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Universidade Estadual do Ceará Mestrado Acadêmico em Filosofia
Benedito Elói Rigatto
A figura alada de Dürer e o anjo de Klee Sentidos de melancolia em Walter Benjamin
Dissertação de Mestrado
Fortaleza – CE 2011
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Benedito Elói Rigatto
A figura alada de Dürer e o anjo de Klee Sentidos de melancolia em Walter Benjamin
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia do Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Filosofia Linha de pesquisa: Ética fundamental e Ética e Filosofia Política Orientadora: Profa. Dra. Maria Terezinha de Castro Callado
Fortaleza - CE 2011
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Folha de Aprovação
Título do trabalho: A figura alada de Dürer e o anjo de Klee: sentidos de melancolia em Walter Benjamin Autor: Benedito Elói Rigatto Orientadora: Maria Terezinha de Castro Callado Defesa pública em _____/_____2011 Nota obtida:______
Banca examinadora
____________________________________
Profa. Dra. Maria Terezinha de Castro Callado
Orientadora
___________________________________
Prof. Dr. Kleber Carneiro Amora
1º. Examinador
___________________________________
Prof. Dr. Eduardo Jorge Oliveira Triandopolis
2º. Examinador
4
Agradecimentos
À minha orientadora, Profa. Tereza Callado pela atenção sempre paciente e pelo
sorriso que ameniza a árdua tarefa da pesquisa filosófica e mostra a alegria da
descoberta, como convém aos benjaminianos.
Aos professores da Banca pela disponibilidade em colaborar com a crítica
necessária na construção deste trabalho.
Aos professores e funcionários do Mestrado Acadêmico em Filosofia da
Universidade Estadual do Ceará pelo apoio no aprimoramento do trabalho de
pesquisa, fundamento necessário da dissertação.
Aos colegas de turma pela possibilidade do debate e da crítica. Um agradecimento
especial ao William Leite, mais que um colega, um amigo de longas conversas
pelos labirintos de uma filosofia sedutora.
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O tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência. WALTER BENJAMIN, O NARRADOR
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Resumo
Este trabalho procura revelar a centralidade de melancolia no pensamento de Walter
Benjamin e a extensão de sentidos desta categoria. A escolha de textos
significativos para a análise deste tema possibilita revelar as contradições do estado
de espírito melancólico, que oscila entre apatia, inércia, indefinição e visão crítica
para a tomada de posição ante a história-catástrofe. Tais conflitos Benjamin
encontra na linguagem alegórica do Barroco e na obra dos poetas da modernidade
capitalista, como o fundamento de sua crítica da cultura. Baudelaire e Proust
constituem novas formas linguísticas de representação alegórica sobre o cotidiano
das sociedades contemporâneas. Na imanência de um mundo de ruínas, a alegoria
é, para o melancólico, a única linguagem possível, presente no Barroco como jogo
da melancolia (Trauerspiel). Memória e experiência surgem como instrumentos que
o artista, o filósofo, o historiador materialista dispõem para enfrentar a degeneração
do tempo histórico homogêneo e vazio. O historiador materialista, no estado
melancólico de profunda meditação, junta os cacos do que foi destruído e constrói
um mosaico de novas significações.
Palavras-chave: Melancolia. Memória. Alegoria. História. Experiência.
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Résumé
Ce travail cherche à révéler le caractère central de la mélancolie chez Wlater
Benjamin et l‟extension de la signification de cette catégorie. Le choix de textes
significatifs pour l‟analyse de cette question permet de révéler les contradictions de
la mélancolie, qui oscille entre l‟apathie, l‟inertie, l‟incertitude et approche critique
pour la prise de position face à histoire-catastrophe. Ces conflits Benjamin trouve
dans le langage allégorique du Baroque et dans l‟oeuvre des poètes de la modernité
capitaliste, comme le fondement de sa critique de la culture. Baudelaire et Proust
constituent de nouvelles formes linguistiques de représentation allégorique du
quotidien des sociétés contemporaines. Dans l‟immanence d‟un monde de ruines,
l‟allégorie est, pour le mélancolique, le seul langage possible, présent au Baroque
en tant que jeu de la mélancolie (Trauerspiel). Mémoire et expérience émergent
comme des instruments que l‟artiste, le philosophe, l‟historien matérialiste ont pour
faire face à la dégénérescence du temps historique homogène et vide. L‟historien
matérialiste, dans l‟état melancolique de méditation profonde, rassemble les
fragments de ce qui a eté détruit et construit une mosaïque de nouvelles
significations.
Mots- clés : Mélancolie; Mémoire; Allégorie; Histoire; Expérience
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Sumário
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................9 2 TRAUERSPIEL: REPRESENTAÇÃO DA IMANÊNCIA HISTÓRIA-NATUREZA..17
2.1 PRÍNCIPE, CONFLITO, HISTÓRIA E MELANCOLIA......................................20
2.2 O SOBERANO PARADIGMA DO MELANCÓLICO.........................................33
2.3 MELANCOLIA I DE DÜRER, UMA FIGURA ALEGÓRICA.............................47 3
3 MELANCOLIA E LINGUAGEM..........................................................................61
3.1 O NOME E A ESCRITA...................................................................................61
3.2 SÍMBOLO E ALEGORIA..................................................................................71
3.3 A ESCRITA E O OLHAR DO MELANCÓLICO................................................78
4 MELANCOLIA E A ALEGORIA DO ANJO DA HISTÓRIA...............................84
4.1 O POETA MELANCÓLICO..............................................................................84
4.2 A REMEMORAÇÃO NA CONTEMPLAÇÃO MELANCÓLICA........................104
4.3 ANGELUS NOVUS: A IMAGEM MELANCÓLICA DO ANJO DA ISTÓRIA...110 5 CONCLUSÃO...................................................................................................116 6 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................122
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Introdução
Em carta de 1923, Benjamin (1980, p. 94) conta o impacto que foi
contemplar os originais da obra de Dürer: “Só agora tenho uma ideia da força de
Dürer; sobretudo a Melancolia é obra de uma expressividade indizivelmente
profunda.” Não é o simples relato da visita a um museu, mas documenta a
centralidade da melancolia entre as categorias fundadoras de seu pensamento e, no
aspecto metodológico mais amplo, o significado da arte como meio para a
construção do pensamento filosófico. Neste ano de 1923 Benjamin está
desenvolvendo a pesquisa da tese de livre docência Origem do Drama Barroco
Alemão, obra que, se provocou sua desistência da carreira acadêmica, é em
compensação o ponto fundamental de convergência de todos os ensaios, ou melhor,
de todo seu pensamento, desde os primeiros escritos de 1910 até a obra póstuma
Sobre o Conceito da História e que, para a presente pesquisa sobre a melancolia, é
a principal fonte recorrente de apresentação e comentário do tema. Conceitos como
imanência, história- natureza, ruína e fragmento, soberania, perecimento, jogo,
metáfora e simbologia, presentes no drama barroco, deverão ser desenvolvidos em
primeiro lugar, nesta dissertação, como condição sine qua non, para a revelação do
tema melancolia em toda sua extensão alegórica. Na tese sobre o barroco, Benjamin
procura a verdade da história humana através da arte dramática dos autores
alemães do século XVII, especificamente de Opitz, Lohenstein, Gryphius, Hallmann
e Haugwits. A configuração do soberano deste teatro barroco passa a ser a
configuração da própria história, pois todas e as contradições, os conflitos e as
dúvidas da ambivalência essencial provocadora de fragmentações desta época, se
concentram na figura do príncipe. Tal ambivalência, já presente em Descartes como
dualidade corpo e alma, é o elemento barroco que, ao se exteriorizar, gera a
melancolia. Benjamin revela os aspectos essenciais conflitantes da ambivalência e
dualidade desta configuração, e da história portanto: a cabeça de duas faces –
alusão ao mito de Janus - a do tirano e a do mártir, ou seja, a condição de soberano
incumbido de decidir num estado de exceção, em momentos de perigo, e ao mesmo
tempo obrigado a carregar o fardo insuportável da consciência de que não passa de
um simples mortal. A face do príncipe como mártir corresponde à concepção da
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história como destino, isto é, da physis não entendida aqui como harmonia cósmica
da antiguidade clássica, mas como o orgânico que o tempo decompõe. O homem
barroco é obcecado por este destino do auto aniquilamento. A história se revela
então, segundo Benjamin (1985, p. 188), na sua “fácies hippocrática como paisagem
petrificada.”; equivale dizer: a história universal da civilização é destinada
inexoravelmente à catástrofe e, na encenação teatral do drama barroco
(Trauerspiel), é representada como paisagem fixa, eternizadas, confinadas que
estão no espaço da corte.
São esses conceitos que primeiro fundamentam a pesquisa do tema
melancolia e serão desenvolvidos no primeiro capítulo da dissertação. Com efeito,
na ótica da dramaturgia barroca, a melancolia corresponde diretamente ao
desenrolar da história da civilização, como expressa Benjamin (1984, p. 88): “O
soberano representa a história. Ele segura em suas mãos o acontecimento histórico,
como se fosse um cetro”. O filósofo completa (1984, p. 165): “O príncipe é o
paradigma do melancólico.”. O trabalho de pesquisa sobre o tema da melancolia
deve estar sempre atento ao procedimento metodológico da pesquisa filosófica de
Benjamin (1984, p. 50), para quem a verdade não é conhecimento a ser possuído e
definido, mas algo que se auto representa para ser contemplado. “Esse exercício (o
da lei da representação da verdade) impôs-se em todas as épocas que tiveram
consciência do Ser indefinível da verdade, e assumiu o aspecto de uma
propedêutica”. Com esse procedimento metodológico, interpreta-se a alegoria da
Melancolia I de Dürer, sem definições acabadas, mas a partir da multiplicidade de
significações alegóricas próprias do drama barroco.
Ao construir sua filosofia da história, Benjamin reinterpreta os sistemas
filosóficos da tradição e da própria modernidade e expõe tanto sua concepção de
tratado, quanto de método, assim como da relação idéia-conceito-fenômenos. É o
trabalho do crítico, não no sentido estrito de crítica literária ou de crítica de arte em
geral, mas no sentido destrutivo-construtivo mais amplo possível, capaz de revelar
aquilo que o discurso esconde como teor de verdade. A postura crítica com a qual
Benjamin (1984, p. 69s) se relaciona com os sistemas filosóficos fica bem clara
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quando expõe sua concepção de idéia: “No segundo (no caso da relação do
particular com a idéia), ele é incluído sob a ideia, e passa a ser o que não era –
totalidade. Nisso consiste sua redenção platônica.” Ou ainda: “A idéia é mônada –
nela reside, preestabelecida, a representação dos fenômenos, como sua
interpretação objetiva.”1 Nestas duas passagens de Origem do Drama Barroco
Alemão, Benjamin faz referência às filosofias de Platão e de Leibniz para construir
sua própria concepção de idéia que deixa de ser algo de eterno e abstrato para
adquirir vida quando os fenômenos as reconhecem e as circundam, sob o ponto de
vista da história portanto. É o sentido mais profundo de crítica: reinterpretar a
tradição filosófica pelo método do tratado que salva os fenômenos dissolvidos na
ideia. 2
Permitir a emergência da configuração da idéia através da forma do drama
barroco: nisso consiste o projeto de Benjamin em Origem do Drama Barroco
Alemão; idéia no exato sentido exposto em sua teoria do conhecimento, isto é,
enquanto totalidade da coexistência dos fenômenos mais extremos. A obra de arte,
sob a tenacidade do olhar do crítico, faz emergir a totalidade reveladora da história:
eis o sentido de origem (Ursprung) e eis em que consiste a categoria da origem.
Todos os ensaios de Benjamin giram em torno deste, pode-se dizer, programa de
interpretação histórico-filosófico: mostrar tudo aquilo que o artista possibilita ao
crítico revelar por meio da linguagem. É a linguagem que possibilita à Benjamin
resolver a dicotomia entre fenômeno e ideia. Para Platão, as ideias estão dispersas
em seu mundo próprio. Para Benjamin, elas estão na linguagem (Sprache).
Considerando a linguagem, ideias e fenômenos tem uma mútua dependência para
existirem. Mas como isso é possível, se cada um é de uma ordem diferente?
Benjamin responde: pela função linguística mediadora dos conceitos, que
1 ( Cf. Leibniz, G. W.,1979 ). Para Leibniz, a mônada é uma substância simples, não possui partes e é
indivisível. Esta simplicidade implica multiplicidade na qualidade. É uma estrutura compreendida como
multiplicidade na unidade. Cada mônada se relaciona com outras mônada exprimindo assim todo o universo. A
esta concepção de Leibniz, Benjamin atribuirá sua concepção da ideia: “ a ideia é mônada” quer dizer que cada
ideia contém a imagem do mundo. A compreensão do Barroco enquanto ideia, ou seja, intemporal portanto,
permite a compreensão da tragédia clássica, por exemplo. O particular é analisado monadologicamente para
revelar a ideia. Assim cada ideia contém a imagem abreviada do mundo. 2 Na primeira parte da obra sobre o drama barroco Questões introdutórias de crítica do conhecimento, Benjamin
expõe os fundamentos filosóficos do seu método de pesquisa. Estas questões não constam como objeto
específicos do presente trabalho, mas devem ser lembradas quando o entendimento de outras questões exigirem.
( Cf. Benjamin,1984, p.49ss ).
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desempenham o papel de intermediário entre fenômeno e ideia. Eles salvam os
fenômenos perante as ideias e as representam universalmente ante o particular.
Ao filósofo não interessa o comentário superficial e classificatório da obra de
arte em gêneros ou estilos, mas a descoberta dentro da própria forma artística da
configuração da idéia totalizadora. Os escritos de Benjamin, desde a tese sobre os
românticos de Iena e sobre o drama barroco até os ensaios sobre Baudelaire,
Proust, Kafka e o surrealismo, significam a escolha destas formas artísticas. Assim
Benjamin (1984, p. 69) focaliza o centro de sua crítica filosófica:
[...] enquanto ciência da origem, permite a emergência, a partir dos extremos mais distantes e dos aparentes excessos do processo de desenvolvimento, da configuração da idéia, enquanto todo caracterizado pela possibilidade da coexistência significativa desses contrastes.
O primeiro capítulo da presente pesquisa procura expor, a partir do trabalho
crítico de Benjamin sobre o drama barroco, e mais particularmente, da categoria da
origem, a amplitude de significados possíveis de melancolia na construção da
filosofia da história. Neste trabalho de persistência e tenacidade, Benjamin percorre
todo o rol de significações de melancolia, desde a Problemata de Aristóteles até as
análises de Panofsky e Saxl sobre a gravura de Dürer Melancolia I, passando pelos
estudos de Ficinus e Melanchthon em oposição às concepções religiosas
depreciativas do período medieval. Benjamin (1984, p. 173s) conclui: “Era preciso
dissociar a melancolia sublime, a melancolia illa heróica de Marsilius Ficinus e de
Melanchthon, da melancolia vulgar e destrutiva. Uma exata dialética do corpo e da
alma se combina com a magia astrológica: o enobrecimento da melancolia é o tema
central da obra De Vita Tríplice, de Marsilius Ficinus.” A problemática da presente
dissertação pode ser apresentada com clareza exatamente nestas questões: a
melancolia é um estado de alma que pode ainda estar impregnado do significado
vulgar e destrutivo de inércia, preguiça, depressão, um pecado capital enfim, ou,
para o crítico é o olhar penetrante voltado para a realidade do mundo, olhar da
profunda meditação que possibilita enxergar o âmago desta realidade, possibilitando
a elevação da alma? Benjamin defende esta segunda alternativa na obra sobre o
drama barroco, com convicção igual ao seu entusiasmo vendo os originais das
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gravuras de Dürer. É preciso porém entender esta alternativa na perspectiva do
dualismo dos extremos mais distantes, dos excessos e contrastes, ou seja, nos
fenômenos estranhos e desprezados, nas ações mais simplórias ou nas
manifestações de grande apelo em períodos de decadência.
A categoria da origem é fundamental para revelar o papel do crítico e,
juntamente com ele, o sentimento melancólico. Se origem não é gênese, “...não
designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser...”, e
se existe a forma artística que possibilita esta emergência, o processo desta
emergência se dá justamente pela ação do crítico, entendida como reflexão filosófica
e para isso concorre a melancolia, illa heróica, sublime, de que fala Ficinus. Sua
imagem mais perfeita é a figura alada de Dürer: ainda que totalmente inerte, tem os
olhos arregalados, em profunda meditação. A investigação crítica busca revelar a
experiência da origem, isto é, a verdade intemporal da história, levada pelo
sentimento melancólico de perda, por algo imemorialmente perdido e recalcado à
espera do esquecimento feliz da redenção.
Seria impossível desenvolver uma completa pesquisa sobre a categoria da
melancolia, sem o estudo dos textos de Benjamin sobre linguagem (Sprache) aos
quais é dedicado o segundo capítulo da dissertação. São principalmente os ensaios
Sobre a Linguagem em geral e Sobre a Linguagem do Homem, e A Tarefa do
Tradutor, onde são tratados conceitos como perda, rememoração (Eingedenken),
símbolo e alegoria. Benjamin desenvolve aqui a ideia da busca do original, no
sentido filosófico de origem, de uma busca, que se não é uma eterna frustração,
mostra a capacidade do homem de tentar recuperar a linguagem perdida por meio
da multiplicidade das línguas humanas. O sentimento de perda perpassa estes
textos, e a perda se exterioriza na figura postural do melancólico.
O terceiro capítulo é dedicado a textos fundamentais na pesquisa do tema:
Crônica Berlinense, Infância Berlinense, A Imagem de Proust, e principalmente
Sobre Alguns Temas em Baudelaire. Se fosse possível apresentar estes ensaios
como peças teatrais, dir-se-ia que os personagens, na representação dessa trama,
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seriam a criança, o sonhador, o flâneur, o colecionador, o narrador, enfim aqueles
que se afastam da história linear contínua, reta ou curva, da herança iluminista e
das aparências vividas por indivíduos sem rosto na metrópole, para viver o avesso, o
escondido, o onírico, os subterrâneos do sonhado. A propósito de Proust, diz
Benjamin (1985, p. 37): “Pois o importante, para o autor que rememora, não é o que
ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da
reminiscência.” Nesta constelação do lembrar, que não é o que se viveu, mas a vida
lembrada por quem a viveu – e aí reside a multiplicidade de significados da alegoria
– pode-se juntar o labirinto e o desvio que a ele conduz aqueles “personagens” do
sonho.
Benjamin expõe o método do desvio como o método do tratado filosófico no
inspirado primeiro parágrafo da Questões introdutórias de crítica do conhecimento,
onde distingue o tratado do sistema. Benjamin esclarece como é preciso percorrer
um longo caminho para que a verdade se represente e seja contemplada. Longo
caminho porque a verdade, enquanto idéia, jamais pode ser capturada como se
fosse o conjunto de conceitos da ciência e, nesse sentido, a verdade não pode ser
representada como se fosse a fachada de um edifício, pois ela está escondida no
pátio interno. Sobre o método diz Benjamin (1984, p. 50): “Método é o caminho
indireto, é desvio. A representação como desvio é portanto a característica
metodológica do tratado.” Salienta ainda que o desvio se caracteriza também pelo
eterno recomeço, como já fazia o tratado escolástico medieval, cuja doutrina era a
representação da verdade divina, sem nenhum objetivo de ensinar um conhecimento
de verdades apreendidas. O recomeço, que significa interrupção, alude à
contemplação da verdade que junta os fragmentos, os elementos mais extremos na
totalidade transcendente da verdade. Benjamin cria, nesta exposição do método do
desvio (Methode ist Umweg), uma imagem metafórica, também medieval: o mosaico.
A técnica da representação plástica do mosaico consiste em justapor pedacinhos de
cerâmica colorida de esmalte brilhante, cujo resultado final é um todo harmonioso de
determinada figura sagrada. Benjamin (1984, p. 51) conclui: “Tanto o mosaico como
a contemplação justapõem elementos isolados e heterogêneos, e nada manifesta
com mais força o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da
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verdade.” Conclusão importante deste método: cada fragmento do mosaico é
insubstituível, ou seja, os fenômenos são salvos na totalidade da ideia.
É preciso retornar sempre a Origem do Drama Barroco Alemão, o ponto
referencial do pensamento de Benjamin, como já foi mencionado, para entender os
textos posteriores, especificamente os ensaios sobre Proust, Kafka, Baudelaire e os
da Infância e da Crônica. Sem a compreensão do método do desvio, seria difícil
acompanhar os caminhos percorridos pelo crítico nestes ensaios centrados no
rememorar a vida por quem a viveu. Ora, aqueles “personagens”, ou seja o
sonhador Proust, o narrador Kafka, o “biógrafo” Benjamin, criança dos criativos jogos
da mimese, não perseguem a linha reta em direção ao vivido, mas se perdem em
inumeráveis becos da rememoração, como Baudelaire melancólico que lamenta a
Paris perdida nas ruelas e cantos esquecidos, distantes das avenidas retas e
espaçosas da opulenta metrópole do século XIX. Assim como em Origem do Drama
Barroco Alemão, é o alegorista que apresenta, na cena teatral, toda a ruína e
catástrofe da corte barroca, assim também o historiador atualiza a história através
da montagem do lixo jogado nas beiradas da metrópole. Este método de Benjamin
se distancia das pretensões científicas da explicação definitiva, do fechamento cabal
da pesquisa de soluções universalmente aceitas, para expor uma história via
imagens, aberta a infinitas atualizações.
Entregar-se ao sonho, perambular pela cidade com o olhar dirigido apenas
para o que restou do passado, lembrar-se da infância naquilo em que ela acreditava
e não se concretizou: eis o presente, pleno de tensões daquele que rememora, eis a
única possibilidade de redenção messiânica do futuro. Aqui fica claro o caráter
melancólico do método do desvio: o crítico, qual Ulisses que não se entrega ao
canto sedutor das sereias do progresso e nem desfruta das delícias enganosas de
toda espécie de mercadoria. Ele tece melancolicamente sua trama das lembranças
de onde emergirá a configuração da idéia caracterizada pela coexistência dos
elementos mais extremos.
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Mas, afinal das contas, por que o tédio, o sentimento de perda e desolação,
se cada vez mais o homem dispõe de conhecimento de si mesmo e do universo, se
ele dispõe de uma infinidade de meios da técnica que lhe proporciona o bem estar?
Por que a eterna busca por algo que o satisfaça, sem nunca atingir a satisfação? A
resposta para estas questões, Benjamin desvenda através da arte, primeiramente no
drama barroco, na história-natureza de final catastrófico, onde melancolia significa o
mergulho nas profundezas das coisas e de si mesmo, como meio de um
conhecimento às avessas. A saída possível tem na poesia de Baudelaire a pós-
história deste drama, no spleen, o mal da modernidade estampado na melancolia do
habitante da metrópole. No ensaio O narrador, Benjamin (1985, p. 204) afirma: “o
tédio é o pássaro de sonho que choca os ovos da experiência”, uma outra resposta
pode estar no sonho que apazigua e instiga. Assim a figura alada da Melancolia I de
Dürer, presa ao chão por conta do peso exagerado de seu corpo e de sua mente e
inerte diante dos objetos inúteis das conquistas humanas da técnica e da ciência, dá
lugar ao anjo da história de Klee, suspenso no ar e castigado pela ventania do
progresso que o arrasta para o futuro, olhos fixos melancolicamente sobre a
civilização e suas ruínas.
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Capítulo I Trauerspiel: representação da imanência história-natureza
Seu conteúdo, seu objeto mais autêntico é a própria vida histórica, como aquela época a concebia. Nisso ele se distingue da tragédia, cujo objeto não é a história, mas o mito, e na qual a estatura trágica das dramatis personae não resulta da condição atual, radicada na monarquia absoluta, e sim de uma condição pré-histórica, radicada no heroísmo passado. W. BENJAMIN, ORIGEM DO DRAMA BARROCO ALEMÃO
Na reflexão histórico-filosófica sobre o drama barroco alemão, Benjamin faz
a distinção entre drama barroco e tragédia, depois dos esclarecimentos expostos
nas questões introdutórias de crítica do conhecimento. O cerne desta distinção é o
objeto, o conteúdo de uma e de outra forma artística: o drama barroco trata da vida
histórica vivida naquele presente de poder absoluto do soberano, ou seja, o drama
está colado à realidade vivida, enquanto a tragédia diz respeito ao heroísmo do
passado mítico. Benjamin (1984, p. 86) esclarece essa especificidade do drama
citando a poética de Opitz: “A tragédia é igual em majestade à poesia heróica, com a
diferença de que ela raramente tolera a introdução de personagens de baixa
extração e de episódios medíocres: seus temas são a vontade dos reis, assassínios,
desesperos, infanticídios e parricídios, incêndios, incestos, guerras e insurreições,
lamentações, gemidos e outros semelhantes.” Se para a crítica moderna o drama
barroco não passaria de um espólio da poesia heróica, isto é, da tragédia clássica,
pois é assim que ela entende a afirmação de Opitz como enumeração de temas,
para Benjamin, ao contrário, trata-se de seu núcleo, de seu objeto mais significativo.
A luta desenfreada pelo poder, conteúdo e objeto próprios do drama barroco
alemão, foi o que determinou a escolha do crítico Benjamin por esta forma de arte,
pois vislumbrou nela a riqueza de um jogo complexo de conflitos entre fenômenos
extremos como fonte de reflexão filosófica sobre a história, ou concluindo de uma
forma mais abrangente, sobre a condição humana.3 Se a cena teatral do drama
barroco se espelhou na cena histórica naquilo que se refere à majestade da vida
3 É importante enfatizar que a tradução de Trauerspiel da obra original de Benjamin é drama barroco. Porém esta
palavra contém, em seu significado, dois fatores antitéticos: luto e jogo. Luto por uma perda irrecuperável e jogo
como forma de suportar a radical perda. Esses dois extremos estão no mesmo espaço, sem que isso possa
significar uma síntese harmoniosa, pelo contrário, é o conflito característico da mentalidade melancólica barroca.
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principesca, ao contrário do teatro pastoral4 e da comédia destinada a camponeses
e burgueses respectivamente, ela evidencia o lado grotesco da luta política com todo
o rol de catástrofe descrito na poética de Opitz. Os autores se debruçavam
exaustivamente sobre os relatos historiográficos, matéria prima de sua criação
dramática.
Deixando de lado critérios estéticos ou estilísticos utilizados pelos críticos
que nada viram de significativo na forma do drama barroco, como busca Benjamin
(1984, p. 204) “despertar a beleza adormecida na obra”, a riqueza escondida para
além da aparência ilusória, mais exatamente, da trama grotesca que envolve a
“majestosa” figura do soberano. Sua pesquisa sobre a relação da teoria do drama
alemão seiscentista com a Poética aristotélica, conclui, citando vários teóricos do
drama como Gryphius, Lessing, Trissino e Birken, pelas diferenças estruturais entre
drama e tragédia: primeiramente que o drama é influenciado pelo classicismo
renascentista holandês e pelo teatro jesuítico. A partir desta característica do teatro
barroco, ressalta a importância da unidade de ação na valoração da unidade de
tempo, dispensando a unidade de lugar. Quanto à influência do teatro jesuítico, fica
clara a discrepância relativa aos efeitos da tragédia de que fala Aristóteles: o terror e
a piedade provocados no espectador pela morte do vilão e pela morte do herói
respectivamente são substituídos, primeiro pelo objetivo de glorificar a Deus, e
segundo por fomentar a edificação dos semelhantes pelo fortalecimento da virtude
do domínio sobre as paixões. Benjamin descarta assim qualquer interpretação do
drama barroco baseada em psicologismos subjetivistas. Se a crítica considerou
depreciativamente o drama barroco comparando-o com a tragédia através do “Rei
heróico”, ficou claro que esta configuração é inteiramente outra.5 Na distinção entre
4 Cf. Panofsky, E., Significado nas artes visuais, p.377. O teatro pastoral apresenta a natureza no palco como
refúgio e o paraíso intemporal, bem diversa da natureza-destino das catástrofes. É interessante conferir a análise
de Panofsky sobre a obra “Et in arcadia ego”da pintura pastoral de Poussin. Nesta análise, Panofsky revela os
traços barrocos da arte pastoral ao identificar na palavra Ego a figura da morte. 5( Cf. Aristóteles, 2005, p. 33). Aristóteles afirma: “ Às vezes, os sentimentos de temor e pena procedem do
espetáculo; às vezes, também, do próprio arranjo das ações, como é preferível e próprio de melhor poeta. É
mister, com efeito, arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrências
sinta arrepios e compaixão em conseqüência dos fatos; é o que experimentaria quem ouvisse a estória de Édipo.
Obter esse efeito por meio do espetáculo é menos artístico e requer apenas recursos técnicos.” Segundo
Aristóteles, a tragédia provoca a piedade e o terror. Os críticos modernos identificaram tragédia e drama,
entendendo que ambos provocam o mesmo sentimento de luto. É interpretação psicologista errônea, pois o
drama barroco objetiva provocar no espectador uma emoção de luto e o luto não consta na Poética de Aristóteles.
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o mundo clássico e o Barroco, Benjamin (1984, p. 102s) compara as paisagens
representadas na pintura renascentista e na pintura barroca:
Pois o clima espiritual dominante, por maior que fosse sua tendência a acentuar os momentos de êxtase, via neles menos uma transfiguração do mundo, que um céu nublado se estendendo sobre a superfície do mundo. Os pintores da Renascença sabiam manter o céu em sua altitude inacessível, ao passo que nos quadros barrocos a nuvem se move, de forma sombria ou radiosa, em direção à terra. Contrastada com o Barroco, a Renascença não aparece como uma era incrédula de paganismo, mas como uma era profana de liberdade religiosa, enquanto o espírito hierárquico da Idade Média, através da Contra-Reforma, impunha-se num mundo incapaz de aceder, de forma imediata, a um plano transcendente.
A questão da espiritualidade presente no drama barroco alemão decorre de
seu parentesco com o drama religioso medieval, entendido não tanto como cópia
pura e simples, porém como inclusão de elementos do pensamento medieval que o
distingue fundamentalmente do classicismo renascentista. O grandioso espetáculo
medieval do mistério, no que este diz respeito à salvação, coincidia com a crônica da
história universal, cuja consumação era o Juízo Final, mais próximo da “tragédia”
que do “mistério”. Essa é a fonte do teatro barroco. A secularização
(Sekularisierung) do teatro dos mistérios, ou seja, a representação das “ações
principais e de Estado”, desencadeia o desespero radical, pois nem a moralidade do
herói-mártir nem a justiça do tirano louco são suficientes para aliviar a tensão
decorrente da história da salvação. Daí o artifício bem característico do barroco de
dar um acabamento repleto de ornamentos à estrutura da ação dramática. Cabe ao
crítico revelar a tensão que se esconde sob as camadas do ornamento.
Secularização não significa aqui que a espiritualidade desapareceu: o espírito
religioso permaneceu dominando tanto no âmbito da Reforma, quanto da Contra-
Reforma e, ao mesmo tempo a vontade da época impôs uma solução profana. Nisso
consiste o conflito: nem se submeter nem se revoltar. O homem barroco se viu
preso, sem poder se confrontar com a ortodoxia cristã e ter de mudar totalmente a
Não se trata de sentimentos da psicologia empírica, mas da descrição do luto. Esta dramaturgia pretende a
satisfação do luto, ou seja, é feita para enlutados. São peças para serem vistas, a ostentação lhes é inerente. É a
herança dos trionfi, procissões dramatizadas da Renascença. Pode-se entender assim o caráter itinerante dos
espetáculos teatrais do barroco: flexível, virtual, dialético, esse teatro não é o topos cósmico- e harmonioso-
grego. Em palco móvel, ele representa a história e peregrina como ela. A tragédia, porém, se desenvolve na
fixidez de um tribunal e no fato único da revisão de um processo ratificada pela comunidade. No drama, a
situação de um mundo conturbado é ostensivamente apresentada ao enlutado espectador. O drama é ostentação e
luto, ou seja, história como dialética dilacerada.
20
própria concepção de vida, sem poder expor às claras essa mudança revolucionária.
Assim a espiritualidade se transforma em imanência, ou melhor, a transcendência se
transfigura, como diz Benjamin (1984, p. 120): “...céu nublado se estendendo sobre
a superfície do mundo”.
Como tantas vezes, Benjamin recorre às imagens plásticas da arte, para expor
este conceito de imanência história-natureza, comparando a representação da
paisagem renascentista com a barroca. O céu da representação renascentista é
límpido e meridiano expressando o inatingível de uma religiosidade livre convivendo
com o profano, enquanto que no barroco este céu paira com pesadas e sombrias
nuvens sobre o mundo, numa clara representação da sensação de ser impossível
aceder a um plano transcendental. Nessa imanência radical, o drama barroco
abandona de vez qualquer idéia de escatologia que possa ir além dos mistérios,
centralizando toda a ação na figura catastrófica e apoteótica do príncipe.
Apresentando a imanência inerente ao drama barroco, na sua tensão essencial
entre a urgência de uma solução profana e a hegemônica ortodoxia cristã, Benjamin
revela como a era barroca compreendia a história. Essa imanência é que engendra
a configuração do príncipe como paradigma do melancólico.
1.1. Príncipe, conflito, história e melancolia
E há quem queira reinar vendo que há de despertar no negro sonho da morte?
Calderón de la Barca, A vida é sonho
Diferentemente das teorias modernas sobre o absolutismo elaboradas desde
Hobbes até Locke, a teoria benjaminiana da soberania barroca é caracterizada pelo
conflito, pela tensão e pela melancolia. O soberano barroco, cujo ideal é a
Restauração, ou seja, a garantia de uma sociedade próspera em todos os campos
da atividade humana, das artes às ciências e às técnicas militares, é marcado pela
tensão conflituosa entre a estabilidade social e a anarquia provocada por toda sorte
de desordem e subversão. A preocupação fundamental do príncipe se volta para a
21
manutenção da ordem como condição essencial da produção artística, científica e
técnica. A catástrofe passa a ser a antítese da estabilidade. É exatamente aí que se
fundamenta, segundo Benjamin (1984, p. 89), a teoria do estado de exceção. “Quem
reina já está desde o início destinado a exercer poderes ditatoriais, num estado de
exceção, quando este é provocado por guerras, revoltas ou outras catástrofes.”
É importante deixar claro entretanto que os propósitos que fundamentam a
ação política do príncipe partem do pensamento teológico-jurídico, expresso no
desejo de transcendência. Este pensamento resulta da contestação de uma teoria
teocrática medieval em favor do poder supremo do soberano, culminando no estado
de exceção como o direito natural do século XVII. Para se entender o estado
conflituoso do homem barroco não se deve esquecer o espírito religioso do
“cristianismo incontestado” dominante neste século, que também é completamente
diverso do racionalismo teológico iluminista do século XVIII. O homem que habita o
século XVII se sente como parte do mundo perecível, submetido às leis do tempo
que tudo corrói e é por isso que ele se apega às coisas terrenas para exaltá-las. Se
não há escatologia no Barroco e ninguém escapa da imanência, existe uma
permanente tensão entre o mundo e a transcendência, bem evidente nas
representações pictóricas de Rubens, nos temas de glorificação, onde se misturam
personagens divinos e terrestres. Assim o príncipe aparece divinizado em seu poder
absoluto.
Benjamin expõe claramente a configuração do soberano – e, não se deve
esquecer, ele representa a história – como conflituosa, e portanto melancólica, ao
apresentá-lo caracterizado pela dualidade do inteiramente bom e do inteiramente
mau. O Barroco só concebe o soberano ou como inteiramente bom ou como
inteiramente mau. São suas faces de Janus. Aqui se esclarece, através deste
exemplo, a afirmação benjaminiana de que a ideia é caracterizada pela coexistência
significativa dos contrastes, tornando claro o quanto este método se distancia do
racionalismo iluminista. Longe do princípio da não-contradição dos antigos, a
condição da soberania do monarca é marcada pelas manifestações paradoxais, o
que equivale dizer: conflituosas e melancólicas.
22
A representação do príncipe como tirano é uma característica obrigatória
nos palcos barrocos: era vista como condição necessária da soberania e por isso
admirada, mesmo quando os poderes ditatoriais estavam envolvidos em toda sorte
de crimes, como fratricídios, incestos ou infidelidade. Benjamin (1984, p. 93)se
refere a um texto de Gryphius sobre Herodes para mostrar a que extremo chega a
submissão do homem barroco à tirania do soberano:
Os trabalhos de juventude de Griphius, em latim – as epopéias de Herodes -, mostram com clareza o que fascinava os homens do seu tempo: o soberano do século XVII, o mais alto dos seres criados, irrompendo no delírio como um vulcão, destruindo-se e destruindo toda a sua corte.
Assim se completa a configuração do príncipe na complementaridade, ou
nas fronteiras, do drama do tirano e o terror e do drama do mártir e a piedade, como
conseqüência de dois polos extremos: a dignidade para governar que Deus lhe
outorgou e a pequenez de sua condição de simples mortal. Esse delírio do
soberano simboliza a história, cujo desfecho inexorável é a catástrofe. Qual é o
elemento barroco deste teatro? - No contraste entre dignidade que o poder exige e
miserável degradação. Das contradições da configuração barroca do príncipe que
representa a história – e a pré-história da modernidade –, vestido de púrpura, com
cetro e coroa, praticando os atos mais degenerados, surgem a tristeza, o delírio, a
loucura e, enfim, a melancolia.
Este cenário de dispersão e destruição que o drama barroco representa está
estampado na Melancolia I de Dürer, onde a figura alada dirige o olhar para um
ponto distante, perdido entre o amontoado de objetos sem uso, que seriam úteis
para a ciência e a técnica. É a melancolia que surge da figura principal do drama:
aquele que garante o bem estar da comunidade mas reina absoluto no estado de
exceção, é bom e piedoso e ao mesmo tempo mau e tirano. Que outro olhar seria
possível senão esse da descrença e da decepção? O que resta ao príncipe senão a
sensação do vazio que nada vislumbra além da catástrofe? - No mais profundo
23
tédio, envolvido que está no total perecimento das coisas terrenas, ele se vê diante
da missão divina para governar.6
Benjamin observa ainda que, segundo a doutrina da soberania caracterizada
pela distância que existe entre o poder e a efetiva capacidade de governar do
príncipe, surge a indecisão do tirano. Para demonstrar esse traço do teatro barroco,
faz a comparação com a pintura maneirista de El Greco, onde as figuras humanas
alongadas são representadas com as cabeças pequenas e através de cores fortes.
Assim é o tirano: age por impulsos e não pela ponderada reflexão; suas ordens
nunca são dadas de maneira categórica e definitiva. Titubeante, o tirano vacila, sem
saber o que deve ou não deve ser executado e sua hesitação parece transparecer o
próprio sentimento de ser arbitrário.
Se o tirano tem um fim catastrófico, disso não deriva a satisfação geral dos
súditos, como resultado de um julgamento moralizante; pelo contrário, o drama do
tirano se transforma em drama de martírio. O déspota, na sua função de governar a
humanidade histórica, tem a adesão incontestada dos súditos e sua destruição e
morte significa um julgamento que recai sobre eles também. O monarca que sofre, é
generoso a ponto de morrer pela humanidade: essa é a tônica do teatro barroco
como drama de martírio. Aqui se revela seu estoicismo, o pensamento mais anti-
histórico da filosofia. Benjamin ressalta que não existe uma divisão delimitando
claramente drama de tirano e drama de martírio: os dois se mesclam. Esclarece
ainda que o martírio se dá neste mundo, ou seja, nas lutas em defesa da coroa ou
por questões religiosas. O martírio em si não tem nenhum sentido religioso.
Benjamin (1984, p. 97) aponta os objetivos das ações do soberano:
A função do tirano é a restauração da ordem, durante o estado de exceção: uma ditadura cuja vocação utópica será sempre a de substituir as incertezas
6 Em 1917, Freud publica o estudo Luto e melancolia, termos que corresponderiam ao Trauer e Melancolie de
Benjamin. Para Freud, o luto é reação natural à perda de um ente querido, uma pessoa ou algo que o represente,
como um país, um ideal, etc. Se o luto desaparece com o tempo, a melancolia é algo mais radical: é um estado
patológico, onde a pessoa se sente culpada pela perda e, sem a auto-estima, se mostra como alguém desprezível.
Com a perda da libido, o melancólico tem a aparência de apático e preguiçoso. Evidentemente que as conclusões
de Freud não se aplicam diretamente à categoria de melancolia de Benjamin. Essa apatia e inatividade de que
fala Freud pode corresponder, em Benjamin, à acedia que leva à empatia com os vencedores. ( Cf. Freud, S.
Luto e melancolia. Novos estudos Cebrap, 1992, p.128ss ).
24
da história pelas leis de ferro da natureza. Mas a técnica estóica também dá forças para a estabilização interna equivalente: o controle das emoções num estado de exceção dentro da alma.
A crítica do drama barroco alemão que perdurou por um século e meio, não
levou em consideração a complementaridade tirano-mártir e mártir-tirano, reduzindo-
o simplesmente a uma tragédia de martírio. Esse julgamento partia
fundamentalmente da análise dos efeitos psicológicos sobre os espectadores,
concluindo que o que faltava neste teatro era o conflito e culpabilidade trágica
capazes de provocar o suspense. O mérito de Benjamin está no fato de ter lançado
um olhar totalmente diverso sobre o Barroco através de uma teoria do conhecimento
e de um método próprios, bem distintos da tradição filosófica. Ele deixa de lado a
comparação com a teoria da poética aristotélica, a rejeição pelos enredos
grosseiros, para descobrir nesta forma a emergência da configuração da ideia
caracterizada pela coexistência dos extremos. Nisto consiste a história filosófica: o
príncipe é tirano e é mártir. Reduzí-lo simplesmente a mártir seria ignorar toda a
dinâmica do drama que evidencia o caráter tirânico do príncipe. Este caráter é
representado no palco de forma natural sem a preocupação moralizante de mostrar
o lado perverso das práticas despóticas, ou seja, já faz parte das incumbências
políticas do soberano. O enredo deste drama se desenvolve sob luz intensa e cores
fortes, sem a mínima necessidade de explicar as motivações de seus atos como
crimes infames.
Para tal avaliação crítica que leva em consideração a necessidade do efeito
psicológico do suspense nos espectadores, falta ao drama de martírio o conflito
interno próprio da culpabilidade do mártir. Realmente, no drama barroco não existe
esta necessidade característica da tragédia clássica: os personagens não tem a
mínima preocupação de expor os motivos de suas ações. No enredo do drama não
há lugar para explicações dos atos tirânicos.
Benjamin enfoca as várias relações que definem historicamente o drama
barroco a fim de esclarecer sua especificidade, o que significa refutar as críticas que
perduraram por séculos. Esta contextualização culmina com a abordagem da
categoria da imanência, essencial para a compreensão da configuração central do
25
drama: o príncipe melancólico. A primeira destas relações é o parentesco do drama
barroco com o drama religioso da Idade Média e deve ser entendido sob o ponto de
vista do mundo espiritual medieval: a concepção da história da humanidade como
tragédia. Com efeito, os cronistas medievais viam a história universal como uma
grande tragédia e o apocalipse como um fim trágico. Crônica como espetáculo
teatral significa: a historiografia é do grande drama. Nisto consiste a forma do
barroco. Benjamin, entretanto, ressalta um dos cruzamentos dessa relação: se na
Idade Média se tratava da história universal e sua redenção, no século XVII não
havia a preocupação com o tema da salvação. Dividido em múltiplos reinos, o
mundo barroco se volta para o drama cristão secularizado, estigmatizado por um
desespero radical, sem apocalipse, sem escatologia, sem perspectiva de redenção.
Como ponto fundamental da caracterização do drama barroco, Benjamin
introduz o conceito de imanência dentro da “hegemonia cristã incontestada”, do
Deus absconso, que o homem barroco desconhece, uma vez que ignora a
providencia divina. A imanência significa afastar-se do divino, entregar-se ao destino
e, ao mesmo tempo ser observado por um Deus escondido. Secularizar, profanar o
mundo espiritual equivale dizer: entregar-se ao desespero de um conflito insolúvel.
Não existe explicação possível para as contradições da configuração do drama: nem
a aceitação estóica do martírio nem a exigência da justiça como causa da loucura do
tirano. A verdadeira causa das forças conflitantes do barroco está escondida sob a
superfície saturada de ricos ornamentos. Eles escondem o núcleo das tensões
dramáticas: ter de encontrar uma solução profana sem abdicar das convicções
espirituais do objetivo da salvação presente no drama medieval dos mistérios.
Na contextualização do barroco, faz-se necessário considerar três momentos
históricos e suas características próprias: a Renascença, a Reforma e a Contra-
Reforma. O Barroco passa a ter o mesmo aspecto unificado na Europa a partir da
opção da Contra-Reforma pela secularização do drama dos mistérios. Essa
definição pelo profano, a partir das exigências doutrinais cristãs, se distingue do
pensamento renascentista que opta pelo profano com total liberdade religiosa.
Como conciliar a solução mundana com a ortodoxia religiosa? Parece um conflito
26
insolúvel, de uma imanência radical, onde a transcendência não passa de um céu
ameaçador pairando sobre o mundo.
É sobre esta postura imanentista que Benjamin (1984, p. 103) apresenta a
concepção da filosofia da história do Barroco:
Sua filosofia da história tinha como ideal o apogeu, uma idade de ouro da paz e das artes, instaurada e garantida in aeternum pela espada da Igreja e estranha a qualquer dimensão apocalíptica. A influência desta concepção se estende à dramaturgia sobrevivente.
É certo que Benjamin não se refere somente ao espírito da Contra-Reforma ou,
principalmente, ao empreendimento jesuítico de impor a nova era de prosperidade,
através do poder político da Igreja, mas ao espírito barroco europeu como um todo.
A filosofia da história da Restauração domina assim o drama profano que se
distanciou dos temas da redenção do drama dos mistérios, no afã da evangelização.
Dentro deste cenário religioso, político e filosófico europeu, o drama barroco
alemão se restringe aos enredos de total imanência, cujos temas giram em torno da
configuração principesca, em tudo o que nela existe de extravagante, exagerado e
até grotesco. Necessidade de uma solução profana para o drama do mundo, sem
perspectiva escatológica: é nesta confluência paradoxal de conflitos que o drama
barroco alemão volta os olhos para a figuração do príncipe, poço de conflitos,
descrevendo-o como representação da própria história, e por isso mesmo, como
paradigma do melancólico. O drama profano, influenciado pela filosofia da história
da Restauração, faz da realidade mundana da corte seu principal enredo, onde o
príncipe encarna a melancólica condição humana. 7
A pintura barroca, de Rembrandt a Velázquez, testemunha esta visão da
condição do ser humano, quando representa figuras envelhecidas, em cujos corpos
7 Cf. Maravall, J.A., p. 197. Maravall, em sua pesquisa sobre o barroco espanhol, ressalta os conceitos
fundamentais do espírito imanentista característico do século XVII, mostrando como, para o homem barroco,
tudo passa pelo mundo da experiência empírica, mesmo quando este homem fala de transcendência. É
importante esclarecer que imanência não significa negação ou redução do campo da transcendência, que, pelo
contrário, expande-se, sempre tratados com os meios do domínio da experiência. O homem barroco é um homem
preso à estrutura mundana da vida.
27
está evidente a passagem do tempo. É a própria experiência individual do artista
diante de um objeto ou de uma pessoa, ou seja, diante do mundo concreto e longe
de um objetivo universalizante. Os barrocos entendem a ciência como algo
fantasmagórico que consiste na contradição da evidência dos fatos singulares que
se repetem e o que se desprende deste singular como algo generalizado.
A primeira e mais importante consequência decorrente desta mentalidade é a
ideia de movimento, como princípio fundamental do mundo e principalmente do
homem. Tal relevância de um mundo cambiante em constante transformação se
delineia a partir da crise social do final do período renascentista, cuja postura
maneirista já contém muitos elementos barrocos; basta lembrar Dürer e El Greco.
Sem as categorias de movimento e mudança, é impossível compreender o sentido
do barroco. Nisto consiste a cultura barroca: expressar a radical condição de
transitoriedade de um mundo em crise, através da força de uma linguagem dinâmica
e transitiva. Tudo é movimento, tudo se precipita no drama da realidade em trânsito.
Para o homem barroco, o peregrino do ser, mutante e movediço, o perene, o
imutável ou o perpétuo são vocábulos que não lhe dizem nada.
A mudança, tema do barroco por excelência, é lei da natureza, destino do qual
não escapa nem o homem nem o universo. O que hoje é um edifício imponente,
amanhã se converterá em ruínas. Ou ainda: o que aparece como novo já traz em si
a própria destruição. O barroco significou uma ameaça à tradição do pensamento
aristotélico-escolástico, firmemente fundado na imutabilidade da ordem ontológica e
no princípio da identidade. O homem barroco exterioriza em imagens o sentimento
de viver em um mundo que se desloca, se levanta e se amontoa, se altera entre a
restauração e a caducidade. São recorrentes na pintura barroca as representações
de objetos de mudança e fragilidade como as nuvens, a água, o arco-íris,
sinalizando o confronto dramático com aquilo que parece firme. Os moralistas
aproveitavam-se desse sentimento de insegurança para alertar sobre as incertezas
de um fim dos tempos, principalmente para a incipiente mentalidade burguesa.
Benjamin (1984, p. 77) observa o fundamento desta tendência barroca: “Como o
28
expressionismo, o Barroco é menos a era de um fazer artístico, que de um querer
artístico. É o que sempre ocorre nas chamadas épocas de decadência.”
Benjamin compreende o drama barroco como forma que, independente de
cada obra individual, determina seu valor próprio, sem necessidade de recorrer às
comparações com a tragédia clássica. Esta forma, e somente ela, é capaz da
vontade artística, pois ela nasce dentro de um cenário de decadência e todas as
obras individuais, não importa se artisticamente pobres ou perfeitas, têm o mesmo
valor enquanto ideia. Tudo o que se poderia falar do estilo linguístico, grotesco ou
grosseiro, só pode ser feito a partir do momento histórico decadente, pois o drama
barroco está colado neste momento histórico e, como ele tem um estilo lingüístico
violento. Ele deixa claro que o drama barroco alemão tem essa especificidade: de
uma forma autônoma e, enquanto ideia, está inserido em um tempo histórico.
Benjamin (1984, p. 86) afirma que o drama tem relevância enquanto ideia
caracterizada pela coexistência significativa de todas as obras individuais: Seu
conteúdo, seu objeto mais autêntico, é a própria vida histórica, como aquela época a
concebia.”
O príncipe, figuração central do drama, é o representante da história e se
mostra com todos os vícios e as virtudes das ações políticas. Enfim, o objeto do
drama é a história e não o heroísmo mítico. Aqui o sentido de filosofia da história
compreende a tensão entre história e natureza e entre imanência e transcendência.
Benjamin nota que existe uma relação de proximidade entre os enredos do drama e
o processo histórico, ou seja, o homem barroco via nas encenações sua própria
história.
É o tempo moderno da ciência e do conhecimento acumulado nas bibliotecas.
Um jogo conflitante de elementos complementares se instala entre a caducidade e a
renovação: transformar em novo o que já é caduco. Os mitos de Circe e de Proteu,
figuras multiformes, são temas que atraem o mutável e variável homem barroco.
Assim se forma a mentalidade moderna a partir da confusa postura barroca fundada
na imanência, isto é, na prisão ao mundo empírico mutante, e na hegemonia cristã
entendida como o Deus absconso.
29
Além da ideia de movimento que engendrou tantos conceitos barrocos, há a
obsessão pelo tempo, principalmente na tentativa de medí-lo, como forma de
dominá-lo. A temporalidade é elemento constitutivo da realidade, visto que esta
realidade é um processo. O tempo faz e refaz, decompõe e muda. O tempo,
entendido como o passar, o mover-se é o único que permanece: nele as coisas se
fazem e desaparecem. O homem é fluidez contínua na realidade que passa. O que
permanece é o ser de sua fluidez, isto é, o tempo. A obsessão pelo tempo é um
tema presente no drama barroco. Para o homem barroco interessa revelar a
estrutura que fundamenta o fluir: sua fugacidade, ou seja, a interminável substituição
das coisas que vão se transformando em ruínas. Benjamin (1984, p. 199) mostra
que a história-natureza é o verdadeiro enredo deste teatro: “Quando, com o drama
barroco, a história penetra no palco, ela o faz enquanto escrita. A palavra história
está gravada, com os caracteres da transitoriedade, no rosto da natureza”.
Benjamin trata o tema da ruína no drama barroco como a fisionomia alegórica
da natureza-história: o conceito de história está vinculado a tudo o que a natureza
tem de transitório. A ruína é o cenário deste drama, onde história é um processo de
declínio. A esta realidade das coisas como ruína, a mentalidade barroca desenvolve
o pensamento através da alegoria de escombros de uma antiguidade clássica. Note-
se que a representação renascentista do nascimento de Cristo – impregnada do
idealismo clássico – tinha como cenário as ruínas como reminiscência da
antiguidade, diferente da representação medieval cujo cenário era a manjedoura. Na
modernidade barroca, conclui Benjamin (1984, p. 200), este cenário representa a
transitoriedade do tempo. “O que jaz em ruínas, o fragmento significativo, o
estilhaço: essa é a matéria mais nobre da criação barroca.” O barroco constrói seu
edifício a partir do que restou de um passado clássico: o novo é a mistura desses
elementos remanescentes. Não há transfiguração da natureza como na era
renascentista. O drama trabalha com as coisas decadentes da história. Assim, ao
tratar do problema da fragmentação da linguagem, Benjamin se refere a uma
passagem teatral de Calderón em que Mariamne, mulher de Herodes, encontra
fragmentos de uma carta cujo conteúdo era a ordem de matar a esposa, caso ele
30
morresse. Tal sentença de morte iria salvar a honra manchada pela suposta traição
dela. Nos fragmentos ela lê: morte, honra, Mariamne, secretamente, dignidade,
ordena, ambição, morro. Em cada fragmento, em cada palavra está uma expressão
muito intensa. Desta fragmentação, destes resíduos é que surge a alegoria barroca,
como esclarece Benjamin (1984, p. 201):
Para eles, a natureza é o eternamente efêmero, e só nesse efêmero o olhar saturnino daquelas gerações reconhecia a história. Nos monumentos dessas gerações, as ruínas, estão alojados os animais de Saturno, segundo Agrippa Von Nettesheim. Com o declínio, e somente com ele, o acontecimento histórico diminui e entra no teatro. A quintessência dessas coisas decadentes é o oposto extremo do conceito renascentista da natureza transfigurada.
Natureza, história e o olhar melancólico: estes são os elementos barrocos. O
olhar melancólico entende a história como o eternamente efêmero, transitório, onde
um majestoso passado jaz em ruínas, constituindo a matéria prima para a arte
dramática, ou melhor, para a arte como um todo. Benjamin, no texto póstumo Sobre
o conceito da história, se refere ao melancólico anjo da história que volta o olhar
para o passado e só consegue ver catástrofes que acumulam montanhas de ruínas.
Aqui é o progresso que está em relação direta com a natureza transfigurada
renascentista e o extremo oposto de ambos não passa de ruínas.
Introduz-se aqui o conceito de fortuna, a partir da noção de tempo como o
passar, o alterar, o mover-se. Fortuna, que para os antigos era o destino e para os
medievais a desordem permitida pela providência divina, significa para o homem
barroco a marcha das coisas deste mundo, fora do esquema racional: um acaso que
o homem sagaz pode enfrentar com estratégia visando o sucesso. A fortuna se dá
ao acaso, que é o modo como tudo aparece. O ser temporal e cambiante das coisas
fornece leis à natureza e se mostra ao acaso. Diante disto o homem deve agir com
sabedoria para contar com o modo fugaz de a realidade se manifestar.
A fortuna vai se resolver num jogo, cujo desfecho tem muita probabilidade de
ser a catástrofe, pois ela, como tudo que é barroco, pertence ao plano do
conflituoso: conflito entre vencer e ser derrotado, estar por cima e estar por baixo,
31
lucrar e perder. A Europa do século XVII joga em todo tipo de atividade humana: na
política, na economia, na arte. Testemunham esta realidade as sangrentas guerras
entre príncipes, as especulações financeiras, o jogo pelo lucro do capitalismo
mercantil e a técnica do trompe-l’oeil das artes visuais.
A compreensão deste cenário complexo da cultura barroca esclarece o
sentido do título da obra de Walter Benjamin, onde drama barroco é tradução de
Trauespiel, literalmente jogo do luto. O tema do jogo no drama barroco é introduzido
quando se faz a distinção entre o drama alemão e o drama espanhol de Calderón de
la Barca. Ambos renunciam ao estado de Graça – próprio do espírito medieval – e
regressam ao estado original de Criação, uma vez constatada a ausência total da
escatologia, como ficou exposto na abordagem do conceito de imanência.
Se o drama alemão mergulha no abismo da desesperança, o drama espanhol
– e a isso se deve sua superioridade – consegue criar artifícios para resolver este
conflito entre a catástrofe inevitável e uma possível redenção. Assegurar-se de
alguma forma de transcendência passou a ser para Calderón o meio para a solução
do problema. Mas de que maneira, se a opção pelo estado de Criação, isto é, opção
pela imanência exclui qualquer transfiguração na transcendência? Calderón dá a
resposta: através do jogo. Jogo, desvio ou sonho, representados nas encenações
pelos espelhos, cristais e fantoches, artifícios bem claros na obra A vida é sonho,
cujo objetivo é incluir indiretamente a transcendência. Pelo sonho, a realidade se
redime, ou melhor, a vida desperta tem a sua garantia. Benjamin conclui: Calderón
consegue harmonizar o jogo e o luto. Nesse jogo, o catolicismo espanhol se impõe
na solução do conflito, quando Segismundo, no final de A vida é sonho. Calderón
(2008, p. 91) escreve:
lustre corte da Polônia, que és testemunha de fatos tão surpreendentes, escuta o que determina o teu príncipe! Deus escreveu tudo o que o céu determina e que, cifrado nos espaços azuis, nunca engana ou mente. Engana e mente, sim, quem decifrar as determinações do céu para usar em seu benefício.
32
O sonho que paira como um céu azul sobre a realidade – e com ela se
confunde – deixa transparecer a presença de Deus e assim o homem barroco pode
se assegurar da transcendência e resolver seus conflitos nos enigmas deste céu,
graças ao príncipe, arauto dessa verdade. Mas não se deve esquecer que essa
transcendência é a última instância da alegoria, em outras palavras, tudo não vai
além do âmbito do poder do alegorista e portanto do âmbito da subjetividade. A
transcendência, sentenciada pelo príncipe, é ilusória e não ultrapassa os muros da
imanência: fantasmagoria, ilusão, sonho e nada mais.
Benjamin, ao analisar a gravura Melancolia I de Dürer, resgata a simbologia
da visão renascentista, expressa nos mais variados objetos espalhados diante da
figura alada. Entre esses objetos, jaz um cão que dorme. Como tudo que representa
o estado melancólico se baseia na imponente dialética dos extremos, o cão
simboliza a falta de alegria do raivoso e, por outro lado, o faro do pesquisador. E
mais: o cão dormindo significa os sonhos, bons e maus. O melancólico sonha um
sonho que atinge o âmago das coisas. Disso decorre sua sabedoria: do olhar
voltado para a terra, de onde brotam as sementes. Sonho, meditação, contemplação
são as características do príncipe melancólico, as únicas capazes de frutificar a
sabedoria que se sustenta em raízes profundas. Benjamin (1984, p. 175) como o
drama descreve essas figurações: “ Esses sonhos comuns aos príncipes e aos
mártires, são bem conhecidos do drama barroco.”
O príncipe barroco sonha e o faz por ser um melancólico. Sua melancolia lhe
possibilita atingir o âmago das coisas, escondido nas profundezas férteis da terra, ou
seja, sonhar a natureza como refúgio paradisíaco, como o fazia o drama pastoral. O
sonho de Segismundo lhe possibilitou a sabedoria, assegurando-lhe a
transcendência e, ao mesmo tempo, a solução do conflito radical da existência
humana. Nisto consiste a perfeição da arte dramática de Calderón: por meio de
desvios, como num jogo de espelhos e cristais, poder vislumbrar a transcendência
na solução profana dos conflitos do mundo, só possível no sonho do príncipe
melancólico.
33
1.2. O soberano, paradigma do melancólico
No início do capítulo III de Origem do drama barroco alemão, Benjamin
demonstra como o luto é parte constituinte do drama barroco, entendido como jogo
do luto (Trauerspiel). Ele parte da contextualização de cunho religioso do drama
alemão, diferenciando-o do drama do resto da Europa. A doutrina luterana,
professada pelos dramaturgos alemães, se distancia da doutrina católica da Contra-
Reforma, cuja moral se baseava nas boas ações como meio válido para a salvação.
O luteranismo exclui as boas ações e elege a fé em Deus, única garantia de
salvação.
Partindo desta constatação fundamental, Benjamin desenvolve a reflexão que
coloca o conceito de Trauerspiel no contexto filosófico moderno.8 Uma vida baseada
unicamente na fé, sem motivação alguma de realizações concretas e de incentivo do
fazer construtivo que visem a uma satisfação compensatória, cai inevitavelmente no
vazio e no tédio. Este é o destino da classe que tinha acesso ao conhecimento e ao
poder. Os súditos, entretanto, eram convencidos a se dedicarem ao cumprimento do
dever, cujas recompensas estavam prescritas na mentalidade burguesa.
É interessante como Benjamin passa a usar termos do iluminismo, como
“apriorístico”, “meditação” e “dever”, termos que pertencem ao vocabulário
cartesiano e Kantiano. Se o barroco é marcado pelo conflito, aqui está o
paradigmático conflito – e sua solução – elementos fundantes da obra benjaminiana,
resumido em tragédia e tristeza. Como a fé não consegue dar uma resposta para o
vazio da existência humana, o homem, que se apavorava ao pensar na morte como
fim inexorável, encontra refúgio no jogo lutuoso.Conclui Benjamin (1984, p. 162): “O
luto é o estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma
de uma máscara, para obter da visão deste mundo uma satisfação enigmática.”
8 ( Cf. Matos, O. Discretas esperanças, p.101ss). Olgária Matos revela o alcance deste texto de Benjamin
exatamente no que ele tem de referência à modernidade iluminista. Sua pesquisa mostra a relação entre o
Trauerspiel e a melancolia escondida e subentendida em Descartes e em Kant: o poderoso sujeito, única fonte de
verdade iluminista, sente o vazio imenso e, num jogo lutuoso, expressa o desejo de voltar seu olhar para o objeto.
34
O Tauerspiel se revela aqui no autêntico sentido filosófico: o sentimento da
vacuidade do sujeito só se supera por meio de um jogo – desvio ou máscara – onde
ele se volta para os objetos, ou melhor, o sujeito melancólico volta inteiramente seu
olhar para o mundo. Em resumo, é nisto que consiste o drama barroco alemão ou o
jogo do luto, em tudo o que ele significa de inteiramente outro da tragédia, ou se
quiser, da tradição e do racionalismo iluminista.
Este jogo só é possível na e pela melancolia e tem de contar com o
sentimento, antitético da razão pura, único capaz da representação objetiva do
mundo. Pelo sentimento, não entendido aqui como afetividade, o jogo consegue
chegar à plenitude do objeto. Benjamin se refere a uma tenacidade da intenção que
caminha sem recuo para dentro do objeto, pois o enlutado compensa a sensação de
vazio e o taedium vitae no jogo da meditação ou no mergulho cada vez mais
profundo no objeto. Disso decorre o saber que tem como exigência a renúncia das
paixões. O estoicismo está estampado no comportamento político das duas
configurações centrais do drama barroco: do soberano e, mais abertamente, do
cortesão. Benjamin (984, p. 120) expõe o significado do estoicismo barroco:
Nessa e em outras descrições, os autores introduzem o alto funcionário da corte, o Conselheiro Privado, cujo poder, saber e vontade atingem proporções demoníacas, e que tem livre acesso ao gabinete do Príncipe, onde se arquitetam projetos de alta política ...Assim concebido, esse ideal do perfeito homem do mundo desperta na criatura, privada de todas as emoções ingênuas uma sensação de luto.
É interessante notar que, neste texto, Benjamin repete o termo
profundamente: “Pois os que exploravam mais profundamente as coisas se viam na
existência como num campo de ruínas”, ou: “Ela (a vida) sente profundamente que
não está aqui para ser desvalorizada pela fé”, ou ainda: “Sente um terror profundo
pela ideia da morte”. E ele conclui: “...o luto é capaz de intensificar e aprofundar sua
intenção.” (Origem, 162, 163). Neste jogo do melancólico, a ostentação e a pompa,
característica da linguagem barroca, não passam de contraponto da profunda
meditação e do confinamento.
35
A categoria da melancolia se configura no contexto do drama barroco alemão
a partir da hegemonia da fé, vista como um destino, que despreza as boas ações
provocando assim o taedium vitae, ou seja, o vazio da existência humana. Ora,
desprezar as boas ações significa se desligar do mundo, ter de amortecer os afetos
e as paixões, em última análise, as coisas do corpo. O estado de luto, decorrência
do corpo alienado e do sujeito despersonalizado, pode significar a força motriz do
instante dialético. Benjamin (1984, p. 164) expõe a extensão das possibilidades do
estado melancólico:
Na medida em que esse sintoma de despersonalização é visto como um estado de luto extremo, o conceito desta condição patológica (na qual as coisas mais insignificantes aparecem como cifras de uma sabedoria misteriosa, porque não existe com elas nenhuma relação natural e criadora) é colocado num contexto incomparavelmente fecundo.
Estado de luto extremo é o âmago da arte alemã do século XVII, isto é, a
categoria da melancolia, parte integrante da configuração da idéia – ou da origem –
do drama barroco alemão. O luto consiste na relação indelével do sujeito com o
mundo empírico, por mais que esse sujeito tente reduzir o exterior a um dado a si
mesmo, por mais que tente se livrar dos afetos. O mundo das coisas está sempre ali
presente e o desejo do homem barroco de dirigir seu olhar para ele é irresistível e
insuperável. O luto está no conflito de um sujeito despersonalizado e, ao mesmo
tempo, obrigado a assumir sua totalidade. A solução é o jogo lutuoso, em que o
melancólico se volta para o exterior, dentro da apatia estóica, para conseguir algum
tipo de satisfação, algum sentimento positivo, ainda que obscuro, de um mundo
vazio de sentido.
O estado melancólico é decorrência direta da situação conflituosa de um
sujeito dividido e dilacerado: quanto mais ele introjeta o mundo das coisas para
garantir o conhecimento deste mundo, mais se revela a tristeza, o desengano e a
frustração por afastar-se dele. Alienar o corpo, neutralizar as paixões por uma
estóica apatia – no sentido de desolação para o barroco – rende ao sujeito o estado
de luto extremo. Na pretensa busca da posse do conhecimento, este luto significa a
ocasião fecunda da insatisfação do homem barroco que procura a solução da
36
existência no saber absoluto. Ao tratar da alegoria, forma própria da linguagem
barroca, Benjamin (1984, p. 252) esclarece que a busca do conhecimento não passa
de pura curiosidade de um mero saber: “A intenção alegórica é tão oposta à voltada
para a verdade...” O terreno fecundo da melancolia é de outra ordem: a premência
de uma solução ao taedium vitae pode significar um longo caminho em busca da
resposta nunca encontrada pelo Barroco. Toda a energia desta forma dramática vem
da dor física do corpo torturado, pois essa dor força o contato do espírito com o
mundo exterior. Benjamin (1984, p. 241) cita Descartes para evidenciar o poder das
paixões, isto é, das influências corporais:
O dualismo não é o único elemento barroco em Descartes; sua teoria das paixões é altamente significativa, como conseqüência da doutrina das influências entre corpo e alma. Como o espírito é razão pura e fiel a si mesma, e somente as influências corporais podem pô-lo em contato com o mundo exterior, a dor física constitui uma base mais imediata para a emergência de afetos fortes que os chamados conflitos trágicos. Se, com a morte, portanto, o espírito se libera, o corpo atinge, nesse momento, a plenitude de seus direitos.
Benjamin pergunta: “Antes de tudo: qual a significação das cenas de martírio e
crueldade com que se delicia o Barroco?” O Barroco, responde, segue a lei da
emblemática, isto é, o organismo deve ser despedaçado e em cada fragmento deve
estar estampada, fixa e claramente, a escrita da significação. Isto se dá na
natureza, porém é principalmente no ser humano que a significação se apodera da
physis abandonada e fragmentada. Neste contexto fica explicada a presença da dor
física e do martírio, elementos característicos desta dramaturgia. Os personagens
barrocos morrem e os cadáveres que deles restam são a garantia da plenitude da
significação alegórica, como enfatiza Benjamin (1984, p. 242): “O cadáver é o
supremo adereço cênico, emblemático, do drama barroco do século XVII”. Desta
maneira se entende como barroca a relação cartesiana entre corpo e alma: só a dor
física constitui a base da emergência dos afetos que colocam o espírito em contato
com o mundo exterior.
Essa passagem de Origem do drama barroco alemão ajuda elucidar a
questão da melancolia em Benjamin: a morte e o despedaçamento da physis,
condição única da significação, engendra o luto. É preciso morrer e a morte é
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impensável como o fim da vida, pois não há apoteose barroca sem cadáveres.
Trata-se, em última análise, da visão teológica, de uma teologia da história, pois a
concepção alegórica do Barroco tem suas raízes no cristianismo medieval. Na
poética dos autores barrocos – que aliás não tinham uma avaliação crítica de sua
própria criação artística – pode-se notar um vivo interesse pelos textos medievais
sobre a apologia da alegoria e do sacrifício do corpo, e, ao mesmo tempo,
caracterizado por acentuado anti-paganismo. A fundamentação histórica é evidente,
conclui Benjamin (1984, p. 245): “Porque o medo dos demônios fazia a
corporalidade aparecer como suspeita e particularmente angustiante”.
O olhar, o sentido da visão que pertence ao corpo e põe o homem em contato
direto com o mundo empírico e com os fenômenos é a obsessão do melancólico.
Assim está representada a melancolia na gravura de Dürer: com os olhos bem
abertos e paralisados, em meio a utensílios sem serventia. Pode-se afirmar que a
melancolia em Descartes reside no conflito insolúvel da dualidade entre corpo e
alma.
A compreensão do sentido do jogo do luto (Trauerspiel) só é completa se for
levada em conta a concepção de verdade exposta por Benjamin nas Questões
introdutórias de Crítica do conhecimento de Origem do drama barroco alemão.
Benjamin (1984, p. 58s) ao afirmar “...a verdade é a morte da intenção...”, ele está
mostrando o quanto é lutuoso o jogo triunfal da intenção em direção ao saber e como
essa “...procissão solene caminha em sentido oposto ao da verdade. O luto é capaz
de intensificar e aprofundar sua intenção. A meditação é própria do enlutado”. O
desejo de vidência do melancólico jamais atinge a verdade, pois esta se representa
por si mesma. Quando muito ele pode atingir um saber enigmático, e por isso,
fragmentário e inacabado. O olhar melancólico diz respeito à intenção, à relação com
a empiria, como afirma Benjamin (1984, p. 58), na introdução da obra sobre o drama
barroco alemão: “...a verdade é uma essência não intencional, formada por idéias”.
Mas esse abismo é também o precipício sem fundo da meditação. Os dados que ela
produz são incapazes de ordenar-se em configurações filosóficas. Benjamin (1984, p.
38
254) conclui: “Por isso, eles agem como simples estoques de objetos destinados à
ostentação da pompa, nos livros emblemáticos do Barroco. “
Assim se configura o príncipe em sua profunda melancolia: no limiar da
complementaridade do tirano e do mártir, da fé e do jogo lutuoso do saber, do poder
sobre a história e do mais anti-histórico estoicismo. Ao tratar do problema dos
afetos, tal como ele aparece no drama barroco, Benjamin faz uma observação
importante: existe a proposta didática neste drama ao apresentar o domínio dos
afetos e das paixões sobre as ações políticas. A sensibilidade enfraquece a vontade
e o soberano enlouquece. O conflito do príncipe entre sensibilidade e vontade (que
Michelangelo expressou plasticamente nas esculturas de figuras com cabeças
desproporcionalmente menores que o corpo, do túmulo dos Medici) está presente no
drama barroco onde as paixões determinam o comportamento do tirano. Nisto
consiste mais uma distinção entre tragédia clássica e drama barroco, que consegue
conciliar o trágico com o cômico.
Benjamin, ao afirmar que o príncipe é o paradigma do melancólico, leva em
conta toda a herança cultural de mais de dois milênios transmitida ao Barroco, via
Renascença. Esse fato possibilita um comentário mais preciso sobre o drama, pois
parte daqueles pensamentos filosóficos e convicções políticas que estão na base da
concepção da história como uma drama. A ciência como herança renascentista se
funde ao saber obtido pela ruminação do melancólico, isto é, a ruminação diz
respeito a tudo que o homem conquistou em sua pesquisa sobre o universo. Essa
imponente herança do pensamento filosófico e da ação política tem seu contraponto
na figura do príncipe, frágil e melancólico. A fragilidade da configuração central do
drama barroco é ilustrada por um texto de Pascal, mais precisamente nos
Pensamentos: Um rei que se vê é um homem cheio de misérias. Ele precisa estar
em constante distração, em jogos e divertimentos. Se ficar só, sentirá extrema
tristeza, ao pensar em si.
Mas por que tanta infelicidade partindo de quem tem a dignidade real, a mais
alta entre as criaturas? É justamente porque na confluência entre realeza e miséria,
39
poder e fragilidade, reside a essência do Barroco. Conflito radical que Benjamin
(984, p. 167) entende como essencial ao drama: “O drama barroco alemão ecoa e re-
ecoa esse pensamento, de mil maneiras”. Benjamin já se referia às camadas de
estuque ornamental: a exteriorização é a saída do conflito. Ao rei vestido com o
manto de púrpura, com o cetro e a coroa, se opõe o rei nu, só com o fardo de sua
imagem de miserável, e melancólico. Assim ele encarna a história da imponente
herança e da reflexão profunda da ruminação.
A exteriorização no jogo do divertimento não significa estar num paraíso de
felicidade. Os cortesãos sofrem o mesmo conflito. A corte, como o príncipe e o
intrigante, aparece na fronteira entre o paraíso e o inferno. O tirano pode mergulhar
de tal forma no estado de tristeza, que se desliga do mundo a sua volta e se entrega
ao desespero e à loucura. Benjamin insere a melancolia entre os fenômenos do
drama e o faz seguindo fielmente sua metodologia para que a ideia desta forma de
arte se represente. É por isso que ao tema da tristeza do príncipe se junta seu
extremo oposto da pompa, das solenes procissões dos governantes – que aos
súditos só resta seguir - a ou ainda, da pomposa herança renascentista. Em resumo,
são os extremos entre a ostentação e o luto, entre a exteriorização e a gravidade,
enfim, o príncipe no limiar do triunfante e do melancólico. É o que enfatiza Benjamin
(1984, p. 69): “A representação de uma ideia não pode de maneira alguma ser vista
como bem sucedida, enquanto o ciclo dos extremos nela possíveis não for
percorrido”. Nesse sentido, o Barroco não pode ser pensado unilateralmente, como
símbolo da expressão da riqueza por exemplo, pois ele tem sempre seu duplo
extremo complementar, numa tensão coberta por ricos ornamentos.
É exatamente este o procedimento de Benjamin ao percorrer pacientemente as
obras da dramaturgia barroca e descrever os fenômenos em seus extremos.
Exemplo deste método é a citação da obra de Gryphius, Leo Armenius, onde os
objetos evidenciam a melancolia e seus antagonismos: tremer de medo com a
espada, sonhos terríveis de pavor com marfim, púrpura e escarlate, ou ainda, coroa
com sofrimento e morte.
40
Sem pretender traçar um histórico das teorias sobre a melancolia, Benjamin
focaliza nessas teorias os aspectos que despertaram o interesse dos dramaturgos
alemães do século XVII. Dessa herança assimilada pelo Barroco, destaca a
dualidade loucura e genialidade do conceito de melancolia exposto no tratado De
Problemata de Aristóteles e ainda no De Divinatione Somnium do mesmo Aristóteles,
sobre o poder profético do melancólico. Considera também a visão teológica, e
igualmente dualista, de Paracelso, segundo a qual Adão, primeira criatura, é o
portador da tristeza e Eva criada para alegrar Adão. Tristeza e alegria se misturam
na formação das criaturas humanas. Do período medieval, a escola médica de
Salerno, com sua teoria da bílis negra (atrabilis) da melancolia, como a patologia da
preguiça e da acídia, entre todas, é a que impressiona mais o Barroco que tinha claro
o destino da miserável criatura. É a visão medieval demonológica de fundamento
cristão, para a qual melancolia significava avareza, ganância, inveja, deslealdade e
tristeza.
Os árabes, desde a Idade Média, herdaram da antiguidade grega mais um
elemento importante na formulação do conceito da patologia do melancólico. Nesta
teoria, a melancolia está sujeita às influências dos astros, dentre os quais Saturno é
o planeta que rege o melancólico. Analisando as características deste astro, como
sua distância da terra e sua órbita, suas influências são interpretadas positivamente,
pois elas explicam a propensão ao meditar profundo do melancólico. Assim o planeta
distante convida a criatura para a contemplação, mediante uma vida interior afastada
das coisas cotidianas; daí decorre o saber superior e o poder divinatório. Essa
interpretação astrológica se aproxima da teoria aristotélica por sua dialética inerente:
ela também contém o conflito – essência do barroco – pois Saturno representa a
inércia e a preguiça por um lado e, por outro, a inteligência e a contemplação das
coisas superiores.
Na configuração do príncipe, paradigma do melancólico, Benjamin não tem a
intenção de definir melancolia e seu significado para o drama barroco, o que já seria
algo incompatível com seu método. Ele, ao invés, junta todas as confluências para
esta configuração, onde se mostra aquilo que é próprio do barroco: os aspectos
41
extremos complementares do fenômeno. Fica claro assim, segundo as palavras de
Benjamin (1984, p. 172), em todas essas teorias, que este fenômeno está no limiar
entre a acedia e a força da inteligência:
O histórico do problema da melancolia se desdobra no espaço desta dialética. Seu clímax é alcançado na magia renascentista. Enquanto as intuições aristotélicas sobre a ambivalência da disposição melancólica, assim como o caráter antitético das influências saturninas haviam cedido lugar, na Idade Média, a uma versão puramente demonológica de ambos os temas, coerentemente com a especulação cristã, a Renascença foi buscar novamente em suas fontes toda a riqueza das antigas meditações.
Klabinsky, Panofsky e Saxl9 desenvolveram uma exaustiva pesquisa – o que
será visto a seguir – sobre a representação plástica da melancolia, ressaltando como
este tema fascinou artistas durante séculos. É no século XVI entretanto que surge a
visão renovada das teorias antigas sobre a melancolia – da qual, a Melancolia I de
Dürer é um ícone - em contraste com a teoria moralizante do cristianismo medieval.
De fato, o caráter antitético da visão astrológica havia sucumbido a esse espírito
cristão. A Renascença resgata e deixa como herança para o Barroco o leque de
significações próprio do sentimento melancólico. Benjamin (1984, p. 149) conseguiu
vislumbrar neste elemento o ingrediente básico da dramaturgia barroca alemã – para
a formulação da história filosófica - e, na pós-história da modernidade, o mesmo
elemento na poesia lírica de Baudelaire:
Com o intrigante, o cômico penetra no drama barroco, mas ele não é um simples episódio. O cômico, ou melhor, a pura pilhéria, é obrigatoriamente o lado interno do luto; ele aparece de vez em quando como o forro de um vestuário, na barra ou na lapela.
Benjamin descobre uma vertente do drama barroco alemão: as ações principais
e de Estado, um teatro popular que fugia dos gêneros solenes e prolixos e
enveredava para a paródia. Com temas escolhidos no Velho Testamento, na
antiguidade e no Oriente, este teatro apresenta príncipes, generais, princesas e
ministros em suas virtudes e vícios, entre palhaços e bobos da corte, que, para
incômodo dos personagens, sempre revelam a farsa. Há uma estreita relação entre
este teatro popular e o teatro de fantoches, pois as ações principais e de Estado se
9 Cf. Klibansky et al., 1989.
42
miniaturizam e o drama barroco tem muito do espírito cômico das marionetes.
Benjamin cita Lohenstein10 (apud Benjamin 1984, p. 148): “...que tem tão pouca
veneração pelos símbolos da soberana magistratura, como se eles fossem
manequins”. A majestade do governante barroco tem, na representação, seu lado
jocoso da brincadeira da teatralização por meio de marionetes, onde o bobo da corte
parodia a função divina do soberano.
Mas é o intrigante que, nas ações, fica mais à vontade em suas
maquinações: ele dá o tom jocoso. É por meio dele que o cômico entra no drama
barroco e no jogo do luto, ele é o lado escondido de uma roupa, que aparece de vez
em quando. O intrigante faz parte do jogo. Mas este jogo tem os dois lados: a pilhéria
e a cruel intransigência. Não se trata porém da simplicidade ingênua do cômico. Pelo
contrário, o intrigante tem a sabedoria demoníaca e é com ela que ele arquiteta a
frustração das ações políticas do soberano. O drama barroco transforma a
comicidade e a astúcia do intrigante bufão das ações de Estado na alegria perversa
do conselheiro, que se junta ao luto do príncipe. São as emoções próprias do poder
de Satã.
Esta análise de Benjamin acrescenta ao jogo do luto as sutilezas do cômico,
decorrentes do teatro popular das ações principais e de Estado, onde príncipes e reis
tentam convencer o público de como se sentem tristes com o fardo de suas
responsabilidades de governar. A paródia atinge seu ponto alto na figura do bufão,
nada ingênuo, que, com sabedoria satânica, trai o soberano e desmascara a farsa. O
drama alemão não se aproveitou inteiramente desta relação entre o cômico e o luto,
permanecendo no enredo demasiado sério e rígido. Shakespeare e Calderón
souberam utilizar este jogo, onde o cômico se miniaturiza e o personagem tem a
capacidade da reflexão, isto é, ele próprio se vê como miniatura. Nestes autores se
alternam a comédia e a tragédia e nesta alternância dos extremos consiste a
superioridade deste drama , que a gravidade do drama alemão nunca chegou a
atingir.
10
Apud Benjamin, 1984, p. 148.
43
É quanto à melancolia do príncipe que Benjamin (1984, p. 180) aponta a
grande diferença entre o drama alemão e o drama shakespeareano: “O drama
alemão não soube adquirir uma verdadeira alma, nem despertar em seu interior a
clara luz da autocompreensão.” Autocompreensão e reflexão estão contidas no jogo
das miniaturas, legado do teatro de fantoches, onde o personagem se vê refletido.
Em Hamlet, Benjamin destaca a obsessão melancólica pelo destino. Somente este
príncipe, em todo o drama barroco, vislumbra as graças de Deus, onde sua profunda
melancolia se dissolve, exatamente no momento em que ela se depara consigo
mesma, pela autocompreensão e reflexão. O príncipe melancólico do drama alemão
tem uma compreensão confusa de si mesmo. Sua melancolia, segundo esta
dramaturgia está presa aos exageros da teoria medieval dos temperamentos.
Benjamin (1984, p. 180) estabelece uma estreita relação entre a imagem de Dürer e
o drama barroco alemão: “As imagens apresentadas nesse drama são dedicadas ao
gênio da melancolia alada de Dürer. A vida interna deste teatro grosseiro começa em
presença daquele gênio.”
O emblema representa uma forma de controle desse estado de alma desde a
Idade Média: a corporalidade redimida, pura, livre da materialidade pagã e
demoníaca. Para os medievais, a representação da nudez, na arte, era interpretada
como símbolo da ausência da virtude, ou porque o vício não pode ser escondido ou
porque os viciosos perdem tudo o que têm. Trata-se sempre de uma explicação
alegórica, que em resumo, é expor a natureza demoníaca dos deuses pagãos e
pregar a negação do corpo. Eis uma vertente do emblemático adereço do drama
barroco: o cadáver. O alegórico da perspectiva religiosa medieval tinha a pretensão
de expulsar o que restava do paganismo. Mas por outro lado, o intuito da utilização
da alegoria é salvar para a eternidade coisas que estão condenadas ao perecimento.
O alegórico representa tudo o que existe de efêmero, o que vale tanto ao espírito
medieval como ao barroco. Benjamin (1984,p. 248) conclui:
Por outro lado, quanto mais a natureza e a Antiguidade são vividas como culpadas, mais imperativa se torna sua interpretação alegórica, que representa apesar de tudo a única redenção possível. Pois ao desvalorizar conscientemente o objeto, a intenção alegórica se mantém incomparavelmente fiel à condição de coisa daquele objeto.
44
Benjamin introduz, para a configuração da alegoria, um outro elemento, além
da efemeridade: a culpa. A culpa dos deuses, da matéria, e mais significativamente,
do corpo. A culpa se fundamenta na queda da criatura e, juntamente com ela, de
toda a natureza, que, por isso, se torna triste, muda e incomunicável. Isso acarreta o
luto: sentir-se conhecido pelo incognoscível, isto é, pelo divino ou pelo alegórico. A
alegoria não diz respeito a um mundo antigo diretamente, ela é anti-antiga: Benjamin
(1984, p. 248) mostra a substituição do mundo clássico antigo pelos emblemas: “As
vestes olímpicas são deixadas para trás, e com a passagem do tempo os emblemas
se agrupam em torno delas”. É a criatura culpada que substitui os deuses, herdando
tudo de negativo que o culto desses deuses representava. A representação
alegórica, já que se trata da linguagem do drama barroco, acrescenta palavras e
nomes, além dos emblemas. Como são alegóricos, esses nomes e palavras
adquirem novos conteúdos. Benjamin (1984, p. 249) expõe a função da alegoria: “A
extinção das figuras e a abstração dos conceitos constituem assim os pressupostos
para a transformação alegórica do Pantheon num mundo de criaturas mágico-
conceituais”.
Esta análise de Benjamin se refere ao surgimento da linguagem alegórica a
partir do embate conflituoso entre paganismo e cristianismo, mais exatamente como
o mundo pagão vai se distanciando e se transformando em imagens de criaturas, ou
seja, em conceitos mágicos. Plasticamente a arte testemunha, desde a Idade Média
até o Barroco, essa transformação alegórica: objetos, animais, paisagens, figuras
humanas, enfim, toda sorte de elementos da natureza estão representados na arte,
com nítida intenção alegórica. Benjamin (1984, p. 256) enfatiza o caráter fugaz da
visão alegórica:
Os vícios absolutos, encarnados pelos tiranos e intrigantes, são alegorias. Não tem existência real, e o que apresentam só tem realidade sob o olhar subjetivo da melancolia; extinto o olhar, seus produtos também se extinguem, porque só anunciam a cegueira desse olhar.
Em Origem do drama barroco alemão, Benjamin se utiliza do cruzamento de
várias vertentes para a configuração do príncipe como paradigma do melancólico.
45
Esses pontos são analisados em passagens distintas da obra, sempre vistos na sua
complementariedade: o cômico e o saber satânico, o mal e o saber, a espiritualidade
absoluta e a matéria, o mal e o luto; tudo convergindo para a figura do tirano e do
intrigante. O soberano, paradigma do melancólico, representa a história. Esta
concepção barroca da história está presente nas Teses sobre o conceito da história,
onde Benjamin (1985, p. 232) critica contundentemente o historicismo e defende a
historiografia fundada na concepção da dialética na imobilidade:
Ele capta a configuração em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico.
Benjamin (1985, p. 231) deixa bem clara a convergência de forças, num
sentido revolucionário, para o momento presente, em que “o pensamento pára,
bruscamente, numa configuração saturada de tensões...” Essa revolução entretanto
não visa um futuro escatologicamente determinado, como garantia de um processo
pretensamente científico. Ela tem o sentido teológico da redenção do passado
marcado pela dominação dos vencedores. A tensão, a força dialética fulgurante do
choque que paralisa, não surge em um presente qualquer, mas naquele presente
que visa, pela rememoração, o passado, em um salto tigrino ou em direção a ele.
Benjamin (1985, p. 223) esclarece a importância do passado nessa dialética: “O
passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção”.
A crítica de Benjamin tem particularmente um alvo exemplar: a social
democracia da República de Weimar e sua crença na marcha triunfal do progresso
em direção ao paraíso de justiça e felicidade. Essa marcha e sua promessa de
felicidade é pura falácia pois se dá no tempo vazio e homogêneo, preenchido com
um amontoado de fatos. Benjamin (1985, p. 227) concebe a história como avessa
ao grandiloqüente, às ideologias arrebatadoras que prometem às massas um futuro
de prosperidade: “Os temas que as regras do claustro impunham à meditação dos
monges tinham como função desviá-los do mundo e das suas pompas. Nossas
reflexões partem de uma preocupação semelhante”. A preocupação de Benjamin é
ficar bem longe da cumplicidade dos políticos com a pompa profana dos
46
vencedores, cumplicidade que ele denomina de empatia (Einfahlung in den Siegn).
Na realidade isso não passa da desilusão da verdadeira imagem histórica, em
outras palavras, a pompa esconde a inércia do coração, a acedia e a tristeza. Para
o crítico materialista histórico, esse processo se torna claro: a tristeza do historicista
provém da visão do cortejo triunfal dos vencedores sobre os corpos dos vencidos.
(Unterdrückten) A barbárie se completa com a posse dos bens, transformados em
monumentos culturais. A melancolia está presente tanto na visão do historicista,
como no Barroco. Isso significa que Benjamin mantém, nas Teses sobre o conceito
da história, a mesma postura metodológica da obra sobre o Barroco: o historicista é
tão melancólico como o príncipe do drama.
Nessa equivalência, o sentido da melancolia se torna mais transparente: ela
se configura na tentativa, de antemão fracassada, da posse do conhecimento, que
resulta em desilusão e catástrofe. A ostentação, o estuque ornamental fazem parte
deste jogo lutuoso. É assim que a melancolia desempenha seu papel neste drama.
Na modernidade, como no Barroco, Benjamin desenvolve sua reflexão sobre esse
jogo, seja na esfera do conhecimento, seja na política. O homem moderno crê no
poder da ciência e da técnica, capazes de engendrar a marcha triunfal do
progresso. Mais que isso: crê na subjetividade como única força legítima para
indicar o movimento em flecha e espiral da história, da mesma maneira que o
alegorista se alia aos poderes demoníacos para atingir o conhecimento e a
espiritualidade absolutos. Do ponto de vista filosófico, é esta subjetividade de um
homem desencarnado que está em discussão; é a dialética morte vida.
É muito significativa a afinidade entre as Teses, obra póstuma que tem a
importância de um testamento, e sua obra sobre o Barroco. Isso é percebido
através de uma leitura atenta que revela os conceitos subentendidos nos dois
textos. Nas Teses é o Benjamin que se expõe por inteiro, como um monge que foge
de um mundo de vaidade, arrogância, ostentação e se refugia no silêncio de um
mosteiro. A reflexão o faz optar pelas pequenas coisas, pelo marginalizado, pelo
rejeitado, pelas ruínas, pelas imagens oníricas e crer na força do instante, das
frestas por onde surge a luz messiânica.
47
O homem barroco jogava um jogo de sobrevivência. Se não houvesse esse
jogo, ele se entregaria ao destino de morte e aniquilamento, mas por causa da
consciência que ele tinha desse destino, o jogo era lutuoso e assim ele se
equilibrava no limiar entre o brilho do mais pomposo otimismo e o mais negro
sentimento de tristeza. A melancolia era ingrediente indispensável nesta receita de
sobrevivência. Da mesma forma o homem moderno, do mais alto degrau de sua
subjetividade arrogante, joga o mesmo jogo lutuoso e sofre do mesmo mal: a
tristeza, a melancolia. Ele é o príncipe barroco, paradigma do melancólico.
1. 3. Melancolia I de Dürer: uma figura alegórica
A filosofia da história para Benjamin é a ciência da origem e a categoria da
melancolia perpassa todos os escritos, não somente a tese sobre o Barroco. Ela
está presente nos ensaios sobre a arte de Baudelaire, de Proust e de Kafka, na
crítica da violência ou no ensaio sobre a reprodução da obra de arte; enfim, para o
filósofo, falar de história, dialética e redenção é falar de melancolia. Seu pensamento
propõe o cessar do curso contínuo da história linear e repetitiva, cuja lei é a
dominação, do eterno retorno mítico, exposto no ensaio sobre violência e poder. O
que mantém o statu quo, o que arrasta as massas para defender os interesses dos
dominadores é a crença incondicional no progresso. Esse entusiasmo ufanista do
apelo em um futuro promissor de felicidade total, sustentado por todo tipo de
ideologia, descobrirá, mais cedo ou mais tarde, que tal futuro nunca chega. Existe
sempre o espectro da catástrofe rondando este sonho enganoso, por mais que a
ciência e a técnica criem sem cessar coisas inacreditáveis, num processo que
parece não ter fim, tanto nos aparatos de comunicação, como no poder da medicina
ou na descoberta dos segredos do universo, onde o homem acredita que será deus.
Ora, o fascínio por um futuro de felicidade plena é a característica da história
do contínuo vazio, que amontoa ruínas, uma vez que os extremos do bem estar
conseguido pela ciência e pela tecnologia convivem com os extremos da miséria, da
dor e da morte. Para este cenário, o homem só pode lançar um olhar melancólico, o
48
olhar de tristeza, único capaz de provocar o processo dialético de cessar o
movimento linear vazio, do sempre igual do progresso, onde só existe lugar para os
extremos de dominadores e dominados, de vencedores e vencidos. Assim Benjamin
(1985, p. 227) descreve a crença no progresso:
O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. É uma das causas de seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho, que parecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política.
Nesta tese 11 do ensaio Sobre o conceito da história, Benjamin comenta a
situação alemã sob a desastrosa política da social democracia. Não se trata, porém,
de análise pontual sobre uma situação particular, mas de um exemplo da sua
concepção de história. Conformismo, supor estar nadando nas correntezas do
progresso, corromper a classe operária com promessas de conquistas políticas,
essas são as características da história oficial, onde o progresso é a ideia obsessiva.
A questão não é a conquista da ciência e da técnica em si, mas a relação desta
conquista com a redução da história à eterna luta pelo poder, através da violência,
afirma Benjamin (1985, p. 224ss):
Em cada época é preciso arrancar a tradição ao conformismo que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como vencedor do AntiCristo. O dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.
A resposta de Benjamin contra o historicismo – a história do continuum da
dominação – é a capacidade de despertar, pela rememoração do passado, as forças
que os vencidos legaram ao presente revolucionário.
Em seu método, Benjamin privilegia a arte: a forma artística permite a
emergência da configuração da ideia. Ele afirma que ao filósofo cabe descrever o
mundo das idéias, onde se dissolvem os fenômenos; é uma atividade elevada que
está entre a investigação e a arte, pois o artista cria imagens para representar o
49
mundo das idéias e o investigador trabalha com conceitos para organizar o mundo
tendo em vista a dispersão no reino das ideias.
O interesse e a admiração de Benjamin pela gravura de Dürer Melancolia I
devem se analisados nesta perspectiva. Representar as ideias é tarefa primordial da
filosofia e nisto consiste a importância da arte que produz imagens do mundo das
ideias. A gravura de Dürer é impregnada de símbolos e, ao mesmo tempo, envolta
em atmosfera alegórica de múltiplas significações. As análises de Klibansky (1989,
p. 540) o caráter alegórico de Melancolia I:
Aqui nos deparamos com a última questão vital: saber a atitude fundamental sobre a vida que se acha na gravura de Dürer, sob a genealogia complicada ao infinito, sob sua fusão de vários tipos, sob sua modificação – digamos francamente sua inversão – de velhas formas de expressão, e sob seu desenvolvimento de um esquema alegórico. É a questão da significação fundamental de Melancolia I. (Trad. Livre).
11
O luto do Barroco, diferente da apatia estóica, se insere no contexto do
cristianismo, ou seja, um estoicismo no sentido de desolação perante a condição
humana e não tem o significado de pessimismo racional. As energias do corpo são
exteriorizadas quando os afetos são reprimidos. Há a despersonalização, a
alienação do corpo. O luto é conseqüência disso: o homem despersonalizado, no
estado patológico, se relacionando com o mundo, onde as coisas, por mais
insignificantes que sejam, transformam-se em fonte de sabedoria misteriosa.
Se fosse possível procurar uma definição da gravura Melancolia I em
Benjamin, ela estaria na descrição do luto extremo do Trauerspiel, na condição
patológica da despersonalização resultante da alienação do corpo. Com efeito, no
Barroco existe o espírito estóico, o espírito da desolação. Essa espécie de
estoicismo reprime os afetos, desencadeando a exteriorização das energias
11
Nous voici donc amenés à la dernière question, à la question vitale; savoir, l‟attitude fondamentale
envers la vie qui se trouve sous la gravure de Dürer, sous sa généalogie compliquée à l‟infini, sous sa fusion des vieux types, sous sa modification – disons carrément son inversion – des vieux formes d‟expressions, et sous son développement d‟un schéma allégorique. C‟est la question de la signification fondamentale de Mélancolia I.
50
presentes no corpo que se aliena. É este homem barroco despersonalizado que se
relaciona com o mundo, em estado de luto extremo. As menores coisas passam a
ser para ele fonte de sabedoria misteriosa. Benjamin atinge aqui o ponto alto de sua
pesquisa sobre o Barroco, o que é condizente com seu método: a fonte fecunda da
sabedoria está em outra relação homem-mundo que aquela da tradição racionalista
dos métodos indutivos e dedutivos. Foi assim a fresta barroca que ele viu na
despersonalização cartesiana. O Barroco tem a singularidade de olhar para tudo o
que o homem conseguiu realizar, pois seu interesse de pesquisa está no acervo das
bibliotecas, enquanto a Renascença buscava descobrir as leis do universo. O objeto
de meditação do homem barroco está no livro. Benjamin (1984, p. 164) enfatiza a
relação da Melancolia I com a mentalidade barroca:
É consistente com este conceito que em torno do personagem de Albert Dürer, na Melancolia, estejam dispersos no chão os utensílios da vida ativa, sem qualquer serventia, como objeto de ruminação. Esta gravura antecipa sob vários aspectos o Barroco.
A imagem de Melancolia I é o ponto de cruzamento do pensamento
benjaminiano: está presente nos ensaios sobre Baudelaire, Proust, sobre o teatro
épico de Brecht, a narrativa, o cinema e sobretudo nas teses sobre o conceito da
história. Sobre o passado só é possível dois olhares: o olhar do historicista
entusiasta do progresso e o olhar do melancólico. É este que interessa a Benjamin,
pois é o único capaz da sabedoria misteriosa do momento de ruptura revolucionária.
Que sabedoria afinal revela a Melancolia I de Dürer? Benjamin cita a
exaustiva pesquisa de Panofsky e Saxl, que reconhecem o alcance desta imagem
além dos símbolos visuais da linguagem renascentista. Dürer vai além do
estabelecido convencionalmente em sua época. Os pesquisadores falam em
inversões e modificações de velhas formas, em genealogia multiplicada ao infinito,
ou seja, em tudo o que a gravura tem de linguagem alegórica. O que é próprio de
Melancolia I se deve não só à utilização dos símbolos convencionais da
representação da Melancolia, mas à maneira como Dürer os utiliza. Panofsky e Saxl
comentam a visão neoplatônica do renascentista Ficinus, que nega à melancolia a
natureza imaginativa e só lhe admite a mens contemplativa. Para o pensador
51
renascentista, a melancolia é própria do grau mais alto da vida intelectual, a mens
contemplativa, cessada a faculdade imaginativa, própria dos matemáticos.
Se Dürer dá o título de Melancolia I à sua gravura, deixando claro que se
tratava da faculdade imaginativa, então surge uma questão: por que não criou a
sequência II,III?
Os pesquisadores (Klibansky et al., 1989, p. 545) respondem:
Nisso consiste a grandeza da obra de Dürer: ela vai além das distinções da medicina, graças a uma imagem onde se unem em um todo, os fenômenos, cheios de vida e de emoção, que as noções convencionais de temperamento e de doença tinham retirado de sua vitalidade; ele concebeu a melancolia dos intelectuais com um destino visível onde as diferenças entre temperamento, doença, e estado de espírito melancólico desaparecem e onde a tristeza que deprime e o entusiasmo criador são igualmente extremos de uma única e mesma disposição. (Trad. Livre).
12
A gravura de Dürer é significativa nesta singularidade de representar em uma
imagem forte e convincente os objetos impregnados da vitalidade, absolutamente
impossível nas representações convencionais que seguiam as antigas divisões de
temperamentos, humores ou doenças. Esta imagem, entende-se agora, despertou
tanta admiração de Benjamin pela totalidade da disposição melancólica por ela
representada: a tristeza ou o desgosto que se recolhe e a euforia do ato criativo são,
na realidade, os extremos desta mesma disposição. Deste modo não haveria motivo
para criar a sequência, uma vez que as faculdades intelectual e contemplativa estão
presentes .Segundo a Oculta philosophia de Agrippa de Nettesheim13, o pensador
12
En cela réside la grandeur de l‟oeuvre de Dürer: Il a surmonté les distintions médicales, grâce à une image ou s‟unissent en un tout, pleins de vie et d‟émotion, les phénomenes que les notions convenues de tempérament et de maladie avaient dépouillées de leur vitalité; Il a conçu la mélancolie des intellectuels comme une destinée invisible où les differences entre tempérament, maladie et état d‟esprit mélancolique s‟evanouissent, et où Le chagrin qui couve et l‟enthousiasme créateur ne sont, à égalité, que les extremes d‟une seule et même disposition.
13
Cf. Klibansky et al., 1989, p. 547ss. Oculta philosophia, impressa e publicada em 1531, é para Panofsky e
Saxl a verdadeira fonte interpretativa da Melancolia I de Dürer. Segundo a teoria de Agrippa, há três degraus de
inspiração, a saturnina e a melancólica e dois domínios em que cada uma opera, o criativo e o profético. O nível
I corresponde à imaginação (imaginatio), dos espiritos inferiores, cujo domínio criativo é o das artes mecânicas,
como a pintura, a arquitetura, e o dom profético deste nível se refere aos acontecimentos naturais, como
terremotos e enchentes. O nível II corresponde à razão (Ratio), dos espíritos médios, cujo domínio criativo é o
do conhecimento dos seres naturais e humanos, ou seja, das ciências. O dom profético deste nível é dos
acontecimentos políticos. O nível III corresponde à mente (mens), aos espíritos superiores, cujo domínio criativo
é o do conhecimento dos segredos divinos, da angeologia e teologia. O dom profético deste nível se refere a
acontecimentos religiosos, como o aparecimento de novos profetas e novas religiões. A Oculta philosophia, obra
52
alemão intermediário entre a escola florentina de Ficinus e Dürer, Melancolia I seria
correspondente à faculdade imaginativa. Esta obra é composta pelas ideias
neoplatônicas de Ficinus e das teorias antigas, como a das profissões mecânica,
política e filosófica e, ao mesmo tempo, a teoria da tríplice faculdade da alma,
compatível com o dogma Cristão da Trindade. Para que haja a perfeita realização de
todas as faculdades é preciso que a alma esteja livre de qualquer ocupação. Só
assim a alma toma as três formas indispensáveis a esta realização: do sonho, da
contemplação e do furor da iluminação. O furor é o humor melancólico do corpo
humano que provém da cândida bílis natural; ele conduz à sabedoria e à profecia,
sobretudo quando conspira com influência celeste de Saturno, astro frio e seco,
mestre da contemplação oculta. É o astro mais alto que eleva a alma pela ciência e
a profecia. Por isso Aristóteles, em Problemata, afirma que, graças à melancolia
certas pessoas são como seres divinos capazes de prever o futuro. Klibansky
(Klibansky et al., 1989, p. 567) mostra como a representação de Dürer transcende o
espírito renascentista:
Agrippa ampliava a autoglorificação do círculo exclusivo dos humanista em uma doutrina universal do gênio, muito antes dos teóricos italianos da arte; ele variava o tema dos dons da melancolia distinguindo-os entre seus aspectos subjetivos e seus efeitos objetivos; equivale dizer, colocando lado a lado o dom de profecia e o poder criador, a visão e a obra acabada. (Trad. Livre).
14
O mérito de Agrippa, contrariando o neoplatonismo italiano, foi ampliar a
noção de melancolia e de gênio saturnino além do círculo restrito aos literatos
humanistas renascentistas, juntando os gênios da ação e da visão artística, ou seja,
o dom da profecia e o poder criador, nos três degraus ascendentes. O arquiteto e o
desenhista não são inferiores ao religioso ou ao nobre político.
Aqui se coloca a questão: qual é a representação visual que corresponde à
teoria de Agrippa de Nettesheim? Primeiro, seria necessário que tal representação
divida em três livros, conforme os três níveis, trata de todas as atividades que abrangem os espíritos inferiores,
médios e superiores: da feitiçaria àcontemplação religiosa, passando pela astrologia, cabalística, magia, tudo
considerado como a cadeia natural do mais ínfimo ao mais superior. 14 Agrippa amplifiait l‟autoglorification du cercle exclusif des humanistes en une doctrine universelle du génie, bien
avant que les théoriciens de l‟art italiens n‟en fissent autant; et il variait le thème des dons de la mélancolie en distinguant entre leurs aspects subjectifs et leurs effets objectifs; c‟est-à-dire, en plaçant côte à côte le don de prophétie et le pouvoir créateur, la vision et l‟oeuvre accomplie.
53
tivesse uma figura sob nuvens, uma vez que é melancólica; essa figura deveria ser
capaz de criar e ser profética, visto que tem o furor contemplativo; ela deveria ter o
domínio próprio das artes mecânicas; deveria ter o olhar profético capaz de prever
catástrofes pela sua faculdade imaginativa; uma figura que tivesse consciência da
limitação de seus poderes de conhecer, porque lhe falta a capacidade de receber os
efeitos das capacidades superiores.Esta representação é a própria Melancolia I de
Dürer. A descrição de Agrippa é a sua descrição.
O estado melancólico é parte integrante do drama barroco alemão, como se a
figura alada da alegoria de Dürer fosse personagem constante deste teatro. De
todos os símbolos, o que mais interessa a Benjamin é Saturno, representado no
último plano, ao fundo da gravura, como um ponto luminoso sem contornos, do qual
emana uma infinidade de raios, em forma circular. Interessa-lhe sobretudo pela
dualidade em extremos das influências saturninas. Se o cristianismo medieval havia
reduzido o antigo deus dos ciclos das sementeiras, das colheitas e do descanso em
demônio ceifador de vidas, no ciclo da morte, a Renascença restaura os poderes de
Saturno na mais radical dualidade.
As pesquisas de Panofsky e Saxl, precedidas pelos estudos de Giehlow,
mostram a relação entre o temperamento melancólico e Saturno: na melancolia
existe, como em Saturno, a dualidade característica, num extremo, apatia e preguiça
e em outro, a inteligência e a contemplação. Os saturninos podem tanto sofrer a
mais profunda depressão como o mais eufórico entusiasmo. Saturno, o astro,
corresponde ao deus Cronos, sábio e enganado, soberano e miserável, fértil e
estéril. Da mesma maneira, o astro pesado, frio e seco, torna as pessoas inclinadas
ao trabalho pesado na terra e, por outro lado, como astro mais alto e distante,
desperta os conhecimentos espirituais mais elevados.
O mérito destas pesquisas é a descoberta da reinterpretação da melancolia
pela magia renascentista, segundo a teoria do gênio. Afirma Benjamin (1984, p.
173): “O histórico do problema da melancolia se desdobra no espaço desta
dialética.” A magia renascentista consiste em colocar o estado melancólico em
54
consonância astrológica com Saturno, em tudo o que o astro tem de conflituoso,
situado nas fronteiras entre o mais material e o mais divino. No estudo sobre o
drama barroco alemão, Benjamin (1984, p. 173) não poderia deixar de observar a
força dialética representada na gravura de Dürer.
Mas a imagem do melancólico confrontava uma época que tentava a todo preço aceder às fontes do saber natural oculto com a questão de como extrair de Saturno suas forças espirituais, sem sucumbir à loucura. Era preciso dissociar a melancolia sublime, a melancolia illa heroica de Marcilius Ficinus e Melanchton, da melancolia vulgar e destrutiva.
Para completar a interpretação da representação gráfica de Saturno na
alegoria de Dürer, deve-se observar o quadrado mágico, sobre a cabeça da figura
alada e, a seu lado, a balança. Diante do dualismo entre material e espiritual, entre
corpo e alma, sobrepõe-se a força conciliatória de Júpiter, simbolizado pela balança
e pelo quadrado, seu signo planetário. A astrologia desvenda as influências
facilitadoras conjuntas dos astros que permitem ao estado melancólico aceder aos
conhecimentos sublimes.
A gravura Melancolia I de Dürer apresenta mais de trinta objetos de
simbologia antiga. Esses símbolos devem a interpretação de sua conflituosa força
significativa aos humanistas da Renascença. O cão, presente em várias gravuras de
Dürer, é susceptível à doença da raiva pela degenerescência do baço. Assim ele
simboliza a tristeza do melancólico. Mas, por outro lado, tem o faro aguçadíssimo e
como tal simboliza a tenacidade. A imagem de Dürer sugere dois tipos de sonho
deste animal que dorme: os pesadelos e os sonhos proféticos. Os sonhos são a
fonte da sabedoria do melancólico, que provém dos abismos da terra, do mergulho
para dentro das coisas. Saturno é o deus das semeaduras: é da terra que brota a
sabedoria. Para o saturnino nada vem da intuição das superfícies. Os teóricos
renascentistas conseguiram aliar a gravidade com a concentração para entender o
significado da profunda meditação, própria da disposição melancólica, ou seja,
entender a busca do ponto central da circunferência, lugar das verdades mais
profundas.
55
Num plano mais avançado ainda desta representação, está a esfera que se
relaciona com o símbolo da meditação profunda. Se para os antigos, a forma
esférica significa as força da concentração e por isso tem lugar privilegiado no
universo, para os renascentistas, sua representação nesta gravura significa o
homem contemplativo. É neste símbolo que Benjamin (1984, p. 176) vê “...a
semente que contém toda a riqueza alegórica do Barroco, pronta para explodir, mas
ainda refreada pela força do gênio.” Gênio, símbolos, beleza são vocábulos do
classicismo renascentista. Nesta linguagem porém pode-se vislumbrar o germe da
complexidade da linguagem alegórica barroca. Dürer antecipou, sob vários aspectos,
o Barroco, diz Benjamin.
A pedra se destaca na gravura pelo seu tamanho, pelas faces lisas e
escorregadias, que não absorvem líquidos. Simboliza a dureza e amargura do
coração, mas sobretudo a inércia e a acedia, sob a influência de Saturno, astro frio e
seco, cuja característica é tornar o homem indeciso. No Barroco, o tirano, como um
cão raivoso, é derrotado por sua indecisão e o cortesão se torna infiel ao senhor, a
quem trai pelos mesmos efeitos dessa disposição melancólica. A inércia do coração
do saturnino faz do cortesão um traidor. Tal comportamento, comenta Benjamin
(1984, p. 178) é próprio dos fracos sujeitos às forças impenetráveis, assumindo um
caráter reificado.
Coroa, púrpura e cetro são em última instância adereços cênicos no sentido do drama de destino, e encarnam um Fatum a que se submete em primeiro lugar o cortesão, áugure deste fado. Sua deslealdade para com os homens corresponde a uma deslealdade impregnada de devoção contemplativa, para com esses objetos. O conceito subjacente a esse comportamento só pode realizar-se adequadamente no contexto dessa fidelidade sem esperança à vida da criatura e às leis de sua existência culpada. Todas as decisões essenciais que dizem respeito ao homem podem transgredir os princípios da lealdade, pois tais decisões estão sujeitas a leis mais altas. A lealdade só é completamente apropriada na relação entre o homem e o mundo das coisas.
A melancolia que já existia na beleza clássica renascentista, controlada pelo
gênio através da simbologia – disso a gravura de Dürer é o exemplo mais perfeito –
realmente explodiu no Barroco na complexidade das significações alegóricas. A
forma do drama barroco é a expressão do homem dilacerado vivendo o embate
56
conflituoso entre extremos; um deus de duas faces, indeciso entre estar nas
profundezas dos abismos e alçar os vôos mais altos ao sublime da espiritualidade.
Nisso consiste seu estado melancólico, feito daquela melancolia transfigurada que o
classicismo apresentou pelos símbolos, como elemento fundamental do gênio
criador. No Barroco porém ela está escancarada nas figurações do drama: a
indecisão do soberano, que mesmo em estado de exceção, é paralisado, não
consegue decidir. O cortesão, por sua vez, trai o soberano e este comportamento é
significativo na medida em que transfere o foco da fidelidade para o mundo dos
objetos: o homem barroco se torna fiel devoto dos adereços cênicos: a coroa, o cetro
e a púrpura. Tal apego às coisas não passa da fidelidade sem esperança à vida,
própria da existência culpada da criatura. É uma lealdade reificada, isto é, entre
homem e coisa e não entre homens. Eis o espírito da melancolia: trair pelo saber e
contemplar as coisas mortas para tentar salvá-las, o que se inscreve na dialética do
conflito entre fidelidade ao mundo material no qual se reflete a fidelidade ao sublime.
Dürer está de certa forma preso à tradição humoral e astrológica da Idade
Média, o que exige um estudo desta derivação histórica da gravura Melancolia I. Não
se trata de saber o que Dürer fez da tradição, mas dos elementos que ele incorporou
em sua obra. Um desses elementos pesquisados por Klibansky, Panofsky e Saxl é o
rosto apoiado sobre a mão, cujas significações primeiras são o desgosto, o cansaço
e a meditação. A estas se acrescenta a avareza, típica do temperamento
melancólico, uma vez que o punho está cerrado.
O artista pôde encontrar muita representação do aspecto doentio do
melancólico, como o rosto entristecido donde se projeta um olhar fixo, a cor terrosa
do corpo, a face negra. Mas o semblante de sua melancolia comunica, acima de
tudo, uma emoção, um estado de espírito. A alegoria de Dürer supera a tradição em
todos os sentidos, diz Klibansky (klibansky et al., 1989, p. 569), “...mais la femme de
Dürer, que seules ses ailes distinguent de toutes les autres représentations, est une
réalisation symbolique de “Melancholia”15, é a imagem concreta que dispensa a
legenda “a melancolia é assim.” Dentro da concepção da harmonia renascentista
15
Mas a mulher de Dürer, cujas asas a diferenciam de todas as outras representaçoes, é uma realização simbólica
de “Melancolia”. (Trad. Livre ).
57
não poderia haver a perfeição da atividade racional sem a capacidade cotidiana.
Esta é a significação da figura do putto,16 igualmente alada, porém, diferentemente
da Melancolia, esta criança é representada em plena ação. Este é o fundamento da
arte: não existe ciência sem prática. O putto significa o próprio artista absorto na
prática criativa e nisso sua postura corporal contrasta com a figura da Melancolia: é
reflexivo, o olhar atento ao trabalho, mãos soltas, em tudo completamente o oposto
da paralisia melancólica.
Segundo ainda os pesquisadores, a característica essencial da Melancolia I
de Dürer é que ela é absolutamente indiferente aos utensílios que estão a sua volta,
como auxiliares do espírito e das mãos. Esses objetos não existem para ela, pois
seu olhar os ignora. A serra a seus pés, a roda quebrada e encostada na parede, o
livro fechado por um fecho sobre seu joelho, a esfera no chão , o compasso, tudo
isso não serve para nada. Isso leva a crer que Melancolia I se refere à melancolia
preguiçosa, de uma tristeza desmedida. Dürer conhecia as representações deste
tipo inferior de melancolia. Se Dürer utilizou certos elementos tradicionais, a gravura,
no conjunto, é a síntese simbólica. Panofsky inclui inteiramente a Melancolia I dentro
do espírito renascentista ao ver na obra a harmonia do símbolo, a realização
simbólica e imagem concreta de algo abstrato. Benjamin (1984, p. 184) confirma:
Este consiste , numa palavra, em denunciar a alegoria vendo nela um modo de ilustração, e não uma forma de expressão. As paginas seguintes tentarão demonstrar, pelo contrário, que a alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens, mas expressão, como a linguagem, e como a escrita.
Benjamin discute a questão da alegoria como expressão independente do
poder de concisão do símbolo, que, como um relâmpago ilumina a noite escura. O
símbolo diz respeito ao momentâneo instante místico, em que recebe o sentido. A
dialética da alegoria consiste no aprofundamento dentro da distância entre a imagem
e sua significação. Benjamin (1984, p. 188) revela o alcance da alegoria:“O estudo
16
A palavra putto se refere a uma figura de criança nua, geralmente do sexo masculino, que na Melancolia I de
Dürer aparece alada. Esta figura é representada principalmente no período renascentista e barroco das artes
visuais.
58
da forma do drama barroco revela, mais claramente que qualquer outro, a violência
desse movimento dialético, no interior dos abismos alegóricos.”
A figura coroada e alada, de alegórica foi elevada à condição de símbolo,
significando a fusão da arte criadora com o homem melancólico. Pode-se dizer que
existe o movimento em duas direções: elevar o temperamento triste, terroso às
alturas dos problemas intelectuais e o rebaixamento da capacidade intelectual ao
fracasso humano. É o que evidenciam os objetos dispersos e sem utilidade. O
semblante desta figura é de um espírito preocupado com as visões interiores e não
tem intenção de utilizar esses utensílios. Significa enfim a combinação da atividade
intelectual da arte com o sofrimento da alma humana, ou seja, do gênio alado. Cada
detalhe dos símbolos tomados da tradição, na Melancolia I de Dürer adquirem um
significado novo: por exemplo, o punho cerrado que sustenta o rosto deixa
transparecer que existe um problema não resolvido, apesar de entendido.
O olhar da Melancolia, com grandes olhos bem abertos, fitam o reino do
invisível da mesma maneira que sua mão procura entender o impalpável. O branco
dos olhos contrasta com a sombra que cai sobre a face, denotando seu estado de
espírito, típico do pensamento profundo. A paisagem é de uma atmosfera indefinida
entre a luz e a sombra. A figura alada é igualmente indefinida, coroada de louros
mas sem vitória, sentada diante da casa inacabada, cercada de instrumentos de
trabalho e indiferente a eles. De cabelos mal penteados, com chaves que não abrem
nada, é a imagem dos limiares em que se detém este gênio alado, sem poder decidir
entre a luz e a sombra. Benjamin (1984, p. 179) expõe o objeto da contemplação
alegórica: “A melancolia trai o mundo pelo saber. Mas em sua tenaz autoabsorção, a
melancolia inclui as coisas mortas em sua contemplação, para salvá-las.”
A Melancolia I se explica pelos símbolos de Saturno e pelos símbolos da
geometria. Os símbolos associados a Saturno, punho cerrado apoiando a cabeça,
bolsa e chaves, semblante sombrio, são da tradição. Além desses, há outros
conhecidos da tradição, como o cão, associado muitas vezes à disposição saturnina,
o morcego, como símbolo da doença e da vigilância noturna. O mar com pequenos
59
barcos tem várias referencias às viagens de Saturno, o arco-íris e a enchente que
inunda as árvores significam o poder dos melancólicos de prever catástrofes. A
coroa ostentada na fronte significa os poderes intelectuais da melancolia como
antídoto da própria melancolia; outro antídoto é o quadrado do número quatro, como
talismã para atrair as influências curativas de Júpiter, representado
matematicamente. Esses antídotos não são suficientes para desviar a melancolia do
triste destino.
Os utensílios espalhados, como o compasso, o martelo, a plaina, o prédio
inacabado, o bloco de pedra, dizem respeito à ciência da geometria, astrologia e
astrologia, isto é, para a construção e para a interpretação dos astros. A balança
significa a medida do peso e do tempo. Essa alusão às profissões tem relação com a
influência que Saturno exerce sobre as pessoas, ou seja, a tristeza e a melancolia.
Todos os símbolos pertencem à geometria e à melancolia ao mesmo tempo, pois é
Saturno que as governa. Assim a gravura é a figura simbólica unificada em Saturno-
geometria-melancolia.
Depois da análise da gravura Melancolia I, em que privilegia o símbolo,
Panofsky distingue o Dürer da juventude do Dürer da velhice. O Dürer já velho e
doente se dedica aos temas religiosos, principalmente a partir da obra “Os Quatro
Apóstolos” que retrata João, Pedro, Marcos e Paulo. Essa representação pictórica
corresponde aos quatro temperamentos da tradição. Paulo é o melancólico. No
espírito da Reforma, sua melancolia porém não simboliza o espírito da arte, cujo
poder advém da imaginação, mas é o símbolo do homem espiritual, do herói da fé.
Assim a melancolia, para Dürer, sofre uma profunda transformação, como se fosse a
Melancolia III, a do conhecimento religioso, como se a Melancolia I não fosse
suficiente para exprimir a grandeza humana. Panofsky (Klibansky et al., 1989, p.
628) observa o amálgama religioso-humano da Renascença:
Para Aristóteles, o valor da disposição melancólica residia na sua aptidão às grandes realizações em todo domínio possível; a benção que a Idade Média viu na “doença melancólica” foi um bem moral mais do prático, assim protegia o homem das tentações do mundo. Na Renascença, e particularmente em Dürer, a consciência do poder criativo humano
60
misturava-se pela primeira vez com a aspiração da plenitude religiosa. (Trad. Livre).
17
A exaustiva pesquisa de Panofsky sobre todos os cruzamentos históricos
contidos na gravura Melancolia I de Dürer e principalmente sobre a gênese e o
significado da multiplicidade de símbolos, não consegue desvendar por completo a
intenção do artista; isso os autores deixam transparecer quando tratam da relação
entre símbolo e alegoria, onde fica claro que não reconhecem a potencialidade da
linguagem alegórica.
A tarefa de reconhecer a amplitude da linguagem alegórica coube a Benjamin,
na obra Origem do Barroco Alemão. O entusiasmo com o qual ele se refere à
Melancolia I se explica exatamente por esta potencialidade. A linguagem barroca é
alegórica, isto é, dizer várias coisas através de uma coisa só. Nisso ela se distingue
do símbolo. A própria pesquisa de Panofsky conclui, por exemplo, que Saturno tem
uma multiplicidade de significados.
Se o símbolo diz respeito ao momentâneo instante místico em que recebe o
sentido, a dialética da alegoria, afirma Benjamin, consiste no aprofundamento dentro
da distância entre o visual e sua significação. “O estudo da forma do drama barroco
revela mais claramente que qualquer outro a violência deste movimento dialético, no
interior dos abismos alegóricos.” (BENJAMIN, 1984, p. 188). Tal violência dialética
não poderia ocorrer no âmbito do espírito de harmoniosa perfeição do belo, do bom
e do verdadeiro renascentista, por isso Benjamin enfatiza que Melancolia I já
continha tudo do alegórico que iria explodir no Barroco. Enfim, conclui, esta obra
antecipa em muitos sentidos a linguagem alegórica barroca. Benjamin reconceitua a
alegoria em Baudelaire.
17
Pour “Aristote”, la valeur de la disposition mélancolique avait résidé dans son aptitude aux grands accomplissements en tout domaine possible; la bénédiction que le Moyen Âge avait vue dans la “maladie mélancolique” avait été un bien moral plutôt que pratique, en ce qu‟elle protégeait l‟homme des tentations du monde. À la Renaissance, et particulièrement chez Dürer, la conscience de la puissance créatice humaine s‟amalgamait pour la première fois avec l‟aspiration à la plenitude religieuse.”
61
Capítulo II
Melancolia e linguagem
A ideia é algo linguístico, o elemento
simbólico presente na essência da palavra.
W. BENJAMIN ORIGEM DO DRAMA BARROCO
ALEMÃO
2.1. O nome e a escrita
Os conteúdos espirituais (e a vida espiritual) determinam, segundo Benjamin,
a linguagem em sentido amplo e não apenas a comunicação pela palavra. Quando
se fala da linguagem da música, da escultura ou da técnica, não se trata de
conteúdo imediato e específico de cada objeto, mas do conteúdo espiritual das
atividades humanas. Se a língua é sempre expressão humana de conteúdos
espirituais , tudo o que existe na natureza, até os seres inanimados, participam da
linguagem como expressão desses conteúdos. Afirma Benjamin (2000, p. 143):
“Nesse contexto, a linguagem é o princípio que serve para comunicar conteúdos
espirituais nos objetos em questão, técnica, arte, justiça e religião.” (trad. Livre). 18
Tudo se expressa e expressa sua essência espiritual. Nesse sentido, conclui
Benjamin (2000, p. 144s), toda expressão é linguagem:
O que é comunicável em uma essência espiritual é sua essência lingüística. A linguagem comunica as respectivas essências lingüísticas das coisas, mas suas essências espirituais só são comunicadas na medida em que se encontrem encerradas em sua essência lingüística, na medida em que elas sejam comunicáveis. (Trad. Livre).
19
Benjamin faz assim a distinção entre essência espiritual e essência da
linguagem. Em uma língua, por exemplo, o que se comunica é algo que se diferencia
dela: a essência espiritual. Entre essência espiritual e essência linguística existe
18
“Dans ce contexte, le langage est le príncipe qui sert à communiquer des contenus spirituels dans les domaines envisagés,
technique, art, justice ou religion.” 19
“ Ce qui est communicable dans une essence spirituelle, c‟est son essence linguistique. Le langage, par consequent, communiqué quelle qu‟elle puisse être, l‟essence linguistique des choses, mais ne communique leur essence spirituelle que dans la mesure où cette dernière est immediatament contenue dans l‟essence linguistique, dans la mesure où elle peut être communiqué.”
62
apenas o elo que as une ou que as identifica: o que é comunicável. E o filósofo chega
ao primeiro ponto fundamental da reflexão sobre a linguagem: a essência espiritual se
comunica na língua e não através da língua. A essência espiritual é expressa naquilo
que ela é essência de linguagem, comunicável portanto. A essência espiritual de uma
coisa, enquanto comunicável, não é a própria coisa, mas a coisa na expressão e na
comunicação, a coisa-língua. A linguagem é aquilo que é comunicável em sua
essência espiritual e o que é comunicável é a própria língua, sem mediações. A
imediaticidade da comunicação lhe confere o sentido mágico da língua, sua infinitude,
algo incomensurável e único.20 Toda língua comunica-se a si mesma e em si mesma.
Ela é a essência espiritual comunicável das coisas. A essência lingüística das coisas
e do ser humano é a sua linguagem.
Quanto ao ser humano entretanto existe a especificidade da expressão em
palavras. Sua essência espiritual é comunicada quando ele nomeia todas as coisas.
Nomear é a característica própria da língua humana, é a essência de sua linguagem.
Benjamin enfatiza a questão do nomear como central na reflexão sobre a linguagem:
as coisas se comunicam ao homem, por isso ele as nomeia, ou melhor, ele se
comunica ao nomeá-las, o que se dá no conhecimento e na arte, por exemplo. E a
questão central se explicita, segundo Benjamin (2000, p. 147), da seguinte forma:
“...no nome a essência espiritual do homem se comunica a Deus.” (Trad. Livre).21
20
Benjamin voltaria ao tema da magia na linguagem através do ensaio A doutrina das semelhanças, escrito
dezessete anos depois do ensaio Sobre a linguagem em geral e a linguagem do homem. Sobre as semelhanças,
Benjamin afirma que existe a semelhança extra-sensível, aproximando-se das teorias místicas e teológicas, não
significando com isso desconsiderar o âmbito empírico da linguagem. Ele dá o exemplo de palavras, em várias
línguas, com o mesmo significado, que são semelhantes quanto ao significado central, apesar de não terem
nenhuma semelhança quanto ao aspecto empírico. Basta lembrar a relação entre a palavra oral e a escrita, entre
o falado e o intencionado (significado), entre o escrito e o intencionado e entre o falado e o escrito. Essas
ligações se dão pelas semelhanças extra-sensíveis. A gênese da escrita e da linguagem oral advém das
semelhanças localizadas no inconsciente do autor. É a dimensão mágica da linguagem. “O contexto significativo
contido nos sons da frase é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do
relâmpago.” (BENJAMIN, 1985, p. 112). Existe uma leitura que vai além da significação profana para atingir a
significação mágica: o astrólogo, além da leitura da posição dos astros, ele lê também o futuro e o destino a
partir daquela leitura. É algo supra-sensível, ou seja, é o dom mimético que está presente na linguagem, em
forma de semelhanças extra-sensíveis. A força primitiva da percepção do semelhante está na linguagem, o
médium onde tudo se relaciona de forma mágica, isto é, em sua essência: a magia latente na rede de
correspondências extra-sensíveis, como “substancias mais fugazes e delicadas”. (Benjamin, 1985, p. 112). 21
“[...]dans le nom l‟essence spirituelle de l‟homme se communique à Dieu”.
63
Benjamin descarta assim a concepção burguesa que considera a linguagem uma troca
de mercadoria, onde a palavra é o meio, a coisa é o objeto e o ser humano o
destinatário. Para a concepção teológica da linguagem entretanto não se trata de
meio, objeto e destinatário e sim de uma imediatez da comunicação dentro do próprio
nome, essência da língua.
Para Benjamin (2000, p. 148), o nome é a palavra-chave da linguagem, nele a
língua se comunica de forma absoluta e a linguagem se define como a essência
espiritual do homem comunicável.
Por isso o homem é o senhor da natureza e capaz de nomear as coisas. Somente por meio da essência lingüística das coisas chega ele a conhecê-las, partindo de si mesmo – no nome. A criação de Deus completa-se no momento em que as coisas recebem seus nomes do homem, a partir de quem, no nome, só a língua fala. (Trad. Livre).
22
A essência espiritual é a língua que se comunica no nome, em outras palavras,
a comunicabilidade da essência espiritual se efetiva de forma absoluta no nome. A
capacidade humana de nomear, diferentemente da linguagem das coisas, torna o
homem o centro da linguagem, uma vez que toda a natureza comunica-se na língua.
Por esta mesma capacidade pode-se afirmar que o homem é o único que fala.
Partindo do principio de que não existe um conteúdo da linguagem pois ela comunica
uma essência espiritual, ou seja, é comunicabilidade pura e simples, Benjamin expõe o
problema da diferença entre as línguas. Para o filósofo essas diferenças estão nos
meios que se distinguem pela densidade do nomeador e do nome. São esferas que,
distintas, se correspondem.
Equiparadas a essência espiritual e a essência lingüística, Benjamin lança mão
do conceito de revelação da filosofia da religião. Tal procedimento argumentativo não
tem caráter de exegese e nem se fundamenta para Benjamin (2000, p. 152),
objetivamente na Bíblia como base de sua reflexão:
22
“C‟est pourquoi l‟homme est le maître de la nature et peut dénommer les choses. C‟est seulement par l‟essence linguistique des choses qu‟il atteint de lui-même à leur conaissance – dans le nom. La création divine s‟achève lorsque les choses reçoivent leur nom de l”homme. Cet homme à partir duquel, dans le nom, le langue parle.”
64
[...] e a Bíblia é, por ora, insubstituível nesse projeto, somente porque a presente reflexão a segue, segundo o princípio de que, nela, a língua é pressuposta como uma realidade última, passível de consideração somente em seu desenvolvimento, inexplicável e mística. (Trad. Livre).
23
O conceito de revelação expõe o conflito da estrutura lingüística entre o
expresso (exprimível) e o inexprimível (inexpresso). Assim Benjamin (2000, p. 151) o
resolve: “Eis pois nossa tese: quanto mais profundo, isto é, quanto mais existente e
real for o espírito, tanto mais exprimível e expresso...” (Trad. Livre).24 “...no nome a
essência espiritual do homem se comunica a Deus.” (Trad. Livre). 25
Esse é o sentido da revelação: tornar o mais expresso em puramente espiritual
através da íntima relação entre espírito e língua. A essência espiritual expressa tem a
característica divina da intangibilidade do Verbo. É exatamente no nome que se
expressa aquilo que é o espiritual mais elevado, segundo a revelação. A linguagem do
homem, conforme a religião e segundo o conceito de revelação, significa a essência
espiritual mais elevada. Benjamin, ao distinguir a língua das coisas e a linguagem
humana, observa que o som, negado às coisas, é o puro princípio formal da
linguagem. Ainda que as coisas se comuniquem materialmente, há um relacionamento
mágico entre elas. Mas, pelo som, a linguagem humana é imaterial e espiritual em sua
comunicação com as coisas. O homem, segundo a Bíblia, recebeu de Deus o sopro da
vida, isto é, vida, língua e espírito. No relato bíblico, Deus, no próprio ato de criação,
diferencia o homem das demais criaturas: ele é feito de barro e depois recebe o dom
da linguagem, tornando-se superior a elas. Benjamin enfatiza a íntima relação,
existente no relato bíblico, entre ato criador e linguagem, entre o “faça-se” e “ele
chamou”. Benjamin (2000, p. 153) diz: “Ele principia com a onipotência da
linguagem,e, ao final: a linguagem, por assim dizer, incorpora o criado, nomeando-o.”
(Trad. Livre).26
23
[...]” et la Bible n’est au depart indispensable à notre projet que parce que nous la suivrons ici dans son
príncipe en préssupposant avec elle le langage comme une réalité dernière, inexplicable, mystique, qui ne peut
être observée que dans son développement.” 24
“Car ici la thèse declare que plus l‟esprit est profonde, c‟est à dire existent et réel, plus Il est exprimable et exprimé”.
25 “[...]dans le nom l‟essence spirituelle de l‟homme se communique à Dieu”.
26 “Il commence avec la toute-puissance créatice du langage, et pour finir le langage s‟incorpore em quelque sorte le créé, Il le
dénomme.”
65
Linguagem é palavra e nome, o acabamento da criação, ela mesma o elemento
criador. Palavra e nome engendra conhecimento e ato criador que só em Deus
existem de forma absoluta. Benjamin (2000, p. 154) chega então à conclusão
fundamental de sua teoria da linguagem: “Isso significa que Deus fez com que as
coisas fossem cognoscíveis em seus nomes. O homem, porém, as nomeia à medida
do conhecimento.” (Trad. Livre).27
Deus como que outorga ao homem o dom de nomear, isto é, o poder de criar e
o de conhecer. Ele entrega ao homem a língua pela qual havia criado e nomeado a
natureza. Conclui-se pois que a essência espiritual do homem é a língua que
possibilita a criação. Há porém que se fazer aqui a distinção seguinte: o ato criador de
Deus ocorreu no Verbo, na palavra que é a essência linguística de Deus. A linguagem
humana é reflexo do Verbo (criador) no nome (conhecimento). A infinitude da
linguagem humana não é absoluta, não tem o poder criador da palavra de Deus. Ela
se restringe ao conhecimento, ou seja, ao poder de nomear. Eis a distinção que
Benjamin estabelece entre palavra e nome.
O nome é o ponto em que a linguagem humana participa da infinitude do puro
Verbo divino, como palavra finita e conhecimento. Dentre as criaturas, o homem é o
único que nomeia – poder delegado por Deus – e o único que não foi nomeado. O
homem nomeia seus filhos e este nome não corresponde ao conhecimento do
nomeado, mas significa a palavra criadora de Deus, ou seja, sua criação expressa
pelo homem. Nesta ligação com a palavra criadora, conclui Benjamin (2000, p. 156), o
homem se une à língua das coisas. “A palavra humana é o nome das coisas.” (Trad.
Livre).28
É uma outra comunhão com a palavra criadora de Deus. Por isso Benjamin refuta a
concepção burguesa de linguagem, que não passa de convenções de signos
inventados. Por outro lado, observa o filósofo (2000,p. 156), a palavra não é a
essência da coisa. Assim ele esclarece este ponto fundamental de sua teoria:
27
“C‟est-a-dire: Dieu en leur donnant un nom, a rendu les choses connaissables; mais c‟est dans la mesure ou Il les connaît que l‟homme leur donne um nom”. 28
“Le verbe humain est le nom des choses”.
66
[...] pois a coisa em si não tem a palavra, ela foi criada da palavra de Deus e reconhecida em seu nome segundo a palavra do homem. Esse conhecimento da coisa não é, contudo, uma criação espontânea, ele não acontece, como a criação, a partir da língua , de maneira absoluta, ilimitada e infinita; o nome que o homem dá à coisa repousa sobre a maneira com que ela se comunica a ele.” (Trad. Livre).
29
Desta maneira a palavra de Deus se irradia das coisas, não como criação,
mas como magia muda no nome: é como a natureza se comunica ao homem.
Benjamin introduz neste contexto o conceito de tradução, no sentido da tradução da
linguagem das coisas na linguagem dos homens. Ela é linguisticamente a conexão
entre concepção e espontaneidade. Trata-se de um conceito amplo que abrange os
estratos mais profundos da teoria da linguagem . Não se trata portanto de
igualdades e semelhanças abstratas e fixas, afirma Benjamin (2000, p. 157), “A
tradução é a transposição de uma linguagem para outra por meio de um continuum
de transformações.” (Trad. Livre).30 A tradução da língua das coisas para a língua
dos homens agrega conhecimento, pois esta é mais perfeita, não é muda e, além
disso, é tradução do nome para o que não tem nome. A tradução agregada de
conhecimento é possível porque as coisas contêm a palavra criadora de Deus que
as nomeou. O homem também nomeia pela língua, isto é, traduz a mudez das
coisas em sons. Nisto consiste a origem da língua e do conhecimento: a palavra
criadora de Deus. Pela palavra, o homem torna-se linguisticamente perfeito ao
receber a comunicação muda das coisas no nome. É a visão paradisíaca do
surgimento da linguagem humana conforme a narrativa bíblica. Na imagem do signo
dado por Deus a cada animal dá-se a comunhão lingüística entre a natureza muda e
o próprio Deus, origem da comunhão lingüística entre coisas e homens.
A tradução existe na tensão destruição-reconstrução. Esta radical
duplicidade é uma característica do método reflexivo benjaminiano: a dialética do
paradoxo que nunca se resolve num desfecho unificador. Na tradução se manifesta
29
“ [...] parce que la chose en elle-même n‟a aucun verbe, créé à partir du verbe de Dieu, elle est
connue dans son nom selon le verbe humain. Cette connaissance de la chose pourtant n‟est point une création spontannée, elle ne naît point du langage, comme la creation, de manière absolument illimité et infinite, mais le nom que l‟homme done à la chose repose sur la manière dont elle se communiqué à lui.” 30
“La tradution est le passage d’un langage dans une autre par une série de metamorphoses continues.”
67
a persistente tensão entre o texto original e sua atualização em novo contexto, ou
seja, o reescrever o texto original e sua língua para outra língua e para outro
contexto. Trata-se portanto de passagem para o estranho, para o estrangeiro. A
melancolia da reflexão benjaminiana sobre a linguagem reside exatamente na tensa
relação entre original e a tradução. O original tem o peso e a gravidade das
significações; a tradução tem a leveza e a fugacidade da língua. Nesse paradoxo se
instaura a melancolia, que emergiu da desagregação e perda da condição
paradisíaca. A única possibilidade de recomposição é a aproximação com o original,
ou seja, a tradução que jamais se identifica com ele. A tradução se aproxima do
original através da reflexão melancólica, ela toca fugazmente sua superfície e segue
o caminho caracterizado pela liberdade e fidelidade da língua em direção ao infinito.
Benjamin ao enfatizar que é a palavra – o nome, a imagem, a escrita como
enigma – o espaço aberto para a tradução, está reafirmando os fundamentos da sua
teoria da linguagem. De fato, seu método de reflexão filosófica abrange com clareza
o tema da tradução, pois se conecta com os temas da origem, da melancolia, do
messianismo, assim como os da morte, ruína, da atualização e do despertar... e
enfim, da concepção de historia. Melancolicamente o historiador, como o tradutor,
renomeia, dá a sobrevida do já ocorrido ou das obras mortas. As ruínas se
transformam em imagens, ou seja, em enigmas de sublime negatividade, matéria
prima do alegorista. É exatamente isso que Benjamin faz com a citação: transforma
a tradição – o ocorrido, o já morto – em imagens de atualização a serem
reestruturadas. Isso é possível pelo método da montagem, ou seja, utilizar os restos,
o lixo. Trata-se aqui da morte e de sua ultrapassagem para o mais elevado; morte
tanto com relação à linguagem, como com relação à história. A linguagem tem uma
história e a história pertence à linguagem.
É impossível não se lembrar aqui da Melancolia I de Dürer, quando se reflete
sobre o tema da tradução: a enigmática figura alada rodeada de objetos da ciência e
da técnica espalhados pelo chão é um retrato da perplexidade ante a perda da
capacidade de criar a representação perfeitamente fiel dos objetos. A representação
alegórica totalmente arbitrária é pura representação que não coincide com o objeto
68
representado. O estado melancólico se instala no ato de traduzir, que ora se
distancia, ora se aproxima do original e por vezes tem a falta de sentido e se
presentifica na oscilante alternância entre euforia e desânimo, quando pretende ler
interpretativamente um texto. A melancolia adere a este paradoxo, quando se
empreende toda sorte de tradução. Somente uma reflexão que aceita o paradoxo faz
da ambigüidade melancólica uma ambigüidade produtiva, sem jamais cair na acídia
das impossibilidades, antes, pelo contrário, torna a tradução possível.
Compreendido o sentido de tradução, Benjamin (2000, p. 159) passa a
considerar a linguagem humana a partir da queda:
Somente na tradução, que a linguagem das coisas pode penetrar na linguagem do conhecimento e do nome – pois assim que o homem caiu do estado paradisíaco, que conhecia uma só língua, há tantas traduções quanto línguas. (Trad. Livre).
31
Tradução e queda são os conceitos com os quais Benjamin passa a expor sua
teoria da linguagem, depois de esclarecer a origem (não no sentido de gênese) de
toda linguagem. Há, por assim dizer, uma escala que vai da palavra muda à palavra
criadora de Deus, passando pela palavra nomeadora do homem. Nesses três níveis
se baseia a pluralidade das línguas humanas. Com efeito, depois da queda, a única
língua se multiplica, pois se multiplicam as traduções como forma de nomear e
conhecer. Se a linguagem paradisíaca única permitia o conhecimento único perfeito,
todo o conhecimento multiplicado ao infinito é de um nível inferior.
Seguindo a narrativa bíblica, Benjamin prossegue sua argumentação teológica
da teoria da linguagem, introduzindo os temas do conhecimento do Bem e do Mal,
do pecado original, do julgamento, da culpa e da punição. O elo rompe-se no
momento em que o homem, seduzido pela serpente, quer saber o que é bom e o
que é mau, ou seja, desvendar os frutos da árvore da vida, apesar de Deus ter visto
que tudo o que criara era bom. Ora, esse conhecimento do Bem e do Mal é
desprovido de nome, inócuo portanto, imitação da palavra criadora, enfim, o único
31
“C‟est en traduction seulement que le langage des choses peut passer dans le langage de la connaissance et du nom – autant de traductions, autant de langues, dès lors que l‟homme est déchu de l‟état paradisiaque, lequel ne connaissait qu‟une seul langue.”
69
mal do estado paradisíaco. Benjamim (2000, p. 159s) descreve esse momento
crucial da linguagem humana:
O nome sai de si mesmo nesse conhecimento: o pecado original é o momento do nascimento da palavra humana, na qual o nome não vive mais intacto; essa palavra que partiu da língua que nomeia, da língua que conhece, pode-se dizer, da própria magia imanente, para tornar-se expressamente mágica, por assim dizer, de fora para dentro. A palavra deve comunicar “algo” (além de si mesma). Esse é realmente o pecado original do espírito linguístico. (Trad. Livre).
32
A tradução depois da queda se torna uma paródia de tudo o que foi exposto
anteriormente sobre a linguagem e sua origem. Realmente esta palavra humana não
é mais a que nomeia e conhece na magia imanente do nome, porém a que
comunica algo fora de si mesma. Nisso consiste o pecado original linguístico: a
quebra do espírito adamítico e da relação lingüística com Deus. Sem a magia
imanente do nome, a palavra que conhece o Bem e o Mal é a própria palavra
comunicante, pura tagarelice, segundo Kierkegaard.33 Mas essa tagarelice tem sua
própria magia: o conhecimento do Bem e do Mal julga e pune (o homem provoca
sua própria expulsão do paraíso). No julgamento a palavra desperta em si a culpa
radical. A pureza do nome é substituída pelo rigor da pureza do julgamento. A partir
do momento desta ruptura (pecado original) com a língua do nome, a língua do
homem se converte em signos, daí a multiplicidade das línguas; sem a
imediaticidade do nome, surge a magia do julgar e, finalmente, disso decorre a
abstração. A imediaticidade da comunicação na abstração ocorre no julgar, na
palavra como meio. A imediaticidade da comunicação no concreto só pode ocorrer
32
“ Dans cette connaissance, le nom sort de lui-même: le péché originel est l‟heure natale du verbe humain, celui em qui le
nom ne vivait plus intact, celui qui était sorti du langage qui nomme, du langage qui connaît, on peut dire que sa propre magie immanente, pour se faire magique, expressément em quelque sorte du dehors. Le mot doit communiquer quelque chose (en dehors de lui-même). Tel est réellement le peché original de l‟esprit linguistique.” 33
Segundo nota dos tradutores para o francês, este texto de Benjamin Sobre a linguagem em geral e sobre a
linguagem do homem foi redigido em 1916 e permaneceu como fonte de referência para suas reflexões
posteriores até a década de 1930. Nas páginas finais de Origem do drama barroco alemão, Benjamin retoma
exatamente esta passagem do ensaio sobre a linguagem dentro do contexto da alegoria. O saber do mal (os vícios
absolutos encarnados pelos tiranos e intrigantes) não tem objeto, é um saber nulo, como afirma o filósofo. O mal
representado no drama é simplesmente alegoria, isto é, significa outra coisa. Essas representações só existem na
meditação profunda do sujeito: são frutos de sua melancolia. Em outras palavras, o mal só existe no homem, na
sua vontade de saber, de conhecer o Bem e o Mal. Para tanto, o sujeito volta-se para si mesmo em profunda
meditação, o que significa: subjetividade última e pura melancolia. Benjamin formula o conceito de melancolia
no drama barroco trazendo as reflexões sobre a linguagem para o tema da alegoria: a perda do nome e dos
elementos concretos instaura o terreno da especulação abstrata, aquela que julga e pune, graças à contemplação
subjetiva do melancólico. (Cf. Benjamin, 1984, p. 256).
70
no nome – que o homem abandonou no pecado original. A árvore do conhecimento
estava no paraíso como emblema do julgamento.
A loucura que foi a confusão total das línguas, concretizada na construção da
torre de Babel, significa a consequência inevitável da violação da pureza do nome
em uma língua mediada pela palavra. As línguas se multiplicam, os signos se
confundem. Babel surge da escravidão das coisas nessa loucura. Se a natureza
muda de antes da queda era feliz ao ser nomeada pelo homem, depois da queda
porém cai em profunda tristeza, que é um outro mutismo, depois de amaldiçoado por
Deus, como explica Benjamin (2000, p. 163): “Ser privado da linguagem, tal é o
grande sofrimento da natureza (e é para redimi-la que o homem vive e fala, não
somente o poeta, como geralmente se supõe.)”. (Trad. Livre).34 Invertendo-se a
ordem natural, pode-se afirmar que é a tristeza que emudece a natureza. O silêncio
da privação da linguagem paradisíaca, do sentir-se conhecida pelo incognoscível, ou
seja, por centenas de línguas onde não existe mais o nome, é o que emudece a
natureza. Não existe mais o nome próprio tal qual no ato da criação; o que há é a
sobredenominação das línguas humanas, essência lingüística da tristeza e do
emudecimento.35
Para Benjamin o homem se distanciou da linguagem paradisíaca perfeita e se
envolveu em um emaranhado de línguas falantes, na trágica Babel. Nas
considerações finais deste ensaio sobre a linguagem, Benjamin trata das formas
artísticas como linguagem diferenciada por sua conexão com a linguagem da
natureza. Benjamin observa uma possibilidade de línguas mais elevadas: as línguas
não acústicas, inominais que partem da matéria. É à linguagem da escultura e da
34
“Être privée de langage, telle est la grande souffrance de la nature (et c‟est pour la délivrer que vît et parle dans la nature
l‟homme, et non pas seulement, comme on le suppose en general, le poète)”. 35
Susana Kampff Lages, em sua tese de doutorado Walter Benjamin – tradução e melancolia, observa que o
tema da melancolia está explicito neste ensaio sobre a linguagem exatamente na sua relação com a tradução ou
traduzibilidade das línguas. Na dialética benjaminiana do paradoxal – a que se deixa apreender em seus termos
contraditórios, sem intenção de unificação – a mudez das coisas é seu índice de sua perfeição e de sua
imperfeição ou de seu acabamento e de seu inacabamento.”Em si e para si a natureza é perfeita; mas é em
relação ao homem e à sua linguagem que a natureza revela-se inacabada e, nesse inacabamento, que é sua
mudez, está uma tristeza, atualizável unicamente pela língua humana”. (Lages, 2009, p. 209). O paradoxal,
explica Lages, aparece no duplo desta tristeza: a tristeza natural de antes do pecado original e que advém da
mudez se converte, depois do pecado, em origem da mudez. A melancolia, portanto, se revela nesta relação
marcada pelo inacabamento, na imperfeição da tradução e da traduzibilidade das línguas. (cf. Lages,2009).
71
pintura que ele se refere. Essa arte, diz Benjamin (2000, p. 164), parte da matéria,
ou seja, existe“...a comunidade do universo das coisas considerada em seu poder
de comunicação.” (Trad. Livre). 36
Mas há também na linguagem artística acústica, como é o caso da música e do
canto mais especificamante, sua imediata afinidade com o canto dos pássaros. No
caso da linguagem artística, Benjamin enfatiza que a linguagem em geral só é
compreendida na sua relação fundamental com os signos. E o filósofo finaliza o
ensaio observando que existe nas relações entre linguagem e signos o símbolo do
não-comunicável, algo que vai além da função comunicável da linguagem, presente
tanto no nome como no julgamento.
A tese benjaminiana da linguagem é compreendida, numa visão teológica,
como o meio dentro do qual a essência espiritual de um ser se comunica. A
linguagem implica portanto três aspectos fundamentais: a comunicação se dá no
meio e não através dele, é comunicação da essência espiritual de um ser e ela se
comunica a, isso quer dizer: existe um fluxo de comunicação. A comunicação é o
movimento que vai de Deus até o ser mais inferior da natureza, passando pelo
homem. Toda a natureza possui uma língua muda e sem nome. O homem se
comunica a Deus no nome que dá à natureza, de acordo com a comunicação que
recebe dela, e também no nome que dá a seus semelhantes. O homem nomeia a
natureza pelo resíduo da palavra criadora de Deus, o que significa conhecimento e,
acima dele, julgamento.
2.2. Símbolo e alegoria.
Ao tratar da alegoria no drama barroco, Benjamin procura expor o conceito
autêntico de símbolo, diverso daquele decorrente dos estetas pós-românticos. O
conceito autêntico está no âmbito teológico diferente do sentimentalismo daqueles
36
“...la comminauté matérielle des choses dans leur communication.”
72
estetas. Benjamin fala em usurpação e uso fraudulento do conceito de símbolo,
exatamente quando o simbólico dissocia a forma do conteúdo, ora perdendo o
conteúdo na análise formal, ora perdendo a forma na análise estética do conteúdo.
Isso se deve ao fato de que a manifestação de uma ideia é caracterizada como
símbolo. A concepção teológica do símbolo parte da unidade sensível que aparece
deformada na análise daqueles teóricos, justamente na relação entre manifestação e
essência.
Da mesma maneira como já havia demonstrado que o drama barroco é
distinto da tragédia como forma autônoma em toda sua espeficidade e alcance,
Benjamin (1984, p. 184) defende que o estilo alegórico não desempenha o papel
subalterno em relação ao símbolo, como simples ilustração, ou como “...o particular
que só vale como exemplo do universal”, segundo palavras de Goethe.
Mas ela foi encoberta pelo veredicto do preconceito classicista. Este consiste, numa palavra, em denunciar a alegoria vendo nela um modo de ilustração, e não uma forma de expressão . As páginas seguintes tentarão demonstrar, pelo contrário, que a alegoria não é frívola técnica de ilustração por imagens, mas expressão como linguagem e como escrita.
O romantismo, afirma Benjamin, teve o mérito de desencadear o debate
sobre a relação entre símbolo e alegoria, ou melhor, sobre o papel que cada uma
dessas figuras de linguagem desempenham tanto na forma literária quanto na forma
gráfica. De fato, refuta Benjamin (1984, p. 182), os teóricos do romantismo
simplesmente descartaram a forma de expressão alegórica, reduzindo-a a mera
ilustração por imagens. “Seu coração (do indivíduo perfeito) se perde na bela alma.
E o raio de ação – ou melhor, o raio cultural – desse indivíduo perfeito, desse belo
indivíduo, coincide com o círculo do simbólico.” Assim era o pensamento do século
XVIII fundado na hegemonia do símbolo, onde o preconceito classicista não permitiu
nenhuma discussão sobre o alegórico como forma de expressão. Se a escrita, para
os teóricos deste século, era um sistema convencional de signos, o alegórico em
nada se diferenciava desta escrita. Nesta postura se constata novamente a tese
segundo a qual é o classicismo – a arte do símbolo – que precede e fundamenta o
73
barroco. Em outras palavras, a alegoria não é a lei estilística do barroco, mas se
reduz a simples técnica.37
Benjamin destaca a obra de Creuzer, Mythologie, onde o crítico expõe a
teoria do símbolo, segundo a qual, a essência do símbolo é caracterizada pela
clareza e concisão, como um espírito aparecendo repentinamente, como um raio
iluminador momentâneo, total, insondável e necessário. Com razão, conclui
Benjamin (1984, p. 186), por essas características, a alegoria se distancia do
símbolo, pois este tem a clareza, graça e leveza. “Da purificação do pictórico, por
um lado, e da renúncia voluntária do desmedido, por outro, brota o mais belo fruto
da ordem simbólica”. Esta afirmação de Creuzer, observa Benjamin, exemplifica
bem o fato de o classicismo buscar no humano “a suprema plenitude do ser” e ter
adotado o simbólico como única possibilidade e ter desprezado o estilo linguístico
alegórico.
Para por fim a esta exaustiva discussão sobre o tema da diferenciação
símbolo-alegoria, Benjamin parte da posição de Görres, segundo a qual símbolo é
signo das ideias, sempre igual a si mesmo e alegoria é copia dessas ideias, sempre
em progressão com o tempo, em constante transformação, portanto. Combinados
assim o aspecto momentâneo com a dimensão natural do constante
desenvolvimento, tem-se a solução conclusiva desta discussão: o símbolo tem sua
medida temporal no instante místico em que recebe o sentido e a alegoria se dá na
dialética em que mergulha no abismo entre o ser visual e sua significação. Em
outras palavras, aí não brilha momentaneamente o relâmpago do sentido. Benjamin
(1984, p. 188) observa: “O estudo da forma do drama barroco revela mais
claramente que qualquer outro a violência deste movimento dialético , no interior dos
abismos alegóricos”.
37
É interessante observar que nas pesquisas de Klibansky ( Klibanzky et al. 1989 ), sobre a gravura Melancolia I
de Dürer, fica clara a característica específica desta representação gráfica : a intenção alegórica. Daí a afirmação
de Benjamin: “Essa gravura antecipa sob vários aspectos o Barroco”. E, sem dúvida, uns dos aspectos é sua
forma de expressão alegórica, totalmente diversa da linguagem como sistema convencional de signos. Isso ficou
plenamente reconhecido por esses pesquisadores, conforme foi exposto no capítulo anterior deste trabalho.
74
A relação entre símbolo e alegoria só pode ser tratada tendo como referência
a dimensão histórica, isto é, a categoria do tempo. Ao se falar em símbolo, fala-se
em transfiguração, em metamorfose da natureza em declínio e de sua salvação. Na
alegoria porém, diz Benjamin (1984, p. 188), a história é o rosto paralisado,
prematuro, sofrido e malogrado. “Mas se a natureza desde sempre esteve sujeita à
morte, desde sempre ela foi alegórica.” A forma alegórica de expressão é a
linguagem própria do Barroco, única capaz de mostrar a concepção barroca da
historia, ou seja, a historia do sofrimento, a historia escrita no rosto da natureza, da
natureza (physis) sujeita à morte. A alegoria, em última análise, significa a história
como o Barroco a concebia e, mais precisamente, significa a morte.
Na sua etmologia, alegoria é dizer uma coisa para significar outra: allos, outro
e agorein, falar na ágora, falar publicamente. Alegoria é dissociar significante do
significado. Referindo-se ao Barroco, que substituiu a cultura clássica alemã, depois
de seu colapso, Benjamin (1984, p. 77) afirma: “A isso se acrescenta a busca de
um estilo violento que esteja à altura da violência dos acontecimentos históricos.”
Refere-se portanto ao colapso da clareza e distinção da linguagem simbólica e
abstrata da ciência e do more geométrico. O estilo linguístico violento deixa
transparecer uma carga melancólica. Benjamin (1984, p. 187) caracteriza a
melancolia:
A alegoria não está livre de uma dialética correspondente, e a calma contemplativa com que ela mergulha no abismo que separa o Ser visual e a Significação, nada tem da auto-suficiência desinteressada que caracteriza a intenção significativa e com a qual ela tem afinidades aparentes.
Mergulhar no abismo que separa o Ser visual e a Significação não é senão
entregar-se à contemplação melancólica. Um objeto só é transformado em
significação alegórica, após sua morte. Matar o objeto, arranca-lo de seu contexto é
negar-lhe qualquer possibilidade simbólica e dar-lhe múltiplos sentidos, todos eles
remetendo à morte. Essa violência alegórica barroca já estava estampada na
representação gráfica da obra de Dürer Melancolia I, em tudo o que ela tem de
enigmático e triste. Essa expressão é uma confluência de historia e natureza, onde
75
natureza significa sujeição ao ciclo mítico do destino, da catástrofe e da morte, o
que é impensável sem a postura melancólica.
Contra o caráter cambiante da natureza ou da historia-destino, só há um
remédio: pela significação, conhecer as coisas criadas. Somente a significação é
estabilidade, ou seja, é antídoto contra as mudanças. O conhecimento das coisas
criadas possibilita compreender a grandeza de Deus. Sobre a representação
emblemática, Benjamin (1984, p. 193) comenta:
Pois para o Barroco a natureza era dotada de fins na medida em que sua significação podia exprimir-se, em que seu sentido podia ser representado emblematicamente, de forma alegórica e como tal irreconciliavelmente distinto de sua realização histórica.
No estudo para monumentos fúnebres do arquiteto renascentista Alberti, há
uma comparação entre a escrita alfabética e os sinais egípcios dos
hieróglifos:38esses sinais permanecem enquanto a escrita alfabética cai no
esquecimento. Alberti e seus colaboradores passaram a escrever não com letras
mas com imagens de coisas. À maneira egípcia, essa escrita misteriosa esconde o
conhecimento enigmático das coisas criadas e remete à compreensão da dignidade
de Deus. Eis como o alegorista pode estabilizar a história pela significação, conclui
Benjamin. No drama barroco alemão, portanto, a natureza significativa designa o
conhecimento das coisas criadas. É um ensinamento secreto, enigmático onde a
natureza significativa exprime emblematicamente seu sentido, de forma alegórica. A
alegoria mostra a fácies hippocratica da historia, na fisionomia rígida da natureza,
estabilizada, petrificada no adereço cênico do Barroco.
Benjamin procura compreender a origem da expressão alegórica citando os
teóricos, como Herder e os alemães do período barroco, Gryphius e Opitz. Descobre
assim a convergência da linguagem emblemática pictórica egípcia, grega e cristã. O
oculto e o misterioso não era outra coisa que a forma adequada de expressão da
sabedoria das coisas celestes; uma teologia portanto. Essas imagens continham o
38
Nos hieróglifos egípcios, deus é representado por um olho, o tempo por um círculo, a natureza por um abutre e
a paz por um boi.
76
ensinamento oculto do temor a Deus, abrangendo todas as esferas da ciência e da
moral. Para este fim, a natureza dispõe de um numero ilimitado de imagens, isto é,
de emblemas. Da contemplação desses emblemas, o homem adquire os
ensinamentos sobre as virtudes. É isso que acontece no drama barroco; a natureza
apresentada no palco como história é impregnada de imagens, isto é, de emblemas,
de adereços cênicos. Qualquer objeto – natural ou artificial – pode ser transformado
em imagens, em emblemas. Buscando a significação – o conhecimento ou o
ensinamento – no universo das coisas, a alegoria torna-se um estilo sem limites,
onde tudo pode simbolizar tudo, no mergulho em um abismo.
Existe de fato um abismo obscuro entre a profusão de imagens – signos,
emblemas – e a significação. Nisto consiste o estilo violento do Barroco: a alegoria.
Benjamim ( 1984, p. 163 ) comenta o conflito do melancólico:
[...]e, em parte, ( o interesse apaixonado pela pompa ) resultava da tendência pela qual a meditação se sentia atraída pela gravidade. Nela, a meditação reconhece seu próprio ritmo. A afinidade entre o luto e a ostentação, tão magnificamente comprovada pela linguagem do Barroco, tem aqui uma de suas raízes, do mesmo modo que a auto-absorção, para a qual essas grandes configurações da crônica mundial parecem um simples jogo, que sem duvida vale a pena contemplar em vista das significações que nele é possível seguramente decifrar, mas cuja repetição infinita ajuda os humores melancólicos, com seu desinteresse pela vida, a consolidar seu domínio.
O mergulhar no abismo entre o visual e a significação com a calma
contemplativa diz respeito à meditação, à reflexão profunda, ao voltar-se sobre si
mesmo, ou seja, à melancolia. A linguagem barroca é caracterizada pela afinidade
entre a pompa e o luto, o que, na perspectiva da alegoria, se traduz pelo universo
das significações e pela reflexão profunda no abismo que separa as coisas das
significações. A calma contemplativa, a meditação não é outra coisa senão
melancolia inerente à linguagem barroca.
O luto está na origem da alegoria. Com efeito, ela surgiu do embate entre
mundo clássico pagão dos deuses contra a doutrina cristã medieval. Como já foi
exposto anteriormente, foi pela alegoria que os deuses clássicos sobreviveram
justamente pela liberdade poética da expressão alegórica. O mundo antigo dos
77
deuses e sua sobrevivência é a mais convincente das características da expressão
alegórica: o poder de salvar as coisas da transitoriedade. A melancolia faz parte
desta tensão entre o transitório e o eterno. Benjamin, além do conceito de
transitório, insere nesta análise o conceito de culpa.39A culpa se presentifica tanto
naquilo que deve ser salvo, como nas coisas significadas. E a culpa não permite que
as significações mostrem em si mesmas o seu sentido. Ela se instala tanto na
contemplação alegórica, - e já se sabe que é esse saber que trai o mundo – quanto
nos objetos da contemplação. Mas de onde advém a culpa? - A culpa advém da
queda da criatura. Com a queda da criatura, toda a natureza também cai e, como
não tem voz, se torna triste. A alegoria inverte esta ordem: é a tristeza que torna a
natureza muda. A natureza emudece por causa do luto, ou seja, da tristeza, da
melancolia, e passa a ser conhecida pelo incognoscível. A natureza passa a ser
nomeada (conhecida) por outro, o que equivale dizer: recebe a significação, quando
é simplesmente lida pelo alegorista. Benjamin (1984, p. 248) estabelece a relação
entre culpa e alegoria:
Em tudo em que existe a culpa, seja o mundo antigo, seja a natureza culpada, existe a tristeza e a mudez. Por outro lado, quanto mais a natureza e a antiguidade são vividas como culpadas, mais imperativa se torna sua interpretação alegórica, que representa apesar de tudo a única redenção possível.
Ora, na visão barroca da história como destino, uma única saída possível,
sob o ponto de vista da linguagem, é salvar a natureza da tristeza e da mudez e isso
só é possível pela alegoria. Ao se comparar os dois textos, o de 1916 sobre a
linguagem e o de 1925 sobre o drama barroco, pode-se perceber que Benjamin deixa
clara a distância entre o nomear paradisíaco original do homem para com a natureza
e o nomear ou o ler para com as coisas tristes e mudas de uma natureza decaída.
Aqui existe apenas o saber que trai o mundo na tentativa de estabiliza-lo, ou de salva-
lo. A melancolia é inerente a esse processo tenso que vai da extinção à tentativa de
salvação.
39
Nesta questão da expressão alegórica do Barroco, Benjamin recorre mais uma vez ao ensaio de 1916 Sobre a
linguagem em geral e sobre a linguagem do homem, tratado anteriormente neste capítulo da presente dissertação.
O conceito de culpa é imprescindível para a exposição do tema da melancolia quando se analisa a linguagem
barroca.
78
2.3. A escrita e o olhar melancólico
Aquilo que eu gosto no teu corpo é o sexo.
Aquilo que eu gosto no teu sexo é a boca.
Aquilo que eu gosto na tua boca é a língua.
Aquilo que eu gosto na tua língua é a palavra.
JULIO CORTÁZAR, PAPÉIS INESPERADOS
A palavra história está escrita na natureza com os caracteres da
transitoriedade, afirma Benjamin ao considerar a concepção de história pelo drama
barroco. É a história-natureza vista como ruína. Escrita ou ruína devem ser
entendidas, nesta análise, como imagens: daí toda a força deste drama residir
primordialmente na escrita – nas coisas da natureza – apresentada pela alegoria.40
Reafirmando o poder da imagem, ou seja, do drama enquanto texto escrito, Benjamin
não quer de maneira alguma negar a importância da encenação, como o fizeram os
críticos do drama barroco alemão. Estes, diz Benjamin (1984, p. 207), pressentiram o
valor da escrita ao afirmar erroneamente que os textos da dramaturgia barroca alemã
nunca foram encenados:
Pois a alegoria é o único divertimento, de resto muito intenso, que o melancólico se permite. É verdade que a pomposa ostentação com que o objeto banal parece irromper das profundidades da alegoria logo reassume seu triste aspecto cotidiano, e é verdade que a fascinação do enfermo com o pormenor isolado e microscópico cede lugar à decepção com que ele contempla o emblema esvaziado, ritmo que o observador especulativo pode encontrar repetidamente, e de forma muito expressiva, no comportamento dos símios. Mas os detalhes amorfos, que só podem ser apreendidos alegoricamente, continuam surgindo.
O presente trabalho de dissertação, ao focalizar a característica melancólica
da configuração barroca, deve ressaltar esta mesma característica como fundante da
40
Olgária Matos estabelece com clareza o sentido histórico de imagem no pensamento benjaminiano: se na
Reforma o fervor iconoclasta baniu a imagem, vista como puro simulacro, o Barroco da Contrarreforma
considerou positiva a função da imagem em sua dimensão intrínseca, concreta e histórica, independente do
original ao qual se refere. Esse embate entre a demonização e a aceitação da imagem teve seu auge no império
bizantino cristão, protagonizado pelos iconoclastas e iconófilos. No entanto não é uma questão puramente
religiosa de culto, mas diz respeito à discussão filosófica da relação entre natureza e espírito, ficção e realidade,
mundo e Deus. À concepção iconoclasta da imagem como engano ou como vertigem do pensamento
corresponde a metafísica iluminista. A história da razão se previne contra artistas e oradores que seduzem pelo
brilho enganador que embaralha a visão. Entretanto para Benjamin, conclui a autora, a imagem não depende
mais da realidade nem do original metafísico, mas de seu alcance histórico, em seu valor interno, sem
transcendência nem escatologia. O emblema para o filósofo é “argúcia, artifício e engenho.” (cf. Matos, Olgária,
2010, p. 133ss).
79
alegoria, estilo linguístico único capaz de revelar os conteúdos de verdade do drama
barroco alemão. “Nas condições da fragmentação e do despedaçamento alegórico,
que prevaleciam no Barroco, a imagem da tragédia grega aparecia como a única
possível, como a imagem natural da tragédia em si”. Benjamin (1984, p. 211) vê nas
traduções realizadas por Hölderlin da obra de Sóflocles um indício de como a tragédia
antiga passou a ser lida com outro registro, outra chave.
Mais de uma vez Benjamin se refere às ruínas do mundo clássico, que a
alegoria ressignifica: “Sua teoria da tragédia junta uma por uma, como fragmentos
sem vida, as leis da tragédia antiga, e as agrupa em torno de uma figura alegórica
representando a musa trágica.” Impossível não pensar aqui na Melancolia I de Dürer.
Benjamin (1984, p.208ss) alude ao “...triste e desolado estado de dispersão” dos
emblemas que passam a tomar o lugar dos personagens. Essas imagens – ruínas,
emblemas – são a própria escrita em que palavras, sílabas e letras tomam o lugar
das pessoas, sem falar de todo o reino de objetos inanimados como personagens no
lugar de pessoas. A visão alegórica se caracteriza pela fragmentação e dispersão e
isso não é outra coisa que o cenário de desolação e tristeza, ou seja, o estado
melancólico. Totalidade e fragmentos: é nisto que consiste, segundo Benjamin, toda a
distinção entre símbolo e alegoria. O estilo violento barroco despedaça o belo corpo
humano, símbolo do humanismo clássico, e espalha os pedaços no campo fértil da
significação.Benjamin (1984, p. 209) compara a alegoria à corte:
[...] em sua expressão mais completa, a do Barroco, a alegoria traz consigo sua própria corte, em torno de cujo centro (que nunca está ausente na verdadeira alegoria, ao contrário do que acontece com os conceitos) agrupam-se os emblemas , em toda sua riqueza...As leis dessa corte são a dispersão e a conjunção.
Nestas palavras, que lembram tanto a representação gráfica de Dürer como
sua própria teoria do conhecimento, Benjamin relaciona a alegoria com a corte
barroca, confusa e ao mesmo tempo elegante. Ou ainda: a alegoria pode ser
comparada com a arquitetura dentro das fronteiras entre os excessos construtivos e a
elegância decorativa. Na alternância dispersão-conjunção, a conjunção se dá
exatamente no extremo da ordem galante da significação; mas as coisas voltam a se
dispersar sempre neste cenário de fragmentos amontoados desordenadamente. Ao
80
afirmar que esses fragmentos – emblemas, ruínas, imagens – agrupam-se, em toda a
sua riqueza, em torno do centro da alegoria, Benjamin (1984, p. 57) deixa claro que
se trata de fenômenos em toda sua diversidade e não de conceitos que nivelam os
fenômenos na média. “Elas (as ideias) permanecem escuras, até que os fenômenos a
reconheçam e a circundem”, ele afirma nas Questões introdutórias de crítica do
conhecimento.
A alegoria barroca pode ser considerada como o estilo linguístico que
violenta a poética da tragédia antiga, cujas leis são transformadas em fragmentos
mortos e agrupados em torno da figura alegórica da musa trágica. Benjamin reforça
mais uma vez a distinção entre tragédia e drama, agora sob o ponto de vista da
linguagem. Ele rejeita a interpretação errônea classicista segundo a qual o drama
barroco deveria se enquadrar nas leis da tragédia antiga, pelo simples fato de esta
interpretação ter ignorado a essência e a especificidade deste drama.
Benjamin (1984, p. 204) estabelece uma relação interessante entre o estilo
barroco alegórico e a religião. A religião também contribuiu para a concepção da
história como história-natureza do barroco, justamente quando trata de temas da vida
concreta, como nascimento, casamento, morte, luta, conquistas de suas figuras
sagradas. “O instante místico se converte no „agora‟ atual; o simbólico se deforma no
alegórico.” O que resta desta transformação é a imagem viva, em todo seu realismo
fenomênico. As representações pictóricas reforçam esta transformação, onde o
eterno é separado da história – da salvação, em se tratando de religião – quando
carregam nas tintas da expressão realista do primeiro plano das telas. Neste plano
aparece a história-natureza em tudo o que ela tem de transitório e perecível. Isso tudo
para dar confiabilidade à transcendência retratada no fundo do quadro.
Benjamin (1984, p. 206) revela o caráter imagético da escrita alegórica:
Nisto consiste o caráter escritural da alegoria. Ela é um esquema, e como esquema um objeto do saber, mas o alegorista só pode ter certeza de não o perder quando o transforma em algo de fixo: ao mesmo tempo imagem fixa e signo com o poder de fixar. O ideal cognitivo do Barroco, o armazenamento, simbolizado nas bibliotecas gigantes, realiza-se na escrita enquanto imagem.
81
Transformação do simbólico em deformação alegórica: este é o processo da
alegoria. Pelo olhar da melancolia, o objeto se torna alegórico, isto é, ele perde
qualquer possibilidade de sentido próprio, como se estivesse morto. Este objeto
recebe então a significação do alegorista, que se apropria dela. Para se compreender
em que sentido a escrita barroca é imagem, é preciso observar o seguinte: o objeto (a
coisa), nas mãos do alegorista, passa a ser algo diferente e através deste objeto ele
fala de algo diferente. Esta coisa passa a ser o emblema que possibilita o saber
oculto. A escrita barroca não passa de emblemas, de imagens. Compreende-se então
a afirmação de Benjamin (1984, p. 164): “A Renascença investiga o universo, e o
Barroco, as bibliotecas. Sua meditação tem o livro como correlato.” Armazenar esta
escrita é o objetivo de conhecimento, pois todo o saber será revelado na
multiplicidade das imagens armazenadas. Porém não se trata de desvendar a
essência atrás da imagem: o emblemático traz essa essência para a imagem. “Ele
traz essa essência para a própria imagem, apresentando-a como escrita, como
legenda explicativa...” Não é desvendar mas desnudar as coisas sensoriais. Isso é
próprio da escrita por imagens. Benjamin (1984, p. 207) deixa transparecer que a
linguagem barroca coincide com a tentativa de salvação. As coisas da natureza,
como signos, estão à espera de um sentido, que o homem pode lhes atribuir, sem se
preocupar em exprimir suas características naturais, sem se preocupar em desvenda-
las. A significação está em outro lugar, mas não nas coisas mesmas. É assim que a
história-natureza é salva.41
Imagens dialéticas (Dialektives Bild) ou imagens de pensamento (ideias
imagens) não têm nada de engano e desilusão da concepção cartesiana, antes, são
artifícios de alcance histórico , onde o pensamento está a serviço da emancipação. A
alegoria procura o lugar da significação para superar o sentimento de perda. Para
tanto concorrem o pensamento e o corpo todo. Esta postura está bem distante da
41
Tereza Callado, em sua obra A Experiência da Origem, observa a relação, dentro do pensamento
benjaminiano, entre a alegoria barroca e a postura crítica para combater a política secularizada, a política
mundial da modernidade do discurso vazio, cujo objetivo é persuadir. No século XVII, o mundo era visto – e
lido – como signos dispersos e a alegoria, como imagem escrita; era uma possibilidade de conferir sentido para
essa fragmentação. Assim, para fazer frente à rigidez do pensamento iluminista da modernidade, a alegoria,
como enigma e chave deste enigma para a leitura da aporia moderna, pode explicar o conflito, pois ela tem a
flexibilidade das imagens e a possibilidade da redifinição, sem estar presa ao rigor lógico das abstrações. Como
ressalta a autora, trata-se das imagens dialéticas no agora da cognoscibilidade.
82
tradição racionalista, caracterizada pela superioridade do espiritual sobre o material.
Benjamin propõe, contra o método desta tradição, a imagem dialética, ou a dialética
na imobilidade pela imagem, nos moldes da alegoria, tal como ela aparece no drama
barroco. Somente as imagens dialéticas são autenticamente históricas: é a relação do
passado com o presente, muito mais que uma simples relação temporal. É o agora da
cognoscibilidade, a “agoridade” carregada de tensões, onde a imagem é lida, leitura
que se concretiza na iluminação profana ou na porta aberta para o conhecimento do
mundo empírico.
A alegoria se apresenta como a solução para a leitura do Ser em sua
fragmentação, ao inibir o conceito que nivela a multiplicidade de significados, pois ela
tem a flexibilidade para apontar a diversidade de ocorrências, ou seja, dos múltiplos
significados do Ser. O fenômeno reconhece a ideia e é salvo; nisto consiste a
redenção platônica, afirma Benjamin. Assim o drama barroco alemão é lido como
ideia, algo intemporal onde o fenômeno passado se reconhece no presente. A
alegoria, enquanto ideia deste drama permite reconhecer a escrita em forma de
hieróglifos ou de runas, ou ainda, de imagens sagradas emblemáticas da Idade
Média. Na alegoria, pela mentalidade Cristã, o efêmero e o eterno se completam: a
morte significa vida, pois a transitoriedade passa de significada a significante, algo a
ser alegorizado na ressurreição.
O método benjaminiano expressa a fidelidade ao particular e considera o
universal uma ideia. E isso se faz pelo recurso das imagens dialéticas. O mundo
fragmentado, ou melhor, a imagem fragmentada do mundo pode se recompor pela
técnica da montagem. Isso fica explicito no drama barroco alemão, cuja configuração
da ideia é caracterizada pela coexistência dos contrastes. Eis a proposta de
Benjamin: compreender a totalidade a partir de elementos díspares, o que é possível
na forma artística. A obra de arte como ideia do Belo deixa transparecer a verdade.O
papel da crítica é destruir a obra de arte revelando o Belo que é a verdade. Assim
Benjamin (1984, p. 53) relaciona beleza e verdade:
A essência da verdade como a auto-representação do reino das ideias, garante, ao contrário, que a tese da beleza da verdade não poderá nunca
83
perder sua validade. Esse elemento representativo da verdade é o refúgio da beleza...Seu brilho que seduz, desde que não queira ser mais que brilho,provoca a inteligência que a persegue, e só quando se refugia no altar da verdade revela sua inocência.
A verdade se deixa contemplar, o que nada tem a ver com o método da
aquisição do saber, do conhecimento como posse do objeto. O método da verdade é
representação de si mesma, como revelação do Ser. Este método é capaz de
combater a imagem-abstração da modernidade, vazia e vinculada à comunicação
ideológica. Tal linguagem está na relação inversa dos diálogos socráticos cuja
significação metafísica se dá no nível pragmático.
O Barroco quer trazer a significação para a imagem. Da mesma maneira,
Benjamin quer transformar o amontoado de ruínas da civilização – da razão – em um
mundo capaz de significar. No mundo cindido entre o transitório e o eterno, entre o
sagrado e o profano, os pólos antagônicos produzem a consciência uma síntese de
falsa aparência de verdade. Aliar espírito e matéria é a única maneira de evitar esta
síntese fraudulenta, conclui Benjamin (1984, p. 253):
A espiritualidade absoluta visada por Satã, destrói-se ao emancipar-se do sagrado. A substancialidade ( só agora privada de Alma ) se transforma em sua pátria. O puramente material e o absolutamente espiritual são os dois polos do reino de Satã: a consciência é sua síntese fraudulenta, que imita a verdadeira, a da vida.
Os fragmentos dispersos por causa da ruptura entre corpo e alma só podem ser
salvos pela técnica da colagem, do mosaico e do tratado medieval. É o método que
possibilita recuperar cada pedaço disperso para salvá-lo na totalidade. Pela alegoria,
os fragmentos significativos devem ser resgatados e o particular é salvo na totalidade,
uma vez que reconhecido pela ideia.
Em última análise, a alegoria é o caminho inteiramente outro ao da ciência, tal
qual preconizado pelo iluminismo. Baudelaire é seu representante na metrópole da
modernidade, quando fragmenta a realidade, através das tensões morais conflitantes,
e depois recolhe os fragmentos significativos. Só a crítica, reafirma Benjamin, pode
vencer a astúcia do conhecimento demoníaco e persuasivo que manipula para
governar em um reino onde impera a melancolia.
84
Capítulo III
Melancolia e a alegoria do anjo da história
3.1. O poeta melancólico.
A ira, com seus arrebatamentos, marca o ritmo dos segundos, à mercê do qual se encontra o melancólico. WALTER BENJAMIN, SOBRE ALGUNS TEMAS EM BAUDELAIRE
Benjamin (1994, p. 12), em Charles Baudelaire um lírico no auge do
capitalismo, compara Baudelaire aos conspiradores tal como são descritos por Marx,
em O 18 Brumário de Napoleão III. O conspirador não se entrega ao combate aberto,
ele se entrincheira nas barricadas. “O próprio ideal terrorista que Marx encontra nos
conspiradores tem seu equivalente em Baudelaire...” Além deste ideal, outras
qualidades podem ser acrescentadas a esta postura anarquista, ao humor macabro,
ao culto da piada do gozador depravado, à fúria encarniçada. Politicamente, tudo isso
tem uma só motivação: a revolta, entendida como revolução, destruição, expiação,
castigo e morte, onde se misturam o algoz e a vítima.
A fúria contra tudo e contra todos que move os escritos do poeta, não espera
compaixão, pelo contrário, já conta com o ódio do leitor. Não é a luta convencional,
mas a tática das barricadas, como preferiam os operários da Comuna, mesmo que
isso custasse a derrota “... a luta no próprio quarteirão ao combate aberto e, se
preciso, a morte atrás da barricada, numa rua de Paris.” Benjamin (1994, p. 13) vê
semelhança entre este tipo de ação política e os escritos teóricos de Baudelaire que,
intencionalmente contraditório, não resiste ao debate norteado pela lógica rigorosa.
Pura provocação, que ao mesmo tempo bajula e ataca, num jogo que encontra
terreno fértil nas tavernas da boêmia. A exemplo da Comuna e inspirado na
determinação de Blanqui, o poeta Baudelaire levanta sua barricada com os tijolos
mágicos do anarquismo: sua estratégia política do motim e da conspiração visa a
implodir a burguesia a partir dela mesma.
85
Benjamin situa a obra de Baudelaire na Paris do segundo império, a Paris dos
extremos entre a ostentação burguesa e a revolta do operariado entrincheirado nas
barricadas. A efervescência política caracteriza-se pela tática da conspiração da
qual não escapa nenhum cidadão, do imperador ao último miserável. A rede
conspiratória exigia profissionais habilidosos, os agentes que se dedicavam em
tempo integral ao árduo trabalho de criar as palavras de ordem. O conspirador
profissional deve jogar em todos os campos, dos gabinetes do poder aos
alojamentos dos operários revoltados. A ação política entretanto é decidida nas
penumbras das tavernas. Benjamin apresenta, neste cenário, o Baudelaire
conspirador profissional: o personagem capaz de decidir qualquer jogo desde que
seja no anonimato do escuro das tavernas. Agente secreto fingido, ora bajula o
poder, ora instiga os opositores.
Para obter uma compreensão mais completa das ações políticas da Paris do
segundo império, Benjamin recorre aos escritos de Marx e Engels sobre os
movimentos operários desta época, mais especificamente sobre a Comuna de Paris.
É analisada aí a luta nas barricadas e, em particular, a ação dos conspiradores
profissionais. Benjamin entrelaça os textos de Marx com os textos poéticos de
Baudelaire, principalmente os poemas O vinho dos trapeiros e Flores do mal, para
configurá-lo como conspirador. Nesta justaposição, sobressai a liberdade da arte
distanciada do rigor teórico das análises políticas de Marx. Conspirar contra tudo e
contra todos, aliar-se ao bem e ao mal passa a ser a prática da embriaguez do
poeta. “O vinho transmite aos deserdados sonhos de desforras e de glórias futuras.”
(Benjamin, 1994, p.16). Benjamin (1994, p. 15) comenta a poesia O vinho dos
trapeiros em que Baudelaire se iguala aos operários embriagados nas tavernas da
periferia, onde o vinho era isento de impostos e portanto mais barato.
De modo depreciativo, como não poderia deixar de ser, Marx fala das tavernas onde o conspirador subalterno se sentia em casa. Os vapores que aí se precipitavam eram também familiares a Baudelaire.
Benjamin (1994, p. 29), ao mesmo tempo que reverencia as análises de
Marx, enaltece Baudelaire e sua ação política de uma arte corrosiva e libertária: o
poeta que não cola em si o rótulo de socialista, “...nem por isso, porém, lhe faltou o
entendimento da verdadeira situação do literato.” E conclui (1994, p. 18): “A miséria
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e o álcool contraem no espírito do ilustrado capitalista uma relação essencialmente
distinta daquela em Baudelaire.” Os trapeiros ganhavam a sobrevivência
trabalhando na rua com o que era rejeitado da industria. Essa gente marginalizada
encantava os intelectuais que se dedicavam à pesquisa da pobreza: conspiradores
e literatos tinham algo em comum com a miséria humana que pudesse representar
ameaça ao sistema, no sonho da revolta. Baudelaire, entretanto, tinha outra
interpretação: utilizando a passagem bíblica de Caim e Abel, entende o proletariado
como a raça originária de Caim, cuja única propriedade é a força de trabalho. Essa
interpretação, presente no poema Revolta, tem o tom carregado de blasfêmia. Diz o
poema: com remorso Deus criou o sono para afogar o ódio dos malditos que vão
morrendo e o homem fez o vinho, filho sagrado do sol. Ao tom blasfematório se
junta o satanismo, que segundo Benjamin, não deve ser levado muito a sério, pois
não passam do inconformismo do poeta.É interessante notar que existe, neste texto
como na tese sobre o drama barroco, a mesma concepção do Satanás, “depositário
do saber profundo”. Assim se expressa Baudelaire (2010, p. 91):
Ó tu, o Anjo mais belo e também o mais culto, Deus que a morte traiu e privou do seu culto, Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria! Ó príncipe do exílio a quem alguém fez mal, E que, vencido, sempre te ergues mais brutal, Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria! Tu que vês tudo, ó rei das coisas subterrâneas, Charlatão familiar das humanas insânias, Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria! Tu que, mesmo ao leproso, ao pária infame, ao réu Ensinas pelo amor as delícias do Céu, Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria! Tu, que da morte, tua velha e forte amante, Engendraste a Esperança – a louca fascinante! Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria!
Estes versos iniciais de As litanias de Satã deixam clara a ironia expressa na
piedosa ladainha de alguém que desdenha dos desígnios divinos, em forma de
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radical blasfêmia. Se Baudelaire conspira contra tudo e contra todos,
comprometendo-se apenas com a longa miséria, resta-lhe apelar a Satã, “o Anjo
mais belo e também mais culto,” uma vez que o ideal de virtude e santidade lhe
parece inócuo e falacioso. Satã passa a ser o confidente do poeta. Em outros
poemas aparece uma outra concepção deste satanismo: o demônio que vive nos
subterrâneos das galerias. Ora Satã é autor do mal, ora é o vencido, na visão
dualista dos literatos da época em que ele está tanto na corte de Napoleão III como
no meio do proletariado, inspirando a rebelião. Nos poemas de Baudelaire
aparecem os dois rostos de Satã: aquele que fala dos dominadores e o que fala dos
dominados. É exatamente o que diz Marx (2007, p. 21) quando compara a
decadência da burguesia francesa do segundo império à vida depravada dos papas
que só poderia ser salva pelo diabo: “Só o roubo à prosperidade (para salvar a
sociedade burguesa), o perjúrio à religião, a bastardia à família, a desordem à
ordem.” Benjamin (1994, p 21) explica o satanismo de Baudelaire:
Quase sempre a confissão religiosa brota de Baudelaire como um grito de guerra. Não quer que lhe tirem o seu Satã. Este é o verdadeiro móvel do conflito que Baudelaire teve de sustentar com sua descrença. Não se trata de sacramento e oração, mas da ressalva luciferina de difamar o Satã, de quem se está á mercê.
Entre Abel, o bondoso habitante do idílio do campo, e o invejoso Caim que vai
triunfar na cidade, às custas de rancores e desenganos, Baudelaire opta por Caim. A
“arte pela arte” é inofensiva, uma vez que a maldade se revela radical tanto entre os
vencedores quanto entre os vencidos. Baudelaire se sente livre e acima dos dogmas
de uma mentalidade artística comprometida com uma determinada causa. Observa
Benjamin (1994, p. 22): “Tinha um ouvido para a revolução e outro para a “voz
superior” que fala através do rufar dos tambores das execuções.” Criar o espaço
amplo para se movimentar, nisto consiste a originalidade deste poeta. É assim que
Benjamin apresenta a arte revolucionária de Baudelaire na Paris do auge do
capitalismo: nas fronteiras entre os conflitos de extremos, entre a burguesia e o
proletariado, entre vencidos e vencedores, numa dualidade radical, tal qual o
príncipe barroco. Essa posição nos limiares, como também daquele príncipe, lhe
rende a mais profunda melancolia. Baudelaire é o poeta melancólico da
modernidade.
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Dois ensaios ajudam entender a admiração de Benjamin para com a poesia
lírica de Baudelaire: Surrealismo – último instantâneo da inteligência européia e o
texto sobre os intelectuais alemães da República de Weimar Melancolia de esquerda
- A propósito do novo livro de poemas de Erich Kästner. Em certo sentido, tratando-
se de ação política, este poeta está tão próximo do surrealismo e tão distante da
poesia panfletária de esquerda, comprometida com a classe média e, por isso
mesmo, contraditória e melancólica.
Nestes três ensaios, Benjamin trata da ação política e, por este tema, estão
relacionados sob vários aspectos. Primeiramente diz respeito à atuação do literato,
do poeta e, num sentido mais amplo, do artista, nos momentos de premência social
pela ação política. Baudelaire no século XIX, os surrealistas no século XX são
exemplares na discussão sobre a relação entre arte e política, ou melhor, são
exemplos de arte política - política não no sentido vulgar, mas no sentido de
respeito à diversidade, de convivência entre as pessoas. Sobre o surrealismo, diz
Benjamin (1985,p. 32):
Em todos os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista tende ao mesmo fim: mobilizar para a revolução as energias da embriaguez. Podemos dizer que é essa sua tarefa mais autêntica. Sabemos que um elemento de embriaguez está vivo em cada ato revolucionário, mas isso não basta. Esse elemento é de caráter anárquico. Privilegiá-lo exclusivamente seria sacrificar a preparação metódica e disciplinada da revolução a uma práxis que oscila entre o exercício e a véspera da festa. A isso se acrescenta uma concepção estreita e não dialética da essência da embriaguez.
Os textos sobre Baudelaire e sobre Kästner convergem para a análise da
importância política do movimento surrealista, principalmente no que ele significa de
diametralmente oposto à literatura da esquerda burguesa alemã. O surrealismo foi
capaz de romper com a ideologia desta esquerda de tradição idealista e moralizante.
O satanismo, tema já presente na tese sobre o drama barroco, aparece no texto do
surrealismo como divisor de águas na questão sobre arte e política. De fato, a
proposta surrealista foi revolucionária; mais que isso: pretendeu a implosão da
tradição literária, pela dialética de atingir os extremos do possível, do céu ao inferno.
O culto do mal, “...aparelho de desinfecção e isolamento da política, contra todo
89
diletantismo moralizante.” Pode-se afirmar, conclui Benjamin (1985, p. 30), que o
surrealismo está no extremo oposto da ingenuidade romântica pequeno burguesa,
que pretende comover os corações, ao mostrar a maldade humana.
Tratando-se de prática política, a posição burguesa de esquerda, cuja
representação máxima é a obra de Kästner, está vinculada à moral idealista. Já no
século XIX, na França, a poesia lírica de Baudelaire rompe com essa tradição
moralizante. O satanismo dos surrealistas é o ingrediente desse rompimento contra
a melancólica canção poética dirigida aos ouvidos, igualmente melancólicos,
pequeno burgueses.
Se a melancolia emerge do âmago do espírito barroco, na configuração de um
príncipe divido entre extremos, na poética pequeno burguesa, ela se transforma no
refúgio, no triste e falso remédio para o confuso sentimento fundado na culpa entre
interesses egoístas e uma realidade social de cruel injustiça. Não passam de
poesias do consolo estagnado e reacionário. Eis como Benjamin (1985, p. 77) critica
esse tipo de poesia:
Elas se dirigem à tristeza dos saturados, que não podem aplicar inteiramente o seu dinheiro para alimentar seu estômago. Estupidez torturada: ela é a última metamorfose da melancolia, em sua história de dois mil anos.
A poesia radical de esquerda de Kästner é objeto de consumo, destinado à
fruição diletante de indivíduos sem a menor vontade de ação política. Seu efeito só
pode ser a paralisação melancólica. O que esse tipo de literatura objetiva provocar
no “indivíduo de alta renda” é o falso sentimento de humanidade, ou seja, de
reconciliação consigo mesmo, ou ainda, a busca da identidade da vida profissional
com a vida privada. A verdadeira humanidade só pode dizer respeito à tensão entre
o profissional e o privado. Benjamin (1985, p. 77) comenta como esta tensão
requer uma autêntica reflexão sobre a ação política: “Produzi-la é a tarefa que
qualquer lírica política e sua realização mais rigorosa se encontra, hoje, na poesia
de Brecht.”
90
A melancolia desta esquerda, “estupidez torturada”, é paralítica porque é
reflexo do indivíduo voltado sobre si mesmo: sua eterna ruminação, que nunca
chega a digerir, gira em torno do apaziguamento consigo mesmo. Os poemas de
Kästner, para Benjamin (1985, p. 73s), embalam indivíduos de uma camada social
que, saídos da pobreza, conseguem prosperar graças a um disciplinado espírito
individualista:
A temática e a eficácia de Kästner, pois o autor é tão impotente para atingir, com seus acentos rebeldes, os despossuídos, quanto, com sua ironia, os industriais. Isso porque, apesar das aparências, essa lírica zela sobretudo pelos interesses estamentais dos extratos médios – os agentes, os jornalistas, os diretores de pessoal.
Existe nesta literatura um jogo de conveniência, onde as denúncias, vazias de
autenticidade, soam hipócritas, seja quando descreve os pensamentos do operário
sofredor ou quando diz ajustar contas com os banqueiros. Sua melancolia consiste
em saber que sua arte não passa de lamento humanista situado nas fronteiras entre
interesses conflitantes. Benjamin se refere à ”inteligência burguesa de esquerda,
supostamente Progressista,” como a ideologia dogmática e moralizante. Na
extremidade oposta a essa inteligência, despontam a arte do surrealismo,
impregnada do radical conceito de liberdade, para liquidar com o fossilizado
humanismo da esquerda burguesa.
O ensaio sobre o surrealismo O Surrealismo . O último instantâneo da
inteligência europeia, de 1929, aborda o contexto de uma Europa entre guerras,
quando surge na França este movimento, antítese daquela arte alemã caracterizada
pelo engessamento das ideologias da esquerda simplista e ingênua. Antítese porque
foi revolucionário no sentido mais amplo do termo: histórico e, principalmente,
político. Sem dúvida, o surrealismo ultrapassa o nível artístico literário: impelido pela
reação das forças conservadoras, se transformou na grande força revolucionária da
ação política. Esta arte é ruptura radical com as enganosas posturas progressistas
de niilismo melancólico, vigente na intelectualidade europeia do início do século XX.
No sentido mais irrestrito de liberdade, Benjamin (1985, p. 32) expõe sua proposta:
“...mobilizar para a revolução as energias da embriaguez.”
91
Para melhor compreensão dos ensaios expostos neste trabalho de pesquisa
sobre a melancolia, convém esclarecer o sentido de passado na crítica benjaminiana
da cultura. Há um ponto nevrálgico de entrecruzamento de toda a filosofia de
Benjamin, o que equivale dizer, de todos os seus escritos. Esta ideia central é
mostrada de maneira bem clara no ensaio Teses sobre o conceito da história, onde
Benjamin (1984, p. 223) afirma: “O passado traz consigo um índice misterioso, que o
impele à redenção.” Tudo o que ele analisa em Baudelaire, Proust, Brecht e no
surrealismo envolve esse índice de imagens misteriosas que a rememoração do
historiador resgata para um presente revolucionário. Entretanto isso só é possível
quando a vivência no choque – do modus vivendi capitalista – se converte em
experiência. Através dela, a repetição da história, como vitória dos dominadores,
transformam-se em imagens dialéticas do presente revolucionário, “...sob o livre céu
da história” , conclui o filósofo. (1984, p. 230). É o sentido do despertar do sono.
Benjamin dá, como exemplo, a moda: ela é a interminável repetição do velho, -
pense-se no Jungenstill 42- é o próprio mito. Benjamin (2006, p. 602) relaciona a
principal obra poética de Baudelaire com o Jugendstil: “ Nas Fleurs du Mal, o
Jugendstil se manifesta pela primeira vez com seu tema floral característico.” O
Jugendstil é a expressão visual de uma burguesia decadente, cuja única saída é
imaginar um mundo belo e jovem ou, em último caso, uma bela morte. Esta classe
se refugiou em uma arte frívola, utilizando-se de toda tecnologia que o capitalismo
industrial colocava a sua disposição. Novos materiais, como o ferro, o vidro e o aço,
transformavam-se em ornamentos florais, em profusão de objetos. A figura feminina
estilizada em tons pálidos e estéril, era quase uma flor em cenários pictóricos
primaveris. A moda traduzia, de maneira fiel, a mentalidade burguesa da cidade de
Paris, onde reinava o poder da mercadoria. Benjamin (2006, p. 604) observa: [...] há
uma miríade de boutiques e ateliês onde se vendem e se fabricam, a cada dia, as
novas modas e tudo o que em geral se chama o artigo-Paris.”
42
Jugendstil, Art Nouveau ou Nova Arte é o estilo artístico do final do século XIX. Assimetria, fluidez dos
temas inspirados na natureza, mais especificamente os florais, são as características desta arte, que na arquitetura
usava o ferro e o aço. Na pintura, sobressai a figura humana feminina retratada em uma languidez perturbadora.
Outra característica é a profusão de objetos decorativos destinados aos interiores. O nome do pioneiro deste
estilo é o belga Victor Horta. (Conf. Gombrich, E.H. Histólria da Arte.Rio de Janeiro:LTC Ed., 1995.).
92
Por que Benjamin se detém nessas imagens fantasmagóricas, expressões
vivas e concretas do capitalismo obcecado pela novidade, ou seja, pela moda? – É
para mostrar o outro lado desta história, que não é mito nem repetição do sempre
igual. A ele não interessa a argumentação racional e abstrata, mas a meditação
profunda e melancólica sobre as coisas concretas, que revelam outras imagens: as
imagens dialéticas.O despertar é que possibilita a descoberta do autêntico novo, por
parte daquele que rememora, daquele que consegue ver no passado – que é
repetido – as ruínas do que foi destruído e, junto com elas, todos os que foram
vencidos e estão à espera da redenção. Se a obra de Proust e de Baudelaire têm
importância para Benjamin, é justamente por isso.
De que revolução Benjamin está falando? - Sem dúvida, não se trata da
revolta do proletariado para instalar a ditadura do proletariado de que fala Marx. As
armas e os anseios são outros: a vida vivida entre o sono e a vigília, cuja linguagem,
reino magnífico das palavras, é a interpenetração de som e imagem, de tal maneira
que ela se sobrepõe ao sentido. É a experiência fértil do sonho e da embriaguez que
abala a consciência e, por ser viva e fecunda, não se entrega à correnteza da
embriaguez, antes, significa ação política revolucionária. Benjamin (1985, p. 26)
revela o rosto da cidade:
No centro desse mundo de coisas está o mais onírico dos seus objetos, a própria cidade de Paris. Mas somente a revolta desvenda inteiramente o seu rosto surrealista (ruas desertas, em que a decisão é ditada por apitos e tiros). E nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto verdadeiro de uma cidade.
O surrealismo encontra o elemento revolucionário nas coisas abandonadas e
já esquecidas que o sonho revela.43 No rejeitado e nos restos, existe a poderosa
43
O ensaio sobre o surrealismo é indispensável – apesar de não ser objeto específico deste trabalho - para
compreender duas categorias fundamentais do pensamento benjaminiano: despertar e sonho (Erwachen –
Traum). Elas estão portando, presentes em todos os outros ensaios. Benjamin, em suas correspondências, tinha o
hábito de simplesmente descrever seus sonhos, sem nada comentar sobre eles. Para ele, o sonho era uma maneira
de dizer a realidade mesclada de presente e passado, sem a preocupação psicanalítica de interpreta-los. Uma
característica importante desta concepção é a de que o sonho não é simplesmente repetição de um passado
recalcado. Existem também no sonho restos do cotidiano. É exatamente isso que possibilita vislumbrar o novo na
repetição do sempre igual do passado. Novo, neste caso, significa um agora cheio de tensões, ou seja, o
despertar incluído no sonho como uma força histórica. Nos textos sobre Baudelaire e Proust, a memória aparece
como a condição do despertar e é esta condição de que o passante, o operário e o jogador não dispõem, pois sua
93
força oculta. Caminhar pelas ruas desertas da cidade, pelos bares que não estão
mais na moda, pelos bairros da periferia, observar as antigas construções e os mais
variados objetos sem mais utilidade, tudo isso se converte em experiência
revolucionária.
Benjamin (1985, p. 204) sintetiza vários ensaios: “O tédio é o pássaro de
sonho que choca os ovos da experiência.” Com esta citação do ensaio O narrador,
pode-se estabelecer o cruzamento entre o surrealismo e o Spleen de Baudelaire,
cujos poemas têm como cenário a mesma cidade de Paris, metrópole do capitalismo
do século XIX.
Na metrópole surge a figura emblemática do flâneur, aquele indivíduo que
cura seu tédio passeando no meio da multidão. Paris, em meados do século XIX,
era símbolo do avanço técnico capitalista: a cidade sofre profundas transformações
urbanísticas. As exposições da indústria eram os grandes eventos que atraiam
multidões transitando pelas largas avenidas, entre as modernas construções de
ferro. São entretanto as galerias, verdadeiros templos do consumo, que propiciam o
surgimento do flâneur: elas são o seu paraíso. A galeria é um misto do público e do
privado: o que há de mais novo e sofisticado está exposto em vitrines para o êxtase
do consumidor. As galerias concretizavam a literatura do folhetim, muito popular na
época, caracterizada por registrar absolutamente tudo o que o olhar panoramático
sobre a cidade consegue observar: tipos, cenários, modos de vida. São as
fisiologias. O flâneur tem muito em comum com esse procedimento e ele encontra
todos os fenômenos da cidade grande em um só lugar. Este lugar é a galeria, que
representa para ele a rua e o interior de sua morada.
No espaço das metrópole, surge uma curiosa característica da relação entre
as pessoas na multidão: elas se vêem mas não se falam. É uma comunicação que
provoca inquietação. Olhar sem ouvir pode significar insatisfação e apreensão, o
que, do ponto de vista da fisiologia, não tem a mínima importância. Quanto a essas
relações, Benjamin desenvolve o conceito fundamental de fisiognomonia, a partir do
única realidade é a vivência do choque. O que foi vivido fulgura no presente em imagens dialéticas; sem a
experiência, elas nada representam, com a memória, elas significam o despertar.
94
qual construirá sua obra inacabada Passagens. A ciência da fisiognomonia,
desenvolvida no século XVIII, afirma que a fisionomia de uma pessoa revela muita
coisa, como caráter, maneira de viver, para quem a olha à primeira vista. Mas qual o
sentido que Benjamin (1994, p. 38) dá à fisiognomia da metrópole?
As mezinhas calmantes que os fisiologistas punham à venda foram logo ultrapassadas. Por outro lado, à literatura que se atinha aos aspectos inquietantes e ameaçadores da vida urbana estava reservado um grande futuro. Essa literatura também tem a vez com as massas, mas procede de modo diferente das fisiologias. Pouco lhe importa a determinação de tipos; ocupa-se, antes, com as funções próprias da massa na grande cidade.
As funções próprias das massas, ao contrário da visão dos fisiologistas, é
ocultar e proteger o anti-social. Nisso consiste a origem do romance policial, no qual
o detetive tem papel mais relevante. O flâneur se iguala ao detetive quanto à aguda
capacidade da percepção, pois não perde de vista o malfeitor, no meio da multidão.
O cenário deste romance é a cidade grande, comparada à floresta, onde se
representam personagens selvagens.
Para se entender a obra de Baudelaire é preciso entender a influência que ela
sofreu do romance policial, mais exatamente de Poe. Os elementos mais relevantes
desse romance estão nos poemas As flores do mal: o assassino, a vítima e o local
do crime (a massa). Fica faltando o detetive, com o qual era impossível Baudelaire
se identificar, uma vez que nele tudo se construía a partir do anti-social, da
crueldade. Se não existe mais o detetive, a multidão, ou o local do crime, de refúgio
do criminoso se transforma em refúgio do amor que foge, tema de A uma passante.
Sobre este poema, diz Benjamin (1994, p.43): “Sua forma interna se manifesta em
que mesmo o amor se reconhece estigmatizado pela cidade grande.” É a passante
que desperta, como num choque, o desejo do poeta. O erotismo se transfigura à
medida em que a correnteza humana arrasta o amor suspenso no ar. Assim
Baudelaire (2010, p. 42) descreve a total despersonalização na metrópole:
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!.
A burguesia busca uma compensação da perda de vestígios da vida privada
na cidade grande, se dedicando obsessivamente em guardar objetos que marquem
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sua passagem. Daí os estojos para guardar todo tipo de objeto e o uso do veludo
que deixa marcas. Em contrapartida, a sociedade capitalista industrializada
desenvolve o controle sobre a vida privada, sem que isso consiga compensar a
perda definitiva dos vestígios na metrópole, ou seja, o desaparecimento do ser
humano no meio da massa. É o que lamenta o “criminoso” Baudelaire naquele
poema. Ele mesmo fugia de credores, escondido em bares e livrarias. No afã de
encontrar o criminoso, a criminalística desenvolve as técnicas de identificação, para
a qual a fotografia foi a grande invenção. Ao criminoso só resta o anonimato, esse
refúgio que a multidão lhe proporciona.
No romance policial de Poe suge a figura do desconhecido no meio da
multidão, além daquele que persegue. O desconhecido é o flâneur, o suspeito.
Diferentemente de Poe, Baudelaire é conivente com esse personagem. A multidão
se torna o centro da narrativa para o romance policial. Para Baudelaire, ela não é
vista através da janela do aposento do burguês, mas de dentro dos cafés ou da
própria rua. Baudelaire amava ser solitário dentro da multidão:
Há uma litografia de Senefelder que representa uma casa de jogo. Nenhum dos retratados acompanha o jogo da maneira habitual. Cada um está possuído por seu afeto: um, por uma alegria irreprimida; outro pela desconfiança em relação ao parceiro; um terceiro, por um surdo desespero; um quarto por sua maneira de discutir, outro ainda, se prepara para deixar este mundo.
O estado de espírito destes personagens descritos por Benjamin (1994, p.
49) é o mesmo dos indivíduos no meio da multidão: solitários, parecem viver seu
mundo, totalmente alheios ao mundo que se agita ao seu redor. Eles amam a
solidão na multidão. A solidão e a vontade de salvar a vida privada iriam chegar ao
extremo do desespero, como descreve Poe em seus romances. O indivíduo se
rende à massificação, com gestos mecânicos, que mais parece um palhaço no
palco, vestido conforme a massificação da moda. São os interesses particulares
tentando a sobrevida no meio da massa. Na Paris do século a flânerie era
personificada naqueles indivíduos que se negam perder a privacidade e protestam,
com sua postura de ocioso, contra o servilismo que a sociedade industrial capitalista
impõe. Benjamin, ao descrever o flâneur, caracteriza-o como alguém que caminha
lentamente na multidão e, de repente, pára diante de uma vitrine por longos minutos.
96
Ele observa atentamente todos os detalhes deste cenário frenético, como o oposto
do homem servil e distraído da massa. O flânuer personifica o jogo entre o público e
o privado, entre os espaços exteriores e os interiores: seu último refúgio foram as
galerias, verdadeiras ruas cobertas como se fossem residências. O flânuer
Baudelaire representa aquele condenado à vida na metrópole, jamais o detetive do
romance policial. Benjamin (1994, p. 51ss) retrata este personagem:
Teria podido dizer também que foi o primeiro a falar do ópio que conforta este – e somente este – condenado. A multidão não é apenas o mais novo refúgio do proscrito; é também o mais novo entorpecente do abandonado. O flânuer é um abandonado na multidão. Com isso partilha a situação da mercadoria. Não está consciente dessa situação particular, mas nem por isso ela age menos sobre ele. Penetra-o como um narcótico que o indeniza por muitas humilhações, a ebriedade a que se entrega o flâneur é a da mercadoria em torno da qual brame a corrente dos fregueses.
Benjamin consegue, com sua original sagacidade e sempre fiel ao seu
programa epistemológico, que a verdade se represente pela emergência da
configuração da ideia, a partir dos extremos da forma artística. A forma aqui tratada
são os poemas de Baudelaire: eles revelam os fenômenos do capitalismo industrial
em seus extremos. As sutilezas, os emaranhados sentimentos surgem nesses
poemas através do olhar melancólico do artista que observa demoradamente o
fascinante e arrebatador mundo da mercadoria.44
Flâneur, mercadoria e multidão: é a trilogia que age em círculo vicioso. O
flâneur se entrega à multidão que age sobre ele como um ópio e neste refúgio, se vê
como mercadoria. A embriaguez a que se entrega é a atração que a mercadoria
exerce sobre o comprador, ou seja, trata-se do próprio poeta atraído pelo poder do
fetiche. O Spleen – tristeza, melancolia – são os poemas de Baudelaire que revelam
a mais profunda melancolia do jogo enganoso desta embriaguez: rosas fanadas,
escombro, esfinge esquecida no mapa são as imagens usadas para identificar o
pobre escombro humano, na sua empatia com o inorgânico, com o que já está
44
Benjamin, como não poderia deixar de ser, aqui também faz referências a Marx, citando o capítulo I, A
mercadoria. No parágrafo 4, O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo, Marx, com a ironia que lhe é
peculiar, procura precisar o conceito de mercadoria-fetiche nas relações humanas, por meio da analogia com o
religioso e o metafísico. “À primeira vista, a mercadoria parece uma coisa trivial, evidente. Analisando-a, vê-se
que ela é uma coisa muito complicada, cheia de sutileza metafísica e manha teológica.” Marx,1983). A análise
procura desvendar a origem do caráter enigmático da mercadoria, isto é, o que a transforma em fetiche, capaz de
reduzir as relações humanas em relações reificadas: relação homem-coisa-homem.
97
morto. A melancolia radical fica assim estampada no rosto surrealista da metrópole,
onde a mercadoria reina soberana pelo poder do fetiche. A vibração entre
mercadoria e consumidor é traduzida, no Spleen, por Baudelaire (2010, p. 73) como
melancolia da atração pela matéria morta.
Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Onde, como remorsos maus, vermes compridos
Andam sempre a atacar meus mortos mais queridos.
Sou como um camarim em que há rosas fanadas,
Toda uma confusão de modas já passadas,
Gravuras de Boucher que ainda aspiram decerto
O perfume sutil de um frasco aberto.
Atraído pelo sex-appeal do inorgânico, o poeta se transfigura na essência da
empatia mercadoria-comprador, para revelar com o mais radical tédio a reificação do
humano fadado ao perecimento. As imagens de cores fortes que seu poema cria
atestam esse desencanto: pobre rei, esqueleto moço, corpo rijo de torpor, velho
poeta, amores defuntos. É o desengano de alguém, ora arrastado pela multidão, ora
com o olhar paralisado pelo tédio diante de uma vitrine, como observa
Benjamin (1994, p. 57):
Baudelaire não se sentia movido a se entregar ao espetáculo da natureza. Sua experiência da multidão comportava os rastros da “ iniqüidade e dos milhares encontrões” que sofre o transeunte no tumulto de uma cidade e que só fazem manter tanto mais viva sua autoconsciência. (No fundo, é exatamente essa autoconsciência que ele empresta à mercadoria que flana).
Em Baudelaire, não existe a mínima intenção de se reconciliar com a
natureza, como meio de salvar o homem perdido na multidão. Ele desdenha do
romantismo de Victor Hugo que apela pelo cenário natural, afirmando que até o
oceano se cansou dele. O poeta, enquanto mercadoria, ou seja, enquanto força de
trabalho, faz o jogo da embriaguez na cidade grande, quando busca o prazer, como
98
qualquer pequeno burguês, sabendo que este prazer decorre de coisas decadentes.
É a estranha atração de que fala Benjamin (1994, p. 55): “Ele se mantém consciente
mas da maneira pela qual os inebriados ainda permanecem conscientes das
circunstâncias reais.” É o fascínio pela multidão e, ao mesmo tempo, a consciência
de uma realidade terrível.
Se comparado com as análises de Marx sobre a estrutura social do
capitalismo industrial, Benjamin prioriza outro método para fazer emergir a
configuração da ideia como o todo revelador destes fenômenos históricos. Este
método utiliza a poesia lírica de Baudelaire. Se Marx é o investigador que olha para
os fenômenos do lado de fora, o poeta experiencia-os de dentro: ele é multidão e é
também mercadoria; sofre e goza todas as tensas vibrações de uma metrópole
capitalista, a cidade de Paris, em tudo o que ela representa de fascinante e de
depravado. Sua poesia são romances policiais onde o detetive e o criminoso são a
mesma coisa, ou talvez nem haja detetive. O certo é que a multidão é seu refúgio e
seu ópio. Benjamin (1994, p. 143) enfatiza o alcance de Flores do mal:
As Flores do mal foram a última obra lírica a exercer influência no âmbito europeu; nenhuma outra posterior ultrapassou as fronteiras mais ou menos restritas de uma língua. A isso se acrescente ainda que Baudelaire concentrou sua força criativa quase inteiramente neste livro. E, finalmente, não se pode refutar o fato de que alguns de seus temas considerados na presente análise colocam em questão a possibilidade mesma de uma poesia lírica.
Baudelaire conseguiu renovar o interesse do leitor pela poesia lírica. A prova
do ressurgimento desse interesse são as seguidas edições de Flores do mal.
Benjamin explica o êxito da obra lírica de Baudelaire recorrendo à categoria da
experiência. Esta categoria benjaminiana aparece de maneira mais direta em O
narrador e em Experiência e pobreza. Nestes ensaios ele expõe o alcance da
experiência (Erfahrung) enquanto riqueza acumulada e transmitida pela arte de
narrar e, como tal, é o oposto de vivência (Erlebnis), própria da informação, da
notícia jornalística. Benjamin enxerga na poesia lírica de Baudelaire a experiência
partilhada, quando afirma que o poeta, em seu spleen (melancolia), se dirigia a
leitores melancólicos
99
Considerando todo esse processo envolvendo a vivência e a experiência,
Benjamin levanta a questão mais relevante para a análise da poesia de Baudelaire:
como pensar a poesia lírica fundamentada na experiência vivida no choque
amortecido pela consciência? Benjamin (1994, p. 111) afirma que Baudelaire
conseguiu a emancipação em relação às vivências entrevendo espaços vazios onde
insere sua poesia:
Baudelaire fixou esta constatação na imagem crua de um duelo, em que o artista, antes de ser vencido, lança um grito de susto. Este duelo é o próprio processo de criação. Assim Baudelaire inseriu a experiência do choque no âmago de seu trabalho artístico. Este depoimento sobre si mesmo, confirmado por declarações de muitos contemporâneos, é da maior importância.
A multidão amorfa dos passantes, imagem do choque e o contato com a
multidão é o cenário oculto do processo de criação. Nela o poeta disfere golpes,
como na luta da esgrima, permeando desvaneios e emoções líricas da alma.
Baudelaire está dentro da multidão, não a olha de fora; não lhe interessa a descrição
com fins moralizantes, mas a imagem impressa na memória, ou seja, a imagem da
cidade que evoca a imagem da multidão. Ver Paris através da massa. O poeta
consegue torná-la presente, sem usar uma palavra que a designe, em seu poema A
passante. (BENJAMIN,1994, p. 117) comenta a simultaneidade de encontro e
despedida:
O que o soneto nos dá a entender é captado com uma frase: a visão que fascina o habitante da cidade grande – longe de ele ter na multidão apenas uma rival, apenas um elemento hostil, - lhe é trazida pela própria multidão. O encanto do habitante da metrópole é um amor não tanto à primeira quanto à última vista. É uma despedida para sempre, que coincide no poema, com o momento do fascínio.
O poema é a imagem de um choque: num momento fugaz, os olhares, o do
poeta e o da mulher vestida de preto, se cruzam. Ela é arrastada pela multidão. A
perplexidade sexual se apodera de um solitário e se transforma em amor que lhe é
negado.Em Baudelaire (2010, p.20), O choque se converte em imagem da
catástrofe:
Longe daqui! Tarde demais! Nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
100
Tu que eu teria amado, ó tu, que o adivinhaste!
Baudelaire traduziu o conto de Poe O homem da multidão. Poe descreve o
movimento frenético nas aglomerações, tendo como ponto de observação a própria
rua. Os transeuntes têm o comportamento uniformizado, agem de forma autômata e
disciplinada e são dóceis e disciplinados. Baudelaire está dentro da multidão, ocioso,
observador, envolvido nela e seu crítico ao mesmo tempo. Por uns momentos é seu
cúmplice para, de repente, afastar-se dela; vive sua intimidade e no mesmo instante
se volta para ela com desprezo. “Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-se
estremecer em rápidas sequências, como descarga de uma bateria. Baudelaire fala
do homem que mergulha na multidão como um tanque de energia elétrica.” Assim
conclui Benjamin (1994, p. 124).
A arte do cinema corresponde a esta nova necessidade de estímulo: o filme
não é outra coisa senão a percepção em forma de choque, ou seja, comunica no
ritmo acelerado de receptibilidade. Benjamin (1994, p. 126) compara o transeunte
com o operário: “À vivência do choque, sentida pelo transeunte na multidão,
corresponde à “vivência” do operário com a máquina.” Baudelaire prefere a analogia
com o jogo praticado pelo ocioso, onde o que interessa é o lance instantâneo e
certeiro, da mesma forma que o operário realiza o ato reflexo exigido pela máquina.
Assim são os operários, os jogadores e os passantes: sem passado, sem memória.
O desejo, ao contrário, pertence à categoria da experiência. Benjamin
introduz o conceito de tempo indissolúvel da experiência: é o tempo longo, ou
melhor, o tempo que nos leva longe para realizar um desejo, como coroamento da
experiência. É a simbologia do desejo e da distante estrela cadente, o oposto da
carta que está à mão para selar a sorte. Ele cita as Pensées de Joubert: “O tempo
se encontra mesmo na eternidade; mas não é o tempo terreno, secular... É o tempo
que não destrói; aperfeiçoa apenas.” 45 Não é o tempo infernal que não permite
concluir o que foi começado. Este é o tempo contado pelo relógio, do jogador e do
operário que nunca vê o produto de seu trabalho. No poema O jogador Baudelaire
está na cena do jogo: ele está num canto do antro dos derrotados, sem ter o direito
45
JOUBERT, apud BENJAMIN,1994, p. 29.
101
ao tempo da experiência, mas se nega a tomar o entorpecente que destrói sua
consciência e não se submete à marcha dos ponteiros do relógio.
Benjamin faz emergir, a partir dos extremos desta forma de arte, ou seja, da
poesia lírica de Baudelaire, a configuração da ideia, onde se presentificam os
fenômenos extremos da modernidade, como já havia feito com a forma do drama
barroco. Assim, o poema O jogo revela o homem moderno no limiar dos conflitos da
metrópole do progresso capitalista. Buscando atingir o âmago das imagens poéticas
de Baudelaire, Benjamin vê a correlação deste poema com o conto O homem da
multidão de Poe e com a obra de Marx O 18 brumário de Luís Bonaparte, cujo
cenário é a mesma Paris do século XIX.
Proust ratifica a noção bergsoniana da duração qualitativa do tempo cheio
de tensões; buscando, pela memória involuntária, as reminiscências do passado, ele
também sente grande afinidade com a poesia lírica de Baudelaire. Proust nota nesta
arte os extremos do tempo desagregado e também, ainda que pouco, o tempo de
rememoração ou os dias de comemoração, estes totalmente diferentes da vivência
desagregadora. É o que Baudelaire chama de correspondências, conceito
diretamente ligado ao de experiência; são os dados da rememoração que lhe
possibilitam entender sua condição destrutiva de homem moderno. Flores do mal
tem o significado secreto de tempo perdido e irrecuperável.
Envolto na atmosfera melancólica, o poeta tenta por todos os meios
atravessar o longo caminho do tempo até “os sons, cores e perfumes” e constata
que esta experiência só é possível como culto do belo. As correspondências são o
reencontro com as coisas que devem ser rememoradas em dias de festa. Pela
mesma atmosfera melancólica, o poeta se rende ao poder satânico, ao senhor dos
tempos quantitativos marcados pelo ponteiro do relógio. Ele se inscreve nas
fronteiras dos extremos, tal qual o príncipe melancólico barroco das faces de Janus:
de um lado a rememoração alegre, nas imagens de Baudelaire (2010, p. 31):
Foi aí que vivi nas volúpias mais calmas,
Circundado de azul, de vagas, de esplendores,
102
De escravos todos nus, impregnados de odores.
e de outro lado, um pessimismo resignado, nas palavras do poeta (2010, p. 83):
Enquanto dos mortais a turbamulta vil,
Que o Prazer, duro algoz, vergasta, vai colhendo
Remorsos, nada mais, nesta festa servil.
A reação violenta do poeta diante da perda da experiência do passado e
condenado ao presente cujo tempo é contado pelo relógio. Benjamin afirma: “A ira,
com seus arrebatamentos, marca o ritmo dos segundos, à mercê do qual se
encontra o melancólico”. No tempo reificado, ainda existem os calendários com seus
feriados, que são os espaços destinados ao rememorar. Nos fragmentos da
experiência qualitativa do tempo, o homem da cidade grande, banido desta
rememoração, tem apenas os domingos para se lembrar dela. Antes arautos dos
dias festivos, os sinos que ele ouve dialogam com seu espírito agitado do homem
sem história. Benjamin (1994, p. 136) fala do tempo reificado:
No spleen, o tempo está reificado; os minutos cobrem o homem como flocos de neve. Esse tempo é sem história, do mesmo modo que o da memoire involuntaire. No spleen, no entanto, a percepção do tempo está sobrenaturalmente aguçada; cada segundo encontra o consciente pronto para amortecer o seu choque.
O splenn fala cruamente da vivência: vivência nua, sem aura, sem as falsas
vestes da experiência da durée de Bergson, eternizada e desvinculada da história. É
assim que a melancolia do spleen de Baudelaire (2010, p. 79) concebe a vivência do
homem da metrópole:
Dorme, ó meu coração; desiste, ó massa bruta!
Há correlação significativa entre os ensaios Sobre alguns temas de
Baudelaire e A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, primeiro, porque
o choque, característica da sociedade industrial capitalista, é o elemento constituinte
tanto da poesia lírica de Baudelaire quanto do cinema. Acrescenta-se ainda o tema
da perda da aura, também analisado por Benjamin (1994, p. 163) nos dois ensaios:
103
“A desilusão e o declínio da aura são fenômenos idênticos. Baudelaire coloca o
artifício da alegoria a serviço de ambos.” O tema do choque se refere diretamente
aos conceitos de experiência e de vivência, abordados nos ensaios sobre memória
voluntária e memória involuntária da obra de Proust e, de maneira mais direta, em
Experiência e pobreza e O narrador. Se a aura é o fenômeno irreeptível de uma
distância, se a distância é algo inatingível, a obra aurática tem o caráter de culto:
aquela que alimenta continuamente o desejo. Ela tem muito a ver com a experiência,
com o onírico e com a memória involuntária. Baudelaire entretanto se recusa dar a si
mesmo a auréola de poeta. A obra que perdeu a aura é como o alimento que sacia,
só diz respeito à vivência, ao choque e ao consciente. Diz Benjamin (1994,p. 161)em
Parque central: “Os jogos de azar, o flanar, o colecionador – atividades que se
contrapõem ao spleen.” É um olhar que não tem retorno do objeto olhado. Para ele
o olhar deslumbrado e descomprometido do flâneur não existe mais. A vivência se
transforma em experiência em Baudelaire, explica Benjamin (1994, p. 145):
Traído por esses seus últimos aliados (os marginais), Baudelaire se volta contra a multidão; e o faz com fúria impotente de quem luta contra a chuva e o vento. Tal é a natureza da vivência que Baudelaire pretende elevar à categoria de experiência. Ele determinou o preço que é preciso pagar para adquirir a sensação do moderno: a desintegração da aura na vivência do choque. A conivência com esta destruição lhe saiu cara. Mas é a lei de sua poesia que paira no céu do Segundo Império como “um astro sem atmosfera”.
Benjamin, ao revelar assim a especificidade da forma poética de Baudelaire,
ou seja, a vivência elevada à categoria da experiência, dá, ao mesmo tempo, a
exata compreensão do seu ensaio sobre o papel do cinema como forma de arte na
modernidade: a modernidade dos conflitos entre claros e escuros barrocos,
caracterizada pelo olhar melancólico do artista. Mais uma vez, como já o fizera em
Origem do drama barroco alemão, sempre fiel a seu método, consegue fazer
emergir a ideia que salva os fenômenos extremos. Todo interesse de Benjamin por
esta arte poética como reveladora da condição humana submetida às leis do
progresso científico e tecnológico da modernidade, é o fato de ele ver o poeta, tal
qual a alegoria de Dürer, mergulhado nas profundezas da terra que pisa e, ao
mesmo tempo, sob os auspícios de Saturno, capaz dos vôos mais altos e distantes.
104
Na realidade, o que lhe interessa é a melancolia, conflituosa, desiludida, mas
sobretudo contestadora: o ponto de partida contra as crenças falaciosas que
perpetuam a servidão humana. Baudelaire (2010, p. 23) é, como a configuração do
príncipe barroco: torturado, hostil, irado, vil, odiado, servil e, sempre, o poeta lírico e
melancólico.
Porque ele só da luz mais pura será feito,
Vinda do santo lar dos raios mais primitivos.
De que os olhos mortais, no seu fulgor perfeito,
Não são mais do que espelhos tristes, negativos!
O grande valor artístico desta poesia está na capacidade de hostilizar o
progresso, personificado na cidade de Paris, com incrível sutileza, arma do
verdadeiro artista que não tem um átomo das críticas grosseiras atreladas a
ideologias. Enquanto o continuum da história se caracteriza pelo eterno retorno,
pelas formas tecnicamente condicionadas, ou seja, pelas variáveis do mesmo vazio,
como enfatiza Benjamin (1994, p. 175), “A salvação se apega à pequena fissura na
catástrofe continua.” Benjamin vê o art nouveau e o futurismo como expressões
acabadas dessas formas travestidas do novo encantador, porém falacioso. A essas
fantasmagorias se opõe o lírico Baudelaire, com toda a força do inconformismo, do
ódio, da capacidade crítica, do dramático e do cômico, enfim, do furor melancólico,
próprios de um poeta marginal. Baudelaire, ao mesmo tempo em que desce
melancolicamente aos abismos da terra, eleva-se ao mais alto do sublime.
3.2. A rememoração na contemplação melancólica.
Proust, esta velha criança, profundamente fatigado, deixou-se cair no seio da natureza não para sugar seu leite, mas para sonhar, embalado com as batidas de seu coração.
Walter Benjamin – A imagem de Proust.
105
Se o Barroco, enquanto ideia, possibilita vislumbrar uma modernidade de
perecimento e destruição, só resta ao filósofo juntar os cacos dessa ruína e erguer
uma nova construção. Isso é possível pela rememoração, onde atua a profunda
meditação instigada pela melancolia. Assim os restos mortos readquirem nova
significação e, justapostos um a um, desenham o majestoso mosaico da imagem
sagrada. Chega-se aqui ao centro nevrálgico desta pesquisa, como explicita
Benjamin (1984, p. 50ss)
Esse fôlego infatigável é a mais autêntica forma de ser da contemplação. Pois ao considerar um mesmo objeto nos vários extratos de sua significação, ela recebe ao mesmo tempo um estímulo para o recomeço perpétuo e uma justificação para a intermitência de seu ritmo.Ela não teme, nessas interrupções, perder sua energia, assim como o mosaico, na fragmentação caprichosa de suas partículas, não perde sua majestade. Tanto o mosaico como a contemplação justapõe elementos isolados e heterogêneos, e nada manifesta com mais força o impacto transcendente quer da imagem sagrada, quer da verdade.
Benjamin se refere aos temas centrais do seu pensamento: a melancolia que
engendra a contemplação, a meditação profunda que justapõe elementos
heterogêneos, a alegoria nos extratos da significação do objeto e dos resíduos da
fragmentação, o método do tratado do perpétuo recomeço e da intermitência de seu
ritmo. A melancolia provocada pela perda e a visão da desintegração do mundo
provocam no filósofo a urgência de salvar as coisas, superando a melancolia, longe
da inércia da acedia e da indiferença. Mas como isso é possível sob a perspectiva
da história filosófica? Em outras palavras de que maneira é possível a revolução no
agora da cognoscibilidade? Pelas imagens dialéticas, na relação do passado com o
presente, responde Benjamin. Todo cuidado é pouco para não haver interpretações
inexatas da relação passado-presente como puramente temporal – e, note-se de
passagem, da mesma forma que o drama barroco não se limita às descrições de um
estilo do século XVII; o drama barroco é uma ideia, filosoficamente considerado.
Benjamin, como faz com a poesia lírica de Baudelaire, analisa a obra de Proust Em
busca do tempo perdido, para esclarecer o sentido de memória da dialética na
imobilidade pela imagem.
O ensaio A imagem de Proust, escrito em 1929, afirma Benjamin (1985, p.
37) logo no início: “Pois o importante para o autor que rememora, não é o que ele
106
viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope da reminiscência.”
Em busca do tempo perdido faz jus ao significado original de texto: o que é tecido.
Benjamin compara a obra de Proust ao trabalho de Penélope: o importante é o
tecido de sua rememoração. Sua memória – involuntária e espontânea –
(Eingedenken) diz respeito ao esquecimento. Seu texto é o oposto do trabalho de
Penélope porque desfaz os fios da trama durante o dia.46
No ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire, Benjamin esclarece o alcance
da memória em Proust: entre as tentativas filosóficas de dar um sentido novo de
experiência, como saída para o homem massificado, a obra de Bergson Matéria e
memória tem o mérito de considerar a memória como decisiva nesta questão. Neste
pensamento, a experiência é considerada como dados acumulados surgidos na
memória, muitas vezes inconscientemente. Observa o filósofo que o dado temporal,
a durée (duração), é diferente do tempo da ciência. A mesma hora do relógio pode
parecer um instante, se for preenchida por uma vida psicologicamente intensa e
parecer uma eternidade se for vazia ou preenchida pelo tédio ou pela espera.
O tempo da busca de Proust é entretanto o tempo qualitativo: reproduzir
pela memória a experiência vivida. Porém, nas condições de massificação, essa
reprodução só é possível artificialmente, uma vez que a memória se abre à vida
contemplativa e não à ativa. Proust distingue memória involuntária (a memória pura
para Bergson) e memória voluntária, a que depende da atenção do intelecto e se
ocupa de informações isoladas do passado. Não adianta querer evocar
deliberadamente este passado; e conclui Proust: pela memória involuntária, ao
acaso, o autêntico passado se nos apresenta em um objeto qualquer. Que objeto é
este e quando se apresenta, não se sabe. É o fator acaso que, segundo Proust, gera
a imagem de si, isto é, a própria experiência. Benjamin, em seu ensaio A obra de
arte na era de sua reprodutibilidade técnica, afirma que a experiência não se
consegue pela informação jornalística, que não passa de um fato isolado, cujo único
objetivo é provocar o choque da vivência (Erlebnis), algo instantâneo vindo de fora,
46
É importante notar que nos ensaios sobre Baudelaire, Proust, Brecht e Kafka respectivamente de 1939, 1929,
1931 e 1934 existem temas recorrentes na análise dessas obras literárias, como semelhança, correspondência,
memória e esquecimento. Na análise dos contos de Kafka, por exemplo, Benjamin enfatiza: “Porém o
esquecimento diz respeito ao melhor, porque diz respeito à possibilidade da redenção.” É o lembrar para
esquecer, como índice de salvação. (Cf. BENJAMIN, 1985, p. 156ss.).
107
portanto incapaz de afetar a experiência do leitor. A comunicação que tem como
suporte o progresso técnico cada vez mais se reduz à tarefa de informar uma
quantidade infinita de fatos, o que significa a atrofia da experiência. A forma da
narrativa de comunicação, de manter viva a experiência (Erfahrung) “...não tem a
pretensão de transmitir um acontecimento, pura e simplesmente (como a informação
o faz); integra-o à vida do narrador para passá-lo aos ouvintes como experiência.”
Assim Benjamin (1985, p. 107)caracteriza a experiência. É algo que se alimenta, que
dura e prolonga, e só é possível em um indivíduo integrado na comunidade. Proust é
o narrador rememorando sua infância nos oito volumes de Em busca do tempo
perdido.
Benjamin está atento ao poder significativo da arte de narrar que parte de
um objeto qualquer, em um momento qualquer e do estritamente individual vai-se
expandindo para todo o passado coletivo nas festas e nas celebrações. As
recordações surgidas inconscientemente passam a habitar a própria vida. Da pura
vivência, o lugar de lembranças fugidias, não desencadeia nenhum processo
criativo. Ele recorre à teoria freudiana do choque traumático, descoberto através dos
sonho de neuróticos.47 Para Freud, o consciente desperto é a proteção contra os
estímulos, da mesma maneira que todo organismo vivo se protege contra as
energias exteriores que o ameaçam. É o que Proust chama de memória voluntária e
Reik o denomina lembrança. O consciente toma o lugar da impressão que iria para a
memória, para onde vai o que não foi vivenciado. A conscientização contra as
energias destrutivas exteriores não tem traços mnemônicos.
Receber choques é sentir as ameaças dos estímulos. Aos poucos, a barreira
de proteção pode se romper. Freud descobre que o neurótico tem sonhos que
reproduzem o trauma, como forma de compensar a perda da proteção perdida pela
omissão. Isso lhe causa angústia e é a origem do comportamento neurótico. O
47
Benjamin cita os estudos de Freud, o que não significa redução de seu pensamento às teorias psicanalíticas. A
psicanálise, como ciência, procura desvendar os processos inconscientes que estão na origem da neurose e a
função da consciência na cura desta patologia. A citação deve ser tomada como uma contribuição para a
pesquisa sobre a correlação estímulo-consciente-choque, na formulação dos conceitos de vivência e experiência.
Para a discussão desta correlação, o estudo de Sérgio P. Rouanet Édipo e o anjo- Itinerários freudianos em
Walter Benjamin é uma referência, pois aborda temas fundamentais do pensamento benjaminiano, como
experiência, choque e memória, sonho e imagens dialéticas. (Cf. Rouanet, S. P.1990 ).
108
remédio para isso é o treinamento da consciência, pelo qual o choque passa a ser
uma experiência vivida com simples lembranças conscientes. Pela reflexão, dá-se a
vivência, sem ela, dá-se o sobressalto, isto é, a falha da resistência ao choque.
Benjamin observa na obra de Proust que a lei do esquecimento de que
nada é duradouro, ou seja, a da incompletude, permite diferenciar o vivido do
lembrado. O vivido é o acontecimento finito nos limites espaciais e temporais, o
lembrado é a porta aberta para o antes e o depois. O texto se desenvolve a partir da
recordação, ad infinitum. Benjamin (1985, p.38) mostra que a melancolia que
impregna a essência do presente é a força propulsora para o objeto da busca da
felicidade:
Ele viu o desejo de felicidade...esse desejo dilacerante e explosivo de felicidade – cego, insensato e frenético... Esse desejo brilhava em seus olhos. Não eram olhos felizes.
De que maneira, entretanto, se desencadeia esta busca? - Através de uma
momento mais banal e efêmero, um encontro não previsto na vigília da noite. No
entanto, os desdobramentos mais significativos de uma vida podem partir desta hora
imprevisível. Benjamin entende esta dialética da felicidade como eterna restauração
de algo eterno e original. É a forma da elegia, onde a recordação se abre para o
ilimitado; é sonhar acordado. Ilimitado, porque os acontecimentos são sempre
semelhantes, mas da semelhança profunda, própria do sonho. Em 1933, Benjamin
(1985, p. 111) escreveu o breve ensaio A doutrina das semelhanças. Neste ensaio,
o filósofo enfatiza o papel da escrita: “É, portanto, a semelhança extra-sensível que
estabelece a ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também
entre o escrito e o intencionado, entre o falado e o escrito.” A linguagem e a escrita
possibilitam a leitura da semelhança extra-sensível. São as leituras possíveis, como,
por exemplo, a leitura que o astrólogo faz da posição dos astros, diferentes da
leitura – literal – do abecedário. A escrita-imagem é um arquivo de semelhança
extra-sensíveis, as antigas forças miméticas da história mais primeva. As
brincadeiras infantis são como resíduos dessas forças, quando transformam, por
exemplo, um cabo de vassoura em cavalo, que, de repente, é transformado em
espada. Esse esvaziar o objeto de seu conteúdo é exatamente o que Proust faz ao
esvaziar o “Eu” para colocar em seu lugar a imagem. A imagem de sonho, rosto
109
surrealista da vida, surge sutilmente na profusão narrativa proustiana. É ela que
apazigua a melancolia. Diz Benjamin (1985, p. 41):
Mas não é tanto o humor, quanto a comédia, o verdadeiro centro de sua força; pelo riso, ele não suprime o mundo, mas o derruba no chão, correndo o risco de quebrá-lo em pedaços, diante dos quais ele é o primeiro a chorar.
Benjamin desqualifica os críticos alemães, que viam em Proust a expressão
do esnobismo de uma classe social francesa: foram incapazes de perceber toda a
sutileza inteligente e irônica da comédia com que Proust despedaça este mundo
burguês. Ele destrói, pelo riso, a ética, a família, a moral do sexo desta classe. À
maneira de Baudelaire, Proust constrói sua narrativa fundada na experiência de
viver todo esse universo social e sobre ele lançar o olhar melancólico. Em Sobre
alguns temas em Baudelaire, Benjamin (1994, p. 145) observa: “Tal é a natureza da
vivência que Baudelaire pretendeu elevar à categoria de experiência.” Seus
personagens representam, como em um teatro barroco, todas as nuances da
mentalidade de sua classe. Existe nessa Narrativa o mimetismo da curiosidade, a
genialidade da técnica proustiana, segundo Benjamin (1985, p. 43):
Ortega y Gasset foi o primeiro a chamar a atenção para a existência vegetativa dos personagens proustianos, aderindo tenazmente ao seu torrão social influenciados pelo sol do feudalismo, movidos pelo vento que sopra de Guermantes ou Méséglise e inseparalvelmente entrelaçados na floresta do seu destino.
A curiosidade de Proust o leva a investigar todo o tecido de uma classe
dissimulada que procura, nas aparências de elegância e civilidade, esconder o
feudalismo de um sistema econômico. Proust desmistifica a máscara do esnobismo
desta classe e, com ela, sua moral. Benjamin relaciona sua arte com a enfermidade
de que padecia: a asma. A falta de ar sufocante se compara ao estado melancólico
das reminiscências, cujo fôlego só é recobrado com a ironia filosófica. Mas é a morte
a principal ameaça sufocante. A doença, ao invés de ser um mal a ser curado,
tornou-se aliada do romancista; um simbiose entre sofrimento e criação: a
melancolia de aceitar as condições destruidoras da existência fadada ao
envelhecimento.
Para Proust a eternidade não é a do tempo infinito, mas a eternidade que se
manifesta na reminiscência e no envelhecimento, no mundo das semelhanças e
110
correspondências. Em outras palavras, é o passado refletido no instante presente,
rejuvenescendo-o. Assim para Benjamin (1985, p. 46), as imagens vão se
entrecruzando numa concentração fugaz rejuvenescedora. “À la recherche du temps
perdu é a tentativa interminável de galvanizar toda a vida humana com o máximo de
consciência.” No ensaio O que é o teatro épico – Um estudo sobre Brecht, Benjamin
(1985, p. 88) parece estar se referindo a Proust: “Ele mostra a coisa com
naturalidade, na medida em que se mostra e se mostra, na medida em que mostra a
coisa.” A auto-absorção, a indiferença à morte, o consentimento a seus próprios
sofrimentos são características da literatura proustiana, que com sarcasmo e
ternura, cinismo e virtuosismo tem muito a mostrar ao leitor: desmistificar o “Eu”, a
moral, o amor, enfim, as máscaras de seu tempo.
3.3. Angelus Novus: a imagem melancólica do anjo da história.
A tese IX de Sobre o conceito de história descreve a figura conflitante,
desesperada e melancólica de um anjo, no meio de uma tempestade. De asas
abertas, ele é arrastado por uma ventania e seu rosto estampa o olhar angustiado e
aterrador voltado para trás e “...ele vê uma catástrofe única, que acumula
incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés.” Assim Benjamin
(1985, p. 226) descreve a imagem da melancolia na modernidade do progresso. Ela
tem o mesmo olhar da Melancolia I de Dürer, pois estes olhos fixos, como que
paralisados, são a expressão mais cabal da conflituosa situação entre a premência
de socorrer os agonizantes, salvar o que for possível e a terrível sensação de nada
poder fazer. É a angústia de abandonar o local da catástrofe, levando os horrores do
cenário de destruição gravados no olhar. O olhar denuncia tudo o que existe de
melancólico neste anjo: sua fidelidade ao rejeitado, às ruínas. Seu maior desejo é
recolher os fragmentos, acordar todos os que poderiam reconstruir - nisso consiste o
satanismo do anjo -, mas a tempestade o arrasta para o futuro. Essa força
monstruosa é o progresso. Nessa descrição, Benjamin (1985, p. 226) usa a terceira
pessoa:”...O anjo da história deve ter este aspecto...Ele gostaria de deter-se...” e a
primeira pessoa no plural: “...Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos...Essa
111
tempestade é o que chamamos de progresso.” É uma clara maneira de mostrar o
poder da civilização calcado na razão, cuja pretensão é ensinar o sentido do mundo
e fazer acreditar no progresso. Entre o anjo e a fé no futuro está o “nós” da massa
levada pela indiferença, que não consegue enxergar nem a catástrofe, nem as
ruínas: políticos, toda sorte de demagogos, que fraudam a ciência e a cultura. São
os valores falsos, as normas, os paradigmas e os deveres, o legado da mentalidade
iluminista imposto à multidão de proscritos que jazem no passado desta história.
Tudo ruína! A ideia de catástrofe é esta história escrita pelos vencedores.
Interromper esta história é o desejo do anjo. Mas ele não consegue.
Há entretanto uma conotação mais específica para a afirmação “Essa
tempestade é o que chamamos progresso.” Benjamin se refere à situação política
alemã da República de Weimar: a social-democracia, cuja ideologia da crença no
desenvolvimento técnico e, por extensão, no trabalho como fonte de riqueza e
felicidade vindoura. Se esta tecnocracia tinha alguma inspiração socialista, não
levou em conta a questão básica do pensamento de Marx: por que os operários não
podem dispor do produto de seu trabalho? Benjamin, ao apresentar a metáfora do
anjo da história, em toda a sua radical melancolia, não só denuncia esse nadar no
sentido da correnteza – do progresso – como alerta para a urgência de interromper a
marcha linear da história, como se estivesse prevendo uma catástrofe pior ainda.
A crítica desesperada do filósofo é dirigida à ideologia alemã da social-
democracia, que não passa de uma versão vulgar de socialismo, ou seja, a crença
na tecnologia e no poder das máquinas,como garantia de um futuro próspero e de
uma sociedade pautada na justiça social. Essa política falaciosa usa, de modo
fraudulento o conceito de trabalho, pois se baseia no slogan “o trabalho dignifica”,
uma caricatura da verdadeira concepção de trabalho do materialismo histórico. A
tradição ideológica alemã que alimenta os resquícios da moral protestante,
enaltecendo as virtudes da coragem, da confiança, da obediência, acreditou que
trabalho, máquinas e tecnologia eram a garantia futura da revolução socialista. Mas
a história provou que o nome deste futuro é fascismo.
112
No ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Benjamin
(1985, p. 196) denuncia o ponto mais extremo da utilização da técnica: a estetização
da guerra:
“Fiat ars, pereat mundus”, diz o fascismo e espera que a guerra proporcione a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica, como faz Marinetti. É a forma mais perfeita do art pour l‟art.
O fascismo sabe que o maior desejo das massas trabalhadoras é mudar as
relações de propiedade, uma vez que o trabalhador não é dono do produto de seu
traabalho. Ele utiliza a estetização da política pela guerra para não mudar um
centímetro desta relação. A guerra é bela, diz o futurismo, na sua idolatria da
máquina. As técnicas de persuasão fascistas não desperdiçaram as máquinas de
filmar e de projetar as imagens de convencimento no espetáculo ideológico.
À imagem do anjo corresponde o historiador materialista que, de mesmo
olhar melancólico, deve recolher os cacos da história e revelar neles as marcas do
conhecimento e da sabedoria. Juntar e recompor os valores dispersos é a tarefa
deste historiador. A tempestade do progresso, personificada no poder da máquina e
na fascinação exercida pelo lucro, o impede da efetiva ação salvadora. Entretanto, a
mesma máquina, comandada pelos princípios enganosos da racionalidade, destrói o
mundo. Vã estetização da guerra! Benjamin (1985, p.226) afirma que ao anjo só
resta escovar a história a contrapelo (Die Geschishte gegen den Strich zu bürsten),
isto é, caminhar na direção contrária da tempestade do progresso. “Seu rosto está
dirigido para o passado.” A memória tem uma função imprescindível nesta
perspectiva de salvação.
Como é possível a salvação em um mundo onde o sagrado foi substituído
pelo profano e onde um abismo separa o material do espiritual, o corpo da alma? De
fato, responde Benjamin, nesta separação satânica, é preciso resgatar o que foi
disperso no mundo secularizado, pois as coisas perderam seu sentido. A iluminação
profana é a única experiência capaz de restituir o que foi partido. Aliar matéria e
espírito é salvar o corpo físico e, com ele, o homem íntegro que a tradição dividiu. A
força tempestuosa do progresso que arrasta o anjo, se fundamenta numa radical
falácia, pois o novo, que tanto fascina, não passa de eterno retorno do velho. O
113
progresso é a história da repetição infernal do sempre igual. A verdadeira história é
construção cujo lugar é um tempo saturado de ágoras (Jetztzeit ).
A tese XIV expõe o verdadeiro sentido da revolução: interromper a marcha
desta história entendida, seja como flexa, seja como círculo vicioso de repetição. A
revolução, ou o interromper a continuidade da história, é reencontrar o passado
enquanto mônada, que engloba a história toda como presente – o aqui e agora do
universo ou a imagem do passado em algo único e momentâneo. A crítica de
Benjamin à ideia de progresso é muito mais abrangente do que, à primeira vista,
possa parecer. Ela se dirige à ideia de perfectibilidade infinita do gênero humano, ou
de progresso da humanidade tomado abstratamente, ou ainda ao conceito
dogmático de um processo automático em linha reta ou espiral. Essas concepções
se traduzem na prática nas teses positivista e evolucionista, fundadas na ideia de
um tempo natural. Benjamin (1985, p. 229) expressa sua crítica:
A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha.
Esta é a critica da história concebida segundo as leis das ciências naturais,
às quais a ética se submete como simples intenções, em outras palavras, a história
é inexoravelmente assim e o que ela deve ser em conhecimento é pura intenção
sujeita a essa marcha. O método do historiador materialista se distingue daquilo que
o historicista designa como História Universal, a história independente da vontade
humana. Assim concebida a história não passa do tempo homogêneo e vazio
preenchido pela adição de acontecimentos. Benjamin refuta essa confiança na
evolução e, por extensão, na teoria do poder das massas que, mais cedo ou mais
tarde, como por decreto natural, deflagrará a revolução proletária. Benjamin (1985,
p. 231) não aceita esta teleologia simplista decorrente de interpretações vulgares do
marxismo:
Pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada.
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A interrupção de um pensar como movimento contínuo das ideias é
carregado de tensões. Aí se dá a verdadeira revolução: estas tensões significam um
choque que paralisa a configuração como mônada. Para tanto é necessário
distinguir dois sentidos da ideia de repetição: a repetição como destino, isto é, o
retorno do sempre igual e repetição como o agora (Jetztzeit ) carregado de passado,
o agora que interessa a Benjamin. A dialética na imobilidade, o reter o curso do
mundo é a busca de Proust pelo tempo perdido, ou o conteúdo da poesia lírica de
Baudelaire, ou ainda a característica do teatro épico de Brecht; o choque que
cristaliza a ideia enquanto mônada na perspectiva de redenção. A rememoração é a
possibilidade de construção da história. Benjamin (1985, p. 230ss) estabelece a
verdadeira relação do presente carregado de passado com o futuro: “O mesmo
salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução...” A rememoração
pode-se converter em comemoração futura, porém não como garantia da felicidade:
Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias.
Se existe certeza da possibilidade da revolução no agora carregado de
passado, a futura vinda do Messias que entra pela porta estreita é apenas uma
possibilidade, uma promessa de felicidade. Se Benjamin foca o passado de onde
ecoam vozes que não falam mais ou das sementes que ainda podem germinar no
presente fulgurante da interrupção, para ele o futuro não se configura em cenário
nebuloso de incertezas. Seu pensamento não é teleológico, uma vez que voltado
para o presente com poder mágico das rememorações. Eis o que o distingue das
revoluções entendidas como grandes movimentos políticos.
As teses sobre o conceito de história condensam todo o percurso da crítica
filosófica benjaminiana onde sobressai a melancolia como categoria fundante. A
mesma figura alada de Origem do drama barroco alemão ressurge como o anjo da
história. A melancolia do Angelus Novus é sua característica marcante, pois é ela
que o impele a mergulhar fundo na verdadeira natureza da história. Pelo olhar
melancólico, ele vê, na marcha da civilização, somente ruína, morte e ilusão. Quem
115
é que pode seguir este anjo, se o progresso, com seu poder de persuasão, arrasta
multidões? Benjamin responde: os que estão à margem da sociedade, mergulhados
na mesma melancolia e por isso distanciados da euforia ilusória. A melancolia volta
seu olhar para tudo o que é rejeitado, objeto de sua contemplação alegórica. O olhar
do anjo resume seu estado de ânimo entre uma tarefa urgente e a dificuldade de
realizá-la.
Experiência e melancolia convergem para a figura do anjo. De fato,
experiência (Erfahrung) não é vivência (Erlebnis) que é sempre considerada
quantitativamente na continuidade do tempo. A experiência se funda no tempo
qualitativo. Nela o choque e o involuntário do acaso desestruturam a unidade do
sujeito. É a experiência daquele que sai da correnteza, como Baudelaire, Proust e
Kafka, dos quais o anjo melancólico é a figura paradigmática, porque ele se
interessa pelo transitório, o terreno, o ilusório, enfim, pelo sem-sentido do inumano
para dar-lhe um sentido.
Benjamin concentra no anjo da história todas as categorias de sua filosofia:
origem, alegoria, experiência, dialética na imobilidade e - o Ser visual - melancolia.
116
Conclusão
Ressuscita-me,
Nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
Repelindo o absurdo cotidiano!
Ressuscita- me,
Nem que seja só por isso!
Ressuscita-me,
Quero viver até o fim o que me cabe!
WLADÍMIR MAIAKÓVSKI, ESPERANÇAS
A escolha dos textos analisados nesta dissertação pautou-se pelo projeto de
expor os sentidos de melancolia, categoria fundante do pensamento de Benjamin,
estabelecendo a estreita relação entre a obra sobre o drama barroco alemão e as
obras poéticas da modernidade, sobretudo a poesia lírica de Baudelaire. As
correspondências entre estes textos – e, pode-se afirmar com segurança, entre
todos os textos do filósofo – resumem-se na configuração da ideia da história
filosófica. Para fazer emergir esta configuração, Benjamin obedece fielmente o
método que se impôs, ou seja, o de salvar os fenômenos, incluídos como totalidade,
na ideia. O drama barroco, a poesia lírica de Baudelaire, a narrativa de Proust
representam as principais fontes de reflexão – como a espinha dorsal de toda a
pesquisa – para a formulação do conceito da história, ponto de convergência do
pensamento do filósofo. De fato, no texto das Teses sobre o conceito da história,
todos os labirintos percorridos das análises filosóficas nas obras de arte
desembocam na exposição conclusiva de toda pesquisa, onde se esclarece o peso
da densidade da obra sobre o drama barroco.
Nas Teses são apresentadas as duas faces da história: a história segundo o
historicismo e a história segundo o materialismo histórico. Ora, esse duplo da
117
análise de Benjamin praticamente está, patente ou latente, em todos os seus
ensaios: a história natureza e a tentativa de vencê-la, no drama barroco, a história
da moral burguesa e a rememoração de um outro tempo para desqualificá-la, em
Proust, e ainda a história da massificação da metrópole e a revolta de Baudelaire.
É a revolta, a ironia ou a luta vã desta outra história que interessa a
Benjamin. Todos os heróis desta batalha deixam transparecer um estado de ânimo
melancólico. A melancolia é, por assim dizer, decorrência espontânea da
divergência ante o status quo de uma realidade histórica dada. A esperança de uma
outra história se deposita nos desgarrados que não seguem eufóricos o cortejo
triunfante dos vencedores. São aqueles que, pelo olhar melancólico, conseguiram
enxergar toda a barbárie deste cortejo que se apodera dos despojos dos vencidos e
produz ruínas e destruição. A festa da vitória vai ser transformada, mais cedo ou
mais tarde, em pesadelo da derrota, obedecendo o ciclo implacável e infernal do
mito.
Pode-se entender a convergência dos textos de Benjamin nas Teses sobre o
conceito da história, através das duas formas de conceber o passado: como
repetição pura e simples e como interrupção, como salto. Na obra sobre o drama
barroco, a repetição entendida como identificação com o passado é denominada
história da natureza que destrói a história do homem, leva-o à morte. O Barroco
conspira para impor as leis de ferro da natureza no lugar das incertezas da história.
A crença da República de Weimar é exatamente esta: crença em um progresso
certo. Benjamin (1985, p. 231)vê o passado, sob o céu livre da história, como
interrupção do tempo contínuo no choque, ou seja, vê uma outra história, uma
imagem da memória involuntária que se dá na explosão do agora, em uma unidade
de tempo presente, passado e futuro:
O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou dito de outro moldo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido.
A tese XVII mostra o tempo fora da história, presentificado na imagem
dialética. Isso se dá no sentido diametralmente oposto ao tempo homogêneo e
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vazio, abstrato, no qual se refugia a ideologia do progresso, tempo esse que tem as
leis férreas da ciência e da razão. Na perspectiva de interrupção, Benjamin assim vê
o spleen de Baudelaire: constatar que o indivíduo reproduz o anônimo e abstrato da
multidão. O rosto da metrópole é seu rosto e seu corpo a mercadoria. Tudo equivale
e é intercambiável. O dinheiro tem esse papel, é instrumento da troca. Contra isso, o
poeta luta desesperadamente. A mesma linguagem alegórica do Barroco ressurge
com Baudelaire na modernidade, onde tudo se desintegra. O sujeito desaparece na
multidão.
Outra categoria benjaminiana, presente em todos os textos, impregnada da
melancolia, é a rememoração. No apêndice das Teses sobre o conceito da história,
afirma Benjamin (1985, p. 232): “Quem tem em mente este fato (dos adivinhos que
interrogam o tempo), poderá talvez ter uma ideia de como o tempo passado é vivido
na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo.” Na obra sobre o drama
barroco, Benjamin (1984, p. 68), ao expor a natureza histórica da categoria da
origem, enfatiza: “...que o reconhece (o originário), por um lado como restauração e
reprodução, e por outro lado, e por isso mesmo, com incompleto e inacabado.” A
rememoração, nestes textos, é a condição sine qua non da dialética no materialismo
histórico. Não é simples lembrança dos fatos ou encontro com o passado na
esperança de revivê-lo tal qual ele foi. No processo dialético, entretanto,
rememoração significa profunda meditação, na fidelidade ao oprimido que ficou por
realizar-se. Note-se que a absorção do processo meditativo é a característica
primeira da melancolia. Rememorar diz respeito ao processo de restauração sempre
recomeçado, visto que é incompleto. Trata-se da realização histórica, na contra-mão
do historicismo, isto é, do tempo linear. A rememoração está em relação direta com
o agora carregado de passado (Jetztzeit), como mônada, como imagens dialéticas,
para a restituição do que foi perdido. Nesta perspectiva, o passado, assim
rememorado, não permanecerá o mesmo. Ele será transformado, redimido. Desta
forma deve ser entendida a categoria da origem: algo que emerge deste processo,
do vir-a-ser. Enquanto a história natureza mostra o que tem de catastrófico e
perecível, no rosto hipocrático, prematuro, sofrido e malogrado, outra história pode
ser construída pelos poetas e marginais. Seu principal instrumento é a melancólica
rememoração.
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O tema da linguagem concorre essencialmente na configuração da história
filosófica do pensamento benjaminiano e envolve as categorias de origem e
rememoração. Benjamin refuta a concepção de linguagem como conjunto de signos
arbitrários a serviço da comunicação, como instrumentos de transmitir mensagens.
Pelo contrário, os homens só falam quando percebem que a palavra não é objeto a
ser possuído, mas diz respeito ao nome, sua doação originária. Trata-se de uma
teoria de fundamento místico e teológico, onde um processo dialético se instaura
quando se considera a tradução em confronto com o original. Deve-se observar que
é a mesma dialética do interromper o tempo das Teses: a tradução se configura
como um momento de destruição e, ao mesmo tempo, de restituição da ordem
original. O tradutor diz a alteridade do original. Essa tentativa pode desencadear o
estilhaçamento, a desagregação das línguas, visto que são fragmentos de uma
língua originária maior. Isso só prova a falsa aparência de unidade de cada língua ou
de cada obra. Revela-se então a verdade histórica: as línguas se dirigem a uma
língua maior, nela se encontram e se reconhecem, como fragmentos que
recompõem um vaso. A língua maior não deve ser entendida como língua perfeita
que existia antes da queda. Babel criou a discórdia e a incompreensão entre as
línguas, desencadeando a perda do sentido comum e a decomposição do sujeito.
Faz-se necessário recuperar a concórdia e a harmoniosa compreensão na
convergência e integração com a língua maior. Atente-se para a observação
importante: a multiplicidade e a diversidade das línguas são salvas, da mesma forma
que os fenômenos não se dissolvem no conceitos, mas são salvos na ideia.
Nas Teses sobre o conceito da história, a teoria da linguagem de Benjamin
está incluída na dialética do interromper a marcha do progresso, também
caracterizada pela discórdia e incompreensão entre os homens. Basta lembrar o
transeunte na multidão, figuração baudelairiana, despersonalizado e confinado na
sua solidão. A teoria da tradução caminha lado a lado com a filosofia da história,
onde a alegoria é o caminho tortuoso da revelação do sentido. O embate mais
radical a favor e contra a alegoria foi no romantismo, cujos protagonistas foram
Schiller e Goethe. Para este, a alegoria era mera ilustração, algo que separa o
significado do significante. Benjamin comenta a posição de vários teóricos sobre
esta distinção. A que mais lhe interessa é a que considera o fator temporal: o
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símbolo é instantâneo, como a fulguração de um raio e a alegoria se desenvolve no
tempo, envelhece, portanto. A alegoria fala do tempo da história, da transitoriedade
e da morte; esta característica da linguagem do drama barroco: procurar atingir o
eterno falando do perecível, ou seja, falara uma coisa para significar outra. É a
expressão lingüística que interessa a Benjamin. Poder-se-ia afirmar que a ele
interessa prolongar no tempo - aquela fulguração simbólica. Em outras palavras, a
análise da alegoria barroca em toda sua mediaticidade e historicidade, distante do
símbolo como feliz evidência do sentido, reaparece nas Teses sobre o conceito da
história: o agora carregado de passado, o instante fulgurante, é a possibilidade da
revolução, em toda a extensão da história, como expressa Benjamin (1985, p. 224)
“O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no
momento em que é reconhecido.” Ora, este passado condensa tudo o que existe de
realidade humana: fragilidade, precariedade, crueldade e barbárie, no instante
dialético da redenção, como o palco barroco que busca a salvação mostrando a
catástrofe. A bela aparência estampada na sua forma imediata sensível – o ideal
clássico – é substituída pela realidade humana em toda sua negatividade. Nisto
consiste o conflito barroco e sua linguagem não poderia ser outra que não fosse a
alegoria. Esta tentativa de redenção é também a forma de expressão possível na
perspectiva messiânica de salvação na modernidade.
Benjamin constrói sua filosofia da história percorrendo os labirintos da
tradição na busca comparativa das teorias e dos conceitos, confrontando
criticamente os contemporâneos, em tudo o que os separa e os une. Sua obra
filosófica é uma reflexão sobre o imenso acervo de tudo o que foi produzido em
termos explicativos para a condição humana. É como garimpar as ideias
significativas - citadas ad infinitum – para um processo de construção
permanentemente recomeçado, e por isso mesmo, inacabado.
No longo caminho percorrido, surgem duas imagens paradigmáticas: a
Melancolia I de Albrecht Dürer e o Angelus Novus de Paul Klee. Elas traduzem o
estado de espírito que vai surgindo, quase que espontaneamente, à medida em que
o filósofo aprofunda sua pesquisa para esta construção. As duas figuras, uma no
Barroco, outra na modernidade, têm as mesmas características: são aladas e têm o
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olhar carregado na expressão. Tal expressão não é definível, pois passa por uma
escala enorme de sentimentos e estados de alma conflitantes – não se pode
esquecer, elas pertencem ao alegórico. Num determinado momento de sua pesquisa
sobre o Barroco, Benjamin dedica várias páginas à melancolia. Com efeito, nos
domínios da alegoria, poucas páginas não bastam. Foi o que entendeu Panofsky, ao
tentar desvendar toda a gama de sentidos contida em Melancolia I. (KLIBANSKY et
al., 1989). Tarefa impossível!
Benjamin, entretanto, entendeu a pluralidade de sentidos deste estado de
alma. É na perspectiva histórica, na configuração da ideia, como história filosófica,
caracterizada pela coexistência dos contrastes, que se instala a figura da
melancolia. O príncipe barroco, conflituoso, no afã de restaurar a ordem, apesar da
catástrofe inevitável e o historiador materialista, igualmente conflituoso, que recolhe
os fragmentos na oportunidade de lutar por um passado oprimido, têm nas suas
ações a marca do estado melancólico. Conflitos entre quais extremos? Da mais
paralisante acídia ao humor colérico do saturnino, responderia Benjamin, pois não
há adjetivos suficientes para qualificar este estado de espírito complexo. Para
Benjamin interessa como ele aparece nas formas artísticas: o elemento
determinante para o choque desestruturador do curso da história. No spleen,
Baudelaire vive melancolicamente no meio da multidão da metrópole capitalista para
mostrar a outra face da historia; Proust busca melancolicamente o passado para
desfazer a trama. Assim também o filósofo, na busca da redenção messiânica, da
vitória sobre o curso natural da história de domínio, é testemunho da presença da
melancolia, na sua vida, na sua obra e na sua morte.
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