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1 O PARALELO ENTRE A PINTURA E A MÚSICA NO PENSAMENTO E NA OBRA DE PAUL KLEE Arthur Valle 1 Mesmo na mais ligeira análise da obra pictórica e gráfica do artista plástico suíço Paul Klee (1879-1940) é praticamente impossível não se dar conta da sua estreita vizinhança com o mundo da música: confirmam isso a presença, no título de dezenas de seus trabalhos, de termos usualmente empregados na escrita e na teoria musical (fermata, polifonia, fuga, etc.), bem como as constantes referências a instrumentos, a compositores ou a personagens e temas de óperas ou balés. Como decorrência quase natural desse fato, a relação entre a obra de Klee e a arte da música desde muito constitui um tópico comum entre os analistas que abordaram o artista, como evidencia a lista parcial de livros e artigos que apresentamos na pequena bibliografia ao final do presente texto. Não obstante, pela sua própria riqueza e diversidade, a trama tecida entre pintura e música por Klee - tanto em sua obra propriamente dita, quanto também, cumpre frisar, em seus abundantes escritos -, ainda guarda aspectos pouco estudados. Aqui, nos propomos justamente considerar algumas questões inauditas a respeito do tema que dá título ao nosso trabalho, bem como revisar outras um tanto mais conhecidas. É notório o fato de que Klee, nascido em uma família de músicos 2 , se definiu apenas tardia e hesitantemente como pintor: durante toda a sua infância e juventude, ele ficou dividido entre a prática das artes plásticas, da música e, em menor medida, da literatura. Desde os sete anos, favorecido pelo ambiente da casa, Klee desenvolveu um talento notável como violinista, que o capacitou a participar de concertos sinfônicos, inclusive como solista, notadamente na orquestra municipal de sua cidade natal, Berna. Apenas por volta de 1901, data de sua primeira viagem à Itália, Klee teria “dito resolutamente adeus à literatura, à música” (BOULEZ, 1989: 13); todavia, a intuição de que laços profundos, verdadeiramente “cósmicos” - para usar um termo caro ao pintor - ligavam pintura e música, alimentada pela sua vivência artística multiforme, nunca o abandonaria, vindo a se manifestar mesmo em seus trabalhos tardios. Uma entrada de seu diário datada de 1906 ilustra bem o pensamento de Klee a respeito da questão: “Cada vez mais, sou forçado a enxergar paralelos entre a música e as arte plásticas 1 Fundação de Apoio à Escola Técnica – Instituto Normal Superior / RJ 2 Seu pai, Hans Klee, ensinava música em uma escola próxima a Berna e sua mãe, Ida Marie Klee-Frick, era uma cantora. Essa relação “familiar” de Paul Klee com a música, eventualmente, se perpetuaria: em 1899, o artista conheceu, na cidade de Munique, a pianista Lily Stumpf, que veio a se tornar a sua esposa, em 1906.

Klee e Música

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    O PARALELO ENTRE A PINTURA E A MSICA NO PENSAMENTO E NA OBRA DE PAUL KLEE

    Arthur Valle1

    Mesmo na mais ligeira anlise da obra pictrica e grfica do artista plstico suo Paul Klee (1879-1940) praticamente impossvel no se dar conta da sua estreita vizinhana com o mundo da msica: confirmam isso a presena, no ttulo de dezenas de seus trabalhos, de termos usualmente empregados na escrita e na teoria musical (fermata, polifonia, fuga, etc.), bem como as constantes referncias a instrumentos, a compositores ou a personagens e temas de peras ou bals. Como decorrncia quase natural desse fato, a relao entre a obra de Klee e a arte da msica desde muito constitui um tpico comum entre os analistas que abordaram o artista, como evidencia a lista parcial de livros e artigos que apresentamos na pequena bibliografia ao final do presente texto. No obstante, pela sua prpria riqueza e diversidade, a trama tecida entre pintura e msica por Klee - tanto em sua obra propriamente dita, quanto tambm, cumpre frisar, em seus abundantes escritos -, ainda guarda aspectos pouco estudados. Aqui, nos propomos justamente considerar algumas questes inauditas a respeito do tema que d ttulo ao nosso trabalho, bem como revisar outras um tanto mais conhecidas.

    notrio o fato de que Klee, nascido em uma famlia de msicos2, se definiu apenas tardia e hesitantemente como pintor: durante toda a sua infncia e juventude, ele ficou dividido entre a prtica das artes plsticas, da msica e, em menor medida, da literatura. Desde os sete anos, favorecido pelo ambiente da casa, Klee desenvolveu um talento notvel como violinista, que o capacitou a participar de concertos sinfnicos, inclusive como solista, notadamente na orquestra municipal de sua cidade natal, Berna. Apenas por volta de 1901, data de sua primeira viagem Itlia, Klee teria dito resolutamente adeus literatura, msica (BOULEZ, 1989: 13); todavia, a intuio de que laos profundos, verdadeiramente csmicos - para usar um termo caro ao pintor - ligavam pintura e msica, alimentada pela sua vivncia artstica multiforme, nunca o abandonaria, vindo a se manifestar mesmo em seus trabalhos tardios.

    Uma entrada de seu dirio datada de 1906 ilustra bem o pensamento de Klee a respeito da questo: Cada vez mais, sou forado a enxergar paralelos entre a msica e as arte plsticas

    1 Fundao de Apoio Escola Tcnica Instituto Normal Superior / RJ

    2 Seu pai, Hans Klee, ensinava msica em uma escola prxima a Berna e sua me, Ida Marie Klee-Frick, era uma cantora. Essa relao familiar de Paul Klee com a msica, eventualmente, se perpetuaria: em 1899, o artista conheceu, na cidade de Munique, a pianista Lily Stumpf, que veio a se tornar a sua esposa, em 1906.

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    [...]. No h dvida de que as duas so artes temporais, o que fcil de se comprovar (KLEE, 2001: 116). Entre outras conseqncias, tal constatao levaria-o a negar resolutamente uma tendncia tradicional do moderno pensamento esttico ocidental que frisava a especificidade e a separao das artes e cujo talvez mais clebre porta-voz foi Gottfried Ephraim Lessing. Em um de seus textos mais conhecidos, a Schpferische konfession de 1920, Klee no hesitava em classificar a esttica da separao as artes postulada pelo dramaturgo e ensasta alemo setecentista como uma divagao erudita:

    No Laocoonte de Lessing, no qual em algum momento desperdiamos nossos esforos de pensamento juvenil, uma grande importncia atribuda diferena entre a arte temporal e a arte espacial. Mas, examinando o assunto com mais cuidado, isso no passa de uma divagao erudita. Pois o espao tambm um conceito temporal (KLEE, 2001: 45-46).

    A respeito do espao como conceito temporal, Klee precisava: Quando o ponto se torna movimento e linha, isso implica tempo. A mesma coisa ocorre quando uma linha se desloca para formar um plano. Igualmente no que diz respeito ao movimento dos planos para formar espaos (KLEE, 2001: 45-46). Dessa concepo decorria, em ltima anlise, a identificao que Klee estabelecia entre o valor de uma pintura ou desenho e a sua capacidade de evidenciar a sua prpria gnese, o seu processo de execuo - uma noo essencial do pensamento do artista, a qual voltaremos com mais detalhes no final do presente texto. Klee j havia se dado conta disso em seus tempos de estudante: Na escola de Knirr fala-se com muita propriedade sobre o ato de executar uma pintura, referindo-se com isso a algo absolutamente temporal: os movimentos expressivos do pincel, a gnese do efeito (KLEE, 2001: 45-46). Porm, a formulao da idia de uma parentesco essencial entre pintura e msica tambm derivava, para Klee, de analogias de natureza um tanto diversa. Uma delas dizia respeito s semelhanas que o artista percebia entre o funcionamento dos sentidos da viso e da audio. Ainda na Schpferische konfession, Klee era preciso a esse respeito:

    A atividade essencial do espectador tambm temporal. Ele vai trazendo pedaos, um por um, para a cavidade ocular, sendo que para focalizar cada pedao novo precisa abandonar o antigo. [...] Na obra de arte encontram-se disponveis os caminhos que conduzem para o olho do espectador, o olho que tateia ao redor como faz um animal ruminante ao pastar (Na msica, como todos sabem, encontram-se disponveis os

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    canais que conduzem ao ouvido; no teatro, ambos os sentidos esto disposio) (KLEE, 2001: 47).

    Foi a reconhecimento dessas analogias que levou Klee a formular uma prtica e uma teoria artsticas que poderamos designar - parafraseando o clebre mote de Horcio que resume o parentesco entre pintura e poesia - ut musica pictura. Porm, os significados que as referncias musicais manifestam na obra plstica de Klee so variados, apresentando diferentes nveis de profundidade, desde os mais superficiais at os mais profundos. Aqui, faremos referncias a trs conjuntos de obras do artista suo, em cada um dos quais o princpio que fundamenta a relao pintura/msica diferente: a) no primeiro desses conjuntos de obras, o paralelismo se manifesta essencialmente atravs do emprego de uma iconografia que faz referncia explcita ao mundo da msica; b) no segundo, os desenhos e pinturas manifestam um parentesco estrutural com determinadas formas ou procedimentos musicais, notadamente a polifonia e a fuga; e, c) em um terceiro grupo, os trabalhos pem em evidncia a referida concepo de Klee da obra de arte como gnese, desnudando o seu processo de execuo e aproximando assim o papel do pintor daquele de um intrprete musical.

    A msica como fonte iconogrfica:

    Como apontamos, a grande admirao que Klee nutria pela arte da msica se encontra bem testemunhada, em um nvel biogrfico e privado, pelo seu papel como primeiro violino na orquestra municipal de Berna ou pela freqentao assdua de concertos e peras junto com a sua mulher pianista. Dessa admirao derivam diretamente os temas e os ttulos que diversas de suas obras exibem. Esse primeiro nvel de referncia msica na obra de Klee - que poderamos designar de iconogrfico -, o mais superficial e nele a correspondncia entre pintura e msica manifesta um carter em grande medida anedtico, se evidenciando de maneira explcita - ainda que por vezes potica e/ou irnica - na relao existente entre o ttulo e o contedo da obra. Trabalhos dessa natureza podem ser encontradas durante toda a carreira de Klee, constituindo alguns poucos exemplos: Pianista em apuros - Uma stira: Caricatura da msica moderna (1901), Instrumento para a Msica Nova (1914), A mquina de chilrear (1922), Cena de batalha da pera fantstica O navegador (1923), Tocador de tmbales (1940), entre outros3.

    3Pianist in Bedrngnis - Eine Satire, 1909/1(A), Aquarela, pena e tinta sobre papel, 16,7 x 18 cm. Suia, Coleo particular; Instrument fr die neue Musik, 1914/10. Pena e tinta sobre papel montado sobre carto, 17 x

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    Em outros trabalhos de Klee, o mundo da msica no comparece apenas ou necessariamente como um anncio no ttulo, mas emerge no prprio plano estilstico da obra como uma incorporao da grafia musical. O sinal de fermata ( ) surge em vrios trabalhos de Klee, ao longo de toda a sua produo (Desenho com sinal de fermata (1918), Paisagem com acentos (1934)), junto com outros elementos da notao musical, como, por exemplo, o sinal de compasso 4/4 (C) ou de grupeto (S)4. Nesse caso, a razo de ser de tais sinais dentro das obras diz respeito, essencialmente, s suas propriedades visuais: eles valem menos pela sua funo semntica na escrita musical do que por seus valores propriamente sgnicos, como foras figurativas que dialogam com os demais elementos presentes nas obras.

    Outras obras de Klee traem, por fim, as suas predilees musicais - cf., por exemplo, O Don Giovanni bvaro ou No estilo de Bach, ambas de 19195. sabido que Klee apreciava tocar especialmente trabalhos de mestres antigos como Bach, Haydin e Mozart, embora tambm acompanhasse com interesse a emergncia da msica moderna - inclusive, ele conhecia pessoalmente compositores de primeira grandeza como Bartk, Hindemith ou Schnberg. No obstante, Klee parece nunca ter se interessado pelas execuo dos trabalhos destes ltimos e a sua relao com os avanos da msica mais recente, como, por exemplo, o dodecafonismo, sempre foi eminentemente crtica: ele acreditava que a abstrao musical fora j expressa, de uma maneira perfeita, na msica dos mestres mais antigos e no necessitava, portanto, de desenvolvimentos adicionais. Como observou a esse respeito Pierre Boulez, se Klee executava ao violino apenas Bach, Mozart, etc., isso se devia essencialmente ao fato de que o respeito pela forma desses ltimos correspondia sua inclinao espiritual e o esclarecia no labirinto de suas investigaes particulares (BOULEZ, 1989: 16) - o que explica que tenha homenageado, da sua maneira toda particular, tais mestres em suas pinturas.

    Paralelismos Estruturais:

    Nos trabalhos plsticos de Klee, um segundo nvel de aproximao entre pintura e

    17 cm. Suia, Coleo particular; Die Zwitcher-Maschine, 1922/51. Desenho a leo e aquarela sobre papel colado sobre carto, 41,3 x 30,5 cm. New York, The Museum of Modern Art; Kampfszene aus der komisch-phantastischen Oper Der Seefahrer, 1923/123. Aquarela, 37 x 51 cm. Suia, Coleo particular; Paukenspieler, 1940/270. Pincel e tinta com cola sobre papel e carto, 34,6 x 21,2 cm. Berna, Kunstmuseum, Fundao Paul Klee (F 143). 4 Cf., por exemplo, Der orden von Hohen C., 1921/100. Aquarela, pena e tinta sobre papel, 32 x 23 cm. Chiddingly (East Sussex), Coleo Penrose. 5 Der bayrisch Don Giovanni, 1919/116. Aquarela sobre papel, 22,5 x 21,3 cm. New York, The Solomon R, Guggenheim Museum; Im Bach'schem Stil, 1919/196. Aquarela e desenho sobre linho, 17, 3 x 28,5 cm. Haia, Haags Gemeentemuseum.

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    msica se manifesta por intermdio da incorporao de uma lgica estrutural inspirada em formas ou procedimentos musicais tradicionais, especialmente aqueles ligados chamada msica polifnica ou contrapontstica. Ao contrrio das obras referidas na parte anterior, que simplesmente incorporam uma iconografia musical e que podem ser encontrados no curso de toda a carreira do artista, as tentativas de transposio estrutural entre msica e pintura levadas a cabo por Klee so mais circunscritas no tempo e encontradas com mais freqncia a partir de 1920, particularmente na passagem para a dcada 1930. Elas parecem coincidir, portanto, com o seu perodo de dedicao mais intensiva ao magistrio, tanto na Bauhaus - primeiro na cidade de Weimar, entre 1920 e 1924, depois em Dessau, entre 1925 e 1930 -, quanto na Academia de Dsseldorf (1930-1933). Analogamente, bastante provvel que esse esforo de sistematizao, inspirado na teoria musical, tenha decorrido, ao menos em parte, das exigncias colocadas pela prtica pedaggica do pintor.

    Nesse sentido, nos escritos e nos ttulos de obras de Klee, freqente a recorrncia do termo de origem grega polifonia, que remete execuo simultnea de vrias vozes, com linhas meldicas distintas, em uma mesma composio musical. Na coletnea de escritos de Klee organizada por Jrg Spiller, Das bildernerische Denken, possvel encontrar, por exemplo, uma representao plstica de uma partitura musical segundo um movimento trs vozes de J.-S. Bach (KLEE, 1961: 287), o que evidencia o profundo interesse do pintor pelas formas musicais polifnicas e o seu esforo por tentar encontrar equivalentes visuais da mesmas. Isso posto, necessrio frisar que os diversos trabalhos polifnicos de Klee, embora apresentem entre si uma relativa diversidade estilstica, merecem ser pensados em conjunto por se basearem em um mesmo princpio estrutural de base, o da simultaneidade de vrios temas independentes (KLEE, 1961: 296), que o fundamento da polifonia musical.

    Alguns exemplos de desenhos elaborados a partir de tal princpio e datados do final dos anos 1920 so Mscaras compostas (1929), Crianas carregando pacotes (1930) e Criana, verso grande (1930)6: em todos eles, configuraes abstratas autnomas so sobrepostas umas s outras e, em seguida, padres de hachuras so acrescentados ao conjunto, reforando ou relativizando a independncia das configuraes iniciais; por fim, ao inserir alguns pequenos detalhes em tais sistemas de formas (olhos, mos, ps) , Klee faz com que eles sugiram contedos semnticos relativamente precisos. Nesses exemplos, nos encontramos diante de uma espcie de equivalente espacial da sobreposio de linhas meldicas separadas que estrutura o fluxo no tempo da polifonia ocidental tpica.

    6 Komponierte Masken, 1929. Pena e tinta sobre papel, 22,5 x 19,68 cm; Beladene Kinder, 1930. Crayon sobre papel, 28,25 x 21,9 cm; Kind, grosse Fassung, 1930. Pena e tinta sobre papel, 47,9 x 60 cm.

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    Algumas pinturas polifnicas criadas por Klee se baseiam, por seu turno, na sobreposio de reas transparentes de cor, que se interpenetram e produzem assim uma estrutura de ordem mais complexa (cf. Arquitetura polifnica, Branco polifonicamente enquadrado, ambos de 19307). Um mesmo princpio geral de sobreposio, dessa vez de estratos formais mais diversificados, pode ser encontrado em alguns trabalhos datados de 1932, como Em-acht, Polifonia e o famoso quadro de Klee intitulado Ad Parnassum8: nesse ltimo, sobre uma tela de base branca, o artista pintou uma quadrcula que foi em seguida preenchida com diversos tons; sobre essa organizao inicial, Klee sobreps uma trama de pequenos pontos brancos, remetendo tcnica do mosaico ou das pinturas divisionistas, que foram em seguida cobertos por veladuras de cores saturadas; por fim, foi adicionado o elemento linear, uma derradeira melodia, com traos precisamente definidos, representando sinteticamente um portal e uma montanha, remetendo morada de Apolo e das Musas que d nome pintura9.

    Uma outra aproximao que pode ser verificada entre trabalhos de Klee e a natureza estrutural da msica pode ser encontrada no procedimento que o artista denominava progresso cardinal e que incorporava a lgica de proporo na qual se baseia a relao entre as diversas figuras rtmicas do sistema de notao musical ocidental - breve, mnima, colcheia, fusa, etc. Hajo Dchting discorreu a esse respeito, ao analisar um das obras de Klee:

    A aquarela Monumento no pas frtil10 [...] baseada em uma estrutura de linhas paralelas que foi interrompida em diversos locais por barras inclinadas. Klee chamava essa forma de articulao visual de progresso cardinal: um sistema de linhas verticais ou inclinadas dissecando os campos horizontais e dividindo-os em duas metades, quatro quartos, oito oitavos, dezesseis avos, ou alternativamente, dobrando os intervalos de uma maneira anloga. A lgica reminescente da notao musical na qual a semibreve tem o valor de duas mnimas, quatro semnimas, oito colcheias e dezesseis semicolcheias (DCHTING, 1997: 43-45).

    7Polyhone Architektur, 1930/W9(66). Aquarela sobre algodo fixado em tela de linho, 42,3 x 46,4 cm. Saint Louis, The Saint Louis Art Museum; Polyphon gefasstes Weiss, 1930/X19(130). Veladuras de aquarela, pena e tinta sobre papel Fabriano fixado em carto, 33,3 x 24,5 cm. Berna, Kunstmuseum, Fundao Paul Klee. 8Em-acht, 1932/M8(68). leo sobre tela de algodo, 50 x 64 cm. Suia, Coleo particular; Polyphonie, 1932/X13(273). leo sobre tela de linho, 66,5 x 106 cm. Basilia, Kunstmuseum; Ad Parnassum, 1923/X14(174). leo sobre tela, pontos e linhas carimbados, 100 x 126 cm. Berna, Kunstmuseum. 9Uma descrio mais detalhada do processo de execuo de Ad Parnassum pode se encontrada em JANUSZCZAK, W. Tecnicas de los grandes pintores. Madrid: H. Blume Ediciones, 1981: 154-157. 10Monument im Fruchtlandes, 1929/N1(41). Crayon, grafite e aquarela colocada em veladuras sobre papel Ingres fixado sobre carto, 45,7 x 30,8 cm. Berna, Kunstmuseum, Fundao Paul Klee.

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    A obra enquanto gnese:

    Por fim, necessrio fazer um referncia, ainda que breve, a alguns daqueles trabalhos de Klee nos quais, da maneira mais explcita, o milagre do processo de criao, como disse Gnther Regel, se torna visvel (KLEE, 2001: 9). Se, na parte anterior, chamamos a ateno para obras nas quais Klee procurava incorporar traos estruturais de formas musicais especficas, aproximando assim o seu trabalho como pintor daquele do compositor, aqui nos deteremos em obras que exibem a prpria maneira como foram executadas. Nesses casos, o mtier do artista plstico se encontra igualmente irmanado quele do intrprete musical, do instrumentista, que Klee, como exmio violinista que era, conhecia muito bem. So inmeras as passagens dos escritos de Klee nos quais ele afirma uma compreenso do mundo como processo, como uma totalidade unificada, cheia de movimento e vida (KLEE, 2001: 9). Nada mais natural ento, para o artista, do que o fato de que a obra de arte - essa parbola da criao, como definida no final da Schpferische konfession -, devesse se submeter aos mesmos imperativos. De tal concepo decorre o valor fundamental que Klee conferia prpria gnese, ao processo de criao de uma pintura ou desenho: A obra de arte [...] em primeira instncia gnese, nunca pode ser vivenciada (puramente) como produto (KLEE, 2001: 47). Ele prescrevia no pensar na forma, mas na formao. No abandonar o caminho, no romper com a coerncia da idia original. [...] manter nas mos a linha condutora criativa da forma, no abandonar o fio vermelho da criao (KLEE, 1970: 67). O contrrio - a nfase no resultado final do trabalho - redundaria invariavelmente naquilo que ele qualificava de forma morta: eis exatamente a definio de imobilidade, um no-funcionamento do processo de vir-a-ser: a ausncia de relao entre o resultado e as suas premissas. A forma enquanto tal (KLEE, 1970: 293). nesse sentido, que Klee vai, em vrias momentos, defender como o derradeiro valor de uma obra de arte a sua capacidade de explicitar o seu prprio processo de execuo, o seu devir, afirmando-se no como um fim em si-mesma, mas sobretudo como um entrave ocasional - ainda que repleto de beleza - do movimento que o verdadeiro princpio regente do cosmos. Aqui, podemos apenas chamar a ateno para algumas obras de Klee nas quais o processo de execuo se desvela de maneira didtica. o caso de um exerccio formador bastante simples, presente em outra coletnea de textos de Klee organizada por Spiller, Unendliche Naturgeschichte, o entrelaamento de uma srie de crculos dispostos concentricamente em torno de quatro pontos focais, que o artista assim descreve:

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    Aplicao gentica da estratificao Em torno dos pontos 1 2 3 4 crculos crescem progressivamente, seguindo a seguinte ordem cronolgica: 1a 2a 3a 4a / 1b 2b 3b 3b / 1c 2c 3c etc. L onde um crculo j se encontra em progresso, o seguinte deve se interromper. Duas condies so decisivas [para o resultado final]: a) a ordem na qual os pontos se seguem; b) a proximidade ou o afastamento desses mesmos pontos (KLEE, 1970: 125).

    Um padro de entrelaamento linear anlogo ao produzido nesse exerccio pode ser percebido em inmeros trabalhos de Klee, como o conhecido Cena com a mulher correndo (1925)11, no qual, por exemplo, existe uma estrutura retangular ligeiramente inclinada esquerda do desenho, que remete a uma escada vista de frente, cuja profundidade sugerida correlata ordem na qual as linhas foram desenhadas: os segmentos que parecem mais prximos foram configurados primeiro, os mais distantes por ltimo. Um dos procedimentos que permite a Klee registrar de maneira mais clara o processo de surgimento de suas obras o da progresso cardinal, j comentado na parte anterior. No sentido do desvendamento da ato de gnese criativa, a progresso cardinal aplicada de maneira singularmente didtica em uma aquarela chamada Monumento na fronteira do pas frtil. Na seqencia de esquemas que reunimos no final do artigo, procuramos justamente descrever o processo de diviso sucessiva que fundamenta o processo formador dessa obra. As faixas horizontais inicias so mostradas isoladamente no Esquema 1 e, a cada insero das barras verticalmente orientadas (Esquemas 2, 4, 6 e 8), elas vo sendo divididas progressivamente em duas (Esquema 3), quatro (Esquema 5), oito (Esquema 7), ou, finalmente, dezesseis partes (Esquema 9). No trabalho original, essas divises se processam sempre da direita para a esquerda, e, em nossos esquemas, elas so enfatizadas por um preenchimento com tons cada vez mais escuros, desde o rosa claro das faixas horizontais originais do Esquema 1 at o marrom-escuro das finas faixas geradas pela ltima diviso, na extrema esquerda da obra, um pouco acima do centro, nos Esquema 8 e 9. Cumpre salientar, portanto, que o procedimento da progresso cardinal no somente incorpora o princpio de sucessiva diviso por dois que fundamenta a relao entre as figuras da notao rtmica ocidental, como observa Dchting, mas, sobretudo, permite literalmente reconstituir o processo de formao das obras nas quais empregado. Em Monumento na

    11Die Szene mit der Laufenden, 1925. Pena e tinta sobre papel.

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    fronteira do pas frtil, podemos afirmar que as reas mais concentradas, aquelas nas quais se acumulam o maior nmero de horizontais, correspondem aos estgios mais tardios do seu processo de criao; o progressivo adensamento que verificvel da direita para a esquerda um rastro, na imagem esttica final, dos diversos momentos de sua execuo no tempo, permitindo que o espectador recupere e reconstitua a gnese da obra. Em nossos esquemas, os tons progressivamente mais escuros das faixas horizontais no tem a inteno de reproduzir o aspecto cromtico da obra finalizada, mas simplesmente indicar os diversos estgios da sua gnese. Tal procedimento , todavia, inspirado naquele anlogo usado pelo prprio Klee em outros de seus trabalhos, como, por exemplo, Fuga em vermelho (1921)12: nessa obra, as configuraes que parecem se precipitar da esquerda para a direita, so preenchidas por diversos tons, indo dos mais claros direita aos mais escuros esquerda. Esses tons so produzidos pela progressiva sobreposio de veladuras de aquarela, em uma orientao inversa quela induzida pelo aparente movimento das formas, e que indica, quase como se de uma fotografia estroboscpica se tratasse, a seqencia temporal na qual estas foram pintadas. Na aquarela citada por Dchting, Monumento no pas frtil, a lgica formativa , grosso modo, idntica a acima descrita com relao a Monumento na fronteira do pas frtil. A nica diferena que nesta, o adensamento progressivo dos campos horizontais se efetua simultaneamente do centro para as duas bordas - essa parece ser a razo do emprego da conjuno im no ttulo original, em contraste com a expresso an der Grenze, que designa a obra na qual as reas horizontais iniciais se encontram literalmente na borda direita. Em Monumento no pas frtil, as faixas centrais so o testemunho dos estgios iniciais do trabalho, enquanto as das extremidades foram tratadas j ao fim da execuo. Uma explicitao anloga do processo formador pode ser encontrada em algumas outras pinturas como Medio individualizada dos nveis, de 1930 e em trabalhos menos formalistas de Klee, que incorporam explicitamente contedos semnticos especficos como Castelo de uma ordem religiosa ou Caminhos principais e caminhos secundrios, ambos de 192913. Nesses ltimos trabalhos, a maneira como Klee emprega a progresso cardinal certamente mais livre, no obedecendo a uma lgica direcional unvoca, como o caso dos dois Monumentos acima referidos. Embora saibamos, de um modo geral, que as reas mais densas em um trabalho como Caminhos principais e caminhos secundrios corespondem a estgios tardios de sua execuo, impossvel reconstituir o processo em todos os seus detalhes. Tais trabalhos indicam os limites de nossas anlises, que se, no nosso entender,

    12Fuge em rot, 1921. Aquarela sobre papel Canson. 24,3 x 37,2 cm. Sua, Coleo particular. 13Individualisierte Hhenmessung der Lagen, 1930/82. Pastis a base de cola sobre papel preto colado em carto, 46,8 x 34,8 cm. Berna, Kunstmuseum, Fundao Paul Klee. Ordensburg, 1929. Pena e tinta sobre papel, 18 x15 cm.; Haupt-und Nebenwege, 1929/90. leo sobre tela, 83 x 67 cm. Colnia, Museum Ludwig.

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    podem contribuir para uma melhor compreenso das palavras e intenes de Klee, so incapazes de iluminar totalmente os mistrios de sua gnese formal. E no poderia deixar de ser desse modo, tratando-se de obras de arte: como nos diz o prprio Klee, na esfera mais elevada da arte existe um segredo derradeiro, escondido por trs da diversidade do sentido, e a luz do intelecto lamentavelmente se apaga (KLEE, 2001: 50).

    Referncias Bibliogrficas

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    Esquemas 1-9: Desenhos segundo Monumento na fronteira do pas frtil (1929). O princpio da progresso cardinal empregado de maneira exemplar, explicitando a gnese da obra: as reas horizontais em tons mais claros, preponderantemente direita, correspondem aos estratos iniciais do processo de formao; elas so progressivamente sub-divididas por linha verticalmente orientadas, at um grau mximo de adensamento, verificvel na pequena rea em marrom-escuro, na extrema esquerda do ltimo esquema; esta rea, que comporta dezesseis linhas horizontais, teria sido ento a ltima a ser configurada.