação muito importante com o reino do

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sagrado. Nesta conexão é interessante assinalar que a dissec-ção de um cadáver faz parte dos inícios do treinamento for-mal de um médico e que esta dissecção tende a realizar-secomo um ritual solene, especialmente no primeiro dia, porparte dos professores de medicina, e os estudantes freqüente-mente têm uma reação emocional bastante violenta ante aesta experiência. Se pode concluir, portanto, que a dissecçãonão é só um meio instrumental para a aprendizagem da ana-tomia, é também um ato simbólico muito carregado de signi-ficação afetiva. Em algum sentido, trata-se de um rito deiniciação daquele que vai ser médico em associação íntimacom a morte e com os mortos (Parsons, s.d: 446-447)3.

Uma analogia com a vida militar, proposta por Good (1997,p. 65), torna-se imperativa. No Brasil, quando um soldado profis-sional vai ser submetido a um programa de treinamento especiali-zado para se tornar pára-quedista, combatente de selva ou mem-bro das Forças Especiais, o que equivale dizer, parte da elite guer-reira, ele passa por um processo semelhante. Tem que dar um tes-temunho inequívoco de seu propósito de juntar-se às tropas deelite, dar mostras de sua determinação e deixar muito claro que

3 Si el médico no tiende, en general, en nuestra sociedad, a tomar el sitio formal-mente ocupado por el sacerdote – lo que con frecuencia se dice, pero sujeto a cuali-ficaciones considerables-, tiene al menos una associación muy importante con elreino de lo sagrado. En esta conexión es interesante señalar que la dissección de uncadáver forma parte de los inicios del entrenamiento formal de un médico, y queesta disección tiende a realizarse como un ritual solemne, especialmente el primerdía, por parte de los profesores de medicina, y los estudiantes frecuentemente tie-nem una reacción emocional bastante violenta ante esa experiencia. Se puede con-cluir, por tanto, que la dissección no es solo un medio instrumental para el aprendizajede la anatomía, sino también un acto simbólico muy cargado de significación afectiva.En un sentido se trata del rito de iniciación del que va a ser médico en su asocia-ción íntima com la muerte y con los muertos (Parsons, s.d., p. 446-447).

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não vai desistir por maiores que sejam as dificuldades. Esta profis-são de fé deve ser apresentada aos seus futuros companheiros einstrutores, a mais ninguém, e envolve um conjunto de ações,reações e atitudes que demonstram que o candidato compreendeque “não é para qualquer um” ser membro de uma tropa de elite.Ele deve então afirmar inequivocamente, através de sua atitude,que merece a distinção honrosa de ser aceito em tão seleto grupo.

O primeiro estágio de qualquer programa de treinamentomilitar avançado consiste, justamente, de um conjunto de situa-ções metodicamente organizadas para estimular e provocar a de-sistência espontânea, o que ocorre com relativa freqüência. Alémdisso, por motivos óbvios, a desistência espontânea pode ocorrer,formalmente, até durante a cerimônia de formatura do referidoprograma.

Paralelamente, um vasto espectro de critérios de desclassifi-cação paira sobre os candidatos durante todo o programa. A umadecisão de desistência espontânea do candidato, ou de desclassifi-cação por parte dos instrutores, não cabe, na prática, recurso al-gum. Ela é praticamente irrevogável.

O momento privilegiado em que são esperadas mais iniciati-vas de desistência ou, pelo menos, maior insegurança quanto àdecisão de submeter-se ao programa ocorre no primeiro contatocom o cenário onde o programa é desenvolvido.

Da mesma forma, poucos são os cursos médicos em que oprimeiro dia dos novatos no laboratório de anatomia humana nãose torna um acontecimento para toda a comunidade acadêmica.A este evento acorrem todos quantos, movidos por uma curiosi-dade quase sádica, vem testemunhar as reações dos calouros frentea uma situação inédita e geradora de estresse emocional. Nela, osnovos alunos se deparam com um espaço onde ficam expostos,sobre mesas metálicas, uma série de cadáveres humanos conserva-dos em formaldeído. Este agente químico é bastante volátil e seusvapores produzem intensa irritação nos olhos, nariz e boca, o queprovoca um forte desconforto, acompanhado de lacrimejamento,

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que potencializa o trauma da experiência mas pode, também, dis-simular lágrimas de emoção.

O auge ocorre quando alguém se deixa vencer pela cargaemocional e desmaia. Este ficará marcado pelo resto do seu conví-vio com os colegas e contemporâneos de escola médica.

Essa experiência funciona como uma espécie de “batismo”,de “iniciação”, uma prova pela qual todos os aspirantes à distinçãohonrosa de tornar-se médico têm, necessariamente, que passar.

O que chamará a atenção de analistas atenciosos é a resigna-ção e, por vezes, até satisfação com que os calouros se submetem aessas situações. Parece haver um contrato tácito e consensual que,para se tornar médico, é imperativo que haja submissão às provase aos sacrifícios impostos pelos agentes institucionais da educaçãomédica. É o preço a pagar para alcançar o tão almejado objetivo.Isso os calouros, e possivelmente todos os candidatos aos vestibu-lares dos cursos médicos, já sabem e aceitam antes mesmo da ins-crição no concurso vestibular.

Essa observação já se constituiria em interessante tema depesquisa no que se refere aos candidatos e calouros das escolasmédicas e, embora tenha papel destacado na explicação de outrasrelações que se estabelecem no interior da educação médica, nãoserá foco de atenção especial neste trabalho.

Passado esse segundo teste, – o primeiro, já convenciona-mos, é o do vestibular – o aluno terá pela frente dois anos derelativa tranqüilidade entre laboratórios, bibliotecas e salas de aula.Nada de mais novo, excetuando-se as experiências em laborató-rios, a técnica de microscopia que deve ser dominada e o caso dealguns cursos que introduzem nesta fase atividades voltadas à saú-de coletiva que incluem contatos, entrevistas e observação de fa-mílias. Na maior parte dos casos estas atividades se dão em bairrospopulares e vilas miseráveis, o que, para alguns, provoca um outrochoque com uma realidade desconhecida e até traumática.

Essa atividade, plena de significados, promove a auto-afirmaçãoe insufla a auto-estima do acadêmico. Ela trás um conteúdo explícito

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de distinção de classe, marcando a visível diferença socioeconômicaentre o estudante e a família atendida. Estimula uma postura hierar-quizada de uma superioridade social “posta”, natural e evidente emfavor do primeiro. Constitui-se em um treinamento para a posturahierarquicamente superior que depois, já médico, terá de assumir frenteaos pacientes, seja qual for sua origem de classe.

Se, do ponto de vista de geração de estresse, essas atividadescarregam um conteúdo emocional e afetivo forte, o mesmo tam-bém ocorre com o início do ciclo clínico-cirúrgico.

Em torno do 5o semestre o aluno sai dos domínios da escolaconvencional e adentra ao hospital-escola. Este termo, ao longodeste trabalho, será empregado no sentido que lhe foi atribuídopor Schraiber (1989), para designar aqueles lugares onde a educa-ção médica se encontra com a prestação de assistência médica.Hospitais, enfermarias, ambulatórios, postos de saúde, enfim to-dos os lugares onde se tratam pessoas doentes ou se faz algum tipode prevenção, se ainda abrigam atividades de educação em medi-cina, estarão incluídos neste conceito.

Há uma ruptura real na organização das atividades de ensi-no-aprendizagem. Quanto ao espaço, a sala de aula dá lugar àenfermaria ou à unidade de internação, ao centro cirúrgico e aosambulatórios. Quanto ao material didático, deixam-se de ladoequipamentos e animais de laboratório para substituí-los por pes-soas vivas. Toda a simulação é transportada para a situação real deemprego do conhecimento e da técnica médica.

A mudança do cenário não é tão geradora de ansiedade quantoo fato de ter de defrontar-se com uma pessoa real, doente e inter-nada. O paciente é um objeto de estudo muito particular. Eleinterage, fala, acusa dor, chora, emprega suas próprias manobrasde geração de empatia e, para desespero dos alunos, percebe ossinais de insegurança, de temor e de falta de convicção.

Atividade corriqueira e cotidiana para os mais experientes,esse contato com o paciente provoca intenso estresse nos novatos,decorrente da falta de recursos teóricos para entender o que está

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acontecendo e, pior ainda, para responder às perguntas dos pa-cientes e de seus familiares. Sim, porque muitas vezes um aluno demedicina é tudo o que um familiar de um paciente internado em umhospital-escola consegue encontrar para obter informações.

Neste momento o aluno pode até duvidar, e freqüentementeo faz, de que os estudos do ciclo básico efetivamente lhe serãoúteis nesse novo universo. A desconexão – aparentemente total –entre o discurso científico das ciências básicas, os termos empre-gados pelos pacientes e o próprio jargão clínico usado pelos ins-trutores proporciona condições para que sobrevenha a sensaçãode se ter perdido os dois anos anteriores.

O conflito, nem sempre bem disfarçado, entre os professoresdo ciclo básico, mais desprovidos de projeção profissional, e os dociclo clínico-cirúrgico, mais projetados e publicamente reconhe-cidos, exacerba esta angústia e contribui para uma vivência maispenosa dessa transição.

Para ser aceito neste seleto grupo, o estudante tem de darmostras de renúncia aos compromissos mantidos com os profes-sores e os conteúdos do ciclo concluso e demonstrar sua disposi-ção para comprometer-se com a nova situação. Tudo principiapela confissão da própria ignorância, pela submissão humilde ereverente aos detentores do “conhecimento que cura”, que temvalor prático e, por que não dizer, de mercado.

Nesse particular, a habilidade do estudante no relacionamentointerpessoal pode significar a diferença entre ser mais ou menosfacilmente aceito e, conseqüentemente, ter a seu dispor maioresoportunidades de aprendizagem e experiências médicas estranhasao currículo organizado e formal da escola.

O chamado ciclo clínico ou clínico-cirúrgico dura do 5o ao10o semestre. Ele dá lugar, na seqüência, aos ditos estágios curri-culares. Aí vem nova mudança.

Nessa fase as atividades se restringem às práticas clínico-cirúrgi-cas, com a inserção do aluno na equipe assistencial. Eles passam a serreconhecidos como “doutorandos” – nome tradicionalmente empre-

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gado para designar os alunos de último ano –, “estagiários” ou “inter-nos” e a assumir algumas responsabilidades de complexidade crescen-te no tratamento dos pacientes. As aulas cedem espaço às discussõesde casos e aos seminários, mais específicos e voltados à prática médi-ca. A avaliação deixa de estar baseada em provas e trabalhos escritos eincorpora o desempenho do estudante na prática assistencial.

Começa outra etapa de competição e concorrência, com vis-ta aos concursos para ingresso em programas de residência médicaapós a formatura na graduação. Isso significa a diferença entretornar-se um especialista e ter uma chance no mercado de traba-lho, ou estar condenado aos subempregos e a uma certa discrimi-nação entre seus colegas.

Feitas essas considerações preliminares para que se tenha umentendimento da organização dessa prática pedagógica em suas parti-cularidades e das relações sociais aí envolvidas, necessárias como in-trodutórias ao tema selecionado, passaremos à análise sociológica pro-priamente dita dessa questão à luz da sociologia das profissões.

Delimitado o tema, escolhemos como problema de investi-gação a seguinte questão:

– Seria a formação do habitus profissional uma missão cons-cientemente integrada na estrutura institucional da edu-cação médica a partir da atuação do professor?

Nossas hipóteses são:

– Parece haver uma fração expressiva e determinante da forma-ção de médicos que ocorre num espaço de baixa instituciona-lidade, onde as relações tradicionais entre mestre e discípulopersistem e sobrevivem; onde a ênfase não é posta na transmis-são de conhecimentos, missão preponderante da escola formal,mas na estruturação de um habitus profissional.

– Entendemos que existe uma relação dialética entre a escolaformal, que se ocupa predominantemente da dimensão cogni-tiva da educação médica, vale dizer, que “ensina medicina”, e

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essa sua face reversa e indivisível, uma verdadeira “escola pa-ralela” que lhe complementa o trabalho “ensinando o aluno aser médico”, e que desta relação resulta como síntese o médicoem todas as suas dimensões.

Definido o tema, o problema e a hipótese, apresentam-secomo objetivos deste trabalho:

– Constituir-se num estudo exploratório do tema, levantandoquestões para estudos posteriores.

– Promover uma revisão da bibliografia sobre a sociologia dasprofissões atualizando o quadro de referência teórico, partin-do de um ponto de vista mais amplo e progressivamente fe-chando o foco sobre a medicina, para abordá-la utilizando aprofissão como categoria analítica.

– Deduzir do contexto desse tema a educação médica como cen-tro sociológico do problema, como núcleo reprodutivo estraté-gico das relações da profissão com a sociedade, através da es-truturação de um habitus profissional, padrão de distinçãoentre médicos e não-médicos.

– Identificar, descrever e compreender os mecanismos de forma-ção do habitus profissional médico que, por hipótese, não sesituam no espaço institucional da escola médica, mas em suaface reversa: a “escola paralela”.

– Abordar o campo através de um de seus agentes menos estuda-dos: o professor de medicina.

No capítulo seguinte procederemos uma revisão da biblio-grafia sobre a sociologia das profissões, desde os clássicos e suasmenções à profissão, até trabalhos mais atuais que, no conjunto,configuram um corpo de conhecimentos sociológicos que, se ain-da não é considerado de forma incontroversa uma teoria, se reves-te de tal importância que permite a afiliação teórica de estudos danatureza do que nos propusemos a elaborar.

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CAPÍTULO 1

Uma revisão da bibliografia sobrea sociologia das profissões

Médico é médico. Profissional de saúde é... outra coisa.

Dr. Roberto Velloso EiflerPresidente da Associação dos Médicos do HospitalPresidente Vargas de Porto Alegre.Espaço de “Opinião” do Jornal da Associação Mé-dica do Rio Grande do Sul, dezembro de 1999.

1.1 OPÇÃO EPISTEMOLÓGICA

As abordagens clássicas da sociologia propunham explicações paraos fenômenos empiricamente verificados a partir de uma óticamacrossocial. Tudo se explicava pela aplicação de conceitos e prin-cípios gerais que poderiam – e deveriam– ser universalmente em-pregados na análise sociológica.

A classe, no caso da teoria marxista, determinava um cortetransversal na estrutura social perpassando-a por inteiro (Lakatose Marconi, 1999); a noção de “fato social” (Durkheim, 1995) pro-punha uma visão naturalizada da sociedade submetendo sua aná-lise a um método derivado das ciências naturais; o conceito de“ação social” dotada de sentido subjetivo e de intencionalidadeera para Weber a formulação epistemológica chave para explica-ção sociológica (Santos, 1999).

Posteriormente, os estudos de gênero (Lopes, Meyer e Wal-dow, 1996) – que ainda não configuram, de forma incontroversa,uma teoria – propuseram um corte longitudinal que atravessa aestrutura transversal das classes, mostrando que as mesmas rela-

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ções de dominação que se estabelecem entre as classes se reprodu-zem no seu interior entre as frações masculinas e femininas, intro-duzindo o conceito das relações sociais de sexo.

De toda maneira, tanto classe quanto gênero são abordagenscom pretensões totalizantes. Cortam a estrutura social em dire-ções cruzadas e perpassam-na toda; explicam tudo a partir dessasdefinições.

As propostas fenomenológicas – fenomenologia, etnometo-dologia e interacionismo simbólico – invertem esta visão, partin-do para explicações sociológicas que consideram prioritariamentea subjetividade, o sentido atribuído pelos agentes sociais às ações ea visão de mundo dos atores.

Entre esses extremos aparecem alternativas epistemológicasque, se não são completamente dirigidas à subjetividade e ao indi-vidualismo, se situam numa posição intermediária e elegem fra-ções de classe como objeto de análise. A sociologia das profissões éuma destas alternativas intermediárias, embora alguns autores,notadamente alguns funcionalistas, tenham chegado a sugerir queas profissões pudessem vir a substituir a classe como categoria ele-mentar da explicação sociológica (Wright Mills, 1969; Parsons,s.d.). Parsons (op. cit.) chega a afirmar o entendimento da relaçãomédico paciente como um sistema social por inteiro.

Não tendo optado, na elaboração deste trabalho, pela transver-salidade da classe, nem pela longitudinalidade do gênero, como alter-nativas analíticas totalizantes, fica claro que renunciamos também aoemprego de categorias analíticas que concorrem para as explicaçõesmacrossociais. A escolha da profissão como categoria de análise dáuma idéia do que se busca aqui, ou seja, a realização empiricamentelocada em nosso meio, de um estudo exploratório da transmissão deelementos culturais, eminentemente profissionais, no processo de“produção” (Larson, 1977) de médicos, a jovens aspirantes a esta con-dição a partir da visão de um dos seus agentes: o professor de medicina.

O tema – profissão médica – já foi vastamente explorado nasociologia americana e européia como sabemos (Becker, 1997;

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Boltanski, 1989; Dingwall & Lewis, 1983; Freidson, 1988; Good,1997; Jacob, 1999; Larson, 1977; Parsons, s.d., Wright Mills,1969). Os trabalhos em geral tratam a medicina como um exem-plar típico-ideal de profissão.

O problema da educação médica, ou o processo de “produçãode produtores” como foi denominada por Larson (1977, p. 34), tam-bém já foi amplamente estudado na produção científica destes países(Becker, 1997; Good, 1997; Bonner, 1995).

Assim, sendo a educação médica uma parte da totalidade que éa educação em geral, e se desse processo maior resulta a formação doque Bourdieu estabeleceu como conceito de habitus (Bourdieu apud.Ortiz, 1994, p. 15), proponho que se adote a noção de habitus profis-sional para designar o habitus resultante daquela fração específica daeducação, que culmina com a produção de novos médicos. Esta pro-posta de aplicação do conceito, como parece claro, pode ser estendidaa todas aquelas ocupações que se enquadram no sentido que a socio-logia dá ao termo profissão.

Com este objetivo em mente, a opção epistemológica de abor-dagem da realidade empírica que nos pareceu melhor foi a escolha daprofissão como categoria de análise social. Esta opção resulta do fatode que a decisão de realizar este trabalho partiu de um sensibilizaçãointuitiva que surgiu espontaneamente ao longo de nossa vivência nocampo delimitado e foi transformado em objeto de pesquisa. Não é asociedade integral que tencionamos estudar, nosso objeto se restringeà medicina como profissão instituída e à educação médica como es-paço estratégico de reprodução das relações sociais entre a profissão ea sociedade.

1.2 A SOCIOLOGIA E AS PROFISSÕES

A primeira dificuldade que surge para o sociólogo ao trabalharcom a categoria “profissão”, no dizer de Horobin (1983), é o fatode ter que pensar e escrever em um vocabulário compartilhado

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com o senso comum. A situação piora quando se percebe que osignificado atribuído pelo senso comum às palavras compartilha-das está contido em boa parte do material coletado no campopara análise posterior. Dessa forma, não há como evitar uma certainterpenetração entre a “sociologia profissional” e a “sociologialeiga” (Horobin, 1983, p. 86). Da mesma forma se pronunciouBourdieu (1994) quando propôs uma imperativa ruptura episte-mológica com a “sociologia espontânea”.

No caso da categoria profissão, uma dificuldade adicionalemerge: estamos lidando com um conceito sobre o qual não háconsenso nem mesmo entre os sociólogos que mais se dedicaramao seu estudo. Considerado tudo isto, faremos uma revisão tãoampla quanto possível da bibliografia sobre o tema profissão, dasociologia clássica à contemporânea, selecionando os critérios ado-tados pelos diversos autores para considerar uma ocupação comoprofissão, especialmente aqueles que podem ter utilidade meto-dológica para analisar a profissão médica e seu processo de treina-mento e licenciamento de novos membros.

A profissão, de alguma forma, é um conceito que se vê conside-rado nas diversas vertentes teóricas da sociologia. O trabalho de Ma-ria Lígia Barbosa (1993) nos fornece uma síntese da ocorrência destacategoria em diversos cenários teóricos, da sociologia clássica à con-temporânea, analisando seus vínculos contextuais históricos e as rela-ções com os principais eixos paradigmáticos das ciências sociais.

Por constituir-se no mais completo trabalho recente de revi-são da bibliografia produzida sobre o tema das profissões, vamosnos servir dele para introduzir uma visão geral sobre o assunto,aproveitando suas diversas referências.

A temática das profissões surge como um dos elementos fun-dadores da sociologia de Durkheim, segundo Barbosa4 . Para esta

4 Pessoalmente reluto em concordar com a promoção da profissão a “elementofundador” da sociologia de Durkheim. Se entendermos o conceito de fatosocial, por exemplo, como “elemento fundador” do trabalho desse clássico,

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autora, tendo Durkheim eleito a integração social como principalproblema de investigação sociológica (1993), ele atribuiu aos gru-pos profissionais um papel preponderante na organização e inte-gração das sociedades modernas. Definia estes grupos com basena divisão do trabalho, mediante critérios técnicos ou econômi-cos, sem esquecer que os grupos profissionais, mercê de suas fun-ções integrativas e normatizadoras, a partir da sua institucionali-zação, exerciam forte influência sobre sua fração da sociedade,promovendo assim a unidade social mais ampla.

Durkheim entendia as profissões como grupos homogêneos.Como diz Barbosa:

Cabe ao grupo profissional a tarefa de socializar os seus mem-bros, incutindo neles os valores da consciência coletiva de caráteressencialmente moral. E se a sociedade foi fragmentada pela di-visão social do trabalho, as profissões passam a existir como co-munidades morais (Barbosa, 1993, p. 13).

O trabalho de Durkheim foi uma das fontes de inspiração teóri-ca da sociologia americana do início do século. Com Merton e Par-sons (Barbosa, 1993) ela ganha grande impulso em termos de produ-ção científica, além de uma tentativa consistente de compreensão eelaboração de um esboço de teoria acerca do funcionamento dos gru-pos profissionais, tomados como agentes sociais coletivos.

Parsons entendia que: ... profissões são sistemas de solidarieda-de cuja identidade se baseia na competência técnica de seus membros,adquirida nas instituições educacionais e científicas (Paixão apudBarbosa, 1993, p. 04).

Entendidos assim, os grupos profissionais passaram a ocuparum lugar central na sociologia dos sistemas ocupacionais. Obras

poderíamos considerar como tal a divisão do trabalho social, a moral, asreligiões, entre outros. A questão das profissões aparece como uma derivaçãoda divisão do trabalho e não como um elemento fundador em si.

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inteiras lhes foram devotadas como o clássico Colarinhos Brancos,de Charles Wright Mills (1969), no qual o autor se opõe à idéiamarxista de que os estratos médios da sociedade são frações emdecadência e destinados, inexoravelmente, à extinção. Ao contrá-rio, entende Wright Mills (1969) que esses grupos são, na verda-de, emergentes e em franco processo de ascensão.

A distinção desses grupos profissionais em relação a outros,cuja identidade se baseia em outros critérios, varia muito de autorpara autor, como diz Barbosa:

Não sendo nem capitalistas, nem trabalhadores, nem adminis-tradores governamentais típicos ou burocratas, os profissionaisformam grupos de fronteiras fluidas mas poderiam ser distingui-dos por alguns critérios. São portadores de treinamento técnicoformal, com validação institucional da adequação deste treina-mento e da competência técnica do indivíduo treinado. São in-divíduos que possuem um domínio sobre a racionalidade cogni-tiva – tomada em sentido mais amplo, quase uma “cultura ge-ral” – aplicável a um campo específico. Além do domínio deuma certa tradição cultural, eles desenvolvem uma habilidadeespecial. Outro critério, segundo Parsons, seria o controle da profis-são sobre o uso socialmente responsável dessas qualificações (Barbo-sa, 1993, p. 4-5).

A trajetória das profissões de uma posição periférica para umaposição mais central na sociologia americana da primeira metadedo século deveu-se, segundo Barbosa (1993), à sua “ancoragem”ao sistema cultural acadêmico. Com o conhecimento científicopromovido a um valor basilar da sociedade industrial, as universi-dades e centros de pesquisa adquirem notoriedade e legitimidadepara ungir as profissões de base científica, dotando-as de um cará-ter institucional com autoridade normatizadora em relação a seusmembros e à própria sociedade, restrita aos limites de sua compe-tência técnica.

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A partir daí evidenciou-se uma dificuldade inerente à tenta-tiva de estruturação de um monopólio do exercício profissional: acompetição com os práticos que exerciam livremente cada umadessas atividades. Essa dificuldade acaba superada com o decisivoapoio da academia e com a publicidade de códigos de ética queprivilegiavam a orientação para o interesse coletivo, o altruísmo ea relevância social do trabalho.

A teorização parsoniana, segundo a autora (Barbosa, 1993),embora tenha insinuado um certo posicionamento destes gruposprofissionais na estrutura social, não foi além do estudo das pro-fissões em si mesmas. Elas ocupariam uma posição “intersticial”(Barbosa, 1993, p. 06) e suas relações com outros grupos sociaisseriam marcadas por uma mediação entre antagonismos de classe.Mesmo assim esta autora não tem dúvidas quanto a que, para ofuncionalismo, a profissão fosse, efetivamente, o princípio quedefiniria e hierarquizaria os grupos sociais, que fosse o eixo orga-nizador das sociedades modernas.

Para outros funcionalistas citados por ela, como Davis eMoore (apud Barbosa, 1993, p. 06), haveria até uma hierar-quia entre esses grupos profissionais, determinada pela neces-sidade que o sistema social tem do produto de seu trabalho. Adefinição, mensuração e comparação de tal necessidade consti-tuiria, para a autora, um complexo problema teórico e meto-dológico a resolver.

Andrew Abbott (1988) retomou as idéias centrais de Parsonsem seu livro The System of Professions. Entre elas, deu especial des-taque e importância ao controle do saber e da qualificação profis-sional (Barbosa, 1993, p. 06).

Sobre as teses funcionalistas recaíram as críticas fenomenoló-gicas, para cujos autores o ponto de vista do ator social é quedetermina em que medida ... as demandas e as características sociaisdos consumidores dos serviços produzidos pelos profissionais condicio-nam o status social e a realização das tarefas por estes mesmos profis-sionais (Chapoulie apud Barbosa, 1993, p. 08).

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O fato dos estudos funcionalistas centrarem-se muito namedicina também foi criticado pelos fenomenologistas, segundoBarbosa, que produziram estudos sobre professores e advogados.

A influência weberiana sobre alguns autores filiados à etno-metodologia incorporou a necessidade de abordar o tema das pro-fissões e de suas relações sociais menos sob a ordenação da divisãodo trabalho e mais sob a influência da categoria “poder”.

No dizer de Barbosa:

O núcleo das análises, neste caso, é a profissionalização (ou pro-fissionalismo), isto é, o processo pelo qual certas áreas de compe-tência, delimitadas pela divisão do trabalho, são monopolizadaspor determinadas categorias de trabalhadores. A luta pelo mo-nopólio, pela constituição de um mercado razoavelmente fecha-do e protegido, é a marca distintiva das profissões enquanto gru-pos sociais (Barbosa, 1993, p. 08).

Esta abordagem de inspiração weberiana introduz um mu-dança no cenário teórico da Sociologia das Profissões. Uma tran-sição do modelo funcionalista, no qual o importante era o papelintegrativo, normativo e mediador de conflitos de classe exercidospelas profissões, para um panorama dinâmico em que a ênfase écolocada no processo de profissionalização e, por conseqüência,de implantação do profissionalismo, que reinstitui elementos deconflito e de desigualdade na distribuição do que está sendo dis-putado: poder, mercado e monopólio, também dentro do própriogrupo profissional.

Dois autores se destacam nesta mudança, ainda segundo Bar-bosa: Eliot Freidson e Magali Larson. Para ambos o controle deuma área de conhecimento, de sua produção, de suas aplicaçõespráticas é o elemento essencial para a estruturação de um grupoprofissional.

Larson (1977) preocupou-se em analisar o processo históri-co de ascensão do profissionalismo como forma distinta de orga-

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nização social e de desigualdade estrutural. Viu no mercado a ins-tância fundamental da sociedade moderna em sua trajetória detransformações; viu na aquisição e na acumulação de um tipo deconhecimento e, conseqüentemente, na posse de uma habilitaçãoqualquer um tipo de propriedade tipicamente moderna. Demons-trou que, no mercado, conhecimentos, práticas e suas aplicaçõessão passíveis de monopólio pelos seus detentores e de exploraçãoeconômica.

A partir deste quadro, Larson define o profissionalismo comoum projeto coletivo de mobilidade social articulado em tornode um determinado tipo de conhecimento, cujo monopóliopermite controlar um mercado definido. Trata-se de um pro-cesso que busca um duplo monopólio: da expertise no merca-do e do status no sistema de estratificação. Este projeto podeser entendido como uma “tentativa de traduzir uma ordemde recursos escassos – conhecimentos especiais e qualificação –em outra – recompensas econômicas e sociais (Barbosa, 1993,p. 09).

Freidson, ainda segundo Barbosa (1993), por seu lado, nãoatribui tanta importância ao mercado. Centra seu trabalho emquestões mais ligadas ao poder. Assim, produção, distribuição,transmissão, compartilhamento e aplicação do conhecimento são,para ele, os eixos estruturais das relações entre grupos profissio-nais e outros grupos sociais.

Os próprios agentes envolvidos no processo passam a terimportância. As estruturas jurídico-institucionais que garantem ocontrole desse conhecimento e de sua gênese passam a ter impor-tância. O discurso institucionalizado, assim como os porta-vozesdesse discurso – no caso deste trabalho os professores de medicina–, passam a ter importância.

Para Freidson (Barbosa, 1993), uma profissão se define pelo pro-cesso de treinamento – educação formal – ao qual seus membros são

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submetidos, pré-requisito para a ocupação de determinadas posiçõesde poder na estrutura social. Essa exigência prévia ao exercício consti-tuiria um processo de credenciamento de profissionais – portantoum mecanismo de exclusão – que teriam licença e exclusividade nodesempenho de uma determinada prática. Dessa forma, assim comoafirmava Larson (1977), o processo de treinamento e validação for-mal deste treinamento – o credenciamento –, também para Freidson,constitui o elemento determinante das condições que permitem oexercício de poder, o centro sociológico do problema.

De alguma forma, mas principalmente através da ação do Esta-do, cria-se a obrigatoriedade de se utilizar o trabalho de um profissio-nal para que se tenha acesso a um bem ou serviço no mercado (Barbo-sa, 1993, p. 10).

Diz também esta autora:

O saber institucionalizado, fonte de poder nas sociedades modernas,é o eixo em torno do qual giram as explicações para a posição dosgrupos profissionais na estrutura social, os mecanismos de monopoli-zação do mercado, as formas de organização interna e a atuação dogrupo (Barbosa, 1993, p. 10).

Larson também aponta para a importância da unificação doconhecimento como forma de monopólio de mercado. Para ela omercado tem que ser produzido, assim como os próprios produtorestem que ser produzidos. Assim, trás para o foco da discussão, nova-mente, o sistema de ensino, cujo papel torna-se preponderante para afundação de um mercado e obtenção do monopólio, através da cons-tituição de um domínio no campo em questão e da homogeneizaçãodo grupo, obtida através de um longo processo de treinamento co-mum ao qual todos os seus membros são submetidos.

Freidson (1986) chama atenção para o fato de que dife-rentes qualidades e conteúdos de conhecimentos proporcio-nam chances desiguais aos seus portadores de posicionamentono mercado, o que determina desigualdades internas no seio

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 45

do próprio grupo profissional. Ele fala de processos de estrati-ficação e diferenciação dentro do grupo e sobre a natureza e opapel das elites profissionais. Sugere, até que apareça termomais adequado, a expressão “classe” e afirma que a “classe” maisimportante, considerando que as profissões se estruturam combase em longo treinamento e educação superior, é compostapor aqueles que proporcionam tal treinamento e educação: osprofessores. Esses seriam considerados os guardiões do conhe-cimento e das habilidades cuja posse e jurisdição o grupo re-clama, institucionalmente, como sua, servindo de base ao cre-denciamento de novos membros.

O autor fala também de uma outra “classe”, a administrati-va, composta por pessoas detentoras das mesmas credenciais pro-fissionais, que passam a assumir posições de comando institucio-nal, seja no interior da profissão como organização, seja na estru-tura acadêmica que provê o treinamento em serviço.

Ambas são diferenciações a partir de uma outra “classe”, ados praticantes, aqueles que exercem o trabalho diário no sis-tema produtivo e estruturam relações hierarquizadas no inte-rior do grupo.

Larson (1977) compara os conteúdos do conhecimento acu-mulado por algumas profissões e conclui que as diferenças encon-tradas determinam possibilidades diferentes de sucesso do projetocoletivo de mobilidade social. A consecução desses objetivos de-pende da habilidade do grupo profissional no convencimento ideo-lógico sobre a importância e a necessidade de seu produto, dentrodos padrões unificados, além da eliminação da concorrência deprodutos fora desses padrões estabelecidos, o que, geralmente,ocorre por meios legais e com a ajuda do Estado.

Atingidos esses objetivos, o mercado se constitui também pelainstituição de padrões de recompensa e remuneração, variáveis deum grupo profissional para outro, como forma de retorno do tem-po, dinheiro e sacrifício investidos pelos produtores em sua pró-pria educação.

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Mas é o conteúdo do conhecimento que fala mais alto paraLarson quanto às possibilidades de demanda do produto e a ne-cessidade que o mercado tem dele. Isto, enfim, é que determina aposição da cada grupo no mercado, o status atingido e o poderque determinado grupo pode exercer.

Os autores marxistas não foram desconsiderados por Barbo-sa. Para eles as questões relacionadas à formação de grupos profis-sionais são abordadas com base em outros critérios.

Ao contrário de Durkheim, e dos outros autores analisadosaté aqui, os marxistas, partindo do conceito de divisão dotrabalho de Marx, dão pouca ou nenhuma importância àdimensão cognitiva ou técnica para a definição dos grupossociais. Entre estes autores, as profissões aparecem como obje-to subordinado às classes sociais, que seriam o elemento fun-damental na mediação entre a divisão do trabalho e a for-mação dos grupos profissionais (Barbosa, 1993, p. 15).

Poulantzas, segundo Barbosa (1993), distingue três níveisde determinação estrutural das classes sociais: econômico, po-lítico e ideológico, que marcam de forma mais pronunciada oscontrastes entre a pequena burguesia tradicional, em decadên-cia, a nova pequena burguesia, emergente, e a classe operária(Barbosa, 1993, p. 15).

Considerando o trabalho de um autor marxista americano, Da-vid Noble, que estudou os engenheiros americanos, diz Barbosa:

Com o passar do tempo, as tendências gerenciais e anti-sindicais e oapelo à cientificidade da Engenharia alienam-se5 como os mecanismosprincipais de distinção dos engenheiros (Barbosa, 1993, p. 16).

5 A aplicação do termo “alienam-se” pela autora nesse caso pode dever-se aalgum equívoco, uma vez que, no contexto, o termo “aliam-se” parece ser maisadequado.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 47

De toda a maneira, a situação das profissões como grupo so-cial, para os marxistas, é totalmente subordinada ao conceito declasse social. Ao contrário dos funcionalistas, que mostram predi-leção pelos médicos, os autores marxistas elegem a engenharia comoobjeto preferencial de estudo, pela posição intermediária de classedos engenheiros no sistema de produção e pelo exercício da domi-nação em nome do capital.

Dois fatores: a burocratização destes grupos, como produtoda institucionalização, e a proletarização de alguns de seus mem-bros – contradições desconsideradas na análise funcionalista –constituíram-se em fragilidades teóricas sobre as quais se concen-trou o fogo crítico dos marxistas, segundo Barbosa (1993), quesempre insistiram em subordinar esse tema ao determinismo declasse.

Para a autora, a fenomenologia dirigiu sua crítica para outrosalvos oriundos do funcionalismo. Dois deles teriam importânciaespecial: o “ideal de serviço”, síntese do altruísmo dos profissio-nais, que se contrapunha ao pragmatismo egoísta dos homens denegócio, e a autonomia no exercício do seu trabalho. Este último,se fosse aplicado não como uma prerrogativa do indivíduo, mas,por extensão, como direito do grupo profissional em relação àsestruturas sociais mais amplas, atuaria também como proteção daintervenção leiga, tornando o grupo seu próprio controlador.

Pelo estudo da prática cotidiana, os fenomenologistas denun-ciaram motivações não tão altruístas como base do comportamentoprofissional: diferenças de tratamento entre clientes determina-dos por sua origem de classe – contrariando o princípio parsonia-no do universalismo – e mesmo a fragilidade dos controles éticose técnicos da burocracia profissional sobre a prática protagoniza-da pelos agentes foram exemplos disso.

Esta última denúncia é corroborada por Freidson (1988), paraquem as normas éticas e os valores profissionais dos médicos, porexemplo, são tão amplos e gerais que permitem um vasto espaçode interpretação e deliberação pessoal.

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Larson (1977) viu na origem das primeiras associações pro-fissionais não uma fórmula de combater a intromissão da lógicade mercado no seio daqueles grupos sociais, senão uma estratégiade constituição e controle de um mercado.

Na busca de legitimação, esses grupos tentam incorporar àsua imagem coletiva valores éticos de fundamento humanitário re-colhidos da tradição, ao mesmo tempo em que se declaram orienta-dos por uma racionalidade científica levada às raias do preciosismo.

O vínculo teórico mais recente dos estudos dos grupos pro-fissionais com a sociologia, aludido por Barbosa (1993), para po-sicionar estes grupos em relação às estruturas sociais mais amplas,são os conceitos de campo e de capital cultural de Pierre Bourdieu(1992; 2000). Para ele, a possessão de um capital cultural, casodesses profissionais, é elemento de definição da sua posição social.Além disso, constituindo-se esse conhecimento controlado pelosprofissionais em capital cultural, ele é também eixo em torno doqual se estrutura um campo de lutas pela acumulação, pela pos-se dos meios de produção, pelo controle da produção e da pro-dução de produtores, pelo monopólio e pela hegemonia nointerior desse campo e daí à sua articulação com as estruturassociais mais amplas.

Uma vez que a autora alude ao trabalho de Bourdieu, no quetange aos conceitos de campo e de capital cultural, nos importachamar atenção para um outro conceito, o de habitus, que, enten-dido como conhecimento adquirido e também um haver... (Bour-dieu, 1989, p. 61), será de grande importância para os objetivosdesta pesquisa.

Para os fins deste trabalho, a educação médica não é mais doque uma fração da educação, tomada como um processo maisamplo de reprodução das relações sociais, aplicada à sua especifi-cidade, à sua área de competência e à sua jurisdição. Assim, nãopodemos deixar de considerar que o que se está estruturando, noprocesso de treinamento e formação de novos médicos, não é maisque um tipo específico de habitus, um habitus profissional.

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1.3 A PROFISSÃO COMO CATEGORIA ANALÍTICA

Não há consenso quanto ao que se pode, ou se deve, consideraruma profissão para fins analíticos em ciências sociais. Muitas defi-nições têm sido apresentadas para este conceito desde o começodo século e um grande debate continua sendo travado na busca deuma definição mais clara.

Freidson, a este respeito, diz que:

... devido à falta de qualquer consenso sobre as ocupações quedeveriam ser estudadas e sobre o tipo de informação que deveriaser coletado a seu respeito, a maioria dos estudos é apenas tosca-mente comparável, mesmo quando eles examinam a mesma ocu-pação (Freidson, 1996, p. 142).

Vejamos a seguir alguns exemplares desta vasta variedade para,ao final, delimitar um pouco melhor os aspectos que vamos tomarcomo referência teórica na aplicação do conceito de profissão comocategoria analítica neste trabalho.

Durkheim (1995) no prefácio à 2a edição de Da Divisão doTrabalho Social, estabelece os padrões morais como elemento fun-damental na estruturação dos agrupamentos profissionais, aos quaisatribui um papel importante na organização social contemporâ-nea. Também afirma a importância da autonomia quando enun-cia o que segue:

A atividade de uma profissão só pode ser regulamentada eficaz-mente por um grupo próximo o bastante dessa mesma profissãopara conhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suasnecessidades e poder seguir todas as variações destas. O únicogrupo que corresponde a essas condições é o que seria formadopor todos os agentes de uma mesma indústria reunidos e organi-zados num mesmo corpo. É o que se chama de corporação ougrupo profissional.

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Ora, na ordem econômica, o grupo profissional existe tanto quantoa moral profissional (Durkheim, 1995, p. XI).

Também enfatiza as relações sociais que se estabelecem noâmbito de um desses grupos:

Sem dúvida, os indivíduos que se consagram a um mesmo ofícioestão em relações mútuas por causa de suas ocupações similares. A própriaconcorrência entre eles os põe em relação (Durkheim, 1995, p. XI).

Esta formulação do conceito foi o fundamento sobre o qualse assentou boa parte da produção de conhecimento sobre o tema,o que confirma o caráter cumulativo da definição de um conceitoem ciência de que nos fala Bourdieu (Bourdieu, 2000).

Weber nos ensina: Chamamos “profissão” aquela especificação,especialização e combinação dos serviços de uma pessoa que, para esta,constituem o fundamento de uma possibilidade contínua de abasteci-mento ou aquisição (Weber, 1994, p. 91).

De acordo com Becker (1977), entre as primeiras tentati-vas de sistematizar a discussão, encontradas na literatura con-sultada, está o clássico trabalho de Abraham Flexner, apresen-tado a um congresso de entidades de caridade em Chicago, em1915, que tentava responder à pergunta, formulada pelo pró-prio autor, se serviço social era ou não uma profissão (Becker,1977, p. 87). Flexner estabeleceu seis critérios para distinguirprofissão de outras formas de trabalho. Para ele profissão teriaque ser:

– Intelectual e associada a uma grande carga de responsabili-dade individual.

– Aprendida e baseada em grande conhecimento e não emmera rotina reproduzida.

– Prática ao invés de teórica ou acadêmica.– Técnica cujo conteúdo pode ser ensinado através de longo

sistema de treinamento.– Fortemente organizada em suas instâncias internas.

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– Altruística estimulando a crença, entre seus praticantes, deque seu trabalho é dirigido ao bem da sociedade.

Usando esta classificação, por demais mecânica e objetivista,ele incluía neste conceito a medicina, o direito, a engenharia e asartes. Excluía trabalhos técnicos, como os dos encanadores e me-cânicos, por não terem caráter intelectual; o comércio e as finan-ças, pela motivação fortemente baseada no lucro; e outras por nãoatenderem aos demais critérios.

A tentativa de Flexner (apud Becker, 1977) teve muitos se-guidores que visaram à superação das inconsistências e fragilida-des de seu trabalho.

Carr-Saunders e Wilson (apud Becker, 1977) no, tambémclássico, livro The Professions, de 1934, definiram profissão comosendo a aplicação de uma técnica intelectual – adquirida comoresultado de um longo processo de treinamento especializado – aum trabalho empregado como meio de vida.

Numa outra direção, diz Barbosa citando Goode:

Para Goode, o que caracteriza toda a profissão é o fato de ela seruma comunidade, e é esta a aspiração de toda ocupação quepretenda se profissionalizar. Uma comunidade caracterizada pelosseguintes traços:1)Seus membros estão ligados por um sentido de identidade.2) Uma vez nela, poucos a deixam, de modo que é um statusterminal para a maioria. 3) Seus membros partilham valorescomuns. 4) As definições de papéis de membros e não-mem-bros são objeto de acordo e são as mesmas para todos os mem-bros. 5) Nas áreas de ação comum há uma linguagem co-mum, que é compreendida apenas parcialmente pelos de fora.6) A comunidade tem poder sobre seus membros. 7) Seus li-mites são razoavelmente claros, apesar de serem sociais e nãogeográficos. 8) Apesar de não produzir a próxima geraçãobiologicamente, ela o faz socialmente pelo controle sobre a

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seleção de professores, e pelos processos de treinamento ela so-cializa seus recrutas (Goode apud Barbosa, 1993, p. 14).

Andrew Abbott (1988, p. 08) define as profissões como gru-pos ocupacionais exclusivos que aplicam conhecimento mais ou menosabstratos a casos particulares. Para ele qualquer grupo, no universoocupacional, pode apropriar-se de um conhecimento que estrutu-ra uma técnica, mas só se define como uma profissão se controlaro conhecimento abstrato que está na gênese dessa técnica, a talponto de poder delegar a aplicação da técnica, propriamente dita,a outros grupos que, assim, ficariam em posição de subordinação.Para mim esta característica da abstração é a que melhor identifica asprofissões (Abbott, 1988, p. 08).

Freidson declara que tem usado a palavra “profissão”:

... para referir-me a uma ocupação que controla seu própriotrabalho, organizado por um conjunto especial de institui-ções sustentadas, em parte, por uma ideologia particular deperícia e de serviço. Eu uso a palavra “profissionalismo” parareferir-me àquela ideologia e àquele conjunto especial de ins-tituições. Estes usos têm evoluído ao longo do tempo e nãoestão claramente distintos em todos os ensaios deste livro (Freid-son, 1994, p. 10).

Em estudo posterior, Freidson (1996) propõe que se tomegenericamente o termo “ocupação” como referência geral paradesignar aquela fração do trabalho exercido especializadamentepor um grupo de pessoas, no contexto da divisão do trabalho.Deste conceito geral seriam deduzidos outros dois mais específi-cos: ofício e profissão.

Profissão seria um tipo específico de ocupação, exercidana economia formal, como resultado da divisão do trabalho,constituindo-se numa especialização, o que pressupõe treina-mento especializado. O autor preconiza uma diferenciação en-

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tre “especialização mecânica” (Freidson,1996, p. 143), com-posta por um conjunto de tarefas e ações simples, repetitivas einvariáveis, e “especialização criteriosa” (Freidson,1996, p. 143),onde as situações específicas da aplicação particular do conhe-cimento, das atitudes e das habilidades, aprendidas no proces-so de treinamento, variam de tal forma que impossibilitam arepetição irrefletida e tornam imperioso um grau considerávelde discernimento para adaptar o conhecimento às contingên-cias de sua aplicação.

Colocados estes pressupostos, Freidson (1996) considera umaprofissão como uma especialização criteriosa teoricamente funda-mentada. Ele entende que o profissionalismo é: ... um método logi-camente distinto de organizar uma divisão do trabalho (Freidson,1996, p. 144).

Entre as diversas tentativas de melhor definir este conceito,alguns critérios de distinção foram propostos por pesquisadoresque representam as diversas matrizes teóricas, como já vimos, natentativa de entender o contraste existente entre as profissões,quando comparadas a outros tipos de ocupações. Virtudes comoo altruísmo, a orientação para o coletivo, a relevância social dotrabalho, a igualdade de tratamento destinada ao beneficiário fi-nal do trabalho – sem as distinções devidas às origens de classe –,o fato de – aparentemente – escaparem à lógica capitalista do lu-cro como objetivo último e final da ação foram arroladas por al-guns autores, especialmente os funcionalistas, como critérios dis-tintivos.

Elas emergem da comparação entre os profissionais e os ho-mens de negócios, para que, por contraste, restem mais claras asdiferenças e as características das profissões.

Num extremo os homens de negócios, buscando o lucrocomo objetivo único e indisfarçado de sua ação; no outro ex-tremo, os profissionais, tidos como pessoas que serviam aosinteresses de outros, mesmo às custas da frustração dos seuspróprios (Becker, 1977).

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Também aqui parece ter havido uma modificação nas atitu-des e nos comportamentos. Os rígidos preceitos éticos e a fortevigilância dos colegas dificultava aos médicos, por exemplo, queindicassem aos seus pacientes tratamentos e procedimentos tera-pêuticos dos quais eles não necessitavam. Com o atual sistema deremuneração por produtividade, resultado da intermediação, en-tre médico e paciente, das seguradoras, dos planos de saúde e dosconvênios, a realização de procedimentos desnecessários se tor-nou mais fácil e, supõe-se, deve ter aumentado tanto que obrigoua que todos os tipos de operadoras que intermediam a assistênciamédica estruturassem setores de auditoria e perícia médica paraverificar a real necessidade e aplicabilidade dos procedimentossolicitados pelos médicos às operadoras para o tratamento de seusassociados.

Em outras palavras, o nítido contraste entre as atitudes e com-portamentos considerados típicos de homens de negócios, marca-damente mercantilistas, e de profissionais, altruístas e solidários,apontados pelos pesquisadores funcionalistas, parece não ocorrerde forma tão clara nos dias atuais.

Uma outra questão que também merece consideração devi-do à sua importância no estudo da sociologia das profissões é aque se refere às relações sociais mantidas entre o conjunto da so-ciedade e uma determinada profissão, tomada como um agentesocial coletivo. Estas relações envolvem poder e autoridade exerci-dos ora na direção da profissão para a sociedade, ora em sentidoinverso.

No primeiro caso, a profissão, subsumida à sociedade, exercepoder e autoridade em relação à totalidade de seu contingenteatravés de uma estrutura sociológica peculiar, restrita ao seu cam-po de competência técnica (Becker, 1977, p. 37).

O médico, o advogado, o professor, o artista tem sua posiçãona estrutura social, sua autoridade, seu poder de influência, seuprestígio e seus privilégios definidos pelo valor que a sociedadeatribui ao produto de seu trabalho; pela necessidade que ela tem

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desse produto; pelo monopólio de sua produção reservado a essaou àquela categoria profissional, em função de seu conhecimentoespecífico sobre a matéria.

1.4 PROFISSÃO, PROFISSIONALIZAÇÃOE PROFISSIONALISMO

O grande volume de publicações disponível sobre o tema, as inúme-ras abordagens, as diversas profissões tomadas como objeto e suascaracterísticas peculiares – algumas tão peculiares que tornam inviá-veis as tentativas de generalização – fazem com que a massa crítica daíresultante se constitua num corpo de conhecimentos do qual se podefazer uso para apoio teórico à pesquisa, desde que se tome o cuidadode definir alguns conceitos que se podem empregar como categoriasoperativas. Este cuidado foi aqui observado e deu origem a um con-junto de conclusões de natureza teórica, que tornaram possível a rea-lização da etapa empírica posterior.

Tomados os pressupostos teóricos acima descritos, procurou-serevisar alguns critérios empregados na definição da categoria “profis-são” e suas decorrências: “profissionalização” e “profissionalismo”.Devido à amplitude do panorama teórico sobre as profissões e à ca-rência de uma unificação teórico-conceitual, já referida, faz-se neces-sário que se defina o enfoque deste trabalho num ângulo mais fecha-do, sob pena de se criar uma referência caótica que mais prejudicariaos objetivos da pesquisa do que a ampararia.

Assim sendo, torna-se imperativa uma definição conceitualsintética dos elementos que serão empregados analiticamente parainterpretar a profissão médica e o emprego da educação médicacomo trincheira de resistência da profissão contra as investidas domercado, de outros grupos sociais e de estamentos de poder sobreseus domínios.

Para os objetivos desta pesquisa, as características gerais quedefinem a categoria analítica profissão e que serão aplicados ao

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estudo da medicina e da prática social que interessam a este traba-lho são:

– Controle sobre a produção e distribuição do conhecimento.– Valores comuns e cultura profissional unificada.– Exclusividade da prática profissional licenciada.– Autonomia e liberdade de controles leigos.– Institucionalização e auto-fundação de uma burocracia.– Catividade do mercado e monopólio da produção de serviços.– Constituição do grupo profissional como campo individuali-

zado e hierarquizado.– Relações de poder do grupo profissional com a sociedade.– Longo e continuado processo de treinamento e gênese das no-

vas gerações.– Constituição dos professores6 como elite profissional.

Estas características constituem-se em conclusões teóricasa que se chegou a partir do manuseio intelectual da bibliogra-fia ao longo deste capítulo e delas decorrem um conjunto deoutros elementos e categorias classificatórias prévias, como ve-remos adiante.

Para as finalidades deste trabalho a aplicação específica àmedicina destes elementos teóricos gerais, demarcadores do con-ceito profissão, permitindo seu emprego como categoria analítica,serão assim definidos:

– Conhecimento: apropriação pelo grupo profissional de umafração de um conhecimento socialmente acumulado.

– Controle: do grupo sobre a gênese deste conhecimento esobre sua prática derivada que deve, sempre, ser licenciadapela profissão instituída.

6 O termo professores, aqui empregado, refere-se aos médicos investidos dafunção docente (médicos-professores) nada tendo a ver com os professorescomo categoria profissional.

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– Autonomia: completa autonomia no emprego da técnicapelo agente e liberdade de controles externos.

– Cultura: compartilhamento de valores e outros elementosculturais comuns que estruturam uma ideologia e um dis-curso legitimador.

– Exclusividade: uso exclusivo e formalmente licenciado dasaplicações práticas derivadas do conhecimento apropriado.

– Institucionalização: formalização de um arcabouço jurídi-co e normativo e fundação de uma burocracia profissionalque lhe dá apoio e proteção na concorrência com outrosgrupos profissionais.

– Mercado: estruturação de um mercado com garantia demonopólio da produção para o grupo profissional e seusmembros licenciados.

– Campo Interno: constituição do grupo como um campocom lutas internas por posição e poder.

– Campo Externo: posicionamento do grupo profissional noscampos mais amplos de concorrência pelas diversas moda-lidades de capitais socialmente valorizados.

– Reprodução: estruturação da educação profissional comoum processo estratégico e controlado de treinamento e so-cialização para a gênese de novas gerações.

– Conversão: dos candidatos a uma cultura profissional atra-vés de sua adesão voluntária a um código de normas e avalores profissionais formalizados ou não.

– Professores: como um subgrupo posicionado na elite pro-fissional.

Assim definidos, estes elementos teóricos foram empregadospara a elaboração do instrumento de abordagem do campo. Elesse encontram, em maior ou menor grau, incorporados ao conteú-do das questões que compuseram o roteiro de entrevista aplicado.

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CAPÍTULO 2

Medicina e profissionalismo

A medicina não é uma atividade comum, é uma profissão,e a autonomia do médico precisa ser mantida a qualquercusto, sob pena de prejuízo irreparável para a saúde, valorabsoluto do paciente.

Dr. Luiz Augusto PereiraPresidente em Exercício do Conselho Regional deMedicina do Rio Grande do Sul.

Editorial do Jornal do CREMERS/agosto de 2000.

2.1 A MEDICINA COMO PROFISSÃO TÍPICO-IDEAL

Poucas são as análises sobre profissões que não citam, direta ouindiretamente, a medicina como exemplar. Apesar de, como jávimos, não haver uma unificação teórico-conceitual sobre o tema,parece haver um consenso sobre esta questão.

Parsons (s.d), Larson (1977), Freidson (1988), Becker (1997),Abbott (1988) e Good (1997), nos Estados Unidos; Armstrong(1983), Dingwall e Lewis (1983), na Grã-Bretanha; Luc Boltanski(1989) na França; Donnangelo (1975), Luz (1995) e Schreiber,(1993) no Brasil; são exemplos de pesquisadores que se dedicaramao estudo da medicina, tomando a profissão como categoria deanálise social.

Sobre isto, e considerando a autonomia como indicador maisimportante, Horobin (apud Dingwall e Lewis, 1983) afirma:

Há pouca dúvida de que os médicos têm obtido muito sucesso nabusca de alto status, de proteção contra a crítica leiga e de condi-

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 59

ções favoráveis para definir e monopolizar seu trabalho. Traba-lho médico é o que os médicos dizem que é (destaque nosso).A medicina é, segundo aceitação comum, a profissão arquetípica(Horobin, 1983, p. 90) (tradução nossa)7.

Esta afirmação remete imediatamente para a questão da apro-priação do conhecimento, base da autonomia profissional. O co-nhecimento, o elemento cognitivo, é tão indiscutivelmente pro-priedade da profissão, que quem determina que fração da divisãodo trabalho corresponde a este grupo profissional é o próprio gru-po profissional.

Aqui cabe comentar duas questões. Em primeiro lugar, é cer-to que tradicionalmente o domínio desse núcleo central permitiuaté que parcelas consideradas menos nobres do trabalho fossemdelegadas, mediante controle médico, a outras profissões. A técni-ca pode ser delegada se a matriz teórica permanece exclusivamen-te médica.

Em segundo lugar, a medicina, por ação ou omissão, acaboupermitindo que, mais recentemente, algumas disciplinas limítro-fes se emancipassem desse controle, conseguissem estabelecer-secomo profissões autônomas, demarcassem um espaço próprio deatuação e obtivessem crescentes progressos em termos de reco-nhecimento público. Enfermagem, psicologia, nutrição e fisiote-rapia são alguns exemplos. Este fato foi observado por, pelo me-nos, um entrevistado durante o trabalho de campo.

A medicina instituída sempre considerou esse fenômeno comouma intrusão, uma invasão indevida e ilegítima de sua jurisdição.

O controle do conhecimento contribui para a constituiçãode um carisma particular dos médicos, segundo Kosa (apud Ho-

7 There is little doubt that doctors have been very successful in establishing highstatus, protection from lay criticism and favourable terms on which to define andmonopolise work tasks. Medical work is what medical workers say it is. Medicineis, by common assent, the archetypal profession (Horobin, 1983, p. 90).

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robin, 1983, p. 92). Este autor situa a origem desta autoridadecarismática médica em duas vertentes: a primeira seria o poder decurar a doença e expulsar os demônios, conforme citado no Evan-gelho de São Marcos, capítulo 3, versículo15; a segunda, repre-sentada pelo Juramento de Hipócrates, que se refere a uma habili-dade de curar e a um pretenso domínio sobre a morte, que impli-ca numa dimensão moral que reforça o carisma dos médicos. Se-gundo a tradição religiosa e hipocrática, nenhuma outra profis-são, salvo a medicina, poderia reclamar para si esse domínio sobreo mal, a doença e a morte.

Na verdade pouco importa se esta habilidade de curar e seeste domínio sobre a morte são reais. O que conta é que o públicodeseja, segundo o autor, acreditar que alguém – humano e nãodivino – detenha este poder.

Na comparação com outros grupos profissionais, Kosa (apudHorobin, 1983) identifica uma característica especial na necessi-dade que as pessoas tem de atenção médica. Diferente dos conta-dores, engenheiros e advogados, a necessidade de atenção médicasurge em circunstâncias que estão além do controle humano.

Na comparação com advogados aparece um contraste moralainda mais visível. Para o autor:

Na prática, há advogados para defender os “caras bons” contraaqueles advogados dos “caras maus”, assim a posição moral dosadvogados é incerta. Os advogados tendem a disputar um jogode “soma-zero”; os médicos não (Horobin, 1983, p. 93) (tradu-ção nossa)8.

O autor soma a esta interpretação mais dois aspectos quecumpre salientar: a crença pública generalizada nas bases científi-

8 In practice, there are lawyers for the “good guys” against those for the “bad guys”,so that the moral position of the advocate is uncertain. Lawyers tend to play in azero-sum game; doctors do not (Horobin, 1983, p. 93).

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cas da medicina e o fato dos advogados serem vistos como criado-res das circunstâncias nas quais seus conhecimentos e habilidadessão necessários, enquanto a necessidade de atendimento médicosurge contra um inimigo natural, o que reforçaria ainda mais oprestígio público dos médicos.

Esse carisma, para Donnangelo (1975), é interpretado pelogrupo profissional como indispensável para o sucesso técnicodo diagnóstico e do prognóstico. Diz a autora: É no contexto darelação pessoal, mediada pela confiança do paciente na figura domédico, que se instala o elemento “carismático” capaz de contri-buir para o êxito das operações técnicas” (Donnagelo, 1975, p.127).

Magali Larson (1977), descrevendo o fenômeno do pro-fissionalismo e suas repercussões para a sociedade ocidental,utiliza a profissão médica para ilustrar as estratégias profissio-nais que deram certo em termos de projeção pública, de ima-gem de sucesso e de prestígio social e econômico. Numa análi-se que enfatiza os aspectos econômicos da institucionalizaçãoda medicina americana, revisa a trajetória da medicina cientí-fica nos Estados Unidos desde o princípio do século XIX e aconstituição do mercado de serviços médicos que, segundo ela,caracteriza-se por:

Oferecer um produto que atende a uma necessidade vital e uni-versal, sendo, portanto, virtualmente ilimitado.

Constituir um mercado desde logo marcado por intensa compe-tição onde o que está em jogo não é apenas a venda de serviços,mas a primazia de uma escola de pensamento médico, de umparadigma de cura sobre os demais.

Promover uma atividade de natureza permanentemente in-dividual e privada, quase impossibilitando a organização dosconsumidores, o que estimula a associação entre os produtoresde serviços.

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Contar com relativa pré-disposição das autoridades públicas parafacilitar o controle e o monopólio sobre a prática médica porprofissionais de reconhecida capacidade médica ou, pelo menos,mais convincentes que os demais (Larson, 1977).

A autora analisa a trajetória da medicina científica neste mer-cado altamente competitivo, sem entrar em maiores detalhes sobreas estratégias empregadas por este segmento da profissão na con-quista deste campo. Sublinha apenas que uma delas, talvez a maissignificativa, foi a de aproveitar esta natureza privada, quase con-fidente, do trabalho para tornar-se mais do que um consultor emassuntos médicos, um consultor em assuntos pessoais. Foi dessaforma, segundo ela, que os médicos incorporaram uma imagempública respeitável, sábia, caridosa e até mesmo pastoral, tornan-do-se verdadeiros pastores leigos.

Este papel e esta imagem são bem recebidos pelo grupo, queas incorporam à sua ideologia profissional. Apenas para trazer umexemplo brasileiro, transcrevo abaixo uma parte da Resolução No

53/1999, do Conselho Federal de Medicina, assinada pelo Con-selheiro Relator Dr. José Abelardo Garcia de Menezes e publicadano Jornal do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande doSul No 81, de agosto de 2000:

É sobejamente conhecido entre os profissionais de saúde que aconsulta médica é o momento emblemático na relação entre aqueleque procura socorro e aquele outro que foi treinado a utilizarseus conhecimentos na busca incessante da cura. É momento so-lene, sublime, sacerdotal, aconselhador, de rara intimidade, pró-pria dos confessionários.

A manifestação surpreende pelo idealismo romântico quecontém e pode mesmo, embora contemporânea, ser consideradaanacrônica no alvorecer do século XXI.

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Por outro lado, a constituição de uma profissão e os necessá-rios atos cujos propósitos fundamentais são os de cativar um mer-cado passam por uma diferenciação profissional. Se não foi possí-vel, até há pouco tempo, organizar o mercado consumidor, tor-nou-se necessário, como já foi dito, ao menos regular a oferta deserviços, regulamentar o exercício e estabelecer normas de licen-ciamento.

Apenas um corpo de conhecimentos, seja ele esotérico outeórico e, por conseqüência, de difícil rotinização, não é suficientepara delimitar e controlar um mercado competitivo. Larson (1977)aponta para a necessidade estratégica de formulação de bases cog-nitivas cujo propósito seja o monopólio de uma competência, comoempregada pela medicina americana, onde as melhores característi-cas do mercado profissional sejam reveladas, ativadas e maximizadas.A profissão precisa criar suficiente especificidade para distinguir a sua“mercadoria” e precisa ser codificada e formalizada o suficiente, parapermitir a padronização da produção e, por conseqüência, dos pro-dutores. A codificação, no entanto, não pode ser tão clara que nãopermita a exclusão da maioria dos candidatos do campo de operação.Em última análise, citando a autora: ...onde qualquer um pode se decla-rar especialista, não existe especialização (Larson, 1977, p. 31).

A reforma das bases cognitivas, vale dizer do referencial con-ceitual e teórico, não pode, no entanto, permitir uma interpreta-ção pública que as reconheça como manobras monopolísticas e decativação de mercado. Para tanto esta reforma deve surgir como anecessária solução para os problemas e os limites daquele campode conhecimento. Deve portanto parecer um progresso. Comotal, deve buscar o consenso interno em primeiro lugar, promoven-do o convencimento e afinando o discurso de seus “produtores”.

Wright Mills (1969) incluiu os médicos entre os “colarinhosbrancos” da então emergente classe média americana. Aponta paraum fenômeno que começava a ser percebido no início dos anos50 nos grandes centros urbanos, bem como nos centros de refe-

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rência médica, que era a perda progressiva da autonomia dos pro-fissionais. Os médicos eram tradicionalmente proprietários dosmeios para exercer seu trabalho, o que lhes conferia independên-cia e autonomia sobre a sua organização. Determinavam espaço,tempo e modo de trabalhar.

Os modernos recursos tecnológicos colocados à disposiçãodo exercício clínico tanto para diagnóstico quanto para tratamen-to, cada vez mais sofisticados e caros, tornaram-se inacessíveis parao médico liberal, obrigando-os a, cada vez mais, se juntarem eserem subordinados pelas organizações.

Ocorre também que, ao ingressar nas organizações, estesmédicos acabaram por provocar uma nova divisão do trabalho,criando condições para a emergência de um conjunto de novasprofissões que lhes servem de auxiliares e para as quais eles come-çaram a delegar as funções menos prestigiosas. Estes “semiprofis-sionais”, como Wright Mills (1969) os classifica, diferentementedos clássicos aprendizes, não viriam a se tornar médicos mais tar-de, permanecendo sempre em funções auxiliares e estruturandorelações de poder e subordinação no hospital.

Um outro aspecto determinado pela necessidade de agrega-ção à burocracia hospitalar, para ter acesso à tecnologia, foi umanecessidade de crescente especialização que estabeleceu, de formamais marcada, uma hierarquia entre os profissionais médicos eestruturou uma rede de relações profissionais para que, esgotadosos limites de sua especialidade, um médico tenha o recurso derecomendar ao seu paciente que consulte com um ou mais colegasespecialistas em outras áreas.

Como o médico torna-se cada vez mais competente em suaespecialidade, torna-se cada vez menos competente no todo. As-sim cria-se a necessidade de substituir um clínico por uma equipede especialistas pela qual transitam os pacientes. Esta equipe, emnosso meio, é livremente e informalmente composta com base emsimpatias pessoais, negociações e entendimentos, ajustes e com-posição de interesses entre os próprios especialistas.

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Horobin (1983) acredita que, em países cujos serviços de saú-de são financiados pelo Estado, como no Reino Unido – ao tem-po em que o trabalho foi escrito –, a propalada autonomia médicaé mais aparente do que real. Neste caso, afirma – concordandocom a estratificação profissional citada por Wright Mills (1969) –que há um gradiente de autonomia entre os três grupos que iden-tificou: os clínicos gerais, os consultores hospitalares e os adminis-tradores da política de saúde pública.

Entre esses, os clínicos são os que mais controle detêm sobrea organização do seu trabalho; os consultores hospitalares ficamnuma posição intermediária; e os administradores têm menos con-trole. No sentido inverso se estabelece um gradiente de poder deinfluência sobre o orçamento da saúde pública.

Dessa maneira a autonomia, além da independência e liber-dade de controles externos, trás também elementos que conspi-ram contra a coesão do grupo. Trás isolamento e forte competiçãopor posição no interior do campo e no mercado econômico. Fo-menta a disputa interna por status e projeção pública. Por estemotivo, ficam os profissionais autônomos mais sujeitos às pres-sões do capital, nos países onde o setor saúde é comandado pelomercado, e da burocracia, naqueles países onde o setor está sobcontrole público. O mesmo parece ocorrer em países com contro-le híbrido do setor, ou naqueles em que está havendo uma transi-ção entre um modelo e outro.

Por seu lado, Freidson (1970) toma a orientação para o tra-balho dirigido à coletividade, citada por Parsons (s.d.), como ca-racterística das profissões, que por este motivo se distinguiriamdas ocupações. A distinção estaria não exclusivamente, mas signi-ficativamente aí, na virtude representada pela sua dedicação aoserviço da humanidade e da sociedade.

A institucionalização das profissões seria outro fator dis-tintivo. A organização formal e normativa de uma profissão seestabeleceria também pela formulação e pelo respeito a umcódigo de conduta ética reconhecida e esperada de um profis-

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sional, tida e havida como boa prática. Esses códigos, segundoo autor, seriam tão analiticamente distintos da prática dos agen-tes, como as abstrações da ética religiosa judaico-cristã o sãodos comportamentos e atitudes dos indivíduos que professamtais religiões.

Freidson (1988) renuncia aos preceitos da ética e enfoca suaanálise no comportamento e nas motivações do clínico da práticadiária, excluindo então médicos acadêmicos e pesquisadores. Cen-tra sua observação nos locais desta prática médica eminentementeclínica, abandonando grandes centros de referência, de pesquisa ehospitais de ensino.

Citando Carr-Saunders e Wilson, Freidson (1988) decla-ra que também é marca de uma profissão que seus membrosdetenham um conhecimento técnico-intelectual especializado,como resultado de um longo período de treinamento. É esteperíodo que dá origem a certas atitudes e comportamentosunificados.

Afirma que o trabalho da profissão médica é solucionar pro-blemas concretos de indivíduos reais, indo então na mesma dire-ção de Parsons (s.d.), que não reconhece a medicina como umaciência, mas como um campo de aplicação da ciência. Nessa apli-cação, a prática médica se enfrentaria freqüentemente com oslimites da ciência e não poderia relutar em transpô-los na bus-ca de soluções concretas para problemas empíricos. A falta deembasamento científico não poderia justificar a renúncia aopaciente e seus problemas.

O clínico é orientado para a ação apesar da inexistência deconhecimento confiável. Segundo Freidson, o médico sempre fi-cará mais confortável se “fizer algo” pelo paciente e, portanto, serálevado a empregar medicamentos e procedimentos além do que éindicado por padrões acadêmicos e científicos na tentativa de so-lucionar o problema.

A prática clínica é tipicamente ocupada com problemas indi-viduais, ao invés de grandes agregados de unidades estatísticas.

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Isto explica a ênfase na particularização de cada caso, no exameindividual de cada paciente e na adoção, eventual ou sistemática,de medidas marginais ou alternativas a alguns cânones científicosformalizados. Esta particularização leva consigo dois aspectos ba-silares na configuração analítica do trabalho clínico: responsabili-dade médica e experiência clínica.

A primeira estimula o clínico a assumir mais responsabilida-de com o problema de seu paciente do que com a comunidade daqual ele faz parte. Na eventualidade de serem os interesses sanitá-rios de seu paciente conflitantes com o do coletivo comunitário,ele tenderá a priorizar o indivíduo sobre o qual repousa sua res-ponsabilidade médica, tida como pessoal, direta e intransferível.Tomando tal posição, Freidson se contrapõe a Parsons e inverte ovetor de orientação axiológica do coletivo para o outro enquantoindivíduo.

A sua experiência clínica é também prioritária, não se subor-dinando cegamente a leis científicas ou regras gerais, o que susten-ta uma bem intencionada resistência em abandonar suas práticastradicionais face à desaprovação de outros.

2.2 CULTURA PROFISSIONAL MÉDICA

Com relação à cultura médica Boltanski (1989), analisa a relaçãoentre a cultura médica legítima e a subjetivação da doença pelasclasses populares na França. Parte do pressuposto fundamental deque, diferentemente de outros especialistas que lidam com conhe-cimentos sobre coisas inanimadas ou com tecnologia que não searticula com o saber popular – como eletrônica, por exemplo –,os médicos lidam com o corpo e a saúde das pessoas, portanto,com entidades que estão intimamente associadas à experiência vi-vencial dos indivíduos e, conseqüentemente, à sua visão de mun-do. Assim, ao contrário de tratar doenças, os médicos tratam depessoas vivenciando a experiência de estar doentes. Elas mantêm

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sensações, percepções, crenças e representações sobre seu corpo esua doença, provocando a necessidade de tratar com tudo istoconcomitantemente com o tratamento dito “objetivo” da doença.

Aponta para um uso familiar do conhecimento médico e parao uso não prescrito de alguns medicamentos, principalmente notratamento das doenças das crianças, e para o costume das classespopulares, assim como das outras, de manter em casa um peque-no arsenal medicamentoso. Este recurso é costumeiramente usa-do numa estreita faixa de competência apropriada à medicina cien-tífica, onde os parentes dessas crianças se sentem aptos a utilizarmedicamentos comuns para doenças comuns que aprenderam areconhecer. Este conhecimento médico rudimentar é apropriadopor mecanismo de imitação de vivências anteriores, onde tanto odiagnóstico quanto o tratamento foram procedidos e instituídospor médico.

Boltanski (1989) diferencia esta medicina familiar da medi-cina popular baseada numa tradição mágica e sem qualquer basecientífica. A atual medicina familiar reconhece como legítima amedicina científica e usualmente recorre a ela quando, ou nãoobtém resultado com as medidas instituídas em casa, ou se deparacom situações mais graves. Alude ao fato de que o processo dedifusão desses conhecimentos médicos difere na comparação en-tre medicina familiar e popular. Diz o autor:

A assimilação pelas classes populares dos conhecimentos mé-dicos de origem científica e sua integração no corpo de conhe-cimentos de classe só era possível através de toda uma série detransformações, que tinham como conseqüência desbaratar oempréstimo e mesmo desnaturá-lo. Se as classes populares hojenão podem apropriar-se deles, é porque o respeito que têmpela ciência e pelos sábios, pelo médico e seu discurso, proíbe-lhes operar com toda candura essas reinterpretações e essasreformulações que constituem, de certa maneira, o preço dadifusão. Além disso, a freqüência renovada ao consultório

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médico, que é hoje o principal difusor do conhecimento mé-dico, proíbe-lhes esquecer a existência de um conhecimentomédico legítimo, confundindo-se o respeito devido à ciênciacom o respeito devido ao médico, como representante da ciên-cia e das classes cultas (Boltanski, 1989, p. 32).

O autor declara que a relação médico-paciente é uma relaçãode classe na qual estão presentes fórmulas de identificação e dedistinção de classe. Do diagnóstico da origem de classe do pacien-te redunda uma atitude e um comportamento diverso, fato quecontraria frontalmente a ideologia e o discurso ético da profissão.Como os médicos se identificam com as classes dominantes e, poróbvio, se distinguem das classes populares, ocorre uma natural eacentuada dupla dificuldade de comunicação entre eles.

É em primeiro lugar uma barreira lingüística que separa o mé-dico do doente das classes populares, pois a utilização pelo médi-co de um vocabulário especializado redobra a distância lingüís-tica, devida ao mesmo tempo a diferenças lexicológicas e sintáti-cas, que separam a língua das classes cultas da língua das classespopulares (Boltanski, 1989, p. 44).

Este fato também foi observado por um dos entrevistadosdurante o trabalho de campo.

No caso das classes superiores, o médico se dispõe a algumexercício para explicar o que ocorre por reconhecer que está falan-do com quem pode entendê-lo. Isto se deve ao fato de falarem amesma linguagem e serem dotados dos mesmos “hábitos men-tais” (Boltanski, 1989) por terem sofrido a mesma influência for-madora de hábitos, ou seja, o sistema educacional. Frente a al-guém com quem se identifica intelectualmente, o médico admiteum certo grau de condescendência fraterna que lhe permite abriruma fresta e permitir que o “profano” espie levemente para dentro

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do templo sagrado que contém o saber e o discurso médico, ou,no dizer do autor;

... dando-lhes uma espécie de delegação de poder que os autorizaa manipular com prudência certas partes do discurso médico.Pois o desprezo do especialista pelo profano não se aplica igual-mente a todos, mas varia em função da “inteligência” deste, deseu bom-senso ou de seus “méritos”, enfim, de seu valor social(Boltanski, 1989, p. 68).

Quem dá ao médico instrumentos para fazer este diagnósti-co social, Luc Boltanski não deixa lugar a dúvidas, através de umtreinamento específico em determinar aquilo que chamou de “ca-tegorias de percepção médica” (Boltanski, 1989, p. 48) e a classi-ficar os pacientes em uma tipologia preestabelecida, é a educaçãomédica.

É nessa fase de formação, em que o aluno abre mão de suaautonomia intelectual para converter-se a uma cultura profissio-nal, que se forjam as atitudes, se estruturam os comportamentos eas escolhas passam a fazer sentido. Em outras palavras, é o mo-mento da estruturação do habitus.

2.3 MEDICINA E PROFISSIONALISMO NO BRASIL

Alguns autores nacionais dedicaram seu trabalho ao estudo dasrelações entre a sociedade e a medicina como profissão instituída.Entre estes poderíamos citar: Donnangelo (1975), Cordeiro(1984), Luz (1995), Freyre (1967), Pires (1989).

Donnangelo (1975), estudando as “ideologias ocupacionais”das quais decorreriam as principais inserções dos médicos no mer-cado de trabalho, opõe analiticamente o médico profissional libe-ral ao médico trabalhador especializado ocupando posições no sis-tema de produção. Procura centrar a discussão no ideal de auto-

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nomia ética e técnico-científica, base ideológica do exercício libe-ral, aqui entendida como imunidade à influência leiga sobre aprática profissional, tenha ela origem no Estado, no mercado, naigreja ou onde mais for. Assim:

... a peculiaridade do trabalho médico exige a eliminação dainterferência do leigo e a atribuição do monopólio de julgamen-to das ações do profissional a elementos de idêntica formaçãoespecializada (Donnangelo, 1975, p. 127).

Desta forma, a autora sugere que, do ponto de vista ideológi-co, somente o modelo liberal de organização do trabalho é consi-derado compatível com a autonomia ética e técnica necessária aobom exercício da medicina.

Mas é o recente estudo de Maria Helena Machado (Macha-do, 1997) sobre os médicos brasileiros que nos proporciona doisavanços para os fins deste trabalho.

Em primeiro lugar a autora nos atualiza sociologicamenteem relação à matéria. As relações sociais entre esses profissionais ea sociedade não são mais, exatamente, o que eram ao tempo dostrabalhos dos primeiros autores que incursionaram pelo tema naprimeira metade do século. Nem mesmo o cenário nacional estáintacto desde o trabalho clássico de Donnangelo (1975).

Em segundo lugar, trás o debate teórico mais atual para onosso meio e o correlaciona com o campo brasileiro. É desta for-ma que a autora ressalta alguns dilemas da profissão neste final deséculo, aí incluindo a questão da especialização, que obriga o pro-fissional a dividir com outros colegas uma expressiva fração dapossibilidade de resolver problemas que afligem o paciente, divi-dindo assim o carisma e perdendo autonomia; e a da instituciona-lização e burocratização, entendida como adesão dos profissionaisàs corporações e organizações que atuam na saúde, a fim de pode-rem usufruir da caríssima tecnologia colocada à disposição demédicos e pacientes.

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Os dados empíricos coletados apontam também para diver-sos aspectos relevantes, tais como rejuvenescimento e feminiliza-ção progressiva dos egressos dos cursos médicos; concentraçãourbana – e metropolitana – da oferta de serviços médicos; inser-ção múltipla no mercado de trabalho com equivalência de impor-tância entre o setor público, privado e exercício liberal; especiali-zação cada vez mais precoce dos estudantes e residentes; entre outros(Machado, 1997).

Mostra ainda dados sócio-demográficos importantes ao lon-go do período estudado – décadas de 40/50 a 90 –, tais como:

1. A redução progressiva do número de médicos herdeirosde pais envolvidos com atividades agro-pecuárias e em-presariais e o incremento dos herdeiros de profissionaisliberais.

2. A concentração de 59,5% dos médicos brasileiros naRegião Sudeste e de 14,3% na Região Sul, o que perfazquase 74% do total dos profissionais em atividade nopaís.

3. Aumento progressivo da participação das instituiçõesprivadas de educação superior na gênese de novos mé-dicos.

4. O fato de 54,7% dos médicos brasileiros terem três oumais inserções no mercado de trabalho.

5. A modalidade de trabalho sob forma de plantões ser ado-tada por 48,8% dos médicos do país.

6. A participação de 18,4% dos médicos em atividades em-presariais.

7. A declaração da profissão como “desgastante” por 77,6%dos homens e 81,7% das mulheres.

8. A adesão de 44,9% dos profissionais brasileiros aos sindi-catos médicos e o entendimento de apenas 3,8% de quegreve é a principal alternativa de luta por melhores condi-ções de trabalho e remuneração.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 73

A autora conclui, a partir destes dados e de outros não cita-dos, que:

Ao longo deste livro buscamos mostrar o retrato da realidadedos médicos que atuam no Brasil. Sendo fiéis às evidênciasempíricas, mostramos que esses profissionais “encontram-se naUTI (Unidade de Tratamento Intensivo)”: na UTI das insti-tuições públicas; na UTI das instituições privadas; na UTIde seus consultórios. Os salários, as condições de trabalho, ainsatisfação, o desgaste, o estresse, o desestímulo e a desespe-rança tomam conta da vida diária dos médicos brasileiros(Machado, 1997).

2.4 A ESCOLA MÉDICA COMO REPRODUTORADE UMA CULTURA PROFISSIONALUNIFICADA METANACIONAL

De todos estes autores, dados e trabalhos pode-se reter, como sín-tese, um conjunto de valores, um padrão ético e moral, uma esté-tica e uma tradição, como elementos fundadores de uma culturaverdadeiramente profissional e unificada, a tal ponto que ela trans-põe fronteiras e desconhece limites geográficos.

A bibliografia internacional e nacional, além da nossa pró-pria vivência no meio médico há 24 anos, põe em evidência simi-laridades culturais entre os médicos brasileiros e seus colegas nor-te-americanos e europeus, por exemplo, que nem de longe podemser observadas nos demais cidadãos (não-médicos) dessas regiões.Parece que uma identidade sociocultural médica constitui-se eprepondera sobre outros elementos identitários, tais como a na-cionalidade. Este fato também foi admitido por alguns dos entre-vistados durante o trabalho de campo.

Certamente este não é um fenômeno exclusivo da medicina,talvez isto ocorra também com outras profissões, fato que reforça-

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ria essa massa crítica de produção científica sobre as profissões nouniverso da pesquisa e da explicação sociológica e asseguraria àprofissão, como categoria analítica, um status epistemológico pri-vilegiado de validade no cenário da pesquisa contemporânea emciências sociais.

Mesmo assim, o que diferencia a medicina e a constitui numobjeto de estudo fascinante, é a força da manifestação dessa iden-tidade sócio-cultural e discursiva; é o empenho de seus agentes,especialmente aqueles engajados nos processos pedagógicos, emreforçar, premiar e estimular os comportamentos ideologica-mente comprometidos e em reprovar aqueles considerados in-desejados ou desviantes. É isto que torna a medicina uma pro-fissão singular.

Daí emerge a conclusão de que a unificação dessa cultura éum dos fatores mais importantes na consecução desse objetivoestratégico – e desse projeto coletivo de mobilidade social – dacategoria médica na luta por poder e hegemonia. Na matriz desseprocesso unificador, o papel da escola médica, e seu trabalho desocialização dos candidatos à condição de médico, sobrepõe-secomo o centro sociológico do problema, como afirmou MagaliLarson (1977).

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CAPÍTULO 3

Educação médica e formaçãodo habitus profissional

3.1 EDUCAÇÃO MÉDICA E CONVERSÃOÀ CULTURA PROFISSIONAL

Médicos são instruídos, treinados e socializados no interior de umacultura profissional para a consecução de um projeto coletivo depoder e mobilidade social, como já vimos. Isso ocorre de acordocom um discurso ideologicamente formulado que tem como ob-jetivos últimos a reprodução da dependência social de seus servi-ços, a manutenção do controle sobre a gênese do conhecimentoque anima a sua prática, a difusão de seus valores e da culturaprofissional, a autonomia e liberdade de controles leigos e a cativi-dade de um mercado que demanda a sua produção monopolizada.

Sobre a educação médica também a literatura é vasta. Fou-cault (1994), Larson (1977), Good (1997), Miller (1967), Becker(1997) e Bonner (1995), na literatura internacional, trataram dotema; Nunes (1989), Pires (1989), Schraiber (1989), Chaves eRosa (1990), Batista e Silva (1998), Kaufman (1992), Stöbaus(1989) e Duarte (1990), no Brasil – estes dois últimos no RioGrande do Sul – também o fizeram.

Um longo treinamento especializado e unificado, como jáfoi citado, é o critério fundamental para a constituição do concei-to de profissão. Larson (1977) considera o período de treinamen-to – a “produção de médicos”, como denomina – como o centrosociológico do problema.

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Também é Larson que aponta para a importância da uni-ficação da medicina em torno do paradigma ocidental con-temporâneo, cientificamente fundamentado, o que lhe garan-tiu a hegemonia nesse campo, o monopólio desse mercado e aproscrição de outras alternativas a este paradigma à condiçãode marginalidade na qual mergulharam durante muito tempoe da qual, somente agora, estão querendo sair, surgindo comosoluções para os limites da medicina científica moderna emtermos de cura ou de alívio9 .

Neste processo de unificação, estudado por Larson na me-dicina norte-americana, a reforma da educação médica e suaconcentração em um pequeno número de escolas, preconizadopelo clássico Relatório Flexner, de 1910, foi etapa crucial (Bon-ner, 1995).

Na grande polêmica estabelecida à época, contrapunham-sea formação tradicional de médicos nas clínicas, defendida pelosclínicos, e o treinamento em laboratórios, proposta pelos cientis-tas. Flexner (apud Bonner, 1995) enfatizou a necessária sínteseentre as duas propostas, elegeu a prática como a técnica de ensinoque deveria preponderar e apontou para o hospital como ambien-te ideal para abrigar o processo de ensino-aprendizagem dos can-didatos a médico.

Flexner (apud Bonner, 1995) declarou em seu Relatório: Oestudante não mais meramente observa, ouve e memoriza; ele faz.Suas próprias atividades no laboratório e na clínica são os principaisfatores em sua instrução e disciplina.

A idéia da posição central do hospital como ambiente propí-cio, por excelência, para abrigar o processo de educação médica éverificada na França, como tendo surgido já na transição do sécu-lo XVIII para o século XIX, por Foucault:

9 Entre essas alternativas paradigmáticas à medicina ocidental contemporânea– ou medicina científica moderna – estariam, segundo Madel Luz (1995): amedicina homeopática, a medicina tradicional chinesa e a medicina ayurvédica.

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No artigo “Abus” do Dictionnaire de Médecine, Vicq d’Azyrconfere à organização de um ensino no meio hospitalar valor desolução universal para os problemas da formação médica; esta é,segundo ele, a principal reforma a realizar: “As doenças e a mor-te oferecem grandes lições nos hospitais. Tira-se proveito delas?Escreve-se a história dos males que afetam tantas vítimas? Ensi-na-se neles a arte de observar e tratar doenças? Estabeleceram-senos hospitais cadeiras de medicina clínica?”. Em pouco tempo,porém, essa reforma da pedagogia vai tomar um significado in-finitamente mais amplo; reconhecer-se-á nela a faculdade de re-organizar todo o conhecimento médico e de instaurar, no saberda doença, formas de experiência desconhecidas ou esquecidas,porém mais fundamentais e decisivas: a clínica, e apenas a clíni-ca, poderá “renovar os modernos templos de Apolo e Esculápio”.Modo de ensinar e de dizer, que se tornou maneira de aprender e dever (Foucault, 1994, p. 71)

Diz ainda Foucalt, afirmando que a grande virtude do hospi-tal, como campo de ensino-aprendizagem, é concentrar doentes edoenças:

... diferentemente da clínica do século XVIII, não se trata doposterior encontro entre uma experiência já formada e umaignorância a informar; trata-se de uma nova disposição dosobjetos do saber: um domínio onde a verdade se ensina por simesma e da mesma maneira ao olhar do observador experi-mentado e do aprendiz ainda ingênuo; tanto para um quan-to para outro, só existe uma linguagem: o hospital, onde asérie dos doentes examinados é em si mesma a escola (Fou-cault, 1994, p. 77).

O hospital-escola, síntese de hospital, prestador de assistên-cia médica e escola, como ambiente pedagógico, também foi ob-jeto de estudo para Lilia Schraiber (1989). A centralidade do am-

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biente hospitalar, já apontada por Wright Mills (1969) nos Esta-dos Unidos da década de 50, é também referida por esta autoraque observa que as práticas hospitalares, tendo se tornado a práti-ca médica por excelência, acabam por redefinir e configurar aspráticas escolares no ensino médico. Trabalho médico torna-se si-nônimo de trabalho hospitalar, logo, escola médica torna-se sinô-nimo de hospital-escola.

Schraiber (1989) faz referência e propõe uma análise dialéti-ca das propostas de reforma da formalização e estruturação curri-cular da educação médica no Brasil, discussão que, segundo a au-tora, se deve às contradições internas que este tipo especial deeducação carrega e que chamou de “tese da inadequação”.

A inadequação de que trata a autora se estabeleceria entre aescola médica e seu produto final: os profissionais egressos, de umlado, e as expectativas e necessidades da sociedade e do mercadode trabalho de outro. Diz ela:

... será também possível questionar a educação (médica) es-colar por referência ao conjunto da sociedade e atribuir-lheuma então necessária adequação à produção econômica. To-davia, o fato de que este questionamento possa ter assumido acaracterística de uma “inadequação” denota que as “adequa-ções” postuladas não se tem efetivado concretamente na socie-dade capitalista. O que quer dizer que este mesmo processode constituição da educação escolar, pelas sucessivas transfi-gurações ideológicas que abarca, também resulta em contra-dições próprias da escola que são traduzidas ideologicamentecomo desajustes ou inadequações internas à educação escolar(Schraiber, 1989, p. 47).

A análise dessas contradições teria provocado o debate emtorno de uma necessária reforma curricular nos anos 70 e 80. Nestecontexto surgiram diversas propostas, cujas principais alternativasseriam: a medicina integral, a medicina preventiva, a medicina de

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família, a medicina generalista, a medicina comunitária, a inte-gração docente-assistencial, além de várias temáticas inspiradas noplanejamento e gestão de recursos humanos, segundo a autora(Schraiber, 1989).

O hospital como locus central da educação médica se estendeaté nossos dias no Brasil, onde a propriedade de um hospital-esco-la é critério decisivo nas avaliações que o Ministério da Educaçãofaz dos cursos médicos. Essa confusão do todo – assistência médi-ca – com uma de suas frações – assistência médica hospitalar – ématriz de um conjunto de distorções, das quais apresentaremosdois exemplos.

O primeiro, apontado já por Schraiber (1989), é o estí-mulo à noção de que a medicina hospitalar é a mais aperfeiçoa-da, moderna, tecnológica e, por conseqüência, aquela que re-solve os problemas de doenças das pessoas. Essa distorção cons-tituiu os grandes hospitais-escola, que acabaram por tragar asescolas e subordiná-las aos seus interesses, invertendo totalmenteo sentido do vetor. Os hospitais, que nasceram da necessidadeda educação, agora robustos e poderosos, reorientam a educa-ção de acordo com seu próprio planejamento e diretrizes degestão. Acabam por treinar médicos em técnicas e procedimen-tos de altíssima tecnologia e complexidade, pouco se impor-tando se, depois de formados, estes profissionais estarão ou nãoadequados às necessidades da população, às políticas de saúdee às condições de trabalho – “Tese da Inadequação” de Schrai-ber – (op. cit.).

Uma segunda distorção, que ocorria até meados da décadade 80 – e por nós vivenciada – em alguns hospitais-escola, era aobjetivação de pessoas vivas e doentes como material de estudo.Determinava que se mantivessem internados alguns doentes porlongo tempo, devido à curiosidade científica de alguma doença,sinal ou sintoma de que era portador. Assim, a pessoa internavanum hospital-escola, para diagnóstico ou tratamento de algumacondição patológica, e era mantida internada até que por ela pas-

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sassem todos os estudantes dos grupos de estágio daquele semes-tre letivo. Algumas dessas internações chegavam a durar meses eaté anos, configurando uma situação prisional simbólica determi-nada pela autoridade médica.

O ponto de vista do estudante de medicina, descrito por Good(1997), nos trás uma abordagem da educação médica bastanteinteressante para fundamentar o processo de conversão à culturaprofissional.

Segundo ele, a ideologia médica profundamente enraiza-da não só no meio da profissão, mas já tendo conquistado legi-timidade pública, tem na educação médica uma de suas posi-ções estratégicas cuja manutenção torna-se cada vez mais vital.É ela que dissemina a atitude médica, determina a postura frenteàs situações mais diversas, preconiza um padrão de comporta-mento.

Transcrevendo uma entrevista com uma jovem estudante dosegundo ano da Escola Médica de Harvard, Good (1997) assimdescreve este fenômeno:

A escola médica é realmente misteriosa. É uma experiênciaemocional forçada. Nós manuseamos cadáveres, temos labo-ratórios onde examinamos nossas próprias fezes, vamos a [hos-pitais para doentes mentais onde somos trancados] com pa-cientes aos gritos. Estas são experiências totais, como ser ini-ciado em organizações secretas ou ser admitido em um campode treinamento militar.

... Não é apenas uma extensão da escola [college]. A escola[college] também é uma experiência total, mas você pode se-guir adiante e passar com menos engajamento direto e atéaprender coisas. Aqui você deve interagir com a informação.Quando você disseca um cérebro você deve interagir com es-tas coisa e com os seus sentimentos. Olhar para o que você estálidando.

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Eu sinto como se estivesse mudando minha mente a cada dia,moldando-a de uma maneira específica, de uma forma muitoespecífica (tradução nossa) (Good, 1994, p. 65)10 .

Estudar medicina é como aprender uma nova linguagem,é como dominar um novo código de apreensão da realidade,uma realidade médica, segundo Good. É um novo adestramentodos sentidos para abordar um novo mundo de experiências di-versas, que segue a mesma metodologia através da qual a medi-cina constrói seu objeto. Entrar nesse mundo é um desejo quesurge em alguns sujeitos, mediado por motivações diversas, queos obriga a sujeitar-se a um ritual iniciático ao fim de cujoprocesso aqueles que lograrem êxito serão premiados com acapacidade de formular a realidade de uma maneira “médica”(Good, 1994). Isto, no entanto, envolve fórmulas especializa-das de ver, escrever e falar.

Os primeiros anos dos cursos médicos geralmente estão vol-tados para aprender a olhar o corpo humano de uma maneirabem diversa daquela com que, até então, os estudantes olharamcorpos. As chamadas ciências morfológicas (citologia, histologia,anatomia) proporcionam um ambiente onde os estudantes de-vem aprender a decifrar corpos medicamente constituídos e delesse aproximar com crescente intimidade.

10 Medical school is really weird. It is a forced emotional experience. We handlecadavers, have feces lab where we examine our own feces, go to [a mental hospitalwhere we get locked up] with screaming patients. These are total experiences, likean occult thing or boot camp....it’s not just an extension of college. College was also a total experience, but youcould get by with less direct engagement, and still learn things. Here you have tointeract with the information. When you dissect a brain you have to interact withthese things and with your own feelings. Look at what you’re playing with.I feel like I’m changing my brain every day, molding it in a specific way – a veryspecific way. (Good, 1997, p. 65).

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Após esta reformulação do olhar, que usualmente dura osdois primeiros anos de curso, vem a estruturação da linguagemmédica propriamente dita. O aprendizado da comunicação clíni-ca se baseia na fórmula clássica: ouvir-ler-escrever-falar, não ne-cessariamente nesta ordem, da mesma maneira que se aprendeuma língua estrangeira.

No período intermediário do curso o estudante já é posto emcontato com discussões e relatórios de caso clínico. Deve, por si,formular e registrar suas observações nas folhas de evolução doprontuário dos pacientes que estiver acompanhando, ou dos quaisfoi encarregado de “colher a história”, e vê-se obrigado a, publica-mente, em reuniões de equipe de assistência, relatar em “idiomamédico” castíssimo sua interpretação dos fatos ocorridos com oseu paciente.

A necessidade de comunicar suas aproximações e abordagensdo paciente acabam por estruturar, de alguma maneira, sua inte-ração com ele. O estudante deixa de ser um mero observador epassa a ser sujeito do processo. Como dizia Flexner (Bonner, 1995),o acadêmico passa a fazer. Aquilo que diz, e mais ainda o queescreve, documentam o que se passa com o paciente e pode sermais ou menos considerado na tomada de decisão terapêutica. Omais importante, no entanto, é que o estudante começa a ser ava-liado pela qualidade de seus relatos.

Ao ouvir o paciente, tudo o que é dito pode ter importânciasubjetiva para quem vai, depois, fazer o relato. A seleção do que émedicamente importante, a valorização atribuída ao que foi ouvi-do, no entanto, é parte da tarefa intelectual do clínico-aspirante.Assim também a tradução da queixa bruta em termos medica-mente claros é uma competência a ser desenvolvida. Eles (a equipemédica) não querem ouvir a história da pessoa. Eles querem ouvir aversão editada... (tradução nossa) (Good, 1994, p. 78)11.

11 They don’t want to hear the story of the person. They want to hear the editedversion... (Good, 1997:78).

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Essa submissão constante a este exercício acaba por condi-cionar o estudante a formular o paciente como um documentomédico, um objeto sobre o qual deve trabalhar para atingir umobjetivo clínico pré-determinado (Good, 1997), um objeto sem-pre pronto a ser apresentado a uma audiência especializada quedetém a competência para discuti-lo, julgá-lo e sentenciá-lo a sub-meter-se a um ou mais procedimentos terapêuticos, nunca total-mente isento de riscos.

O estudante é estimulado a colocar a apresentação do caso àequipe de assistência, numa posição preponderante de seu traba-lho médico, em detrimento da entrevista e do exame da pessoa.As apresentações de casos clínicos costumam ser padronizadas emcada serviço universitário. Atender a esses padrões determina osucesso ou fracasso da apresentação, que terá conseqüências parao paciente em termos de plano terapêutico e para o apresentadorem termos de avaliação de competência profissional e acadêmica.

Como se trata de uma performance que tem repercussões navida real de uma pessoa, Good (1994) chama a atenção para opoder que aí está envolvido de objetivação da pessoa como subs-trato do objeto da prática médica – a doença. A ênfase é posta nadoença, na lesão, no tecido orgânico acometido, na alteração dafisiologia ou da anatomia normal. A pessoa, ao invés, é formuladacomo um mero sítio da doença.

Em última análise, os estudantes são treinados a “objetivar” osubjetivo em termos médicos, para auxiliar na tomada de decisãoterapêutica que, como já foi dito, nunca é isenta de riscos. Seucaráter arbitrário determina na equipe uma hierarquia, baseadano conhecimento e na experiência em clínica ou cirurgia, nuncaem termos de conhecimento sobre a experiência específica daque-la pessoa ou de sua vivência subjetiva do episódio mórbido. Porter tido que conviver com o doente, muitas vezes o estudante podenão concordar com a escolha da técnica a ser empregada, do trata-mento a ser instituído. Esta discordância raramente é manifesta.Constrangido com o fundo de cena montado, o estudante atribui

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espontaneamente sua posição contrária à sua falta de experiênciae de conhecimento médico e se cala, como diz Good (1997):

Ao mesmo tempo eles reconhecem que não são suficientementeexperientes para julgar o que deve ser feito e sentem profunda-mente a pressão para demonstrar solidariedade, para não ques-tionar os atos daqueles hierarquicamente superiores (traduçãonossa) (Good, 1994, p. 82)12.

Dessa maneira a educação médica autoriza e legitima práticasclínicas que, procedidas sobre pessoas redefinidas e formuladas comosubstratos da doença, as constituem como objetos de atenção médi-ca, contribuindo assim para a reprodução das relações de poder dasquais essa forma específica de ensino está impregnada.

A submissão a tal programa de treinamento e a adesão aosseus princípios estruturantes é condição fundamental para o ajus-tamento do estudante ao mundo médico, para a adoção dos valo-res profissionais, para a assunção de atitudes tipicamente médicasque, ao longo do treinamento, vão se consolidando a partir desinais de aprovação ou reprovação dos professores e instrutores.Este enquadramento à cultura profissional, vale dizer, à estrutura-ção de um habitus profissional como veremos, é fator que se reves-te de importância vital para as chances de sucesso futuro, para osurgimento de oportunidades de trabalho e colocação e para aobtenção do respeito dos colegas.

Para Donnangelo (1975), a educação médica é o momentoem que ocorre:

A adesão de todos os membros da profissão a esse sistema devalores (tipicamente médicos que legitima e sustenta padrões

12 At the same time, they recognize they are not senior enoughto judge what shouldbe done, and they feel deeply the pressure to show solidarity, not to question theactions of those up the hierarchy. (Good, 1997, p. 82).

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de comportamento profissional)* constitui um importantepressuposto da uniformidade e da coesão grupal (Donnange-lo, 1975, p. 126).

O sistema de valores a que se refere a autora e sua adoção pelosaspirantes são questões de fundo nos programas de educação médica.Aparecem de forma estruturada e consciente nos trabalhos de organi-zação de currículo e planejamento do ensino-aprendizagem.

Um documento elaborado pela Association of American Me-dical Colleges (AAMC) e datado de 1953 assim define os grandesobjetivos da educação médica:

a. Fazer o aluno adquirir o conhecimento exigido...

b. Induzir o aluno a estabelecer hábitos essenciais...

c. Fazer o aluno adquirir habilidades básicas...

d. Levar o aluno a desenvolver atitudes sadias...

e. Induzir o aluno a compreender os princípios profissionais eéticos... (Miller, 1967, p. 92-93).

No item “D”, as atitudes consideradas sadias são explicitadas:

1. De enxergar os indivíduos em sua totalidade de seres huma-nos complexos em ambiente complexo e cambiante.

2. De procurar os meios de promoção e manutenção da saúdedos pacientes, compreendendo que é mais útil a prevenção dedoenças do que sua cura.

3. De abordar cada doente como pessoa portadora de distúrbiode desenvolvimento, estrutura ou função, cujas causas e cura exi-gem cuidadosa investigação científica.

* Nota do autor.

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4. De fundamentar o plano de tratamento, reabilitação ouadaptação no esforço conjunto da equipe médica e do pacien-te, no auxílio às forças restabelecedoras da natureza.

5. De continuar estudioso pela vida toda, aprendendo e re-vendo as idéias antigas durante todo seu tempo de prática daprofissão.

6. De aceitar o fato de que o médico pode curar às vezes,aliviar muitas vezes, prevenir freqüentemente e confortar sem-pre (Miller, 1967, p. 93).

Guilford (apud Miller, 1967) elege a definição de atitude desteúltimo: Atitude é uma disposição pessoal comum aos indivíduos, maspossuída em graus diferentes, a qual os impele a reagir a objetos, si-tuações ou proposições em moldes que podem ser chamados de favorá-veis ou desfavoráveis (Miller, 1967, p. 286).

É bem verdade que já se pode perceber uma certa crise doconjunto de valores tradicionalmente atribuídos à profissão mé-dica, de transcendência humanitária e natureza solidária, hojebastante fustigados pela ideologia de mercado que redefine otrabalho médico como produto a ser comercializado, que temvalor, que tem preço, que está destinado a um consumidor es-pecífico – “nicho de mercado” – e que deve ser transacionadodentro das leis desse mesmo mercado. Este fato, no entanto,não é o propósito deste trabalho.

Tudo isso reunido constitui-se num programa de sociali-zação que visa, como entende Bourdieu (Bourdieu, 1975), aimposição de um arbitrário cultural eleito e ungido como legí-timo, no qual a escola exerce violência simbólica em nome daclasse – ou fração – dominante e tem como conseqüência aestruturação de um habitus que, neste caso específico, não éum habitus de classe, mas uma fração deduzida desta totalida-de: um habitus profissional.

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3.2 A FORMAÇÃO DE UM HABITUSPROFISSIONAL MÉDICO

Bourdieu (1989), ao propor uma “genealogia de conceitos”, afir-ma que, para não ceder à tentação de criar um neologismo ao qualseu nome ficaria vinculado, prática comum nos meios científicosde acordo com o autor, tomou o conceito de habitus da tradiçãofilosófica escolástica, que por sua vez se constituiu numa conver-são da noção aristotélica de hexis.

Com a proposição do conceito de habitus, Bourdieu tencio-nava superar a teoria da ação estruturalista que, baseada na con-vicção da inconsciência do agente, transformava-o em mero subs-trato da estrutura. O autor, segundo suas palavras:

... desejava por em evidência as capacidades “criadoras”, activas,inventivas do habitus e do agente (que a palavra hábito nãodiz), embora chamando a atenção para a idéia de que este podergerador não é o de um espírito universal, de uma natureza ou deuma razão humana..., mas sim o de um agente em ação: trata-va-se de chamar a atenção para o “primado da razão prática”...(Bourdieu, 1989, p. 61).

Na verdade o habitus se configura como uma espécie de “sen-tido do jogo” (Bourdieu, 1989, p. 62), que, uma vez incorporadoaos esquemas mentais do agente, faz com que ele prescinda danecessidade de raciocinar para se orientar e se situar de maneira ra-cional num espaço13 (Bourdieu, 1989, p. 62).

O autor entende que há coerência entre o sentido que costu-mava atribuir ao conceito no princípio, logo que tomou a palavrada tradição filosófica, e o que contemporaneamente atribui a ele.Sugere, no entanto, que conceitos como este são melhor concebi-dos quando sua geração se dá de maneira cumulativa. Isto é, quando

13 O termo espaço, aqui empregado, deve ser entendido com um espaço social.

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são empregados inicialmente de maneira aberta para, só depois,através de um processo de maturação epistemológica, definirem-se de uma forma mais nítida.

O que importa é que este conceito vem se inserir numa áreacontroversa que faz referência à consciência dos agentes quanto àação social, permitindo a compreensão de que, entre os princípiosda consciência e da não-consciência, se introduz uma dimensãointermediária onde, não havendo consciência plena dos processosque orientam as escolhas e as deliberações, também não se susten-ta a idéia de que os agentes são meras representações vivas de es-truturas subjacentes ou dos papéis sociais não perceptíveis aos sen-tidos, que as comandam e subordinam. Para Bourdieu (1989), háum espaço destinado aos atributos criativos do agente, há umaresposta diferenciada e individual aos mesmos estímulos empre-gados nos processos de socialização, que varia num pequeno in-tervalo contido entre limites mais ou menos estreitos.

No contexto da educação, habitus é conceituado como um:

... sistema de disposições socialmente constituídas que, enquantoestruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípiogerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologiascaracterísticas de um grupo de agentes. Tais práticas e ideologiaspoderão atualizar-se em ocasiões mais ou menos favoráveis quelhes propiciam uma posição e uma trajetória determinadas nointerior de um campo intelectual que, por sua vez, ocupa umaposição determinada na estrutura da classe dominante (Bour-dieu, 1992, p. 191).

Assim, tomada a educação médica como a fração da educaçãoem geral, destinada especificamente a treinar e produzir novos mem-bros para a manutenção e sobrevivência desse grupo profissional, pro-pomos a tomada da noção de habitus profissional, por extensão, parareferir-nos àquele habitus que emerge como resultante e produto des-sa modalidade específica de educação, a educação profissional.

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Esse conceito será vinculado a atitudes ou disposições adqui-ridas como resultado de um processo de socialização de agentesleigos que se submetem a um processo de treinamento profissio-nal médico e, conseqüentemente, acabam abrindo mão de suaautonomia intelectual, num processo de conversão, permitin-do – e até desejando – uma reorganização de sua visão de mun-do, de sua consciência, de sua vontade e de seus conceitos evalores éticos e morais.

Dessa forma, os estudantes estruturam um habitus profissio-nal específico que tem por conseqüência a formulação do que Good(1994) chamou de “uma maneira médica de ver o mundo”, comovimos. Incorporam uma ideologia, uma cultura estruturada porum conjunto de valores que são específicos deste grupo profissio-nal e não servem, na sua totalidade, a nenhum outro.

Isto aparece, de maneira mais ou menos evidente, nas entre-vistas realizadas no campo com professores de medicina que são,em tese, os guardiões desta cultura profissional, como afirmouFreidson (1988).

3.3 AÇÃO PEDAGÓGICA E REPRODUÇÃODAS RELAÇÕES SOCIAIS EM UM CAMPO

Toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violênciasimbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, deum arbitrário cultural (Bourdieu, 1975, p. 20).

Neste tópico de A Reprodução, Bourdieu afirma que a educação érevestida de uma dupla arbitrariedade, onde a escola, esse poderarbitrário, exerce violência simbólica ao impor um arbitrário cul-tural eleito como legítimo, o que joga na ilegitimidade todas asoutras modalidades culturais concorrentes. Essa formulação, aonosso ver, se aplica integralmente para a medicina e para o treina-mento de novos médicos.

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Ele explica:

A AP é objetivamente uma violência simbólica, num primeirosentido, enquanto que as relações de força entre os grupos ou asclasses constitutivas de uma formação social estão na base dopoder arbitrário, que é a condição da instauração de uma rela-ção de comunicação pedagógica, isto é, da imposição e inculca-ção de um arbitrário cultural segundo um modo arbitrário deimposição e de inculcação (educação) (Bourdieu, 1975, p. 21).

E continua:

A AP é objetivamente uma violência simbólica, num segun-do sentido, na medida em que a delimitação objetivamenteimplicada no fato de impor e de inculcar certas significações,convencionadas, pela seleção e exclusão que lhe é correlativa,como dignas de ser reproduzidas por uma AP, re-produz (noduplo sentido do termo) a seleção arbitrária que um grupoou uma classe opera objetivamente em e por seu arbitráriocultural (Bourdieu, 1975, p. 22).

Aplicando-se esses conceitos ao tema aqui tratado, temos queum paradigma de racionalidade médica, selecionado como legíti-mo por um grupo em busca da unificação da medicina, seja parao monopólio de um mercado – como afirma Larson –, seja nointerior de um campo – como quer Bourdieu –, após algum deba-te teórico e enfrentamento político, se instituiu no meio médicoocidental como legítimo. Erigiu, em torno desse paradigma e des-sa cultura, uma profissão una e constituiu uma escola médica quelhe servisse de instrumento de reprodução dessa cultura legítima edas relações sociais que lhe servem como matriz. Tudo isso semdescurar de uma etapa fundamental: a seleção de professores pro-fundamente comprometidos com esta cultura legítima, com esteprojeto de profissionalismo.

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Bourdieu fala dessa dimensão social do sistema de educação:

Definindo-se tradicionalmente o “sistema de educação” comoo conjunto dos mecanismos institucionais ou habituais pelosquais se encontra assegurada a transmissão entre as geraçõesda cultura herdada do passado (isto é, a informação acumu-lada), as teorias clássicas tendem a dissociar a reproduçãocultural de sua função de reprodução social, isto é, a ignoraro efeito próprio das relações simbólicas na reprodução das re-lações de força (Bourdieu, 1975, p. 25).

Dessa forma, constituída como um campo de poder, a pro-fissão médica, como grupo profissional, é resultante de uma cor-relação de forças que, por sua vez, resulta de disputas internas eexternas, que consagra uma elite profissional, que produz – comoelementos de conservação da ordem e das relações sociais estabe-lecidas – uma institucionalização, constrói uma burocracia e es-trutura um sistema de ensino que, apesar de estar alojado no inte-rior do sistema de educação acadêmico formal, tem compromis-sos ideológicos com uma cultura profissional que deve ser salva-guardada acima de tudo.

Os agentes encarregados de operar este sistema são membrosda elite profissional, que se submeteram a programas muito ex-tensos e intensos de educação aprofundada e continuada, ao lon-go do qual, a cada etapa, a par de aprofundarem seus conheci-mentos e habilidades – sua perícia, enfim – tinham de renovar asua profissão de fé nos valores profissionais e em outras modalida-des de elementos estruturais da ideologia de conservação dessacultura e, assim, da inviolabilidade das estruturas de poder consti-tuídas no interior desse campo.

Em outras palavras, tinham de burilar, lapidar e polir umcintilante habitus profissional médico.

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3.4 HABITUS E ESTRATÉGIAS PROFISSIONAIS

Esse habitus é definido pelo próprio Bourdieu, transcrito de Ortiz(1994) como: dialética da interioridade e da exterioridade, isto é, dainteriorização da exterioridade e da exteriorização da interioridade(Ortiz, 1994, p. 60).

E ainda como:

...sistemas de disposições duráveis, estruturas estruturadas pre-dispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, comoprincípio gerador e estruturador das práticas e das representaçõesque podem ser objetivamente “reguladas” e “regulares” sem ser oproduto de obediência a regras, objetivamente adaptadas a seufim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expressodas operações necessárias para atingi-los e coletivamente orques-tradas, sem ser o produto da ação organizadora de um regente(Ortiz, 1994, p. 61).

Através desse conceito, Bourdieu supera a passividade estru-turalista do agente que se reduz a substrato da estrutura, assimcomo refuta a completa consciência do agente social e a tese daracionalidade plena da ação.

Diz Bourdieu (apud Ortiz, 1994, p. 61):

No mesmo momento que elas aparecem como determinadas pelofuturo, isto é, pelos fins explícitos e explicitamente colocados de umprojeto ou plano, as práticas que o habitus produz (enquanto prin-cípio gerador de estratégias que permitem fazer face a situações im-previsíveis e sem cessar renovadas) são determinadas pela antecipa-ção implícita de suas conseqüências, isto é, pelas condições passadasda produção de seu princípio de produção de modo que elas tendema reproduzir as estruturas objetivas das quais são, em última análi-se, o produto.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 93

Quando se fala, como já fizemos, das estratégias coletivas –sejam elas de mobilidade social, sejam de exercício de poder – deuma profissão, não se quer aludir a cálculos racionais, conscientese metodicamente planejados, mas a essa antecipação de resultadospossíveis intuída conjuntamente pelo grupo de agentes.

O habitus está no princípio do encadeamento de “ações” que sãoobjetivamente organizadas como estratégias sem ser de modo al-gum o produto de uma verdadeira intenção estratégica – desta-que meu – (o que suporia, por exemplo, que elas fossem apreen-didas como uma estratégia entre outras possíveis)” (Bourdieuapud Ortiz, 1994, p. 61).

Na verdade o que ocorre é um processo de seleção subjetivaentre vários caminhos e possibilidades e a intuição por parte dosagentes de suas chances de sucesso.

... a avaliação subjetiva das chances de sucesso de uma ação de-terminada numa situação determinada faz intervir todo umcorpo de sabedoria semiformal, ditados, lugares-comuns, precei-tos éticos... e, mais profundamente, princípios inconscientes doethos, disposição geral e transponível que, sendo o produto deum aprendizado dominado por um tipo determinado de regula-ridades objetivas, determina as condutas “razoáveis” ou “absur-das” (as loucuras) para qualquer agente submetido a essas regu-laridades (Bourdieu apud Ortiz, 1994, p. 63).

São essas regularidades objetivas que se constituem na exte-rioridade a ser interiorizada pelos educandos. Basta pouco tempode imersão nas enfermarias de um hospital para o estudante per-ceber o que seria considerado “razoável” e o que seria “loucura”em termos de comportamentos e atitudes. Eles entram nesse novoambiente muito atentos às mensagens de reforço e apoio e às de

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reprovação. Quanto a isso são extremamente observadores comotodos que pisam em terreno que não dominam.

Diz ainda Bourdieu (apud Ortiz, 1994, p. 63):

As práticas podem encontrar-se objetivamente ajustadas às chancesobjetivas... sem que os agentes procedam o menor cálculo oumesmo a uma estimação, mais ou menos consciente, das chancesde sucesso. Pelo fato de que as disposições duravelmente inculca-das pelas condições objetivas... engendram aspirações e práticasobjetivamente compatíveis com as condições objetivas e, de umacerta maneira, pré-adaptadas às suas exigências objetivas, os acon-tecimentos mais improváveis se encontram excluídos, antes dequalquer exame, a título do impensável, ou pelo preço de umadupla negação que leva a fazer da necessidade virtude, isto é, arecusar o recusado e a amar o inevitável.

Bourdieu (apud Ortiz, 1994, p. 64) refuta todas as teoriasque entendem a prática como uma mera:

... reação mecânica, diretamente determinada pelas condiçõesantecedentes e inteiramente redutível ao funcionamento mecâ-nico de esquemas preestabelecidos, “modelos”, “normas”, ou “pa-péis”, que deveríamos, aliás, supor que são em número infinito,como o são as configurações fortuitas dos estímulos capazes dedesencadeá-los.

Para o autor:

A prática é, ao mesmo tempo, necessária e relativamente au-tônoma em relação à situação considerada em sua imediati-dade pontual, porque ela é o produto da relação dialéticaentre uma situação e um habitus – entendido como um siste-ma de disposições duráveis e transponíveis que, integrando

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 95

todas as experiências passadas, funciona a cada momento comouma matriz de percepções, de apreciações e de ações...(Ortiz, 1994, p. 65).

É esse conceito, que pode ser “matriz de percepções, de apre-ciações e ações”, como citado acima, que, ao mediar a ação e asescolhas do agente, atribui razão e sentido a comportamentos eatitudes aparentemente espontâneos e espontaneamente gerados.

Também o fato do autor atribuir ao habitus o caráter de sertransponível facilita a explicação da variedade de manifestações edas diferenças observadas entre os agentes na “exteriorização dainterioridade”; faculta também a observação e a explicação doscomportamentos desviantes.

A incorporação de um habitus profissional, assim, não é uni-forme e idêntica. Ela varia de agente para agente de acordo com arelação existente entre sua capacidade individual de percepção eapreensão da realidade e com as manifestações objetivas das estru-turas às quais foi exposto, isto é, suas experiências vividas, os am-biente pedagógicos com os quais teve contato e, principalmente,com outros agentes que atuaram como educadores nesses ambientese nessas experiências.

Daí a importância que atribuímos ao professor de medicinano estudo daquela dimensão da educação médica que, não des-prezando as demais – os conhecimentos e as habilidades –, elege-mos como objeto deste estudo: a incorporação de um habitus pro-fissional, responsável pelas atitudes, comportamentos e escolhaspráticas dos alunos e dos profissionais egressos das escolas médicas.

É aqui, neste tipo de análise, que propomos começar a fecharo foco sobre os elementos fundamentais para as finalidades destapesquisa: o hospital-escola como ambiente e o professor comoagente pedagógico.

Devido à importância da imitação nesse processo educativo,como veremos, de produção deste habitus profissional e também à

96 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

carência de material bibliográfico dedicado ao professor de medi-cina como objeto de análise – apenas Batista e Silva (1998) entreos citados – foi que decidimos optar por esta categoria de agentesda educação médica na incursão pelo campo.

No capítulo seguinte, após a definição da opção epistemoló-gica pela categoria profissão e da revisão da bibliografia atinente,passaremos a expor as opções metodológicas de elaboração e cali-bração dos instrumentos de abordagem do campo.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 97

CAPÍTULO 4

Metodologia

4.1 A MEDICINA NA CONFLUÊNCIA DE PARADIGMAS

Como poderiam tais teorias brotar da ciência normal, umaatividade que não visa descobertas e menos ainda produzirteorias?

Thomas S. Kuhn (Kuhn, 1994, p. 94)

Durante seis anos de curso de graduação, mais dois a quatro deresidência médica – conforme a especialidade – e por toda a suavida de estudos individuais, congressos e programas de educaçãocontinuada, os médicos são postos intensivamente em contato comtrabalhos científicos. Como já disse Lilia Schraiber, o estudo demedicina é um treinamento intensivo no método científico (1989).

O hábito de ler periódicos é, em algumas faculdades, muitoprecocemente estimulado. Todo o estudante de medicina sabe queaquilo que lê em periódicos só vai aparecer incorporado aos livrosde texto de dois a quatro anos após a publicação do artigo – con-forme a periodicidade de lançamento de novas edições.

O acesso a livros-texto em edição original, geralmente emlíngua inglesa, também abrevia a defasagem temporal da literatu-ra e é igualmente estimulada. Uma quantidade muito grande detrabalhos, textos e artigos são consumidos pelos estudantes de boasfaculdades. Quase todo esse material, no entanto, vem constituí-do e é baseado em sólidas evidências empíricas estatisticamentereferendadas.

98 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

Surgem agora, em nossos dias, algumas novidades como aMedicina Baseada em Evidências (MBE), que nada mais é do queuma radicalização do paradigma científico positivista predomi-nante na medicina ocidental. Segundo a chamada MBE, todoaquele procedimento terapêutico baseado na intuição, no empi-rismo bruto – não estatisticamente validado – ou na tradição, deveser imediatamente abandonado.

Essa tendência colide de frente com a observação de Freid-son (1988) que, descrevendo o que chamou de “mentalidade clí-nica”, apontou para o fato de que o médico é impelido por umimperativo de consciência a “fazer alguma coisa” numa situação dedesespero, mesmo que seu procedimento careça de base científica oude validação acadêmica. Para sentir-se menos culpado com a perda deum paciente, com o insucesso de uma cirurgia, o médico procura“fazer algo”, qualquer coisa, quando tudo parece estar dando errado.

Pelos preceitos da MBE, ao contrário, o médico só deve em-pregar técnicas já descritas e consagradas; medicamentos e proce-dimentos que estejam apoiados por estudos muito consistentes,originados de centros de pesquisa confiáveis, baseados em grandesamostragens, na retrospecção volumosa – estudo de casos já resol-vidos cujos desfechos registrados e agrupados em grandes sériessão publicados; na prospecção duradoura – aplicação de uma téc-nica terapêutica ou de um medicamento a partir de um determi-nado momento e seguimento dos pacientes por anos para apurarresultados – e, ainda, que tenham sido publicados por revistas deprestígio na comunidade científica. A todos eles, evidentemente, éimperioso aplicar cuidadosos e acurados testes estatísticos. A quanti-dade é que vale. Uma série de mil casos publicados da aplicação deuma terapêutica a uma doença tem o condão de sepultar um trabalhoanterior se a amostra em que se baseia é inferior a mil e se apontadireção diferente, ou de confirmá-lo se aponta na mesma direção.

A MBE propõe-se a acabar com o que a medicina tem dearte. Talvez seja um movimento de radicalização do paradigma nosentido de garantir a pureza da medicina ocidental contemporâ-

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nea, e reforçá-la, em um tempo em que tantas “medicinas alterna-tivas” começam a surgir. Percebe-se um recrudescimento da ho-meopatia, surge uma “medicina orto-molecular”, popularizam-seaplicações clínicas de técnicas misticamente fundamentadas ouque, pelo menos, não foram ungidas pela ciência positivista. Estastécnicas poderiam ser consideradas “anomalias” indicadoras de umacrise do “paradigma” médico, no sentido que Kuhn dá a esses ter-mos (1994).

Todo este assédio das racionalidades alternativas à medicinaocidental contemporânea parece dever-se ao fato de que os limitesdessa medicina científica moderna estão cada vez mais expostosao público leigo. O acesso cada vez mais fácil à informação faz dopaciente um agente ativo no processo saúde-doença e confere-lhea capacidade de optar entre as alternativas que lhe são oferecidas.

Nem mesmo os pacientes de classe popular ficam excluídosda possibilidade de optar. Há curandeiros entendidos em ervasmedicinais, benzedeiras e parteiras acessíveis; há outros serviçospúblicos que podem e são procurados quando o atendimento nãoconvence; há pacientes que consultam em dois, três ou mais locaispelo mesmo motivo até sentirem-se seguros e convencidos quantoao diagnóstico e ao tratamento.

A contradição entre diagnósticos e condutas de diferentesmédicos, normal em tais situações, ajuda a expor as fragilidadesque a medicina tem em dar conta da explicação e do tratamentode situações clínicas comuns. Tudo contribui para o desvanecer daaura mística que sempre esteve associada à figura do médico, quelhe conferia um certo ar sacerdotal e uma autoridade moral indis-cutível, base do seu carisma, como já tratamos.

A ideologia liberal, que consagra o profissional autônomo,livre, controlador do seu trabalho e a extensão do mercado até oseio do grupo profissional, induz em seus membros intensos an-seios de consumo e de ostentação de símbolos de riqueza, trazen-do o médico de volta à planície. O paciente passa a desconfiar dosmédicos, que agora lhe parecem menos carismáticos e mais hu-

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manos – passíveis de erro, portanto – e intuir suas dificuldadesfrente a casos mais difíceis para os quais a medicina ou não temsolução ou não tem explicação.

A todas essas mudanças se soma o fato de que a sociedadepós-industrial trouxe uma série de transformações nas relaçõessociais, tomadas numa dimensão macrossocial. Com elas se insta-lou uma crise do modelo de assistência médica no mundo ociden-tal. Diversas contradições se puseram em debate. Se a atençãomédica deve ser pública ou privada, se deve priorizar a cura ou aprevenção, se deve visar à coletividade ou ao indivíduo, se deveapoiar-se em tecnologia de ponta ou nos modelos mais tradicio-nais e baratos de diagnóstico e tratamento são algumas questõesque se colocam e cujas respostas, apresentadas pelos seus porta-vozes e defensores, perdem a força de argumentação se preconiza-rem, além da eleição da sua proposta, a exclusão da modalidadeoponente. As explicações totalizantes, aplicáveis a todos os casos,de todos os pacientes, já não entusiasmam e não convencem.

A própria ética médica está em crise. Tradicionais cânoneséticos que presidiram as relações profissionais entre o médico eseus colegas – e entre eles e os pacientes – já não se sustentam. Oromantismo idealista parece ceder cada vez mais espaço a um po-sicionamento profissional mercadologicamente planejado. Comojá apontava Wright Mills (1969) na década de 50:

A glorificação do velho médico do interior pelos meios de comu-nicação de massa indica um certo espírito nostálgico. Esse tipo,como todos os outros tipos de clínico geral independente, foi dei-xado para trás pelo progresso da medicina científica, na qual o espe-cialista permanece sendo também um empresário num contexto ins-titucional que ele não quer aceitar e que explora economicamente(Wright Mills, 1969, p. 135).

Neste contexto, emergem uma série de questões no interiorda profissão e do seu núcleo reprodutivo: a escola médica. Que

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médico formar? Médicos para quem? Para que condições de tra-balho? Que ética validar? Que atitudes estimular? Que comporta-mentos reforçar? Que habilidades desenvolver? Que tipo de co-nhecimento consagrar?

A complexidade deste quadro induz também entre os professo-res de medicina, agentes pedagógicos principais desse processo, umasérie de interrogações e uma perplexidade, talvez maior do que entreoutros colegas. São eles quem têm que responder de imediato, antesmesmo de um debate com outros segmentos do grupo profissional, aquestões que exigem um posicionamento de toda a profissão.

Como encarar a constituição de equipes multiprofissionais paraprover a atenção em saúde se antes um médico e um atendente deenfermagem – fração menos diferenciada e já extinta daquela profis-são – bastavam? O que dizer sobre a intermediação da relação médi-co-paciente pelas operadoras de serviços de saúde que, além de tudo,impõem rigorosos limites à autonomia técnica dos médicos determi-nados por fatores de ordem econômica? O que pensar da progressivaproletarização da profissão? Do fim do sonho liberal? Da crescenteconcentração urbana e, pior, metropolitana de profissionais? Do au-mento do número de processos judiciais contra médicos que atuamem serviços públicos, especialmente de urgência e emergência? Dofato de que pessoas leigas têm cada vez mais acesso a informaçõesmédicas sem ter, para isso, de consultar médicos?

Também os limites do paradigma positivista, adotado pre-dominantemente pela medicina ocidental contemporânea, estãocada vez mais visíveis. Ele não dá conta de explicar os aspectosmais subjetivos do processo saúde-doença. Essa medicina trata dedoenças mas não de doentes. A vivência da doença, da cirurgia, dahospitalização pelo paciente são questões com as quais o médicoem formação, individualmente, deve aprender a lidar. Esta partenão consta dos grandes tratados de medicina clínica ou cirúrgica.

É nesse ponto que o professor passa a ser um elemento chavee, virtualmente, insubstituível. É ele que treina seus alunos no diaa dia, no atendimento de caso a caso, a incorporar uma dimensão

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afetiva na relação médico-paciente. É ele que se vê obrigado aconsiderar e manejar os aspectos subjetivos da relação professor-aluno-paciente, este último tomado como objeto de estudo pelaescola médica. Enfim, é ele a referência no que diz respeito àsmanifestações empáticas – sejam elas de simpatia ou de antipatia– que se estabelecem no interior das relações intersubjetivas conti-das nas variadas vivências que o aluno experimenta ao longo dasua formação médica, sejam elas de natureza formal e institucio-nal, sejam de natureza informal, ocasional e oportunista.

É fundamental ressaltar que quando falamos no professor, nãoestamos nos restringindo àqueles que detém formalmente a funçãode treinar novos médicos. Tratamos do professor num sentido maisamplo, ou seja, todos aqueles que de alguma forma, em algum mo-mento, exercem a pedagogia da orientação aos alunos em suas ativi-dades práticas nas enfermarias, nos ambulatórios, nos estágios curri-culares ou não, nos plantões, nos serviços de pronto socorro.

No caso das vivências práticas curriculares, o professor a queme refiro é o professor formalmente constituído, que, para finsdesse trabalho, deve ser entendido como aquele que se dedica aesta missão profissionalmente, é contratado por uma universida-de ou faculdade para exercer a função de lecionar; que tem umacarreira acadêmica e, portanto, atua no espaço institucional daescola, do hospital-escola, dos ambulatórios, dos serviços de ur-gência onde os alunos perfazem uma fração de seu treinamentoprático.

No caso das atividades práticas adicionais e opcionais, curri-culares ou não, muitas vezes fruto de iniciativa espontânea e deprocura de oportunidades de treinamento suplementar pelo pró-prio aluno – o que freqüentemente ocorre entre estudantes demedicina –, o papel do professor pode ser desempenhado por um“professor não-formal”. Este é, normalmente, um médico da prá-tica, sem carreira acadêmica – ou aspirante a ela –, um médico-residente ou mesmo por um monitor ou outro estudante maisgraduado, o que não é incomum.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 103

Seria até conveniente avaliar quantitativamente e comparati-vamente o tempo que o aluno trabalha sob influência direta do“professor formalmente instituído” e dos demais componentes daequipe de assistência – esses que chamamos de “professores não-formais”. Mas isto não faz parte do escopo deste trabalho.

Dito isto, fica claro que o material que se quis aqui colhernão era passível de captura com questionários de respostas objeti-vas que se pode tabular, reunir em grandes séries e tratar estatisti-camente. O que se quis aqui colher é outro tipo de material. Sãosignificados, sentidos, interpretações de fatos vivenciados e co-nhecidos pelos agentes no interior da própria crise do modelo as-sistencial, da crise da relação médico-paciente e da crise ética en-tre os valores humanos tradicionais da profissão e os valores domercado de serviços de saúde, na qual a medicina e, por extensão,a educação médica estariam submersas.

Como este debate, que põe por terra dia após dia tradicio-nais cânones médicos que vinham sendo transmitidos de gera-ção a geração, repercute nos professores? Que representaçõessociais produz? Que relações esse professor estrutura com osalunos, com a profissão instituída e, por conseqüência, queprática pedagógica disso tudo resulta? Sobretudo, como ele –“professor formalmente constituído” – vê e considera esta ou-tra face, esta face reversa da formação médica, essa escola pa-ralela que se processa sem o patrocínio institucional da escola,que não é controlada, que não envolve instrumentos e técnicasde avaliação formais. Aquela que é procurada pelo próprio es-tudante no afã de complementar de forma prática a sua instru-ção teórica e é, virtualmente, desconhecida dessa escola? Queinquietações esse fato provoca, que reflexões suscita? Seria esteespaço fruto da virtual inexistência de professores de tempointegral no ciclo clínico? Seria este um conforto convenientepara atender ao anseio dos alunos por treinamento prático du-rante o tempo em que o professor se dedica ao seu exercícioprofissional privado?

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4.2 O EMPREGO DE UMA METODOLOGIACRÍTICO-DIALÉTICA DE ANÁLISE

Por tudo o que foi afirmado anteriormente, o interesse em conhe-cer e experimentar o emprego de uma metodologia qualitativapara o desenvolvimento e realização deste trabalho foi um dosmotivos que nos levou a procurar abrigo na Sociologia.

Há nas Ciências Sociais uma riqueza muito grande de abor-dagens, de matrizes teóricas, de correntes de pensamento, deconcepções e de visões da realidade com que nunca tivemosoportunidade de tomar contato. Esta descoberta de que se podefazer ciência sem a necessidade do emprego de técnicas de me-dição foi marcante na trajetória que nos conduziu até aqui.

Na sociologia, a realidade é apreendida através da media-ção do texto e não apenas pela abordagem direta de um fenô-meno capaz de ser apreendido por um ou mais dos cinco senti-dos. Só a audição basta para identificar um sopro na auscultade um coração; só este fator indica, presuntivamente, a exis-tência de uma doença de válvula cardíaca; só a confirmaçãodesta doença por um exame de imagem – usando a visão, por-tanto – é suficiente para explicar um edema (inchume) persis-tente nas pernas de um paciente e tudo isto pode ser dado àconsciência do médico sem que o paciente lhe diga uma únicapalavra.

A realidade social é conhecida através das palavras dos agen-tes, do discurso dos porta-vozes dos grupos sociais, de suas regula-ridades, dos textos dos trabalhos de outros pesquisadores e de teo-rias que são construtos intelectuais sem as quais esta realidade nãopode ser apreendida.

A própria discussão sobre abordagens quantitativas e qualita-tivas na pesquisa em ciências sociais não é excludente, não signifi-ca que quem preconiza uma delas esteja declarando a extinção daoutra. São abordagens que coabitam o ambiente acadêmico ge-rando polêmica, mas que não têm pretensões de unicidade. Nin-

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guém proclama que o produto de um tipo de abordagem é e o deoutro não é ciência no campo das ciências sociais.

Como diz Maria Cecília Minayo:

Em oposição ao Positivismo, a Sociologia Compreensiva res-ponde de forma diferente à questão sobre o qualitativo. Essa cor-rente teórica, como o próprio nome indica, coloca como tarefacentral das ciências sociais a compreensão da realidade hu-mana vivida socialmente. Em suas diferentes manifestações,como na Fenomenologia, na Etnometodologia, no Interacionis-mo Simbólico, o significado é o conceito central de investigação(Minayo, 1994, p. 23).

Assim, procuramos estruturar este estudo de maneira a lidarcom metodologias qualitativas por entender que melhor se ade-quariam aos objetivos propostos.

Quando se fala em abordagem qualitativa, é sempre impor-tante deixar claro que é inaceitável, do ponto de vista teórico-metodológico, caracterizar como qualitativa toda aquela pesquisaque não inclui dados numéricos, tabelas ou grandes agrupamen-tos de informações colhidas através de instrumentos objetivos ecujo valor é função direta do tamanho da amostra. Ou, como dizMarli André:

...alerto para o risco de se continuar empregando o termo “pes-quisa qualitativa” de forma genérica e extensiva, pois pode-secair no extremo de chamar de qualitativo qualquer tipo de estu-do, desde que não envolva números, seja ele bem ou mal feito, oque me parece muito negativo para o reconhecimento da abor-dagem qualitativa de pesquisa. Concluo pela necessidade de re-servar os termos qualitativo e quantitativo para designar o tipode dado coletado e sugiro o emprego de termos mais precisos quan-do se quiser identificar diferentes modalidades de pesquisa (An-dré, 1998, p. 15).

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A autora também observa que, no caso das ciências humanas, oque importa é mais a compreensão do fato particular que se está estu-dando do que o estabelecimento de uma relação de causa e efeito.

A mesma autora fala numa corrente idealista-subjetivista, oufenomenológica, que não entende a realidade como externa aosujeito, que valoriza o entendimento da realidade por este mesmosujeito e considera inaceitável uma postura neutra do pesquisa-dor. Weber estaria vinculado a esse grupo, segundo a autora.

Ela também considera que: Se num determinado momento foiaté interessante utilizar o termo qualitativo para identificar uma pers-pectiva de conhecimento que se contrapunha ao positivismo, esse mo-mento parece estar superado (André, 1998, p. 25).

A seleção da metodologia para cada tipo de pesquisa é pro-posta por Haguette: Os métodos quantitativos supõem uma popula-ção de objetos de observação comparável entre si e os métodos qualita-tivos enfatizam as especificidades de um fenômeno em termos de suasorigens e de sua razão de ser (Haguette, 1995, p. 63).

De acordo com Haguette, o emprego dessas metodologiasqualitativas estariam indicados, entre outros casos, em: ...situaçõesnas quais simples observações qualitativas são usadas como indi-cadores do funcionamento complexo de estruturas e organizaçõescomplexas que são difíceis de submeter à observação direta (Ha-guette, 1995, p. 64).

Como exemplos deste tipo de caso a autora cita: ... estudos deunidades sociais naturais, tais como: organizações (empresa, hospital,prisão) e comunidades... (Haguette, 1995, p. 64).

Para estudos dessa natureza ela propõe como técnicas a ob-servação participante, a história de vida e a entrevista.

Este estudo tem sua orientação no sentido de operar no nú-cleo do projeto epistemológico da sociologia, que seria o de reme-ter os aspectos observados da vida social a certas instâncias em queestes adquirem significado. São os valores médicos que estão emexame, é o quadro de referência moral dos médicos que pareceestar em transição e que nos servirá de referência.

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Gamboa (1997), a partir de uma análise de 502 disserta-ções e teses em programas de pós-graduação de 1971 a 1984do estado de São Paulo, divide os estudos em três categorias: osempírico-analíticos, os fenomenológico-hermenêuticos e os críti-co-dialéticos.

Tomando essa tipologia como base, este estudo estaria situa-do entre os de natureza crítica, entre as análises dialéticas de umquadro dinâmico-histórico, por conseqüência – a partir de suascontradições internas que geram as tensões que estão transforman-do a educação médica. O que acabamos procedendo foi uma abor-dagem dinâmica da realidade social do exercício da medicina e doprocesso de formação médica.

Concordando com Gamboa (1997), pensamos que:

A síntese não é ecletismo, nem soma de partes ou tópicos vindosde outras abordagens; é uma nova maneira de ver, conceber eorganizar categorias, muitas delas originadas dentro de outrasvisões, mas recriadas em novas condições e sob outros interessescognitivos (Gamboa, 1997, p. 94-95).

Para este mesmo autor:

As pesquisas crítico-dialéticas... questionam fundamentalmentea visão estática da realidade implícita nas abordagens anterio-res14. Esta visão esconde um caráter conflitivo, dinâmico e histó-rico da realidade. Sua postura marcadamente crítica expressa apretensão de desvendar, mais que o “conflito das interpretações”,o conflito dos interesses. Essas pesquisas manifestam um “interes-se transformador” das situações e fenômenos estudados, resgatan-do sua dimensão sempre histórica e desvendando suas possibili-dades de mudança (Gamboa, 1997, p. 97).

14 As outras abordagens referidas são as pesquisas empírico-analíticas e as fe-nomenológico hermenêuticas.

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E diz ainda:

A abordagem dialética também não renuncia à origem empíricaobjetiva do conhecimento, à semelhança da ciência analítica,nem renuncia à interpretação e compreensão fenomenológicasque as considera como elementos abstratos, necessários à constru-ção do conhecimento (o concreto no pensamento). É por isso que,na concepção de ciência da dialética, as outras concepções sãoconstantemente retomadas, criticadas e reintegradas, visando suasuperação (Gamboa, 1997, p. 101-102).

Versando sobre o método de análise dialética, nos diz Mi-nayo:

Sob esse enfoque, não se compreende a ação humana indepen-dente do significado que lhe é atribuído pelo autor, mas tambémnão se identifica essa ação com a interpretação que o ator sociallhe atribui. Portanto, em relação à abordagem qualitativa, ométodo dialético, como diz Sartre, “recusa-se a reduzir. Ele ul-trapassa conservando”... Demonstra sua superioridade precisa-mente pela capacidade de incorporar as “verdades parciais” dasoutras correntes, criticando e negando suas limitações. Percebe arelação inseparável entre o mundo natural e social; entre pensa-mento e base material; entre objeto e suas questões; entre a açãodo homem como sujeito histórico e as determinações que a condi-cionam. Os princípios de especificidade histórica e de totalidadelhe conferem potencialidade, para, do ponto de vista metodoló-gico, apreender e analisar os acontecimentos, as relações e cadamomento como etapa de um processo, como parte de um todo(Minayo, 1994, p. 12).

Assim este trabalho foi, ao longo do processo de criação, in-corporando outros elementos críticos, tomando uma totalidade,

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analisando-a à luz de suas contradições, opondo estas contradi-ções entre si, desconstituindo-as e reconstituindo-as, correlacio-nando os achados com elementos tomados à literatura, agregan-do-lhes uma formulação histórica, dinâmica e em contínua trans-formação.

4.3 A ENTREVISTA COMO TÉCNICA

No contato com o campo, decidimos pela entrevista como técni-ca por considerá-la a mais adequada aos fins a que nos propuse-mos com este trabalho. Com toda a trajetória pessoal no campoda medicina e da educação médica, já tínhamos coletado, ao lon-go do tempo, um conjunto apreciável de informações para ilus-trar o assunto. São frases repetidas ao longo dos anos, aforismos,histórias, casos, exemplos, enfim, uma variedade de ilustraçõespossíveis poderiam ter sido usadas. Queríamos, no entanto, co-lher dos professores o conteúdo de sua análise e reflexão sobresuas práticas pedagógicas, sua relação com o alunos, com os pa-cientes, sua consciência ou não da existência da “escola paralela”,por isso decidimos pela entrevista.

A entrevista é definida por Colognese e Mélo como ...uma conversa interessada, orientada pelo entrevistador para finsde pesquisa, pela qual objetiva-se apreender informações sobre ocomportamento e a consciência dos sujeitos investigados, tantoquanto possível, em seu estado dado, objetivo (Colognese e Mélo,1998, p. 143).

Também ficaram bem compreendidos os possíveis vieses datécnica no que concerne à falta de objetividade. Gunnar Myrdall(apud Haguette, 1995) afirmou: Não existe outra forma para ex-cluir os vieses nas ciências sociais do que enfrentar as valorações intro-duzindo as premissas valorativas de forma explícita, específica e con-creta (Haguette, 1995, p. 87).

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Haguette também vê a entrevista como um processo de inte-ração social. Para ela:

O processo de interação contém quatro componentes que devemser explicitados, enfatizando-se suas vantagens, desvantagens elimitações. São eles: a) o entrevistador; b) o entrevistado; c) asituação da entrevista; d) o instrumento de captação de dados,ou roteiro de entrevista (Haguette, 1995, p. 86).

Usando a classificação proposta por Colognese e Mélo (1998,p. 144-148), as entrevistas por nós realizadas foram:

– Quanto à padronização: entrevistas semi-estruturadas.– Quanto à natureza das informações: entrevista oral.– Quanto aos informantes: entrevista individual.– Quanto ao nível de controle: entrevista formal.– Quanto ao roteiro: entrevista com roteiro contextual.

Também, como defendem Colognese e Mélo (1998, p. 147),as primeiras duas entrevistas foram usadas como “pré-teste” paraavaliar o instrumento e corrigir possíveis falhas do roteiro e daprópria técnica. Por este motivo elas foram descartadas.

As entrevistas que sustentam empiricamente este trabalho fo-ram realizadas com onze15 professores de medicina das quatrofaculdades da região metropolitana de Porto Alegre. Dos entrevis-tados, 5 são especialistas em áreas cirúrgicas e 6 em áreas clínicas;6 são especialistas, 1 é mestre e 4 são doutores. Um tem formaçãono exterior.

Quatro entrevistas ocorreram no ambiente hospitalar duran-te o horário de trabalho ou de plantão, 3 foram realizadas no con-sultório particular do entrevistado, 3 no gabinete dos que ocu-pam cargos administrativos e 1 na residência do professor.

15 Uma entrevista válida foi perdida por um acidente de gravação, restando dez.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 111

Dos entrevistados 3 eram diretores das faculdades e um eravice-diretor no exercício da direção. Devido ao nível intelectualdos entrevistados e sua independência em relação à pesquisa, fato-res como “capacidade de interpretação dos fatos”, “capacidade deverbalização”, “temores de que as respostas possam prejudicá-losde alguma forma” e “diferenças culturais de classe”, também cita-dos por Haguette (1995), não parecem ter influenciado suas res-postas.

Outro fator que pode influenciar as respostas, segundo amesma autora, é o conhecimento e a experiência que o entrevista-do tem do assunto. Este fator pode ter influenciado as respostasdevido à heterogeneidade do grupo em termos de experiência emtreinamento de médicos. Alguns são jovens professores e outrosbastante experientes.

Fatores como “quebra de espontaneidade”, “desejo de agra-dar o pesquisador” e “fatores idiossincráticos” (Haguette, 1995, p.89) podem, como é natural e inerente à técnica, ter ocorrido. Tam-bém ocorreram interrupções, de várias naturezas, em todas as en-trevistas. Numa das entrevistas, tivemos que mudar de local porduas vezes.

O fato do entrevistador ser médico como os entrevistadosparece ter operado de forma positiva. Pelo menos o entendimentodo material verbal restou facilitado.

Os dados coletados no campo serão discutidos no capítuloseguinte.

Também vale ressaltar que a partir das conclusões teóricassobre a profissão como categoria analítica decorrentes da pesquisabibliográfica e apontadas no capítulo 1, verificamos a utilidadepreliminar de algumas categorias operativas oriundas desta mes-ma bibliografia. Sua aplicação ao grupo profissional escolhido comoobjeto ficou logo evidente e foi com base nelas que se organizou oinstrumento a ser empregado na fase de campo da pesquisa.

Bardin (1977) propõe que a categorização de uma pesquisade análise de conteúdo se baseia em dois processos: um primeiro,

112 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

no qual o sistema de categorias é previamente estabelecido e osdados vão sendo classificados de acordo com esse sistema; e umsegundo, no qual as categorias vão emergindo ao longo da análisedos dados coletados no campo.

Desta forma selecionamos como “categorias operativas pré-vias” aquelas tomadas da literatura sobre a Sociologia das Profis-sões que auxiliaram a organizar o instrumento de abordagem docampo. Foram elas:

1. Conhecimento: como capital principal em jogo no inte-rior do campo estudado.

2. Controle: sobre a abstração que serve como matriz da pro-dução e difusão desse conhecimento.

3. Institucionalização: do grupo profissional e da escola quesocializa as novas gerações.

4. Reprodução: das relações de força em disputa para manu-tenção da ordem instituída e da divisão do capital culturalno interior do campo.

5. Conversão: dos aspirantes à cultura profissional atravésda adoção de um conjunto de valores, crenças e outroselementos estruturantes da cultura profissional.

6. Professores: como agentes pedagógicos principais nesse con-texto e como membros conspícuos da elite profissional.

Estas categorias operativas prévias, aplicadas ao campo, tive-ram o reforço de algumas que emergiram do próprio campo, eque chamamos de “categorias operativas emergentes”, como vere-mos no capítulo 5.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 113

CAPÍTULO 5

Trabalho de campo e análise de dados

5.1 CLASSIFICAÇÃO DOS DADOS EDEFINIÇÃO DE CATEGORIAS OPERATIVAS

Os dados coletados, após sintetizados, foram agrupados em cate-gorias que utilizamos como categorias operativas constituídas pre-viamente a partir da literatura, ou emergentes do próprio materialde campo, e que permitiram uma primeira aproximação da natu-reza do problema que está sendo investigado, ou seja, a estrutura-ção de um habitus no ambiente da escola médica.

Entendemos como categorias operativas um agrupamen-to de dados, evidências e conceitos que tem a função precípuade subsidiar e facilitar a análise dos dados de campo de umtrabalho específico e que, findo o trabalho, deixa de ter razãode existir.

As categorias operativas que foram utilizadas para a classifi-cação dos dados coletados são as seguintes:

a) ATIVIDADES PRÁTICAS EXTRACURRICULARES:é o ponto principal de aplicação da hipótese central deste traba-lho. É a “face reversa” da educação médica a quem a escola delegaa formação do habitus profissional. É como se ocorresse uma divi-são do trabalho: a escola formal encarrega-se de ensinar medicina,concentrando-se na transmissão de conhecimento; a escola para-lela, composta por atividades formais ou não, usualmente semorientação de um “professor formalmente constituído”, dedica-sea ensinar a ser médico. O conjunto destas atividades é que conven-cionamos chamar de “escola paralela”.

114 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

b) MODELOS MÉDICOS: são profissionais, professores ounão, escolhidos pelo futuro médico como exemplos e nos quaisele busca identificar algum atributo que lhe pareça conveniente eincorporá-lo ao seu perfil profissional. Ocorre da mesma formaque com certos artistas que, quando perguntados sobre as influên-cias que foram importantes em sua formação, costumam declinaro nome de figuras emblemáticas e clássicas de sua arte com indis-farçável orgulho. Alguns elegem mais de um modelo e tentamfazer uma composição modelar personalizada. Também é assimcom os médicos, cujo campo profissional mantém muitas seme-lhanças com o campo artístico. Além do mais esta escolha demodelos, no que se refere aos médicos, não é aleatória. Ela trásconsigo um significado de idealização da profissão pelo aluno, umacerta antecipação romântica de seu futuro profissional.

c) IMITAÇÃO: é a técnica fundamental de aprendizagemutilizada no seio da “escola paralela” para compor um habitus.Aprender é imitar, é reproduzir as atitudes, os comportamentos, alinguagem, a postura, a forma diferenciada de vestir o mesmo aven-tal branco.

d) TRADIÇÃO E HIERARQUIA: o meio acadêmico médi-co é fortemente hierarquizado. Isto é mais visível em algumas es-colas do que em outras, mas é ocorrência geral. Ali alguns profes-sores ainda são chamados de “mestres” como uma deferência de-vida pelo “discípulo” a quem está fazendo a concessão de ensinarsua arte. Além da analogia com o meio artístico, também há muitassemelhanças com estruturas hierarquizadas como o meio militar.

e) CONHECIMENTO TÉCNICO: é considerado como ocentro da educação médica pelas estruturas formais. A razão deexistir da escola formal está na dimensão cognitiva. Consiste nafunção considerada mais nobre e que, por isso mesmo, não podeser delegada. É também o critério único de seleção de professorespela escola tradicional. Para ser professor há que deter notóriosaber médico. Nenhuma outra modalidade de conhecimento conta,apenas o conhecimento e o domínio da técnica.

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f ) CULTURA E VALORES PROFISSIONAIS: são enun-ciados pelos entrevistados, de acordo com um consenso bem en-saiado no qual o romantismo tradicional da profissão faz prevale-cer os ideais de serviço, o bem-estar do paciente acima de tudo, ocompromisso com a ideologia e os valores culturais mais tradicio-nais da profissão e com os cânones éticos e morais mais aceitospela sociedade em que estão inseridos. Apenas dois entrevistadosadotaram a postura franca de tocar sem pudores em aspectos co-merciais que decorrem do exercício da medicina. A cultura profis-sional é composta por elementos comuns aos médicos que ado-tam determinado paradigma – no caso a medicina ocidental con-temporânea –, independente da nacionalidade, e elegem uma éti-ca, uma estética, uma linguagem e um conjunto de atitudes, valo-res e normas consensuais. Estruturar um habitus é converter-se aessa cultura. É ver o mundo e apreender a realidade de uma ma-neira médica. É raciocinar de forma muito particular, segundoesquemas mentais bem incorporados, mesmo sobre matéria não-médica.

As citações das entrevistas estão identificadas por um códigoalfa-numérico composto pelas duas letras iniciais de “professormédico” (PM) e pelo número da ordem de realização da entrevista.

5.2 ANÁLISE DE DADOS SINTETIZADOS

O campo permitiu uma melhor compreensão da existência destaface reversa da escola médica, que aqui denominamos de “escolaparalela”. Alguns a entendem como uma ocorrência normal e po-sitiva. Outros, ao contrário, demonstraram preocupação com afalta de controle da estrutura formal sobre as experiências práticasvividas pelos alunos. A seguir, vamos discorrer sobre a ocorrênciadas seis categorias operativas já destacadas, articulando-as com ex-tratos das entrevistas contidas na síntese de dados e antecipandoas conclusões que serão sintetizadas no capítulo seguinte.

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1. Atividades práticas extracurriculares: A “Escola paralela”

Muitas dessas experiências foram constituídas por oportunida-des oferecidas por hospitais e serviços de saúde para estudan-tes, a título de “estágio”, como forma de substituição de mão-de-obra profissional mais dispendiosa, portanto. Essas oportu-nidades já não ocorrem hoje como regra. Há mais médicos nomercado; a remuneração profissional tem sido reduzida; os ór-gãos de fiscalização estão mais atuantes; e a participação dosusuários, através dos Conselhos de Saúde, não tem permitidoo emprego de estudantes, sem qualquer orientação, na assis-tência à saúde dos cidadãos. Assim, por exemplo, afirma umdos entrevistados.

... naquela época, o que hoje não existe mais, que era uma sériede oportunidades de trabalho. Não tinha tantos médicos, hojeem dia não tem estudantes trabalhando no lugar de médico.Naquela época ainda tinha estudantes trabalhando no lugar demédico.

... nos deram um desafio e nos arrumaram um plantão no Hos-pital XXX.... Não era esse movimento que tem lá hoje, era para-dinho, era para população interna, para atendimento internodo hospital, mas, no 5o ano, a gente fazia o plantão lá. Umasduas ou três vezes a gente ficou operando sozinho lá, bem nacirurgia, fechando a parede,... chegava a suar frio, fechando pe-ritônio, até pele... (PM01).

Um outro entrevistado discorda, argumentando que antesnão existiam chances de trabalho médico para estudantes, o quehoje, segundo ele, parece ocorrer. Esta contradição pode decorrerdo fato de o primeiro ter estudado em Porto Alegre, enquanto ooutro formou-se em Rio Grande.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 117

Hoje em dia, eu não sei, às vezes parece que alguns estagiários játrabalham como médicos, já ganham alguma coisa... uma coisairregular, mas na época não tinha isso (PM05).

Outras são atividades extra-curriculares decorrentes de buscaativa dos próprios estudantes que, principalmente nos primeirosanos de formação, são acossados por uma compulsão por ver comoé a “verdadeira medicina”, a medicina da prática, diferente de suasaulas excessivamente teóricas e do ambiente de laboratórios, típi-co do ciclo básico. Algumas experiências se caracterizam por umainserção em conhecidos serviços. Assim, por exemplo:

... já no 3º(ano de curso) comecei a acompanhar o pessoal quefazia obstetrícia e então comecei a ir ao hospital, freqüentar ohospital.

... a gente começou a visitar o Hospital XXX, já no 3o ano, apren-dendo a suturar, né? (PM 01).

Outras oportunidades foram proporcionadas aos estudantespelo próprio pai, no caso dos herdeiros de uma tradição familiarmédica, como se vê a seguir:

...eu convivi desde os 15 anos com a medicina e com o meu paidentro de hospital.

...porque o meu pai, eu ia com ele para o hospital para prescreveros pacientes para ele, porque ele tinha enfermaria de SUS, entãotinha 40 ou 50 pacientes. Ele olhava os pacientes e

– Oh! Repete isto aqui! Repete aquilo ali!... e eu prescrevia.

Eu passei no vestibular dia 19 de janeiro e dia 26 entrei emcirurgia com ele. E desde então eu nunca mais saí do bloco (ci-

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rúrgico). Eu tinha uma liberdade dentro do bloco cirúrgico, umaliberdade dentro do hospital, porque meu pai era uma pessoa queri-da na cidade e era diretor do hospital, médico idoso, casualmente eletinha 50 anos de formado e então eu tinha um acesso irrestrito aohospital e por isso eu fui me identificando em várias áreas.

Então no terceiro ano eu já fazia plantão, havia um plantão paraestudantes de medicina que era um plantão cirúrgico. Então eu fa-zia procedimentos desde cedo, no terceiro ano eu já passava intraca-th (cateter para infusão de líquidos direto em veias profundas degrande calibre), no final do sexto ano eu já tinha feito 140 partos,umas 50 cesarianas, 2 ou 3 vesículas, algumas hérnias, apendicite,porque eu tinha esta facilidade, essa liberdade (PM02).

Outro herdeiro afirmou:

Meu pai me levava no consultório, eu acompanhava, eu via avida dele crescer, via a vida dele de consultório, de atendimentode paciente... (PM03).

Outras, ainda, são proporcionadas pelos próprios professo-res que admitem que pode haver prejuízo à formação prática se oaluno restringir-se às atividades curriculares.

...eu tô colocando dois (alunos para um estágio extracurricu-lar) lá no... Hospital XXX. Por que eu tô colocando dois?Porque assim, embora eu não esteja lá presente, eu tô jogan-do, colocando, dando assim uma chance a dois alunos de vi-venciar uma realidade que não é a realidade comum dos de-mais colegas.

... embora ele esteja lá, fazendo sozinho essas atividades, eu façocontato com ele em pequeno grupo (de alunos que se encontramsistematicamente com um professor).

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... mas de qualquer maneira, dar uma seqüência na inserçãodeles nessa atividade paralela que todo o aluno de medicina faz.Se tu olhar bem o currículo, é um currículo paralelo, é um ins-tinto natural dele (aluno), na medida que ele quer ir na buscado conhecimento. Ele vai independente se (a atividade) é formalou informal, se é curricular ou extracurricular. Então assim,...só tem o seguinte, nós perdemos a noção do que é que realmentenós estamos fazendo. Se nós, enquanto corpo docente, não nosassociarmos a esse aluno no que ele vai se inserir, ele faz aquiloocultamente, serve para ele, mas nós não conseguimos avaliarisso e, automaticamente, não podemos valorizar porque nós nãosabemos o que é que ele tá fazendo. Podemos até ter uma noçãode que ele está se inserindo aqui e ali, mas não temos, assim, nãopodemos sentir, tatear bem (PM06).

Este trecho demonstra o dilema de certos professores frente à“escola paralela”. Se por um lado eles se sentem angustiados pelafalta de controle em relação às atividades dos alunos, por outroreconhecem a necessidade de complementação prática das ativi-dades desenvolvidas na escola formal.

Um aspecto interessante e conhecido que também emergiudas entrevistas foi que algumas inserções são patrocinadas pelaprópria escola. As escolas médicas funcionam junto a hospitais deensino. Esses hospitais, usualmente, têm programas de residênciamédica – uma modalidade de curso de especialização totalmentevoltado para a prática baseada no “treinamento em serviço”.Esses médicos residentes – recém formados – permanecem nohospital em tempo integral e ainda fazem plantões, permane-cendo à noite também. Tratam dos doentes internados em nomedos professores e ocupam seu lugar, em sua ausência, na ins-trução dos alunos.

... e tinha R2 (médico residente de 2o ano)... que ensinavaR1(médico residente de 1o ano) e R1 que ensinava estagiário.

120 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

Era uma escala. Então eu como R1 quando tinha problemasbuscava o meu R2. E tinha um R3. E nós tínhamos R2 que agente respeitava muito... (PM05).

É dessa maneira, acima transcrita, que um dos entrevistadosafirma sua concordância com a existência de um sistema de in-fluências na formação do aluno que transcende à do professor. Eleconfirma a hierarquia existente na equipe e suas formas de dele-gação de poderes e de substituição de funções, de forma a nãopermitir a vacância da função de “professor”. Sempre há umprofessor. Em qualquer circunstância. Seja ele quem for, sem-pre haverá alguém para ensinar e treinar alguém no interior da“escola paralela”.

R: Sim! Acho que sim (que há uma equipe que influencia, naausência do professor legítimo, a formação do aluno e que é muitomais expressivo o tempo que ele fica sob a influência dessa equipeque a do próprio professor). Termina sendo porque na prática,no dia-a-dia, o aluno tá muito em contato...muitas vezes ficamais horas com essa equipe do que com o médico preceptor em si.Que ele (professor) tem uma carga horária não muito grande,fica uma, 2...3 horas discutindo (os casos clínicos com a equipe,aí incluídos os alunos)... mas...as 8 ou 10 horas que ele (aluno)fica aí de plantão fica com outros contatos. Mas veja bem, aí temum aspecto, geralmente esse aluno, que passa a ser doutorando,que passa a ser residente, depois então é contratado, é muitasvezes aluno da própria instituição ou tem uma formação co-mum. Então... ele guarda sempre essas passagens...não chegaa perder...claro que ele pode desviar alguma volta aí...masele guarda muito do que ele aprende no início. Mas claro, oaluno ao longo do tempo tem uma parcela de contribuiçãodesse grupo de trabalho. Que é chamada equipe de trabalho,né? Equipes verticais... equipes de trabalho que envolve todosesses profissionais (PM08).

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Além disso, este trabalho em equipe constitui um aprendiza-do num espaço de baixa institucionalidade sobre o qual a educa-ção médica tem pouco ou nenhum controle. Sobre este fato tam-bém pronunciou-se o mesmo entrevistado como segue:

R: Sim! Concordo (que não há controle da escola formal sobre a“escola paralela”). Não tem controle, porque, na verdade, mui-tas dessas atividades são, como se diz, treinamento em serviço,quer dizer o aluno tem que aprender dentro de uma práticaque...que é a proposta que ele vai exercer lá fora.... Eu concordo,acho que isso tem a ver. Mas por outro lado ele está em contatocom uma prática que ele vai encontrar nos hospitais gerais, porexemplo, onde não tem uma faculdade e onde ele vai fazer suamedicina, que geralmente são médicos com essa formação. En-tão, por outro lado, ele está em contato com a real situação damedicina exercida em vários hospitais.

... que (o aluno) não pode ter uma preceptoria permanente, querdizer isso...do ponto de vista prático é difícil, tendo em vista oalto custo, né? (PM08).

Outros entrevistados concordam que a fração de tempo de for-mação em que o aluno fica sujeito à influência de médicos residentese outros membros das equipes de assistência é muito expressiva emrelação ao tempo total de atividades acadêmicas.

P: ... ainda sobre essa questão, disso assim... eu tô chamandoessa... essa parte menos institucionalizada... que são as ativida-des práticas onde o professor não está presente, de “escola parale-la”, ...ela é expressiva no... na quantidade de tempo que o alunofica na...?R: Ah ela é muito expressiva!R: É! É questão de copiar os modelos, a gente vê bem isso aí (PM09).

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Um entrevistado entende que esta é uma forma de perpetua-ção de erros e preocupa-se com isto. Afirmou o professor:

R: Eu penso que... (esta escola) infelizmente é paralela, porque seela fosse verticalizada, talvez não seria tão ruim, mas é umarelação horizontal, no sentido de que...P: O senhor concorda que isso existe?R: Com certeza! Com certeza!P: E que sobre essa escola paralela a escola tem pouco controle...R: Nenhum controle, talvez. Porque...a verdade é que... o riscoque há é o de perpetuar erros. Esse é o risco. Porque, vamos supor,o R1 (residente de 1o ano) quando fala com um sexto-anista demedicina, o sexto-anista quando fala com um quinto-anista demedicina...P: A diferença é muito pequena?R: É muito pequena. E ele também... o R1 também não sabenada. Ou pelo menos sabe muito pouco. A gente sabe que umresidente no primeiro ano da residência sabe muito pouco. Eletem milhões de dúvidas. Milhões de dúvidas. E...e então... e acabaacontecendo o que? Como é que uma pessoa que não sabe conse-gue transmitir algo? Como se soubesse? Não transmite bem. Eacaba se perpetuando falhas.

Mas eu percebo que existem faculdades em que o aluno se formafora da faculdade. Aí sim, literalmente (PM10).

Essa afirmação do prejuízo à formação, quando delegada peloprofessor legítimo a estes “professores não-formais” ou “susbtitu-tos”, não é consenso. Há quem ache que, sendo impossível a perma-nência do “professor formalmente instituído” ao lado do aluno du-rante todo tempo de atividade prática, a presença de um médico re-cém formado é melhor do que nada, como afirmou este entrevistado:

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...por outro lado, a vantagem que eu vejo nisso é que o residente,que sabe mais, tem mais experiência do que o doutorando e queos alunos, ele vai permanecer 24 horas dentro do hospital e oprofessor...ele fica algumas horas...ele não pode ficar o tempo in-teiro, né? E muitas vezes até o aluno, em relação ao professor eletem alguns constrangimentos, ele não pergunta tanto quantogostaria... eles não se abrem tanto com o professor... Com umaluno mais antigo, com um doutorando, com um residente quesão mais próximos, eles têm mais liberdade. Ele tem mais opor-tunidade de falar, tem mais oportunidade de perguntar e eleacaba ganhando com isso.

Eu acho que há mais vantagens do que desvantagens. É!

Agora, isso tem que ser muito bem dimensionado porque nãopodem, os professores, deixar a coisa exclusivamente nas mãosdos residentes. A gente sabe, todos somos humanos, que se nãohouver uma fiscalização, não houver um cuidado, rotineiro epermanente, justamente de avaliação, a tendência é que os pro-fessores, por melhor que sejam, vão relaxando e passando essasatribuições pros residentes e pros doutorandos. Isso é uma coisanatural (PM11).

A verdade que se evidencia é que a escola formal e a sua “facereversa”, a “escola paralela”, são faces distintas da mesma totalida-de que é a educação médica. Há uma relação dialética entre elas.Uma não existe sem a outra; uma complementa o trabalho daoutra e o que resulta é uma síntese das duas ocorrências.

2. Modelos médicos

Quando se fala no professor, no decorrer deste trabalho, quer-sereferir a quem figura como instrutor, como orientador da ativida-

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de prática, seja ou não um professor formalmente instituído. Osmédicos são formados a partir de diversas influências que aquichamamos de modelos. Alguns são, efetivamente, professores.Outros são médicos contratados pelas instituições de ensino e deprestação de serviço para exercer a supervisão técnica da atividadeda equipe do “professor formalmente constituído” na sua ausên-cia. São médicos residentes; são estagiários – alunos do últimoano, tradicionalmente chamados de “doutorandos” ou “internos”–e alunos mais antigos que, de alguma forma, concorrem para otreinamento e a estruturação do habitus profissional.

Cada um dos entrevistados apresentou pelo menos um mo-delo, um “grande mestre” que lhe influenciou a formação. A maio-ria deles citou mais de um modelo profissional. Uns eram profes-sores legítimos, outros não. Cada um dos citados contribuiu coma formação do entrevistado em um ou mais aspectos. Em pratica-mente todas as citações, o notório saber médico e o reconhecidodomínio da arte médica estavam presentes. Uns eram clínicos deprofundo conhecimento, outros cirurgiões de grande habilida-de, outros exemplos de vida e de caráter, outros ainda médicosque tiveram sucesso no mercado privado. Nenhum residentefoi citado.

Numa analogia com o meio militar, pode-se dizer que quemensina o recruta a ser soldado é o sargento, mas quem fica com aglória, com o respeito, com o status de modelo é o comandante. Éassim. O residente estaria para o sargento, para o instrutor, assimcomo o professor estaria para o comandante.

Aos “grandes mestres” da medicina, assim como aos grandesartistas, eram feitas concessões em termos de eventuais comporta-mentos bizarros –“vedetismo”. A eles era permitido que tivessemacessos de fúria tal qual as prima-donas. Uma platéia de alunos ediscípulos assistia, em tempos passados, com tolerância reverente,ao professor perder o controle durante uma cirurgia, por exem-plo, e jogar o instrumental contra a parede da sala. Isto foi atécitado por um dos entrevistados como exemplo de uma mudança

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 125

positiva. Segundo ele, estes comportamentos não são mais admi-rados pelos alunos e sim repudiados.

Os paraninfos das turmas eram os que davam as melhores festas,os melhores churrascos. Agora não é assim.... Agora não. A gran-de maioria dos paraninfos e homenageados são professores que sedestacaram em alguma coisa. E eu acho que ainda é, ainda estãosendo professores que se destacam pelo conhecimento científico,né? Mas isso...isso está mudando. Alguns é por conhecimento cien-tífico, muito poucos pelo conhecimento de ensino médico, masisso está mudando. Eu acho que ainda tem um modelo, mas osvalores desse modelo são um pouquinho diferentes. Os alunosnão gostam do cirurgião que fica brabo, quando alguma coisanão dá certo, e atira um bisturi na parede.

P: Não gostam disso?R: Não gostam! E isso já foi um charme...R: É! Já foi charme, já foi motivo para o aluno (afirmar orgu-lhoso) “Eu sou aluno do Fulano de Tal” (PM 09).

Este relato manifesta uma massificação da medicina, a pre-ponderância da técnica sobre a arte. Uma conduta mais regula-mentada e padronizada é agora esperada dos professores. O mitodá lugar ao profissional. A medicina despe-se de seus últimos ade-reços subjetivos. Não há mais exigência de talento; qualquer umpode ser médico e, sendo médico, pode ser um professor, bastaacumular conhecimento técnico e titulação específica.

Houve, também, quem tivesse como modelo o próprio pai.O que guarda uma certa lógica. Se o aluno está sendo introduzidoem um mundo novo, está sendo socializado, sua relação com oprofessor não deixa de manter uma certa similaridade com a rela-ção paternal. O trecho a seguir demonstra o sentido da autorida-de paterna do professor e do professor no pai.

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Os colegas todos sempre homenagearam o pai (dele) nesse aspec-to. E isto prá mim é uma coisa muito boa, entende? É um exem-plo de médico, é um exemplo de pessoa e tal, então...

P: Ele era... Ele é tua referência do ponto de vista ético...R: Ético... moral. Meu pai é uma pessoa irrepreensível do pontode vista ético e moral. Não tem... Não existe...

Então claro, que se tu olhar assim tem... eu conheço inúmeros,posso te dar inúmeros exemplos de cirurgiões, entende? Mas depostura ética e profissional, ninguém supera meu pai.

Eu vi assim belos16 profissionais, belos cirurgiões, belos médicos,com boas relações, mas igual à do meu pai, com aquela despreo-cupação com questões financeiras, com questões de técnica, comquestões outras que não o problema do paciente, entende? Achoque isso é viável, eu acho que não é impossível, entende? (PM02).

Um dos cursos ao qual alguns dos entrevistados está ligadoparece ter incorporado, de forma intencional, o treinamento dosalunos a partir do exemplo do professor. Disse o entrevistado:

O nosso aluno, ele é treinado, e esse é o termo, ele é treinadodesde o início a se comportar como... um médico, como um alu-no de medicina... como um futuro médico, ele é treinado aocontato com o paciente.

... então o nosso aluno é treinado a ter... uma empatia. Como éque é feito isso? Os nossos professores procuram, com o seu exem-

16 O termo “belo” aqui empregado pelo entrevistado é costumeiramente em-pregado entre médicos para referir sujeitos considerados “bons”, “éticos”, “com-petentes”.

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plo pessoal,... e aí nós temos um pouco de dificuldade, porqueesses professores tem que ser bem selecionados... e às vezes atéeliminados, quando eles não transmitem essa parte que nós tam-bém achamos importante. É a sua postura médica (PM11).

O fato do curso de medicina incorporar prática médica orien-tada nas atividades de graduação diferencia o significado do pro-fessor para o aluno. O professor de medicina, durante o ciclo clí-nico, recebe um pequeno grupo de alunos – de 4 a 8, em média –e os leva ao ambulatório para atender consultas, à beira do leitopara examinar doentes, à sala de cirurgia para vê-lo operar. Estetempo é escasso se comparado ao tempo total de atividade práticaa que os alunos se dedicam, mas aproxima o professor dos alunos.O aluno vê a técnica do professor sendo posta à prova. Vê os su-cessos e os fracassos do “mestre”. Nenhum professor de medicinaconsegue enganar seus alunos.

Se tu tiver um percalço na tua conduta (médica, no tratamentoinstituído ao paciente) e os alunos te criticarem (pelo insucesso dotratamento) tu podes... perder o teu prestígio, né? Então tu tem quemanter uma postura, tem que manter uma conduta, né? (PM 02).

Existe, entre os professores entrevistados, consciência de queo professor é modelo para seus alunos. Esta condição, no entanto,persiste apenas enquanto o professor tem contato direto com osalunos na prática. Quando assume funções administrativas, apar-tando-se, em parte ou integralmente, da atividade didática práticacom alunos, a condição de modelo se enfraquece.

Até certo ponto por que sabe, a grande maioria dos professoressabe que vai ser modelo de alguém (PM09).

R: Eu tenho consciência que eu já fui um grande mestre, vamosdizer assim. E por que não sou agora, que tô mais experiente?

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Deveria ser mais um grande mestre. Porque a minha funçãoagora, ela é muito administrativa. Não é?R:...Então eu tenho menos contato com o aluno...R:...na prática médica (PM11).

Esta oportunidade de ser modelo atua na vaidade dos profes-sores até contra interesses comerciais imediatos, o que permiteconcluir que a docência guarda algum espaço para o idealismotradicionalmente associado à profissão, como afirma este entre-vistado:

Já o professor universitário, ele tem...evidente que também fazpor dinheiro, ele atende seus pacientes por dinheiro, comercial-mente, e tal... mas ele tem algo mais que é a fantasia é a... detransmitir conhecimentos, ele tem esse sonho, não é?... De se acul-turar para que possa legar alguma coisa para outras pessoas.Então ele, bem ou mal, uns mais e outros menos, também sededicam no sentido de transmitir seus conhecimentos. Porqueeu não imagino um professor, em qualquer nível que seja,que não tenha esse sonho de transmitir... senão não seria umprofessor (PM11).

Entre os modelos que influenciam os alunos o conhecimen-to prático é mais valorizado que a erudição teórica, confirmandoo primado da ação como traço marcante da “mentalidade clínica”aludido por Freidson (1988), como relata este entrevistado notrecho abaixo:

Eu tive um professor marcante, que me ensinou muito, me ensi-nou na prática... (PM08).

Outros atributos do professor, além do conhecimento técni-co, visíveis pelos alunos nas atividades práticas também foramenaltecidos por um entrevistado.

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P: E o senhor acha que este vínculo se estrutura mais com osprofessores que estão orientando eles nas atividades práticas?R: Acho que sim! Acho que é mais fácil se vincular... até porqueo aluno ele molda assim na sua cabeça... na sua imagem que elefaz daquele professor... ele vai moldando essa imagem do grandemestre, não só pelo conhecimento desse médico, também pelo co-nhecimento. Mas uma série de coisas, atitudes do mestre, o com-portamento dele, o posicionamento dele perante os alunos, pe-rante os pacientes, perante os próprios colegas. Então eu acho queo grande mestre não é só aquele que sabe mais medicina que ooutro (PM11).

A própria escolha da especialidade médica a que o aluno vaidedicar sua vida profissional futura é, também, influenciada poresta relação do estudante com seus modelos. Este fato foi citadopor mais de um professor.

Eu faço cardiologia hoje porque teve um professor que me esti-mulou muito nessa área. E eu faço isso por causa dele.... Tenhocerteza que muitos colegas meus assim fizeram também, se liga-ram a um cirurgião e iniciaram a fazer cirurgia e resolvem gos-tar de cirurgia, e assim por diante.

(a relação próxima entre o professor que atende a pequenos gru-pos de alunos de medicina, estimula a imitação)... a ponto de,muitas vezes, eles fazerem a especialidade (médica) que o profes-sor faz. Eles seguirem o que o professor diz. Até na atitude...(PM08).

P: Também é uma diferença do curso de medicina, esse trabalhoem pequenos grupos... Essa relação com esse grupo pequeno eleproporciona uma relação mais empática entre professor e alu-no... e através disso deva ocorrer esse conhecimento do professor

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como profissional, como pessoa e essa eleição do modelo. O se-nhor concorda com isso?R: Concordo! Isso a gente vê bem, na escolha da especialidade, aturma que tem mais empatia com uma especialidade X, é a tur-ma que tem mais...vai ter mais alunos nessa especialidade.R: E acho que o modelo influencia muito mais assim até naespecialidade que ele vai...P: Na escolha da especialidade?R: A escolha da especialidade é em cima de um modelo. (PM09).

3. Imitação

A intuição leva os educandos a imitar. No Hospital de Clínicas dePorto Alegre, na década de 80, era fácil identificar os residentes eestagiários pela forma com que vestiam o mesmo avental brancolongo e de mangas compridas, iguais a outros 1.000 aventais quelá circulavam diariamente. Bastava observar aqueles que os vesti-am com as mangas arregaçadas até a metade dos antebraços. Esseseram residentes e “doutorandos”. Os professores os usavam comas mangas longas normalmente estendidas.

Se ainda se quisesse identificar os grandes grupos de especia-lidades médicas, poder-se-ia fazê-lo observando certos detalhes.

Os residentes de especialidades clínicas (cardiologia, neuro-logia, medicina interna, terapia intensiva, etc.) portavam inúme-ros itens de auxílio ao exame físico dos pacientes no bolso supe-rior esquerdo. Ali se viam canetas, lanterna, oftalmoscópio (paraexaminar o fundo de olho), martelinho de borracha para o testede reflexos, entre outros apetrechos. Eles envergavam o estetoscó-pio pendurado por detrás do pescoço.

Os residentes de pediatria, usualmente, vestiam-se de formamais displicente e informal. Calçavam sandálias no verão e pren-diam pelo menos um “agarradinho” (pequeno bonequinho de um

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animal com molas de prensa nos braços) ao tubo do estetoscópiopara distrair as crianças. O estetoscópio pendia à frente do peitocom a extremidade colocada em um dos bolsos laterais inferioresdo avental.

Os residentes de especialidades cirúrgicas apresentavam-secompletamente despojados de quaisquer adereços e portavam,objetivamente como compete à especialidade, apenas um estetos-cópio e uma caneta. Afinal esses julgam-se detentores da “partenobre” da medicina; pura ação numa profissão voltada para a ação.O estetoscópio dos cirurgiões e ginecologistas era enrolado e colo-cado num dos bolsos laterais inferiores.

Se um residente era visto circulando sem nem um estetos-cópio no bolso do avental era certo de que se tratava de alguémque cursava o programa de uma das especialidades chamadasde “métodos diagnósticos”: patologia, genética médica, radio-logia e outras.

A formação do habitus profissional começa assim, por umprocesso de identificação calcado num movimento entre a imita-ção e a distinção. Para ser aceito no grupo profissional – e, porextensão, no nicho específico desejado desse grupo – o educandocomeça manifestando visualmente sua adesão. Imita o jeito deapresentar-se, de vestir, de falar, de portar-se frente às situa-ções da rotina. Todo jovem médico sabe, intuitivamente, o quese espera dele frente às diversas situações com que se depara.Todos sabem o que fica e o que não fica “bem”. Todos sabemde que maneira gostariam de ser vistos pelos colegas e em quecircunstâncias ficariam constrangidos se fossem vistos pelosmesmos.

...porque eu, em frente dos alunos eu procuro mostrar exatamen-te o profissional que eu sou no meu dia-a-dia da minha profissãoliberal (PM04).

A imitação é admitida sem qualquer restrição e com ênfase.

132 LUÍS CÉSAR SOUTO DE MOURA

O pessoal da enfermaria me falou alguma coisa assim, que elesficam copiando a atitude do médico, mas muitas vezes ele ficamcopiando tudo inclusive, que nem robô e eles não podem ser robô.

Eles copiam qualquer besteira, eles não estão questionando, sócopiando.

...porque eles são muito observadores e acabam copiando o pro-fessor. Eu acho que a postura é fundamental para o cara se darconta que está na frente dos alunos (PM01).

R: Eu acho que ela (a imitação) acaba sendo inevitável e eu achoque no momento em que você tem bons exemplos... é a mesmacoisa que com o pai, talvez, onde você tem só maus exemplos oumaus hábitos, você acaba adquirindo esses maus hábitos. Ao con-trário, se alguém te mostrar boas coisas, você vai crescer. Se al-guém te puxar prá cima, você vai crescer (PM03).

... eles muitas vezes verbalizam isso, né?...esse espelho, essa iden-tificação do professor. Tu vês eles verbalizando frases e palavrastípicas daquele professor com o qual eles convivem.... isso aí maisme reforça essa minha idéia de que eles se espelham tanto naatitude quanto no tipo de fala, no tipo de abordagem, né?... omédico não é só o profissional médico, ele é o ser humano com-pleto que está servindo de espelho pro aluno (PM04).

Então o que acontece é que para que ele (aluno) consiga a tãoalmejada especialidade (médica), ele vai ter que se submeter a semoldar a certos estilos...

... porque o professor, antes de ser professor, ele foi o aluno, ele foimédico, então ele só passa aquilo que foi passado para ele. Entãona medida que ele não tem uma formação enquanto professor,...ele reproduz os modelos de professor que ele teve... (PM06).

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 133

P:... o senhor concorda que isso pode ajudar a estruturar condu-tas, atitudes profissionais no aluno...R: Sem dúvida!P:... através da imitação,...R: Exatamente!P:... da reprodução...R: É!P:... daquele professor...R: Sem dúvida! Isso é absolutamente verdade... verdadeiro e naprática utilizado pelos alunos em formação (PM08).P: Essa questão da imitação do professor ela é uma coisa signifi-cativa?R: Ah, eu acho que é! Acho que é! Acho que é! Acho que a grandemaioria dos alunos tem um modelo, tem um perfil... (PM09).P:...(a estruturação de um habitus profissional) está muito ba-seado na imitação, certo?R: Certo! É verdade! É verdade! (PM10).

A consciência de ser modelo e da imitação dos alunos fezcom que pelo menos um professor refletisse sobre o tipo deatributos que não deveria incorporar em frente a eles: a pre-sunção.

Então eu acho que freqüentemente os professores são muitopresunçosos... e tem mais um agravante que os meninos en-tram quase adolescentes, praticamente, na faculdade... e aí,não se pode exigir deles maturidade como de um cinqüentãocomo eu, não pode, né? Cinqüentão às vezes a gente não temmaturidade suficiente, imagina com 20. Então eles tão assimdeslumbrados. Passaram num vestibular que é difícil, é mui-to competitivo, é difícil; se deparam com um professor pre-sunçoso e aí eles copiam o modelo do professor (PM09).

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4. Tradição e hierarquia

A escola médica guarda, como já se pode ver, algo de muito tradi-cional. Ali alguns alunos ainda tratam o professor por mestre, nasua presença ou não. Esse tratamento, misto de reverência e afeto,é destinado a alguns professores que se destacam por algum atri-buto – conhecimento ou habilidade técnica – e que acabam porser eleitos como modelo por alguns alunos.

A hierarquização das equipes de assistência, nas quais o alu-no faz seus estágios práticos, é um fato. O professor legítimo é ochefe de equipe. É ele que comanda, técnica e praticamente, aequipe. Na sua ausência, alguém assume. É sempre o mais experientedos restantes. Na ausência desse, assume o segundo na linha de co-mando e assim sucessivamente. Nada disso está formalmente institu-ído, a regulamentação é tácita, mas ninguém tem dúvida de quemassume na ausência do chefe. Este poder delegado, por vezes, assumerepercussões de fato. Em uma escola, pelo menos, a escala de plantõesdos estagiários é feita pelos médicos residentes das equipes.

Um doutorando, né? Se queixa de que o residente... (o “douto-rando” diria): “– Ah, o residente me botou de plantão no dia 1o

de janeiro, no carnaval,... e eu que tenho plantão e ele não. Eleme obriga a vir aqui... chegar às 6:00h da manhã prá fazer asprescrições...” Ele (o doutorando, após a formatura em medici-na) começa a residência dele em 1o de janeiro e faz a mesmacoisa com os doutorandos outros.

P: Reproduz o modelo?R: Reproduz o modelo! (PM09)

Também o gerenciamento da rotina, como o controle sobreo horário de chegada dos estagiários ao hospital, no caso acima,foi delegado aos residentes. A reprodução destes componentes tra-dicionais e hierárquicos também ficou clara nessa manifestação.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 135

A hierarquia surge e se evidencia de diversas formas. As ativi-dades científicas teóricas semanais do serviço (ou disciplina), co-muns a todas as escolas, designadas pelo pomposo anglicismo de“round”, costumam ocorrer num dos inúmeros “anfiteatros” doshospitais ou das enfermarias de hospitais. Todo o serviço (discipli-na) que se preza tem seu próprio “anfiteatro”. Neste local, a tradi-ção determina que os lugares nas filas de poltronas sejam distri-buídos, de frente a fundo, conforme esta escala hierárquica. Pordesconhecer este costume do serviço no qual fazia um dos estágiosdo 6o ano, diferente de sua escola de origem, um dos entrevista-dos experimentou grande constrangimento.

Entrei um dia... Não deu!... no 5o dia de pavilhão (estágio deconclusão de curso), nunca tinha ido no anfiteatro, no pavi-lhão... Bah!... Primeira fila, achei lugar, fiquei. Bah! (veio al-guém e disse).– Só professor senta aqui!

E, eu (perguntou):

– Bom, está certo, onde é que eu posso sentar?– O que tu és (perguntou o interlocutor)?– Doutorando (respondeu)!– Não senta! Em pé! Atrás! (PM01)

Esta estrutura tradicionalmente hierarquizada mantém algu-mas dessas características, apesar dos tempos e das relações entreprofessores e alunos serem bem diversas nos dias atuais do que jáforam. Também, como foi apontado por um professor, essas rela-ções parecem estar mudando, mas o mecanismo de reproduçãoparece ter ficado bem claro com o relato do “doutorando” que serebelava com a arbitrariedade do residente na confecção da escalade plantões e que, promovido à função de residente organizadorda escala, após a formatura e a aprovação no concurso para resi-

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dência médica, adota a mesma atitude com os jovens que o su-cederam na função de “doutorando”. A hierarquia no universo pro-fissional, portanto, estaria, assim, garantida e a tradição revigorada.

O próprio uso da palavra “doutorando”, para designar os alu-nos do 6o e último ano do curso, é uma manifestação tradicionalda cultura profissional que persiste desde os tempo em que osdiplomados recebiam o título de “Doutor em Medicina”, no co-meço do século.

5. Conhecimento técnico e formação do habitus

A dimensão cognitiva é a tarefa primordial da escola médica for-mal. Ela é, entre as três dimensões principais da educação – cogni-tiva, treinamento de habilidades e estruturação de um habitus –aquela considerada a mais nobre. É com base na bagagem de co-nhecimentos que os professores são recrutados e selecionados; sãoavaliados pela escola e pelos alunos, como afirma um dos entrevis-tados lembrando seus professores:

... talvez o mais fácil fosse lembrar dos professores que passavamridículo com a gente.... o ridículo para um professor, era nãodominar a sua matéria (PM05).

Com base no mesmo critério, os professores são promovidosnos planos de carreira e para cargos e funções de chefia e gestão. Oprofessor de medicina vale o que sabe e o que faz para que osoutros saibam que ele sabe.

Um entrevistado, diretor de uma escola, afirmou os seguinte:

Tu sabes que a gente chega a diretor não é por méritos de admi-nistrador, nem por... nem por méritos de conhecimentos pedagó-gicos... a gente chega por outros méritos.

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 137

P: Que tipo de méritos?R:... Eu acho que tem até muito mais méritos de conhecimentotécnico também, né? A pessoa que tem um bom currículo...P: Tem mais chances?R: Tem mais chances! (PM09)

E reafirmou:

Eu antes de ser diretor (da faculdade que hoje dirige) eu enxer-gava... eu via muito mais a parte de conhecimento sólido comosendo importante.P: Conhecimento técnico?R: Técnico!R: A parte científica! Que é o modelo que todas as nossas escolasmédicas elegem. Na verdade assim, a mola propulsora da forma-ção do médico hoje é o saber. O saber que é um apanágio doprofessor. O professor leva o menino prá onde quiser, ele dá aaula que ele quer dar (PM09).

Mas admite que hoje interpreta a situação de outra maneira:

Depois de ser diretor eu comecei a perceber que eu acho queisso não é o mais importante. Acho que isso é importante,claro, a gente tem que ter conhecimento técnico, mas eu achoque...esta outra visão ética, humanística, mais holística... demedicina é muito importante. E isso não pode ser abandona-do. Ou pelo menos tem que ser retomado, acho que isso já,num passado bem distante era assim. Depois foi esquecido,acho que foi esquecido, particularmente na área médica foiesquecido, em função do grande avanço da tecnologia aplica-da à medicina. E aí os médicos foram esquecendo de ser hu-manos (PM09).

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O domínio do conteúdo é considerado fundamental por pro-fessores quando falam como professores:

... o professor é assim, eu acho que deve ser uma pessoa que deveser um facilitador. E aí eu parto sempre do pressuposto que oprofessor tem que ter domínio de conteúdo (PM06).

Mas o domínio da matéria também é considerado como umaqualidade quando eles se recordam de sua situação de alunos:

... nós alunos, a gente gostava de saber que tinha gente que sabiabastante medicina. Era uma qualidade (PM05).

O conhecimento detido pelo professor é visto como um pa-trimônio seu que ele lega aos seu discípulos. A representação feitapor um professor – ginecologista e obstetra – é de analogia com a“reprodução” biológica:

o professor de medicina...ele é um sabedor do conhecimento...elevê muito pontualmente a atividade dele como uma atividadereprodutora do conhecimento dele... (PM06).

Além da “reprodução” da bagagem cognitiva, a atuação doprofessor como tal também é comparada com a mesma reprodução:

... porque o professor, antes de ser professor, ele foi o aluno, ele foimédico, então ele só passa aquilo que foi passado para ele. Entãona medida que ele não tem uma formação enquanto professor,...ele reproduz os modelos de professor que ele teve... (PM06).

A dificuldade de conseguir professores que, além de notóriosaber, ainda agreguem outros atributos necessários para um exer-cício mais completo de sua vocação vai desde os critérios de ava-

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liação dos concursos de seleção e avanços na carreira, já citados,até a dificuldade de obtenção de formação em didática, ética, filo-sofia, ciências sociais, entre outros. A escola não provê, não patro-cina e não valoriza este tipo de formação reflexiva porque vai con-tra a lógica da ação intuitiva e irrefletida. Refletir atribui cons-ciência ao agente, já o habitus estrutura a prática de forma nãototalmente consciente.

Aí tem um...tem um agravante para a gente conseguir...umadificuldade para conseguir esse ideal de professor, porque...os con-cursos para admissão de professores se baseiam só no conhecimen-to técnico. Não tem nenhum conhecimento de didática, de ética,de humanismo, nenhum, só conhecimento técnico.... Então quementende de didática, de ética, de humanismo é autodidata. Éautodidata. A escola médica não tem uma escola para professorde medicina. Porque é diferente... a gente pode ser ótimo médicoe não ser tão bom professor de medicina.... e as escolas estão sele-cionando seus professores pelo critério do ótimo médico (PM09).

É nesse ponto que esse entrevistado toca numa questão que éfundamental para os propósitos deste trabalho: é diferente sermédico de ser professor de medicina. Não necessariamente umbom médico será um bom professor. Ao eleger o conhecimentocomo critério único de escolha de professores, a escola formal pri-vilegia uma dimensão em detrimento das outras. Ela estabeleceque a função da escola formal é ensinar medicina, delegando à“escola paralela” a função de ensinar a ser médico.

Esse professor perguntado admitiu que a escola preocupa-seem organizar minuciosamente as atividades curriculares de natu-reza cognitiva; que se preocupa menos em organizar o treinamentode habilidades e que deixa a formação do habitus entregue ao espon-taneismo, para que ocorra como decorrência das outras atividades.Reputa, no entanto, que esta situação, ao seu ver, está mudando.

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Eu acho que esta terceira parte, este terceiro pilar aí (a incorporaçãode uma atitude médica) ele realmente... deixa ao sabor da...

P:...da natureza?R:...da natureza! Ele não é institucionalizado. Nada institucio-nalizado. Eu acho que algumas escolas estão se acordando paraisso. O ensino médico está sendo revolucionado. (PM09)

Uma dimensão moral da educação médica não deixou de serapontada por um dos entrevistados. Para ele o professor não podedeixar de incorporar valores culturais ao trabalho docente.

Por isso, é que tanto se fala em perfil do professor. Eu acho queuma das coisas fundamentais na avaliação do perfil é isso, é essacapacidade, ou essa disposição da pessoa que vai ser professor etambém se vincular, também se identificar com esse tipo de for-mação; formação pessoal, formação moral de quem está forman-do. Só a formação técnica é fácil, tu prepara um bom técnico epode formar um bom técnico.... mas só bom técnico fica faltandomuita coisa (PM01).

Outro entrevistado também manifestou a diferença que exis-te entre ser médico e deter conhecimento técnico-científico. Paraele ser médico é um conceito muito mais amplo do que acumularconhecimento técnico:

... (a escola) pode ensinar a técnica. Nunca vai ensinar a sermédico! Não há possibilidade da técnica ensinar o aluno a ele sermédico. Médico... médico é um conceito muito mais abrangentede que um conhecedor técnico.

O médico tem que ser uma pessoa diferenciada não só tecnica-mente...

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 141

Então ser médico é qualquer coisa talvez até distante de ser umgrande conhecedor técnico de um determinado assunto (PM10).

Ele entende que esta confusão reduz a medicina a uma tec-nologia e o médico a um técnico. Ele entende que a medicina éuma arte que tem uma técnica como base. Disse o professor:

...aliás a medicina é uma arte. A gente não pode nunca deixarde entender a medicina enquanto uma arte. Essa que é a dife-rença. Existe a medicina técnica e existe a grande medicina, amedicina dos grandes mestres que é a medicina-arte. Qualquerartista precisa de técnica. Na realidade qualquer artista é um técni-co.... e o médico as vezes esquece que ele é um artista (PM10).

Ele também se preocupa com o privilégio que a escola dá àatividade cognitiva.

P:... a organização da educação médica privilegia, fundamental-mente, a transmissão de conhecimento em detrimento do treina-mento em habilidades até simples, como preencher uma receita?R: Com certeza! Eu tenho essa preocupação (PM10).

E propõe uma solução muito peculiar para solucionar esteproblema que reforçaria, ainda mais, a característica tradicionalda educação médica:

P:...quais seriam as alterações imediatas que surgem em tornoda organização da educação médica?R: Nós deveríamos fazer o ensino peripatético, o aluno deve-ria estar do lado do professor, nós conversando, tal qual fa-ziam os gregos.P: Uma relação mestre-discípulo?R: Exatamente! (PM10)

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Num dos cursos parece, ao contrário da ocorrência geral, quejá há planejamento e organização formal de atividades que visamà estruturação de um habitus profissional.

No nosso curso nós privilegiamos essa parte (adoção de uma ati-tude médica).O nosso aluno, ele é treinado, e esse é o termo, ele étreinado desde o início a se comportar como... um médico, comoum aluno de medicina... como um futuro médico, ele é treinadoao contato com o paciente. Nós temos uma estrutura de tuto-ria... ou preceptoria, também chamada. Cada professor ele tem,entende?...4 ou 5 alunos dos quais ele é o preceptor. Ele tem umcontato semanal com esses alunos. E esse contato pode ser nauniversidade, pode ser no hospital, pode ser na casa do preceptor,no consultório, num bar, num restaurante. E esse contato não épara ensinar medicina.... Mas o fundamental nisso é que elemostre como ele vive; quais são as suas condutas; qual é o dia-a-dia daquele profissional. E em cada 6 meses troca esse preceptorjustamente para que o aluno possa ter, ao longo do seu curso,vários preceptores (PM11).

Esta fórmula, segundo o entrevistado, além de atuar no habi-tus do aluno, sustenta a manutenção de um habitus mais puro,mais coerente com a ideologia da escola, também no professor.Vale dizer que a ideologia da escola é incorporada de maneira maisqualificada, trazendo o trânsito do aluno entre a escola formal e a“escola paralela” para dentro do espaço institucional da escola,garantindo algum controle sobre ela.

P: O senhor acha que essa fórmula também modifica o compor-tamento dos professores?R: Eu não tenho dúvida! Eu acho que isso é uma via de duasmãos. O aluno aprende com o professor, mas o professor tambémaprende com o aluno (PM11).

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 143

Mesmo assim, a fórmula adotada por essa escola parece nãoter sido suficiente ainda para responder às dúvidas e às reflexõesdos professores. Um dos entrevistados, professor da escola queadotou o modelo citado anteriormente, manifestou a sua “angús-tia” em relação ao restante da estrutura da escola:

Eu me angustio às vezes com isso. A gente percebe assim as difi-culdades dos alunos que a gente trabalha. Eu fico me cobrandose eu tô ajudando eles a se formar ou se eu tô ajudando eles a sedeformarem (PM05).

6. Cultura e valores profissionais

A cultura profissional é, a um só tempo, o resultado da educaçãomédica e o sustentáculo de sua organização. A educação é umaforma estratégica de controle sobre um corpo de conhecimentosque é usado como um capital na concorrência social pelo podernum determinado campo. Este é, em síntese, o fundamento bási-co da sociologia das profissões, como já vimos nos capítulos teóri-cos anteriores.

Esta categoria operativa nos dará uma breve noção de algunsdos elementos que a compõem. Não faz parte dos objetivos prin-cipais deste trabalho aprofundar este assunto, mas, não fazer-lhereferência, poderia empobrecer o resultado final.

A cultura profissional, na qual os estudantes são socializados,é composta por um conjunto de elementos que são particularesdo grupo. É com base nestes elementos culturais que se forjaum habitus profissional. Entre outros elementos, poderíamoscitar alguns:

– Ética: um conjunto de princípios de base moral em formade um Código preconizado e aceito pela categoria. No caso doBrasil, o Código de Ética Médica foi formulado pela profissãoinstituída em torno do Conselho Federal de Medicina.

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– Estética: médicos podem olhar uma cicatriz e considera-rem-na bela – no sentido de saudável, limpa, evoluindo na dire-ção da cura – o que provavelmente não ocorreria com profissio-nais de outras áreas.

– Linguagem: um vocabulário próprio, de base greco-latina,que dificulta o acesso leigo a essa modalidade de conhecimento.O médico pode, parcimoniosamente, dar acesso introdutório elimitado a essa linguagem, de acordo com sua própria delibera-ção, como já foi citado ao longo do trabalho.

– Visão de Mundo: uma maneira médica de ver o mundo ede apreender a realidade sensível, baseada numa adesão incondi-cional ao conhecimento científico, sempre tendo como referênciaa relação dialética entre o normal e o patológico, em que pese afluidez desses conceitos.

Essa cultura profissional também foi um traço marcante quesempre esteve subjacente a todos os outros aspectos evidenciadospela pesquisa. Ela se manifesta desde meras alusões ao cuidadocom a aparência pessoal que é esperada do médico, como nos dis-se este entrevistado:

... depois no Hospital XXX tinha uma safra de médicos que for-maram muita gente. Tinha o “fulano” um cara super informal,se vestia mal, tu nem achavas que ele era médico, assim de tãoinformal, simples, mas de uma gentileza com o paciente, de umdetalhe no exame com o paciente e sempre ele com mesmo tomque tinha outro, o “beltrano”, que era outro, que se arrumavasuper bem, super elegante, carro importado... então já era bemdiferente do “fulano”, mas falavam a mesma língua (PM05).

A importância da aparência é reafirmada por outro entre-vistado:

É a sua postura médica. Nós exigimos, vamos dizer assim, que osprofessores se... se vistam... isso aí é um detalhe discutível, mas se

A FACE REVERSA DA EDUCAÇÃO MÉDICA 145

vestir não significa com requinte, significa sobriamente, de umamaneira, né?...civilizada, entre aspas, que o médico deve se vestir.Também exigimos que o aluno tenha essa mesma postura (PM11).

Para ficar ainda na esfera material, surgiram algumas inter-venções que demonstram que os médicos têm uma relação ambi-valente com o dinheiro. Se por um lado a ética mais aceita pelaprofissão enaltece o compromisso com o paciente acima de tudo,por outro lado está gravado no Código de Ética Médica que éanti-ético trabalhar por “remuneração vil”. O código não estabe-lece, no entanto, o que se considera remuneração vil, deixando ainterpretação deste artigo à livre deliberação do profissional.

Disse um dos professores:

Eu acho assim, eu vou te resumir uma frase de um professor lá doHospital... do Clínicas que tu talvez conhece, eu acho que o ci-rurgião, por exemplo, que precisa de dinheiro é pior para o pa-ciente do que a própria doença do paciente (PM02).

Outro faz referência a uma certa renúncia aos interesses ma-teriais, necessária para investir-se da função de professor que, afi-nal de contas, está ajudando a formar concorrentes:

Toda a regra tem exceção. Mas, assim de modo geral, me pareceque o médico que não trabalha com a docência ele faz uma me-dicina mais... não sei se o termo é certo, mais mercantilista. Ele tápreocupado em fazer o trabalho dele em troca do dinheiro que elerecebe. Já o professor universitário, ele tem...evidente que tambémfaz por dinheiro, ele atende seus pacientes por dinheiro, comercial-mente, e tal... mas ele tem algo mais que é a fantasia é a... de trans-mitir conhecimentos, ele tem esse sonho, não é? (PM11).17

17 Este parágrafo já foi citado na página 127, mas foi deliberadamente repeti-do aqui por caber, também, como exemplo do aqui referido.

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De uma maneira geral as virtudes e os vícios citados, e consi-derados como tal entre professores, não diferem daqueles consa-grados pela moral judaico-cristã:

mas...que teriam estas qualidades que eu te falo: honestidade,integridade de caráter, humildade (PM03).

Eu acho que um vício muito importante é confundir auto-con-fiança com presunção. Acho que tem que ser auto-confiante pararesolver o problema, mas não pode se tornar uma presunção quea gente vá resolver todos os problemas. E o médico tem muitadificuldade de trabalhar isso. Ele confunde auto-confiança com pre-sunção e confunde humildade com não ter auto-confiança. Ele temque ser auto-confiante e humilde.... É saber seus limites (PM09).

Entre os atributos virtuosos o mais citado foi o impreciso“bom-senso”:

Tu tem que ter bom senso na medicina, eu acho que medicinasem bom senso é bobagem (PM02).

Eu acho assim, que nós não falamos numa qualidade, agora eume lembrei, que veio na minha cabeça, uma qualidade funda-mental que é bom senso. Quem não tem bom senso... bom sensoé tudo. Alguém dizia que na medicina é um pouco de... é umpouco de conhecimento com um barril de bom senso, né? Entãobom senso é fundamental. Ah... porque a gente tem que incenti-var as atitudes de bom senso e tentar coibir e mudar, na medidado possível, coisas ruins, né? (PM03).

... (citando alguém) eu acho que (medicina) é 90% de bomsenso e 10% de conhecimento (técnico) (PM10).

O prestigiado atributo do “bom-senso”, no contexto das en-trevistas, pode ser interpretado como uma aplicação do conheci-

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mento de maneira não radical ou incondicional. Em outras pala-vras, não aplicar o conhecimento médico de forma ampla e geral atodos os doentes indistintamente. O que eles propõem é a aplica-ção do conhecimento de forma individualizada a cada paciente,considerando-o de forma contextualizada às suas circunstânciassociais, emocionais, mentais e físicas. Na verdade é aí que resideum dos grandes dilemas da medicina atual. Se, por um lado, osmédicos entendem mesmo que cada doente é único e que nãoexistem doenças, mas doentes, ou seja, pessoas vivendo a condi-ção de doentes de maneira subjetiva e particular; por outro há aMedicina Baseada em Evidências – MBE – a pressionar para quenada que não esteja comprovado por evidência científica seja ado-tado no tratamento dos pacientes. De um lado, uma visão que sepretende mais humana que respeita a subjetividade do doente; deoutro, uma que se pretende fundada na ciência entendida comoneutra e objetiva, a homogeneizar a doença e, por conseqüência,os doentes. O entrevistado que mais enalteceu a MBE foi o mes-mo que afirmou:

Nós (da escola que representa) temos assim uma proposta, quenão é minha, que eu sigo e que a faculdade segue, que é... buscaruma perfeita atuação médica, uma perfeita atividade médica,que consiste muito mais do que ter qualidade técnica em desen-volvimento científico, mas ter assim aspectos humanos e compro-metimento ético-social.

Que a pessoa (o profissional egresso daquela escola) tenha,... sai-ba que ela não está frente a uma doença, está frente a um doen-te. E tem todo um aspecto social e humanitário atrás. E que eletem que ter uma conduta ética adequada.

Cada doente é um doente. Não existem dois doentes iguais. Exis-tem doenças iguais, mas não doentes iguais (PM08).

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Nenhum dos entrevistados que tocaram neste ponto flagrouesta contradição. Em um momento era o elogio à ciência positiva;em outro o humanismo condescendente em nome do qual algunsprocedimentos e condutas baseadas na intuição e na “experiência”acumulada se justificavam amplamente.

Tudo isso porque, como disseram alguns entrevistados, mé-dicos são pessoas. Se forem “boas pessoas” tem mais chance deserem “bons médicos”. Se souberem incorporar algum afeto aoseu trabalho provavelmente sejam mais bem sucedidos.

Eles (os alunos) não são puramente médicos, eles são pessoasmédicas envolvidas no seu meio. Então eles têm que estar aten-tos às coisas que acontecem em volta deles, na política, naeconomia, no esporte, enfim, todos os setores sociais e poderexprimir idéias sobre isto. Eles deveriam ter cultura, as pes-soas deveriam ter cultura prá poder ser bons médicos e bonsprofessores (PM03).

Tu não é bom médico porque tu é bom médico. Tu é bom médicoporque tu é boa criatura (PM05).

É este afeto que deve, segundo eles, comandar seu relaciona-mento com os pacientes.

... embora o médico seja extremamente habilidoso tecnicamente,pode ser um médico de extrema competência intelectual em ter-mos de diagnóstico, se ele não tiver uma boa relação com o pa-ciente, se ele não tiver a confiança do paciente fica muito difícilde tratar este mesmo paciente (PM04).

Acima de tudo a gente procura mostrar que... eles tem queservir ao paciente; o melhor para o paciente, o paciente é o sol(PM05).

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O relacionamento com os pacientes, no entanto, apresentasérias dificuldades que tem de ser transpostas, o que só ocorre sehá boa vontade. Um conflito cultural de classe se estabelece, porvezes, obrigando o médico a adaptar seus conhecimentos às con-dições de vida do cliente, como relatou um professor que aten-deu, durante um tempo, a população rural de um município daRegião Metropolitana de Porto Alegre:

... fazia consultório em Viamão. E algumas coisas tiveram queacontecer. Primeiro tive que aprender uma nova “Nômina Ana-tômica”, né? Aí comecei a ouvir “sambiqueira” (parte caudal dasaves), ouvir “ripa” (tipo de corte da costela bovina), a costela“minga”, né? E eu digo isso hoje (nas aulas) na anatomia, eu faloprá eles (alunos): olha o paciente não vai aqui... vai te dizer eu tôcom a minha costela...com a minha flutuante... vai dizer: “olhaminha ‘minga’ tá... tô com dor na ‘minga’.” “Acho que eu trinqueia costela ‘minga’.” Existe uma “nômina”, na prática do dia-a-dia,né? Que não tem nada a ver com o castelo que é a universidade.

Então eu passei a identificar o paciente pelo cheiro. Aquele quetinha cheiro a defumado é porque tinham fogão a lenha,tinham...né? Não dá pra receitar gelo (PM10).

Essa cultura parece aproximar o médico brasileiro de seuscolegas europeus ou norte-americanos, que foram socializados nomesmo meio profissional, bem mais que o cidadão não-médico.Alguns entrevistados que viajam freqüentemente para congressosconcordaram com esta impressão. Houve um que chegou a pro-por uma explicação baseada no sofrimento psíquico que envolve aformação em medicina que, em tese, aproximaria aqueles que pas-saram pela mesma provação:

P:...por outro lado, o médico parece ser médico em qualquerlugar do mundo, né? Especialmente...

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R: Há um denominador comum!...R: Penso que há um denominador comum! Interessante isso!...Eu mais de uma vez disse que, uma vez médico, não dá paradeixar de ser médico. Não há como! Você pode até direcionar suavida profissional para um campo pouco médico, ou às vezes nadamédico, mas há certas coisas que são marcadas, parece que aferro e fogo, dentro da nossa... do nosso inconsciente e a gentenão deixa nunca mais de ser médico. Eu me recordo que eu ti-nha mal completado 18 anos e estava ali cortando cadáveres,né? Aos 19, na farmacologia estávamos ali matando cachorroscom remédios estranhos... daqui a pouco estávamos nós lá no(hospital psiquiátrico) XXX com aquela...com aquela insanida-de toda, não só os loucos mas o sistema insano. Que era o (hospi-tal) XXX que eu conheci... não sei como será hoje. Daqui a pou-co estávamos no IML (Instituto Médico Legal) vendo estupra-dos, vendo assassinados, vendo afogados, vendo... E daí tu chegasaos 23 anos de idade, já é médico, nunca mais pode deixar de sermédico. E entre essas coisas existem atitudes médicas, né? Umacerta frieza frente ao sofrimento.... Talvez seja de a gente se am-parar emocionalmente a isso, né? E eu me percebo assim, en-quanto estou médico, que...em verdade nós estamos médicos emdeterminados momentos... porque estar médico é um momentoem que a gente está protegido (do sofrimento psíquico) (PM10).

Algumas outras questões sociológicas interessantes foram le-vantadas pelos entrevistados ao longo das entrevistas. Foram, noentanto, deixadas de lado porque não guardavam vinculação ime-diata com os objetivos deste trabalho e nem com o problema e ashipótese aqui propostos.

As conclusões a que se pode chegar ao fim deste estudo, alémdas já adiantadas aqui, estão contidas no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO 6

Conclusões

6.1 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As conclusões que emergiram deste trabalho são decorrentes, tam-bém, de um longo processo de familiarização com o campo obser-vado ao longo dos 24 anos de vivência no meio médico e da for-mação numa escola médica. Esta familiaridade trouxe uma sériede vantagens e desvantagens na realização deste trabalho.

É evidente que se o pesquisador está subsumido ao campopesquisado, muito maior tem de ser o esforço de objetivação epis-temológica na relação com o objeto. Muito maior tem de ser ocuidado e o empenho em proceder a necessária ruptura epistemo-lógica, apontada por Bourdieu no seu livro O ofício de Sociólogo(op. cit.), para evitar que nos afastemos da atitude científica e en-veredemos pela “sociologia espontânea” de que o autor fala, as-sunto já tratado em capítulo anterior.

Foi necessária a construção de um “estranhamento” do queera familiar e conhecido, para que a relação pesquisador-objeto seestabelecesse de forma a permitir a pesquisa. Embora não se tenhaa ilusão da neutralidade absoluta em relação ao objeto, como que-ria Durkheim (1995), e nem a presunção da capacidade de nosdespirmos totalmente das “pré-noções”, também não se pode pres-cindir de manter a criticidade como objetivo.

Por outro lado, o fato de ser parte integrante do grupo estu-dado permitiu uma clara identificação dos entrevistados com oentrevistador e, conseqüentemente, uma relação empática queproporcionou a coleta de um material extremamente rico.

Esta familiaridade foi decisiva na opção metodológica pela téc-nica da entrevista semi-estruturada como uma fórmula segura de ob-

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tenção de dados, e na seleção de professores e diretores das quatroescolas médicas da região metropolitana de Porto Alegre que consti-tuíram o universo pesquisado.

É preciso frisar que das conclusões resultantes desta pesquisa,algumas já se tornaram evidentes e foram dadas a conhecer no capítu-lo anterior. No momento em que se procede a análise dos dados cole-tados e selecionados como pertinentes para os objetivos do estudo, asconclusões brotam e é inevitável que se trate delas instantaneamente,impossibilitando que as reservassem para posterior exposição.

Assim sendo, passamos a expor as principais conclusões empíri-cas resultantes deste trabalho, mesmo aquelas sobre as quais já fize-mos menção na etapa de análise de dados.

6.2 DA ESCOLA FORMAL À ESCOLA PARALELA:O TRÂNSITO DA FORMAÇÃO DOHABITUS PROFISSIONAL

Diversas são as conclusões possíveis a partir do material teórico con-sultado e do material coletado em campo. Percebe-se, por exemplo,que o ambiente onde a educação médica tem lugar é um espaço socialem que coabitam a tradição e a alta tecnologia, o que resulta numasérie de tensões, de maior ou menor complexidade e visibilidade.

Quem entra num grande hospital-escola, pleno de computa-dores, aparelhos e equipamentos sofisticados, não imagina que alio professor ainda é tratado carinhosa e reverentemente de “mes-tre”. Não há qualquer imposição para que tal ocorra. Funcionatradicionalmente assim: os médicos-residentes chamam o profes-sor de “mestre” porque sempre os ouviram ser assim tratados. Os“doutorandos” (alunos do último ano da graduação) imitam osresidentes. Os acadêmicos imitam os “doutorandos”. Ninguémquer quebrar a corrente. Aderir a ela e imitar é, em suma, parte daestruturação do habitus profissional.

Os médicos parecem dotados de uma expectativa heróica deresistência à submissão e à rendição pura e simples à tecnologia, aomesmo tempo em que a reverenciam e procuram dominá-la. Pare-

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cem querer afirmar que o grupo, como um todo, está acima das im-posições da técnica; que mantêm laços inquebrantáveis com as tradi-ções mais caras e clássicas da profissão. Buscando manter viva a essên-cia romântica de sua arte o grupo afirma uma capacidade idealizadade assumir o protagonismo da produção de uma síntese entre tradi-ção e tecnologia.

Os elementos de diferenciação da escola médica, no entanto,em relação a outras escolas não param por aí. Os professores do cicloclínico – a partir do 5o semestre e daí em diante – atendem a peque-nas turmas nas atividades práticas. São grupos de 4 a 8 alunos, emmédia, que têm encontros praticamente diários com o professor e suaequipe. Disso decorre uma relação mais pessoal com os alunos. Osprofessores não se limitam à matéria técnica, mas buscam apresentar-se a seus discípulos como verdadeiras referências de vida. Buscammerecer o título de “mestre”. Alguns radicalizam propondo o retornoda escola peripatética, como vimos no material colhido nas entrevis-tas. Os aspectos humanos da prática médica são a justificativa paratais propostas.

Mais do que isso, o próprio futuro profissional dos alunos esta-ria calcado nesta relação. Mais de um entrevistado afirmou que aprópria escolha da especialidade médica que o aluno vai abraçar comocarreira é fortemente influenciada por uma relação empática com umprofessor da área. O professor funciona como um mediador entre oaluno e a medicina. O professor de medicina não consegue esconderdos alunos os resultados práticos de seu trabalho. Ninguém conseguefingir ser um bom médico para seus alunos. O professor orienta dia-riamente a conduta terapêutica a ser aplicada a doentes reais interna-dos em seu nome e sob sua responsabilidade no hospital-escola e vaiembora. Vai tratar de seus outros assuntos, afinal, dedicação exclusivaà função docente, no caso da medicina, é algo virtualmente impensá-vel. Os alunos e os residentes, normalmente, são os agentes de execu-ção daquela conduta orientada e vêem os seus resultados em temporeal. São eles que, usualmente, comunicam ao “mestre” que o pacien-te melhorou, piorou ou, como se diz no jargão profissional, “evoluiuao êxito letal”.

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Quando um paciente morre, o docente é obrigado a uma con-versa em que tenta justificar o desfecho indesejado aos alunos e ainformar-lhes de sua interpretação sobre os motivos do insucesso. Asderrotas são, usualmente, atribuídas ao imponderável; as vitórias aca-bam creditadas ao mérito profissional do “mestre”.

O maior valor de um professor de medicina é o seu conheci-mento e sua experiência técnica, conforme os entrevistados. É combase no conhecimento que a escola seleciona seus professores, aquelesque vão levar adiante o projeto estratégico do grupo profissional; aque-les que vão socializar os “recrutas”; aqueles que serão os genitores danova geração. Outros valores, como um comportamento ético ouuma sólida formação didática, ainda são pouco valorizados.

De todas as conclusões possíveis a partir do material coletadoem campo, no entanto, aquela que emerge com mais força é justa-mente a que dá sentido à hipótese central formulada: é a que afirma aexistência de uma “face reversa” indivisível da escola médica formal.Uma face que lhe é complementar, que faz o trabalho menos visívelmas, sem dúvida, não menos importante.

Enquanto a escola formal ocupa-se, através de sua estruturacurricular, com a organização de situações que privilegiam a di-mensão cognitiva da educação, esta “face reversa” e de baixa insti-tucionalidade que aqui convencionamos chamar de “escola para-lela” dedica-se à construção de um habitus profissional. A primei-ra ensina medicina, a “escola paralela” ensina a ser médico, o que émuito diferente.

Sobre esta “face reversa”, a escola institucionalizada tem poucoou nenhum controle; dela, tem pouca ou nenhuma consciência. Istopreocupa a alguns professores e é tido como natural por outros. Afi-nal, sempre foi assim, não há o que estranhar. O fato é que, sem oconcurso da “escola paralela”, o resultado final da educação médica –o jovem médico – ficaria seriamente ameaçado de insucesso. Um jo-vem profissional aparelhado com um volume quantitativamente ex-pressivo de conhecimento técnico e não dispondo de um treinamen-to que lhe permita aplicá-los poderia ser comparável ao artífice quenão dispõe de ferramentas para fazer seu trabalho.

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É nesse espaço pouco institucionalizado que se forma uma ca-deia hierarquizada de influências sobre o processo ensino-aprendiza-gem de cada aluno. Estabelece-se uma escala informal, mas indiscutí-vel, de comando e decisão que está posta e sobre a qual não pairaqualquer dúvida. Nela, alguém sempre assume a função de orienta-dor, de professor, de instrutor. Se o “professor formalmente instituí-do” não está presente assume o mais “antigo”18 , como nas estruturasmilitares. É esse “comandante” ad hoc que assume o cargo por delega-ção tácita e que complementa a tarefa do professor. A esses que, porfalta de termo mais preciso que atribuísse o significado que se querdar ao conceito, chamamos de “professores substitutos” ou “não-for-mais” são transferidos todos os poderes e prerrogativas devidos aoprofessor legítimo.

É na escola formal que o aluno vai buscar, em parte dos casos,seus modelos e referências profissionais nas quais vai basear a constru-ção de seu próprio perfil. Em outros casos, os modelos são escolhidosfora da escola ou até na família, no caso dos herdeiros de médicos. Éuma ação consciente essa do agente escolher modelos aos quais secomparar para avaliar se está ou não tornando-se bom médico. Essaescolha não é aleatória, já que reflete uma certa idealização da profis-são, uma certa antecipação idealizada de futuro profissional por partedo aluno.

Outro fato que emergiu do campo foi a posição de destaque daimitação na constituição de um habitus profissional. Esta verdadeiraconversão a uma cultura profissional, a adesão voluntária e incondi-cional a um conjunto de normas, escritas ou não, e a renúncia à auto-nomia intelectual para a obtenção da aceitação do grupo, tudo isso épermitido e mediado pela imitação. A imitação é intuitivamente ado-tada e, portanto, não-consciente, tendo na “escola paralela” e nos seusagentes, os “professores substitutos”, os padrões modelares. Pouco difereda criança que, por falta de aparelhamento pessoal, imita os pais em

18 Terminologia empregada no meio militar para resolver o problema de defi-nição de ascendência hierárquica entre soldados de mesmo posto ou gradua-ção. Mais antigo é quem “sentou praça” primeiro.

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situações novas na tentativa de afirmar sua própria resposta ao estí-mulo inédito. É evidente que pareceria muita arrogância um aluno degraduação imitar um conceituado “mestre” nos gestos, no vocabulá-rio, nas atitudes. Mas imitar um residente já parece bastante razoável.

A tradição e a hierarquia são outras marcas que apareceram eforam facilmente identificadas no seio da escola médica, tanto emsua face institucional quanto na “escola paralela”. Elas se apresen-tam de maneira mais tônica e visível em algumas escolas do queem outras. Sua prevalência é que explica alguns hábitos e costu-mes como o já citado e anacrônico tratamento de “mestre” dedi-cado aos professores. Uma escala hierárquica bem constituída e,embora informal, muito sólida não deixou de ser observada. Idên-tica à melhor tradição militar, as equipes de assistência médica doshospitais-escola guardam uma hierarquia em que o poder do co-mando vai sendo delegado nas situações operativas do cotidiano,com base numa escala decrescente que vai do mais “antigo” – maisgraduado – ao mais “moderno” – menos graduado.

O conhecimento técnico detido pelo professor é o seu capitalmais importante neste campo. Um bom currículo atestando no-tório saber médico é a mola propulsora da carreira acadêmica deum professor e pode até guindá-lo a uma posição de destaque naburocracia da escola, como à chefia de um departamento ou àdireção do curso. Outros atributos como formação didática, habili-dade no relacionamento com os pacientes e atitude ética têm menosou nenhum valor. O conhecimento é o único critério formal de sele-ção de professores, o que confirma a preponderância do conhecimen-to em relação às demais dimensões da educação na escola formal.

Considerada a tarefa mais nobre pela escola médica, a dedi-cação à dimensão cognitiva da educação profissional ocupa quasetodo o tempo e a participação dos professores nas atividades queali têm lugar. Nesse espaço pedagógico deve-se ensinar medicina.

É dessa dedicação unilateral que decorre a necessidade de estru-turação de uma “escola paralela”, face reversa e indivisível da escolaformal, que tem por missão completar-lhe o trabalho e suprir-lhe asdeficiências. Sua existência se justifica, enfim, para que ensine o aluno

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a ser médico, através da formação de um habitus profissional, comoprincípio gerador e unificador das práticas, calcado fundamentalmentena imitação de modelos que, recolhidos de diversas origens, formamum mosaico fluido de influências que operam desde a origem da for-mação do jovem médico até que venham a, progressivamente, sersubstituídas por uma mentalidade clínica apoiada cada vez mais naexperiência pessoal do agente, como propôs Freidson (1988).

Na “escola paralela” é que os futuros médicos aprendem a “inte-riorizar a exterioridade” das estruturas sociais objetivas, a desenvolverestratégias de “sobrevivência” e distinção num campo profissionalmuito competitivo e tensionado não apenas pela intensa competiçãointerna ao campo, como também pelo conjunto de expectativas so-ciais que são neles depositadas.

É exatamente aqui que se situa este trabalho. Partindo de umquadro de referência estabelecido pela Sociologia das Profissões eutilizando “profissão” como categoria analítica, foi-se fechando ofoco sobre a medicina e suas relações com a sociedade, foi-se iden-tificando a educação médica como um fator estratégico de repro-dução dessas relações sociais, de manutenção da influência que osmédicos têm na vida das pessoas; foi-se vislumbrando a eleição deuma cultura médica legítima imposta arbitrariamente através doexercício de violência simbólica pela escola médica; foi-se obser-vando que tudo isso ocorre a partir da estruturação de um habitusprofissional; foi-se entendendo que a formação deste habitus é atri-buição do professor – seja ele “formalmente instituído” ou não – eque ocorre com ou sem o planejamento, sem a preparação, sem opatrocínio e mesmo sem o consentimento da escola médica for-mal; foi-se compreendendo que na constituição deste habitus ométodo empregado é o da observação, imitação e repetição irre-fletida das atitudes, postura, vocabulário e condutas de um pro-fessor – “legítimo” ou não – e que esta fração, que é proporciona-da com a participação de “professores não-formais”, constitui-senuma verdadeira “escola paralela”, uma “face reversa” da educaçãomédica que lhe completa e aprimora o trabalho de “produção” dasnovas gerações de profissionais.

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