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A Filosofia de Descartes Extraído do livro "História dos Filósofos Ilus- trada pelos Textos", de A. Vergez e Ó. Huis- ~an; Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1976. René Descartes (1596-1650) Sua vida Descartes, nascido em 1596 em La Haye - não a cidade dos Países-Baixos, mas um povoado da Touraine, numa família nobre - terá o título de senhor de Perron, pe- queno domínio do Poitou, daí o aposto "fi- dalgo poitevino". . De 1604 a 1614, estuda no colégio je- suíta de La Fléche. Aí gozará de um re- gime de privilégio, pois levanta-se quando quer, o que o leva a adquirir um hábito que o acompanhará por toda sua vida: me- ditar no próprio leito. Apesar de apreciado por seus professores, ele se declara, no "Discurso sobre o Método", decepcionado com o ensino que lhe foi ministrado: a filo- sofia escolástica não conduz a nenhuma verdade indiscutível. "Não encontramos nenhuma coisa sobre a qual não se dis- pute". Só as matemáticas demonstram o que afirmam: •• A s ma tem àt icas agradavam-me sobretudo por causa da certeza e da evidência =de seus raciocí- nios". Mas as matemáticas são uma exce- ção, uma vez que ainda não se tentou apli- car seu rigoroso método a outros domí- nios. Eis por que o jovem Descartes, de- cepcionado com a escola, parte à procura de novas fontes de conhecimento, a saber, longe dos livros e dos regentes de colégio, a experiência da vida e a reflexão pessoal: "Assim que a idade me permitiu sair da su- jeição a meus preceptores, abandonei in- teiramente o estudo das letras; e resol- vendo não procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições" . Após alguns meses de elegante lazer com sua família em Rennes, onde se ocupa com equitação e esgrima (chega mesmo a redigir um tratado de esgrima, hoje per- dido), vamos encontrá-lo na Holanda en- gajado no exército do príncipe Maurício de Nassau. Mas é um estranho oficial que recusa qualquer soldo, que mantém seus equipamentos e suas despesas e que se de-. clara menos um "ator" que um "especta- dor": antes ouvinte numa escola de guerra do que verdadeiro militar. Na Holanda, ocupa-se sobretudo com matemática, ao lado de Isaac Beeckman. É dessa época (tem cerca de 23 anos) que data sua miste- riosa divisa Larvatus prodeo. Eu caminho mascarado. Segundo Pierre Frederix, Des- cartes quer apenas significar que é um jo- vem sábio disfarçado de soldado. Em 1619, ei-lo a serviço do Duque de B aviera. Em virtude do inverno, aquartela-se às margens do Danúbio. Po- demos facilmente imaginá-lo alojado "numa estufa", isto é, num quarto bem aquecido por um desses fogareiros de por- celana cUJOuso começa a se difundir, ser- vido por um criado e inteiramente entre- gue à meditação. A 10 de novembro de 1619, sonhos maravilhosos advertem que está destinado a unificar todos os conheci- mentos humanos por meio de uma "ciên- cia admirável" da qual será o inventor. Mas ele aguardará até 1628 para escrever um pequeno livro em latim, as "Regras para a direção do espírito" (Regulae ad di- rectionem ingenii). A idéia fundamental que aí se encontra é a de que a unidade do 2 THOT

A Filosofia de Descartes - Palas Athena

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Page 1: A Filosofia de Descartes - Palas Athena

A Filosofia deDescartes

Extraído do livro "História dos Filósofos Ilus-trada pelos Textos", de A. Vergez e Ó. Huis-~an; Ed. Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1976.

René Descartes (1596-1650)

Sua vida

Descartes, nascido em 1596 em La Haye- não a cidade dos Países-Baixos, mas umpovoado da Touraine, numa família nobre- terá o título de senhor de Perron, pe-queno domínio do Poitou, daí o aposto "fi-dalgo poitevino". .

De 1604 a 1614, estuda no colégio je-suíta de La Fléche. Aí gozará de um re-gime de privilégio, pois levanta-se quandoquer, o que o leva a adquirir um hábitoque o acompanhará por toda sua vida: me-ditar no próprio leito. Apesar de apreciadopor seus professores, ele se declara, no"Discurso sobre o Método", decepcionadocom o ensino que lhe foi ministrado: a filo-sofia escolástica não conduz a nenhumaverdade indiscutível. "Não encontramos aínenhuma coisa sobre a qual não se dis-pute". Só as matemáticas demonstram oque a f i r m a m : •• A s ma tem àt i c a sagradavam-me sobretudo por causa dacerteza e da evidência =de seus raciocí-nios". Mas as matemáticas são uma exce-ção, uma vez que ainda não se tentou apli-car seu rigoroso método a outros domí-nios. Eis por que o jovem Descartes, de-cepcionado com a escola, parte à procurade novas fontes de conhecimento, a saber,longe dos livros e dos regentes de colégio,a experiência da vida e a reflexão pessoal:"Assim que a idade me permitiu sair da su-jeição a meus preceptores, abandonei in-teiramente o estudo das letras; e resol-vendo não procurar outra ciência queaquela que poderia ser encontrada emmim mesmo ou no grande livro do mundo,empreguei o resto de minha juventude em

viajar, em ver cortes e exércitos, convivercom pessoas de diversos temperamentos econdições" .

Após alguns meses de elegante lazercom sua família em Rennes, onde se ocupacom equitação e esgrima (chega mesmo aredigir um tratado de esgrima, hoje per-dido), vamos encontrá-lo na Holanda en-gajado no exército do príncipe Mauríciode Nassau. Mas é um estranho oficial querecusa qualquer soldo, que mantém seusequipamentos e suas despesas e que se de-.clara menos um "ator" que um "especta-dor": antes ouvinte numa escola de guerrado que verdadeiro militar. Na Holanda,ocupa-se sobretudo com matemática, aolado de Isaac Beeckman. É dessa época(tem cerca de 23 anos) que data sua miste-riosa divisa Larvatus prodeo. Eu caminhomascarado. Segundo Pierre Frederix, Des-cartes quer apenas significar que é um jo-vem sábio disfarçado de soldado.

Em 1619, ei-lo a serviço do Duque deB aviera. Em virtude do inverno,aquartela-se às margens do Danúbio. Po-demos facilmente imaginá-lo alojado"numa estufa", isto é, num quarto bemaquecido por um desses fogareiros de por-celana cUJOuso começa a se difundir, ser-vido por um criado e inteiramente entre-gue à meditação. A 10 de novembro de1619, sonhos maravilhosos advertem queestá destinado a unificar todos os conheci-mentos humanos por meio de uma "ciên-cia admirável" da qual será o inventor.Mas ele aguardará até 1628 para escreverum pequeno livro em latim, as "Regraspara a direção do espírito" (Regulae ad di-rectionem ingenii). A idéia fundamentalque aí se encontra é a de que a unidade do

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FILOSOFIA

espírito humano (qualquer que seja a di-versidade dos objetos da pesquisa) devepermitir a invenção de um método univer-sal. Em seguida, Descartes prepara umaobra de física, o "Tratado do Mundo ", acuja publicação ele renuncia visto que em1633 tomá. conhecimento da condenaçãode Galileu. É certo que ele nada tem a te-mer da Inquisição. Entre 1629 e 1649, elevive na Holanda, país protestante. MasDescartes, de um lado é católico sincero(embora pouco devoto), de outro, ele an-tes de tudo quer fugir às querelas e preser-var a própria paz.

Finalmente, em 1637, ele se decide a pu-blicar três pequenos resumos de sua obracientífica:' "A Diôptrica'', "Os Meteoros" e"A Geometria". Esses resumos, que quase

não são lidos atualmente, são acompanha-dos por um prefácio e esse prefácio foi quese tornou famoso: é o "Discurso sobre oMétodo". Ele faz ver que o seu método,inspirado nas matemáticas, é capaz de pro-var rigorosamente a existência de Deus e oprimado da alma sobre o corpo. Dessemodo, ele quer preparar os espíritos para;um dia, aceitarem todas as conseqüênciasdo método - inclusive o movimento daTerra em torno do Sol! Isto não quer dizerque a metafísica seja, para Descartes, umsimples acessório. Muito pelo contrário!Em 1641, aparecem as "MeditaçõesMetaflsicas", sua obra-prima, acompanha-das de respostas às objeções. Em 1644, ele

, publica uma espécie de manual cartesiano,

"Os Princípios de Filosofia", dedicado àprincesa palatina Elizabeth, de quem ele é,em certo sentido, o diretor de consciênciae com quem troca importante correspon-dência. Em 1644, por ocasião da rápidaviagem a Paris, Descartes encontra o em-baixador da França junto à corte sueca,Chanut, que o põe em contato com a rai-nha Cristina.

Esta última chama Descartes para juntode si. Após muitas tergiversações, o fi-lósofo, nao antes de encarregar seu editorde imprimir, para antes do outono, seu"Tratado das Paixões" - embarca paraAmsterdarn e chega a Estocolmo em outu-bro de 1649. É ao surgir da aurora (5 damanhã!) que ele dá lições de filosofia car-tesiana à sua real discípula. Descartes, quesofre atrozmente com o frio, logo se arre-pende, ele que "nasceu nos jardins daTouraine", de ter vindo "viver no país dosursos, entre rochedos e geleiras". Mas édemasiado tarde. Contrai uma pneumoniae se recusa a ingerir as drogas dos charla-tães e a sofrer sangrias sistemáticas ("Pou-pai o sangue' francês, senhores"), mor-rendo a 9 de fevereiro de 1650. Seu ataúde,alguns anos mais tarde, será transportadopara a França. Luís XIV proibirá os fune-rais solenes e o elogio público do defunto:desde 1662 a Igreja Católica Romana, àqual ele parece ter-se submetido sempre ecom humildade, colocará todas as suasobras no Index.

o método

Descartes quer estabelecer um métodouniversal, inspirado no rigor matemático eem suas "longas cadeias de .razão" .

a) A primeira regra é a evidência: nãoadmitir "nenhuma coisa como verdadeirase não a reconheço evidentemente comotal". Em outras palavras, evitar toda "pre-cipitação" e toda "prevenção" (precon-ceitos) e só ter por verdadeiro o que forclaro e distinto, isto é, o que "eu não tenhoa menor oportunidade de duvidar". Porconseguinte, a evidência é o que salta aosolhos, é o que resiste a todos os assaltos dadúvida, uma evidência-resíduo, o produtodo espírito crítico. Não, como diz bemJankélévitch, "uma evidência juvenil, masquadragenária" .

b) A segunda, é a regra da análise: "divi-dir cada uma das dificuldades em tantasparcelas quantas forem possíveis".

c) A terceira, é a regra da síntese: "con-cluir por ordem meus pensamentos, come-çando pelos objetos mais simples e maisfáceis de conhecer para, aos poucos, as-cender, como que ~or meio de degraus,aos mais complexos'.

d) A última é a dos "desmembramentostão completos ... a ponto de estar certo denada ter omitido".

Se esse método tornou-se muito célebre,foi porque os séculos posteriores viramnele uma manifestação do livre exame edo racionalismo.

Ele não afirma a indepêndencia da ra-zão e a rejeição de qualquer autoridade?"Aristóteles disse" não é mais um argu-mento sem réplica! Só contam a clareza ea distinção das idéias.Os filósofos do sé-culo XVIII estenderão esse método a doisdomínios de que Descartes, é importanteressaltar, o excluiu expressamente: o polí-tico e o religioso (Descartes é conservadorem política e coloca as "verdades da fé"ao abrigo de seu método).

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FILOSOFIA

Por outro lado, o método é racionalistaporque a evidência de que Descartes partenão é, de modo algum, a evidência sensívele empírica. Os sentidos nos enganam, suasindicações são confusas e obscuras, só asidéias da razão são claras e distintas.O ato

da razão que percebe diretamente os pri-meiros princípios é a intuição. A deduçãolimita-se a veicular, ao longo das belas ca-deias da razão, a evidência intuitiva das"naturezas simples". A dedução nada maisé do que uma intuição continuada.

A Rainha Cristina Cercada de Sábios, entre eles Descertes. üuedro de Dumesnil, Verselhes.

A metafisica

No "Discurso sobre o Método",Descartes pensa sobretudo na ciência.Para bem compreender sua metafísica, énecessário ler as "Meditações".

19 - Todos sabem que Descartes iniciaseu itinerário espiritual com a dúvida. Masé necessário compreender que essa dúvidatem um outro alcance que a dúvida metó-dica do cientista. Descartes duvida volun-tária e sistematicamente de tudo, desdeque possa encontrar um argumento, pormais frágil que seja. Por conseguinte, osinstrumentos da dúvida nada mais são doque os auxiliares psicológicos de uma as-cese, os instrumentos de um verdadeiro"exercício espiritual" . Duvidemos dos

sentidos, uma vez que eles freqüentem entenos enganam, pois, diz Descartes, nuncatenho certeza de estar sonhando ou de es-tar desperto! (Quantas vezes acreditei-mevestido com o "robe de chambre", ocu-pado em escrever algo junto à lareira; naverdade, "estava despido em meu leito").

Duvidemos também das próprias evi-dências científicas e das verdades matemá-ticas! Mas quê? Não é verdade - quer eusonhe ou esteja desperto - que 2 + 2 = 4?Mas se um gênio maligno me enganasse, seDeus fosse mau e me iludisse quanto àsminhas evidências matemáticas e físicas?Tanto quanto duvido do Ser, sempre possoduvidar do objeto (permitam-me retomaros termos do mais lúcido intérprete deDescartes, Ferdinand Alquié).

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FILOSOFIA""

29 - Existe, porém, uma coisa de quenão posso duvidar, mesmo que o demônioqueira me enganar. Mesmo que tudo o quepenso seja falso, resta a certeza de que eupenso. Nenhum objeto de pensamento resisteà duvida. mas o próprio ato de duvidar é indu-bitável. Penso, cogito. logo existo, ergo sumoNão é um raciocínio (apesar do logo, doergo), mas uma intuição, e mais sólida quea do matemático, pois é uma intuição me-tafísica, metamatemática. Ela trata não deum objeto, mas de um ser. Eu penso, Egocogito (e o ego, sem aborrecer Brunsch-vicg, é muito mais que um simples aci-dente gramatical do verbo cogitare). O co-gito de Descartes, portanto, não é, comojá se disse, o ato de nascimento do que, emfilosofia, chamamos de idealismo (o su-jeito pensante e suas idéias como o funda-mento de todo conhecimento), mas a des-coberta do domínio ontológico (estes obje-tos que são as evidências matemáticas re-metem a este ser que é meu pensamento).

39 - Nesse nível, entretanto, nesse mo-mento de seu itinerário espiritual, Des-cartes é solipsista. Ele só tem certeza deseu ser, isto é, de seu ser pensante (pois,sempre duvido desse objeto que é meucorpo; a alma, diz Descartes nesse sentido,"é mais fácil de ser conhecida que oc01]Jo"). .

E pelo aprofundamento de sua solidãoque Descartes e.scapará dessa solidão.Dentre as idéias do meu cogito existe umainteiramente extraordinária. É a idéia deperfeição, de infinito. Não posso tê-Ia ti-rado de mim mes!l}o, visto que sou finito eimp,eneito. Eu. tão imperfeito. que tenho aidéia de Perfeição, só posso tê-Ia recebidode um Ser perfeito que me ultrapassa eque é o autor do meu ser. Por conseguinte,eis demonstrada a existência de Deus. Enote-se que se trata de um Deus perfeito,que, por conseguinte, é todo bondade. Eis9 fantasma do gênio maligno exorcizado.Se Deus é perfeito, ele não pode ter que-rido enganar-me e todas as minhas idéiasclaras e distintas são garantidas pela vera-cidade divina. Uma vez que Deus existe,eu então posso crer na existência domundo. O caminho é exatamente o inversodo seguido por São Tomás. Compreenda--se que, para tanto, não tenho o direito deguiar-me pelos sentidos (cujas mensagenspermanecem confusas e que só têm um va-lor de sinal para os instintos do ser vivo).Só posso crer no que me é claro e distinto(por exemplo: na matéria, o que existe ver-dadeiramente é o que é claramente pensá-vel, isto é, a extensão e o movimento). Al-guns acham que Descartes fazia um cír-culo vicioso: a evidência me conduz a

o Cogitode De.certe. n'o " comoI'.e dI••• , o .to de n•• c/mento do quecham.mo. Ideall.mo (o .u/e/to pen-•• nte e .u •• lei"•• como fund.mentode todo conhecImento), m.. de.co-bf11't8do domln/o ontol6glco: e.te. ob-jeto. que .'0 •• evld'nc/ •• m.tem'''-ce. remetem. e.te .er que' meupen-••mento.

Deus e Deus me garante a evidência! Masnão se trata da mesma evidência. A evi-dência ontológica que, pelo cogito, meconduz a Deus fundamenta a evidênciados objetos matemáticos. Por conseguinte,a metafísica tem, para Descartes, uma evi-dência mais profunda que a ciência. É elaque fundamenta a ciência (:1m ateu, diráDescartes, não pode ser geometra l).

49 - A quinta meditação apresenta umaoutra maneira de provar a existência deDeus. Não mais se trata de partir de mim,que tenho a idéia de Deus, mas antes daidéia de Deus que há em mim. Apreender aidéia de perfeição e afirmar a existência doser perfeito é a mesma coisa. Pois umaperfeição não-existente não seria uma per-feição. É o argumento ontológico, o argu-mento de Santo Anselmo que Descartes(que não leu Santo Anselmo) reencontra:trata-se ainda aqui, mais de uma intuição,de uma experiência espiritual (a de um in-finito que me ultrapassa) do que de um ra-ciocínio.

Deus, a ciência e o livre arbítrio

Acabamos de ver que a evidência me-tafísica transcende a evidência científica.Para Descartes, o Deus criador transcenderadicalmente a natureza. Deus foi "intei-ramente indiferente ao criar as coisas quecriou". Não se submeteu a nenhuma ver-dade prévia. Em virtude do poder de seulivre arbítrio, criou as verdades. Eis porque Deus quer que a soma dos ângulos deum triângulo seja igual a dois ângulos re-tos.

Acrescentamos que, para Descartes,Deus criou o mundo instante por instante(é a "criação contínua"). O tempo é des-contínuo e a natureza não tem nenhum po-der próprio. As leis da natureza só são oque são a cada momento, em virtude davontade do criador. É importante com-preender que essa transcendência radical

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FILOSOFIA

de Deus possui duas conseqüências funda-mentais. O livre arbítrio humano e a inde-pendência da ciência.

O homem não é uma parte de Deus. Atranscendência do criador afasta qualquerpanteísmo. O homem, simples criatura ul-,trapassada por seu criador (concebo Deusporque descubro em mim a marca de suainfinitude, mas não o compreendo), re-cebe, assim, uma autonomia que será per-dida no sistema panteísta de Spinoza. Ohomem é livre, pode dizer sim ou não àsordens de Deus. É certo que, na QuartaMeditação. Descartes fala da liberdade es-clarecida, dessa liberdade que não podetratar da verdade ou do bem, dessa liber-dade que é antes um estado de libertaçãodo que uma decisão pura, situada além detodas as razões. Mas nos "Princípios" e so-bretudo nas "Cartas ao Pe. Mesland "de 2de maio de 1644 e 9 de fevereiro de 1645,Descartes afirma radicalmente o livrearbítrio, o poder de recusar a verdade e obem até mesmo na presença da evidênciaque se manifesta. Esses textos esclarecema teoria do juízo presente na quarta medi-tação. O entendimento concebe a verdadee é a vontade que dá as costas a ou afirmaessa verdade. Deus propõe e o homem. porintermédio de seu livre arbítrio, dispõe.Desse modo, Deus não é o culpado dosmeus erros nem dos meus pecados. Sou euque me engano, sou eu que peco. Meu li-vre arbítrio me faz merecedor ou culpado.

Do mesmo modo, a transcendência deDeus vai tornar possível uma ciência pura-mente racional e mecanicista da natureza.

A natureza, segundo Descartes, já o vi-mos, não possui dinamismo próprio. Tododinamismo pertence ao criador. Na me-dida em que a natureza é despojada detoda profundidade metafísica, Descartespode el iminar as noções aristotélicas emedievais de forma, alma, ato e potência.Toda finalidade desaparece e a natureza é.reduzida a um mecanismo inteiramentetransparente para a linguagem matemá-tica. A natureza nada tem de divino. é umobjeto criado. situado no mesmo plano da inte-ligência humana. e. por conseguinte. inteira-mente entregue à sua exploração. Isto con-siste, '10 mesmo temno.na rejeição de todonaturalismo pagão (a natureza não é umadeusa) e na fundamentação metafísica doracionalismo científico.

Frontlsplclo da primeira edlçlo de "O Discurso sobre oMétodo", da 1637.

"'Penso, lofIo ex/.to" n'o • um ra-clocln/o (ap•• a, rio logo), ma. uma tn-tulç'o, e mal. a6l1daque e do matem'-fico, po/. • ume Intulçlo metatl./ce,metamatem't/c..

Nem tudo tem o mesmo valor na obracientífica de Descartes. Se sua ótica e suasconsiderações sobre a expressão algébricadas curvas (ele é, juntamente com Fermat,o inventor da geometria analítica) consti-tuem incontestável contribuição cientí-fica, sua física (dada, aliás, mais como umapossibilidade racional do que como a ver-dade certa) não passa de um romance.Mas o espírito dessa física e da fisiologiacartesiana - que nãofassa de um capítuloda física - nada mais do que o espírito domecanicismo. Quando Descartes declar.aque os animais são máquinas, ele coloca,em princípio, que é possível explicar asfunções fisiológicas por intermédio de me-canismos semelhantes àqueles que fazemmover os autômatos que vemos "nos jar-dins dos.nossos reis". O detalhe das expli-cações não passa de um sonho. Mas a dire-ção tomada é a da ciência moderna. ParaDescartes, o mundo físico não possui mis-térios. As coisas se determinam reciproca-mente (leis do choque), por contato direto,num espaço em que não existe o vazio.

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Page 6: A Filosofia de Descartes - Palas Athena

FILOSOFIA

o problema do homem. A 'moral

No "Discurso sobre o Método".Descartes adota uma moral provisória -pois a ação não pode esperar que a filoso-fia cartesiana engendre uma nova moral!Recordemos seus três preceitos:

a) Submeter-se aos usos e costumes deseu país.

b) Antes mudar os próprios desejos quea ordem do mundo e vencer-se a si própriodo que à fortuna.

c) Ser sempre firme e resoluto em suasações; saber decidir-se mesmo na ausênciade toda evidência, à semelhança do via-jante perdido na floresta que, ao invés deficar fazendo voltas, adota uma direção "qualquer e nela se mantém! (O cartesianis-mo.antes de ser uma filosofia da inteligên-cia é uma filosofia da vontade).

~ certo que a moral definitiva de Des-cartes não apresenta uma unidade per-feita. Influências estóicas, epicuristas ecristãs estão presentes nela. Mas, na reali-dade, essa complexidade reflete a própriacomplexidade da condição humana. Noplano das idéias claras e distintas, Descar-tes separa claramente as duas substâncias,alma e corpo: a essência da alma é pensar;a do corpo é ser um objeto no espaço. E noentanto, o pensamento está preso a essefragmento de extensão. A alma age sobreo corpo e este age sobre ela. (Para Descar-tes, o ponto de aplicação da alma ao corpoé a glandula pineal, isto é, a epífise). Masisso não esclarece a união da alma e docorpo, que é um fato de experiência, pura-mente vivido e ininteligível.

Na medida em que Descartes considerao homem no que ele tem de essencial, en-quanto espírito, ou quando se ocupa docomposto humano, sua moral assume as-pectosdiferentes:

liA v.rdadel,.. lIenero.'dade con.,.t.,em part., n. con.c"nc/a de que n.d.no. p.rtenc. v.rd"de/rement., exceto• livre dlapoalçfo de nossa. vontades...e .m parte no-•• ntlmentode uma "rm.e con.tante ,...oluçto de bem uall·la,I.to I, ~. nunca no. fa".r vontade par.emp•.••nd.r • execut.r tod•••• co/•••qu.Jul".rmo. melho,..., o que I .egulra vlrtud. perleltament.".

a) Consideremos o homem enquantoespírito, enquanto liberdade: o valor su-premo é a generosidade. "A verdadeiragenerosidade que faz com que um homemse estime, no ponto máximo em que elepode legitimamente estimar-se, consiste,em parte, na consciência de que nada lhepertence verdadeiramente, exceto essa li-vre disposição de suas vontades... e emparte no sentimento de uma firme e cons-tante resolução de bem usá-Ia, isto é, denunca lhe faltar vontade para empreendere executar todas as coisas que julgar me-lhores, o que é seguir a virtude perfeita-mente".

b) Se considerarmos o homem enquantoespírito unido a um corpo, somos obriga-dos a levar em conta as paixões, isto é, aafetividade em sentido amplo. Paixão é.para Descartes. tudo o que o corpo determinana alma. E ele, que nada tem de asceta,acha que devemos antes dominá-Ias doque desenvolvê-Ias. Isso porque ele se co-loca do ponto de vista da felicidade. Obom funcionamento' do corpo, as ligaçõesharmoniosas entre os espíritos animais e ospensamentos humanos são altamente de-sejáveis. A moral surge, então, como umatécnica de felicidade e, nessa técnica, a medi-cina desempenha importante papel. A moralsurge aqui como uma aplicação direta domecanicismo cartesiano.

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