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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CENTRO DE HUMANIDADES A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS Mark Ian Collins Fortaleza 2010

A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA CENTRO DE HUMANIDADES

A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

Mark Ian Collins

Fortaleza 2010

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MARK IAN COLLINS

A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

Dissertação submetida à Coordenação do Curso de Pós-Graduação em Filosofia, da Universidade Estadual do Ceará como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Regenaldo Rodrigues da Costa

Fortaleza - Ceará 2010

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AGRADECIMENTOS

Pela oportunidade concedida a este humilde peregrino sou grato a Deus e à vida que investiram neste menino. Espero poder sempre retribuir dando apenas o que há de melhor em mim todo esse aprendizado que tenho vivido. Agradecer não é tarefa fácil quando há tantos para lembrar quantas vivências que mudaram minha vida quanta coisa consegui alcançar. Isso foi graças a quem chamo de amigo que esteve sempre comigo e cuja estima não consigo disfarçar. Amigos são muitos que me mostraram que distância não é medida seja na falta ou na presença sinto que sou uma pessoa querida. Espero um dia alcançar o poder de conseguir a todos devolver este carinho que me deu tanta guarida. Me conduzindo pela filosofia destaco aqui os meus professores instruindo enquanto eu crescia sobre os sábios e os seus amores. Se hoje conheço a sabedoria a ponto de ter uma autonomia isso foi graças a todos esses doutores. A família, entre os presentes, colaboravam para o meu progresso mesmo os que se encontravam ausentes ficavam torcendo para o meu sucesso. A todos posso garantir que se dependesse somente de mim o resultado teria sido totalmente avesso. Aos meus colegas e companheiros, desta ciência que abraçamos, sem sua ajuda não teria conseguido alcançar tudo que conquistamos. Lembrarei sempre com carinho daqueles que não me deixaram sozinho mesmo que se passem muitos anos.

Sobre o meu orientador tenho muito que falar foi muito mais que professor enquanto estava a me lapidar. Foram cincos anos de união onde de aluno, e amigo, virei irmão diante disso não há mais o que acrescentar. À FUNCAP eu devo muito pelo seu apoio financeiro provendo-me de recursos neste período passageiro. Por isso sou tão agradecido por ter ajudado e favorecido mais este pesquisador brasileiro. Para cada conquista teve mãos que ajudaram conduziram cada vez mais adiante quando um largava outro segurava e assim eu seguia para frente Para aqueles que não foram citados eu garanto que serão sempre lembrados pois não se esquece algo tão forte que se sente. Há quinze anos atrás, Quando a minha mulher me conheceu eu era um singelo rapaz com nada que pudesse chamar de meu, mas meu sentimento era tão forte e o dela também para a minha sorte casei com a mulher que Deus me deu Diante dos seus sábios conselhos que eu tive o juízo de seguir graduei-me e agora me torno mestre com muitas oportunidades ainda por vir. Se eu me tornei professor foi graças ao seu amor e tudo que ela investiu em mim. Como eu disse o assunto é vasto com muita coisa para falar tanta gente para agradecer e muitos outros para agradar, mas fica aqui a minha gratidão por todos que me encaminharam na retidão, algo do qual sempre vou lembrar.

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A todos aqueles que acreditam que a

Utopia é possível e necessária.

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A “Teoria da Reciprocidade” Utopiana

[A razão] convida-nos e impulsiona-nos a levarmos uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, e, por afinidade de natureza, a prestarmos assistência aos outros todos para alcançarem o mesmo.

MORVS

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RESUMO

Partindo-se do princípio de que o método utopiano de filosofar se desenvolve como uma narrativa, na qual seus interlocutores dialogam na busca do conhecimento, desenvolveu-se a presente dissertação. Com base em autores da monta de Goodwin (2001), Baker-Smith (1991), Logan (1983), Surtz (1957), dentre outros que versam sobre o tema, o presente trabalho dissertativo, de cunho qualitativo-descritivo, busca tão-somente mostrar que, para muito além de uma obra literária, há uma filosofia moral e política contida na Utopia de Thomas More. Mostra-se como os conceitos contidos na estória desenvolvida no livro em comento se encaixam em categorias que pertencem à filosofia moral, tanto no plano individual quanto no coletivo. A pesquisa é apresentada em três capítulos. No primeiro, apresenta-se a crítica como ponto de apoio para alavancar o processo filosófico. No segundo capítulo, são descritos a sua fundamentação e seus princípios. A seguir, é revelado o dever-ser, o qual é explorado no terceiro e último capítulo. Conclui-se, portanto, afirmando que a Utopia de Thomas More foi cunhada em um gênero literário que caracterizou grandes obras que a antecederam, e se perpetuou até os dias atuais, presente inclusive nas ficções científicas, quando estas projetam civilizações futuras. Ressalta-se que, seja no início da modernidade ou no final da contemporaneidade, a filosofia moral e política de Thomas Morus continua sendo uma opção lúcida diante das enormes diferenças e dos desafios vividos pela humanidade.

Palavras-chave: Thomas More. Utopia. Filosofia moral e política utopiana.

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ABSTRACT

This dissertation was developed based on the principle that the utopian method of philosophy develops as a narrative in which its interlocutors use dialogue in the search for knowledge. It is based on authors such as Goodwin (2001), Baker-Smith (1991), Logan (1983), Surtz (1957) among others who write on the theme of this dissertation in a qualitative-descriptive manner, seeking exclusively to show that in addition to being a literary work, there is a moral and political philosophy contained in Thomas More's UTOPIA. It shows how the concepts contained in the story developed in this book fall into categories that belong to moral philosophy on an individual as well as collective level. The research is presented in three chapters. In the first, the critique is presented as a support from which to lever up the philosophical process. In the second chapter the foundation and its principles are described. Next the idealization is revealed, which is explored in the third and last chapter. It can be concluded that UTOPIA by Thomas More was created in a literary style characterized in great works that preceded it and continues today, even in science fiction (writing) where future civilizations are projected. It should be noted that whether it be in the beginning of modernity or in the end of the contemporary period, the moral and political philosophies of Thomas more continue to be lucid options for confronting the enormous differences and challenges experienced by humanity.

Keywords: Thomas More. Utopia. Moral and political utopian philosophy

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 8 

1 A CRÍTICA: IMPEDIMENTOS DA VIGÊNCIA DA FILOSOFIA MORAL E

POLÍTICA .......................................................................................................................... 18 

1.1 Vícios decorrentes dos falsos prazeres ........................................................................... 22 

1.2 Vícios dos governantes ................................................................................................... 24 

1.3 Vícios da nobreza e da plebe .......................................................................................... 28 

1.4 A questão social da moralidade ...................................................................................... 32 

2 A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA UTOPIANA ............... 37 

2.1 A Razão .......................................................................................................................... 39 

2.2 A natureza, a base da moral utopiana ............................................................................. 40 

2.3 O prazer, a felicidade e a virtude .................................................................................... 42 

2.4 A igualdade e o comunismo utopiano ............................................................................ 51 

2.5 A matéria do prazer ........................................................................................................ 55 

3 O DEVER-SER: EFETIVAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA ........................ 58 

3.1 O governo ....................................................................................................................... 58 

3.2 O dever-ser da nobreza meritocrática ............................................................................. 67 

3.3 O dever-ser da plebe ....................................................................................................... 73 

CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 84 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................................... 86 

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INTRODUÇÃO

A cada obra filosófica investigada, devemos empenhar-nos em considerar sua

importância para a tradição, bem como a viabilidade para reflexões sempre recorrentes.

Apresentamos neste trabalho1 a obra de Sir, Santo, Martir da fé, Chanceler do reino,

Thomas More (T.M.): Sermonis quem Raphael Hythlodaeus vir eximius de optimo

reipublicae statu habuit liber primus, per illustrem virum Thomam Morum inclutae

britanniarum urbis Londini et civem et vicecomitema2, conhecido mundialmente pela singela

palavra, de sentido tão controverso quanto profundo, cunhada pelo próprio autor, Utopia.

A criação de uma sociedade perfeita é a resposta para o mundo de seu tempo, um

Estado decadente, carente de reformas, soerguidão. Por isso, a controvérsia inicia-se logo no

nome com o qual ficou conhecida, Utopia. Termo que parece significar “lugar nenhum” (ou +

topia), mas também “bom lugar” (eu + topia); ou talvez tenha havido a intenção de nomear a

ilha de Utopia de “um bom lugar em lugar nenhum” (u + topia), visto que é repetidas vezes

elogiada durante o texto. No entanto, sabemos que este lugar ainda está por existir.

Condenar a Utopia por se tratar de algo não verificável e irreal deriva da visão

ortodoxia empirista e positivista das ciências sociais, incluindo a ciência política, dentro da

academia inglesa, e que explica a pouca atenção que foi dedicada ao pensamento utópico na

Inglaterra, berço do fundador do gênero.3 Em estudo sobre a obra em comento, Goodwin e

Taylor 1982, com base no conceituado estudo de R.Ruyer: L’Utopie et lês Utopies,

argumentam que utopias são, apesar da sua apresentação às vezes fantasiosa, estritamente

racionais e que constituem teoria especulativa.

Apesar da ideia, criada na segunda metade do século XX, de que o utopianismo é

associado a pensamentos e práticas totalitaristas, a leitura da obra mostra que isto é

1 A correção ortográfica deste trabalho obedece às novas regras gramaticais, no entanto, as citações permanecem na grafia original. 2 Título original da obra: Relato que Rafael Hitlodeu, homem eminente, fez acerca da melhor forma de governo, por Thomas Morus homem ilustre, cidadão da ínclita cidade inglesa de Londres e seu magistrado. (NASCIMENTO, 2006). 3 Sobre esse assunto verificar em: Goodwin e Taylor 1982.

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equivocado. A primeira prova pode ser vista na própria Utopia, em que existe impeachment

para governantes tirânicos. Goodwin et al (2001) defendem que o modo de pensar utopiano4

transforma os parâmetros de pensamento moral, social e político.

Outra razão de uma obra tão popular ter sido tão pouco estudada, ou talvez tão pouco

levada a sério, estaria na sua natureza e conteúdo revolucionários, o que tem provocado nas

autoridades políticas e religiosas desde então o desprezo por uma obra radical e

transformadora. Talvez seja esse o motivo pelo qual a Igreja Católica, principal autoridade

religiosa ocidental desde então, apesar de ter elevado o autor ao status de Santo da sua Igreja,

insiste em afirmar que a Utopia consiste apenas em uma obra literária para mero

entretenimento; um paradoxo, em se tratando da principal obra do autor, e por haver uma farta

evidência de que os princípios colocados na Utopia se encontram presentes nas suas demais

obras, destacando ou separando, assim, um homem da sua obra literária.

A Utopia é a única obra em Latim escrita por um Inglês que, traduzida nos mais

diversos idiomas, é ainda lida por pessoas fora da academia e seus estudiosos. Desde a sua

publicação, há quase meio milênio, não se têm passado vinte e cinco anos sem uma

reimpressão num idioma europeu. Entre 1868 e 1940, quando o bibliógrafo parou de contar,

nestes setenta e dois anos, a obra foi reimpressa noventa e duas vezes. As reimpressões em

muitos idiomas pelo mundo, desde então, não pararam.5

Principal obra de um autor executado pelos seus conterrâneos por traição6, não é de se

admirar que tenha recebido pouca atenção no seu país de origem, mesmo que este ato o tenha

transformado num mártir da fé e santo, pelos princípios que defendia, ainda mais diante do

fato de que a situação que gerou a sua discórdia e o levou à Torre de Londres e, em seguida, à

execução perdura até a presente data na figura do monarca britânico como chefe da Igreja

Anglicana da Inglaterra. Somente a partir de 1960, mais de quatro séculos após a sua morte,

foi que o estudo da Utopia surgiu na academia de uma forma mais evidente.7

A importância do utopianismo na atualidade se reflete no interesse gerado pelo evento

em 2000, intitulado A Busca pela Sociedade Ideal no Mundo Ocidental, realizado na

4 No decorrer do texto, usaremos aleatoriamente o termo utopiano e utopiense. 5 Vide Yale 1965 p.cv 6 Por determinação do Rei Henrique VIII, no dia seis de julho de mil quinhentos e trinta e cinco, em Londres, aos cinquenta e sete anos. 7 Vide Levitas 1990, p.09.

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Biblioteca Nacional em Paris e, posteriormente, na Biblioteca Pública de Nova York. Sabe-se

que períodos de transição atiçam o interesse em utopias.

A pergunta que se coloca em todo o presente trabalho é se a obra Utopia demonstra que

os utopianos, habitantes de uma ilha imaginária, conseguem desenvolver uma política social

plena, e invejável a qualquer cristão da Europa. E o alcance dessa condição se dá por meios

racionais, tendo a própria razão como sentido. Entretanto, ainda não se conhece claramente a

intenção de T.M.: se esta é uma chamada de atenção aos católicos de sua época ou apenas

uma proposta social e política da vigente até então. Ainda persiste a dúvida: seria o livro

somente uma peça literária ou o caminho da racionalidade para o alcance de uma sociedade

perfeita?

O nosso trabalho revelará outra face deste autor e sua obra, não como um mártir da fé

ou santo8, o qual promove a autoridade eclesiástica de Roma ao negar o reconhecimento do

segundo matrimônio de Henrique VIII e a imposição do rei como chefe supremo da Igreja na

Inglaterra, tampouco como uma obra literária, mas antes como um teórico político, cuja

preocupação foi a de estabelecer uma sociedade cujos princípios eram pautados na justiça, na

moral e nos valores humanos.

Homem de grande influência e cultura em sua época, T.M. era, como Erasmo, um

cristão e humanista, porém, adepto do verdadeiro cristianismo, aquele que existiu em tempos

remotos e foi se deteriorando até se tornar não mais espiritual e humilde, mas mercenário,

político e suntuoso. No início do século XVI, época em que viveu T.M., a Igreja tinha

alcançado níveis absurdos de exigências e deturpação da mensagem cristã original, abusos

esses que acabaram por gerar as reformas protestantes. No livro A Utopia, percebemos o

quanto a ironia de T.M. ataca as falhas e os erros em que estava envolvida a Igreja.

Assim sendo, o presente trabalho tem a finalidade de apresentar a perspectiva de um

discurso sobre filosofia moral e política nas reflexões contidas na Utopia, de T.M. Essa

proposta se dá pelo reconhecimento de que o autor se mantém presente nas discussões

8 No ato de canonização, o Papa Pio XI, em 1935, o declara como modelo aos ingleses, como diplomata a ser seguido e estadista perfeito. Venerado pelos católicos, é declarado, por João Paulo II, como padroeiro dos políticos e estadistas, em atenção aos fiéis ingleses que viam um interesse especial em referenciá-lo. Esse interesse se deu por conta do interesse que os comunistas dispensavam por sua obra, enquanto tratado de uma sociedade política em que os valores são igualitários e a comunidade humana, um retrato do bem comum.

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filosóficas pela inovação de uma sociedade racional e pelo olhar visionário de uma

humanidade da razão.

A perspectiva de uma humanidade racional se compreende na instauração de um Estado

em que o comportamento de seus cidadãos seja um reflexo de como se mantêm diante de si,

dos demais e das prescrições de uma sociedade ideal.

A sensibilidade à sociedade de seu tempo faz com que T.M. crie antagonismos. A uma

sociedade em que se evidencia o vício, ele apresenta o modelo de uma sociedade virtuosa. A

um privilégio direcionado a poucos, ele constrói uma sociedade em que todos têm acesso aos

mesmos direitos e cumprimento dos deveres recíprocos.

Para entender a filosofia por detrás desta história, iremos separar todos os conceitos

contidos dentro do texto. Desmontaremos a história, ou se quiser, podemos dizer que estamos

decodificando uma obra de filosofia moral e política utopiana.

A raridade analítica em T.M. conduziu a um desejo de investigar mais profunda e

reflexivamente seu pensamento, contexto e perspectivas filosóficas medievais. Assim, o

contato com versões do livro Utopia, nas suas diversas traduções, possibilitou uma

aproximação ao pensamento deste filósofo, do seu sentimento utopista e das questões

inovadoras levantadas por ele, dentre outras, a de uma filosofia moral e política, já

mencionada anteriormente.

O desafio de T.M. é o de apresentar em A Utopia uma sociedade pautada nos critérios

exigíveis para o gênero humano, os da moral e da política. Moral, porque os debates

encontrados nesta obra se concentram em questões semelhantes que ainda vigoram: o bem da

alma e do corpo e os bens exteriores que o homem enfrenta e reconhece como prazer. Discute

igualmente sobre a felicidade humana, onde se situa, e como atingi-la. Política, porque trata

de uma reflexão sobre como organizar melhor a vida coletiva, tanto em nível individual

quanto institucional, perpassando pelas esferas social e econômica.

Portanto, o livro apresenta a alegação da melhor forma de organização política, já que a

obra revela uma abstração e reflexão sobre um determinado momento histórico e, por outro

lado, uma idealização, ou dever-ser social. No entanto, o livro também parece referir-se a uma

situação da Europa do século XVI, à Inglaterra, de forma específica, numa crítica à sociedade.

O fechamento da crítica se dá na idealização de um novo Estado e sua dinâmica de vida.

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Dessa maneira, na Utopia, pode-se encontrar uma síntese sobre moral e política, dentre

outros assuntos, não menos relevantes, mas que são destacados aqui pela sua igual

abrangência.

Como toda filosofia moral e política, seja utópica ou não, há a necessidade de um ponto

de apoio, como se fosse uma alavanca para gerar o movimento filosófico. Este ponto se

encontra na crítica. A partir de uma visão crítica se pode projetar o dever-ser que constitui o

trabalho filosófico.

Stillman 9afirma que: “Utopias podem ser vistas como uma filosofia política prática que

considera e acessa ideais, meios e circunstâncias, a fim de facilitar sábias ações humanas.”

Para o pesquisador, trata-se de uma filosofia política inusitada, não só em conteúdo como em

forma, bem diferente das demais filosofias políticas a que estamos acostumados até a presente

data.

O gênero filosófico utópico promove uma reflexão crítica a respeito dos ideais e

práticas da sociedade e permite conduzir a ações racionais. A despeito dos estereótipos

criados a respeito de Utopias como sendo fantasiosas e irrealizáveis, o cerne do pensamento

utopiano se concentra em levantar e oferecer alternativas e, à luz destas, iluminar o atual

quadro e agir onde se deve.10

Hertzler11, na sua história sobre o pensamento utopiano, afirma que “Utopia não é um

estado social, é um estado da mente”. Nesse mesmo sentido é o entendimento de Reis12, que

defende a relação entre o idealismo filosófico e o utopianismo e também enfatiza o papel do

utopianismo como um estado da mente13.

Perceba-se, pois, que os autores supracitados chamam a atenção para o predomínio da

razão na Utopia, como também para a necessidade de se alcançar um estado de ser, a fim de

poder desfrutar do que a Utopia possa oferecer. Infelizmente, a Utopia não seria possível a

todos. O predomínio da razão implica uma condição moral predominante em detrimento dos

contextos sociais tradicionais e ultrapassados que permeavam a sociedade europeia do Sec.

XVI.

9 STILLMAN 2001,p.10 10 Idem 11 HERTZLER, 1922, p.314. 12 REIS, José Eduardo P. Barreiros Professor do Dep. Letras - Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. 13 GOODWIN et al (2001).

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Já afirmamos que o discurso de A Utopia é uma nova forma de expressão da filosofia

política. A fala do texto não se constrói nos moldes de preceitos lógicos articulados numa

argumentação que visa à demonstração. É um discurso que se articula através da imaginação,

utilizando, conforme a expressão de Baczko, “ideias-imagens”.14

O discurso de A Utopia elabora-se, um pouco, como as artes cênicas e plásticas, isto é,

pela visualização e imagística. A inovação desse discurso consiste em que, com ele, o

discurso filosófico torna-se mise-en-scène15. Uma das grandes características do discurso de A

Utopia é que ele procura demonstrar mostrando. Conforme Stieltjes (2005, p. 18), Moreau

observa que: “é próprio de A Utopia visualizar seus conceitos, não de explicá-los”. Por este

motivo, a maioria das utopias está situada em outros lugares para fazer um paralelo com o

aqui.

Nas utopias, a visão, a imagem, impõe-se à fala, à articulação da palavra. Prévost

observa que em A Utopia a realidade apresenta-se inicialmente como coisa; é apanhada na

imagem, antes de ser transmitida pelo vetor das palavras. A imagem tem uma força expressiva

superior às palavras e é esse poder que T.M. coloca em sua obra. Prévost afirma que A Utopia

torna-se uma maiêutica pela imagem. A realidade é apresentada através de um jogo de

imagens contrastantes.16

Para Mumford17, o método essencial da Utopia consiste neste retrato de vida cotidiana

dentro das instituições utópicas, seguindo seus princípios próprios. Eticamente, uma proposta,

para se tornar utópica, deve antes ser universal e oferecer benefícios a todos dentro do seu

escopo.

Mesmo quando estamos diante de um conto juvenil aparentemente inocente, como as

Viagens de Gulliver, temos questões utópicas sendo tratadas. É claro que existem contos que

se tornam brincadeiras pela sua falta de seriedade, mas onde houver uma praticidade, uma

possibilidade sendo exposta, estamos diante de uma Utopia séria e quem sabe até possível.

O que quer dizer filosofia utopiana? Nesta área filosófica, os conceitos não estão

abstraídos do contexto social, como nas demais áreas de filosofia, mas apresentados como

14 STIELTJES, 2005, p.18. 15 “Colocar num palco” descreve os aspectos presentes numa cena de teatro ou filme. 16 PREVOST, 1978. 17 MUMFORD, 1922.

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seriam se fossem aplicados na sociedade. Um texto utópico representa uma experiência

filosófica mostrando o resultado da aplicação de um princípio filosófico utópico. Com isto em

mente, toda a história passa a ser um código moral aplicado na prática, e o papel de Rafael, na

Utopia de T.M., é o de contar o resultado desta aplicação. Esta foi a primeira vez que isto se

apresentou como tal, inaugurando, assim, uma linha de estudo filosófico chamada de utopiana

ou utópica.18

Não são ideais diferentes que distinguem utopias de outras formas de filosofia moral e

política, mas a sua exposição. Ao invés de apresentar conceitos abstraídos da sociedade, a

Utopia mostra como conceitos filosóficos são aplicados na sociedade e, através do relato da

mesma, como uma sociedade regida por aqueles princípios funciona. Trata-se de uma

experiência filosófica colocada em prática através de uma história mostrando como seria se

aquela teoria fosse colocada em prática. As reflexões derivadas da história vão mostrando a

sua viabilidade ou não.19

Ao invés de elaborar uma teoria filosófica correta para depois oferecê-la para a

sociedade, o pensamento utopiano simula a sociedade de posse daquela teoria e analisa como

seria se fosse verdade a sua aplicação. Trata-se de uma experiência do pensamento, uma

espécie de “jogo” filosófico.20

Uma Utopia torna-se verdade e possibilidade a partir do momento em que uma

quantidade suficiente de pessoas que a lê é capaz de absorver seus princípios e promover esta

transformação através das suas práticas. A diferença entre sonhar e filosofar é que, se o

sonhador consegue detalhar seu sonho, adequá-lo à vivência humana e expô-lo de forma que

outros possam seguir os princípios, ele terá se transformado num utopiano. O que transforma

sonhos em Utopia é a educação, que o transforma em pensamento social, convertendo o

abstrato em concreto e permitindo o compartilhar dos demais através da sua convicção e

ações de acordo com os princípios utópicos.21

18 Vide The Philosophy of Utopia e The Politic of Utopia de Barbara Goodwin. 19 STILLMAN in GOODWIN 2001. 20 STILLMAN in GOODWIN 2001, p.14. 21 STILLMAN in GOODWIN 2001.

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Muitos comentadores citam Oscar Wilde: “Um mapa mundi que não inclua Utopia nem

vale a pena olhar, pois omite o único país no qual o homem está sempre chegando, olhando e

vendo um mundo melhor, partindo. Progresso é a realização de Utopias”.22

Uma das interpretações que brotam na leitura da Utopia é a sua comparação com a

imagem de um espelho. Seria, portanto, um reflexo de um mundo novo, outra possibilidade,

mesmo que seja distante, servindo como espelho para a crueldade da realidade. De acordo

com Stieltjes (2005, p. 18), é importante observar a imagem da Utopia como sendo um

espelho da realidade:

A imagem do espelho é mágica, pois é ao mesmo tempo fiel e invertida. É um símbolo conveniente para A Utopia, pois esta espelha a loucura e devolve por inversão uma imagem de sabedoria. As imagens do mundo invertido não são raras durante a Renascença.23

Aquele que desejar um empenho maior nos estudos das obras medievais encontrará

alguns empecilhos; a estrada se fará árdua e o esforço hermenêutico será uma constante. Da

mesma forma, o estudioso de T.M. não se deparará com um percurso ameno, mas com a

aridez de estudos, com poucas interpretações sobre sua obra “Utopia”.

Com fito em ampliar a literatura sobre o tema, fornecendo material para futuras

pesquisas, sem embargo das demais obras de T.M, delimitou o objeto da pesquisa a obra da

Utopia.

Entre todas as traduções, foi escolhida para o trabalho de pesquisa a tradução do latim

para o inglês, da Cambridge University Press, a mais recente e que possui uma ortografia

mais moderna, visto que trabalha com parágrafos e pontuações mais fáceis para aqueles não

versados no latim.24 No entanto, ao citarmos os trechos da obra neste trabalho, optamos pela

tradução do latim para o português, do Prof. Dr, Aires do Nascimento, publicado pela

Fundação Calouste Gulbenkian, garantindo assim uma fidelidade na citação no nosso

vernáculo. As demais traduções foram usadas para elucidar os trechos mais obscuros. A

versão publicada pela Yale University Press, considerada até a publicação da versão de

22 LEVITAS 1990, p.05. 23 Claude-Gilbert Dubois e Sabine Melchior-Bonnet explicam como o espelho de vidro, revestido de mercúrio, invenção da Renascença, excita a imaginação da época. (STIELTJES 2005, p.18). 24 Embora estudiosos e pesquisadores mais tradicionais criticassem esta versão justamente pela sua modernização ortográfica.

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Cambridge como a melhor tradução, continua sendo até a presente data a que possui o mais

rico comentário a respeito do texto.

Outra tradução utilizada na interpretação do trabalho foi a francesa de André Prévost,

publicado pela Nouvelles Éditions Mame. Por este motivo, no decorrer do trabalho, todas as

citações feitas em português terão as referências da localização no idioma original (latina),

como também nas traduções inglesa e francesa, situadas no rodapé.25

Apesar de certa profusão de textos sobre a Utopia, são muito raros os que possuem um

enfoque filosófico. A predominância consiste na sua interpretação literária. Mas, dentro de

uma perspectiva filosófica, só foram encontrados dois textos, envolvendo uma mesma autora:

Barbara Goodwin.26

Esta autora reconhece o débito que a academia inglesa tem com um dos primeiros e

mais destacados autores da renascença. Barbara Goodwin chamou a atenção para a falta de

estudos filosóficos pertinentes a um assunto tão profundo e cujas consequências se fizeram

tão presentes na história, pois esta obra é considerada como o berço do socialismo e do

comunismo contemporâneos e tem servido de inspiração para anarquistas e diversas correntes

de pensamento, manifestando-se inclusive em ficções científicas, com as suas projeções de

futuro.

O pesquisador contatou com o maior especialista vivo em literatura utópica, Prof.

Eméritus Lyman Tower Sargent, do Departamento de Ciência Política da Universidade de

Missouri – St Louis, indagando-o a respeito da existência de livros que tratassem da Utopia

de T.M., e que tivessem um foco filosófico. Os poucos livros encontrados e recomendados

estão presentes nesta pesquisa. Os livros de Barbara Goodwin tratam da Utopia como gênero,

e não especificamente a Utopia de T.M.

Os principais autores recomendados pelo Prof. Sargent se situam em dois opostos

quanto à finalidade da obra Utópica: Surtz, como membro da Companhia de Jesus, mesma

instituição que publicou os seus dois livros27 utilizados nesta pesquisa, insiste em afirmar que

25 a numeração após o código "LAT" e "ING" correspondem a paginação do livro da Cambridge University Press contendo a versão original latina e a inglesa e a numeração após o "FRA" da paginação do livro de Prévost. 26 The Philosophy of Utopia e The Politics of Utopia, ambos editados pela Barbara Goodwin, e a segunda em parceria com Keith Taylor. 27 The Praise of Wisdom e The Praise of Pleasure.

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a obra se trata de uma peça literária e nada mais; do outro lado, defendendo uma profundidade

muito maior da obra, no âmbito da filosofia, encontramos Logan28 e Baker-Smith.

Sendo assim, na busca de aprofundar o conhecimento da obra, enquanto filosofia moral

e política, desenvolveu-se a presente dissertação. Trata-se de um trabalho descritivo, de cunho

qualitativo, com base em textos e livros que versam sobre o tema. Para tanto, dividiu-se o

estudo em três capítulos, a saber:

No primeiro capítulo, aborda-se a crítica da filosofia moral e política utopiana. Esta

crítica está focalizada na contemporaneidade moreana do Séc. XVI, com os seus vícios e a

perseguição dos falsos prazeres pelos europeus e especialmente pelos ingleses. Destacam-se

os principais pontos presentes na sua crítica no que se refere aos falsos prazeres como um

todo, mas detalhando certos aspectos, como: vícios decorrentes dos falsos prazeres, vícios dos

governantes, da nobreza, da plebe e a questão social da moralidade.

No segundo capítulo, apresentam-se os fundamentos desta filosofia moral e política,

alicerçados no conceito de natureza e razão herdado dos estoicos; na busca do prazer e

felicidade no hedonismo epicuriano; e num conceito fundamental religioso próprio de T.M.,

herdado obviamente da sua fé inabalável de uma crença em Deus e nas consequências pós-

vida das ações humanas.

No terceiro capítulo, é descrito o dever-ser, como se efetiva a filosofia utopiana

moreana. Inicia-se pelo governo, mostrando-se como T.M. recomenda que deve agir um

governante que busca o bem-estar do seu povo. A seguir, passa-se a dissertar sobre a nobreza,

que representa o serviço público; a educação, fator de suma importância na utopia; o sistema

jurídico, o qual, para T.M., necessita de poucas leis quando se tem um povo bem instruído.

Continuando nessa mesma linha, fala-se da população, mostrando-se como esta deve ser e

agir na Ilha de Utopia.

28 The Meaning of More’s Utopia.

Page 19: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

18

1 A CRÍTICA: IMPEDIMENTOS DA VIGÊNCIA DA FILOSOFIA

MORAL E POLÍTICA

Uma leitura aprofundada de T.M. conduz à compreensão de que suas ideias e

perspectivas civilizatórias caracterizam uma pré-defesa do comunismo e a instauração de um

mundo novo, sob a ótica humanista. Também se pressupõe a presença de suas profecias nos

movimentos socialistas europeus do século XIX.

Pode-se dizer que T.M. escreve uma obra de reforma política, na condução de uma

sociedade cujos valores humanos são evidenciados, tanto em nível individual quanto coletivo.

Valores que reclamam respostas, visto serem ainda cobrados presentemente.

T.M. vive um período de transição e de crise, o que explica a intenção de uma

reformulação política e social. Representa, sua visão, a passagem do homem medieval ao

homem moderno, o que pode implicar ser sua escrita a superação de seus conflitos pessoais:

subsidiar uma nova civilização, superando as fracassadas política e governança de sua época

com uma sociedade da razão.

É importante salientar que não há uma crítica específica a nenhum personagem

histórico, não estamos nos referindo especificamente a Henrique VIII ou a qualquer outro

soberano de sua época. Ironicamente, se tivéssemos que usar um exemplo histórico, nenhum

outro se encaixaria tão bem quanto Henrique VIII, que até o fim do seu reinado provou ter se

tornado o monarca mais absolutista da Inglaterra. O motivo é que, se tratarmos de personificar

os protagonistas da Utopia, a obra se torna de fato literária ou até histórica, permanecendo

assim dentro de sua camuflagem proposital.

Assim, o autor percebeu a necessidade de uma reforma na Inglaterra, e a desejou de

uma forma global, ou, como esclarece De Silva (1992, p. 206): “no terreno privado e na

administração pública, na vida secular e na eclesiástica, na educação e na economia”. Como

se vê, reconhecia que a reforma social englobava todas as esferas que a humanidade vivia.

Esse pode ser um sinal de que o humanismo de T.M. se via extensivo não somente ao seu

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19

tempo, mas seria amplamente direcionado aos homens. As ideias-chaves de seu escrito podem

conduzir à compreensão de ser seu pensamento uma revolução, e de que a tarefa de constituir

um novo mundo para ele era clarividente. Sem reformas profundas, não seria viável

estabelecer um estado da razão.

Observam-se, pois, na construção da Utopia, os elementos que T.M. utiliza para a

fundação de uma nova civilização cristã-europeia, em vista do desgaste e da decadência

espiritual, política e intelectual ao longo do final da Idade Média. Da mesma maneira,

podemos ver a influência do Novo Mundo, que inspirava os europeus, ajudados pelas

descobertas científicas e geográficas. Ficar alheio aos acontecimentos que balançavam a

Europa não era próprio de T.M.; tampouco deixar de contribuir com algum argumento teórico

sobre a edificação de uma nova realidade. Desse modo, pode-se, erroneamente, supor que

Utopia é um tratado particular para a sociedade inglesa. Uma leitura mais aprofundada

permite reconhecer que se dirige a todo o contexto humano. O texto de T.M é de uma

perspectiva medieval e moderna, porque é uma crítica às instituições medievais que não

apresentavam mudanças, e, por outro lado, é uma literatura inovadora de um mundo em seu

alvorecer. Daí afirmar-se não haver ruptura alguma entre o renascimento humanista e a

condição medieval que se efetivara historicamente.

Além de oferecer uma ponte entre o antigo medieval e o novo moderno que se

descortinava diante dele, T.M. procurava uma harmonia entre a ciência filosófica humana e a

teologia, enquanto ciência divina. Como seria, então, entender essa postura moriana à luz dos

conhecimentos veiculados em seu tempo? De Silva (1992, p. 210) esclarece:

A fé cristã recebe respeitosa homenagem, mas, ao mesmo tempo, a inteligência humana avança audaz até as fronteiras mais distantes de uma verdade cuja essência é mistério insondável e que permanecerá sempre misteriosa por muito que se estude (de fato, quanto mais se estuda, mais misteriosa). A fé não pode caminhar sem a companhia do intelecto, e a inteligência somente encontra descanso, de alguma forma, na fé.

Há uma concepção, no tempo de T.M. de uma afinidade29 e, ao mesmo tempo,

separação entre fé e inteligência. O empenho de T.M. reside na proposta da instauração de

uma civilização em que esses distanciamentos sejam unificados. Desse modo, haveria um

lugar onde seria possível a vivência plena da idealidade enquanto pura e total realidade. Vê-

29 Enquanto em Agostinho prevalecia a fé nos assuntos confrontados com a razão, Tomás de Aquino acreditava que se a razão não “concordava” com a fé era por insuficiência racional ou uma falta de entendimento.

Page 21: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

20

se, pois, a perspectiva de uma filosofia moral e política, com ênfase na efetivação de valores e

conselhos viáveis ao homem moderno. Este, não mais convencido de uma moral eclesiástica

deísta, mas de novos impasses, que se levantam com a ciência experimental e com os avanços

no campo da observação e da dedução empírica.

Uma postura significativa da filosofia política de T.M. é que, em seu tratado utópico,

ele busca reunir a primazia da razão e da revelação, o seu equilíbrio, possível a uma nova

humanidade, na observância das ordens criadas, evidenciando a perspectiva do pensamento

cristão, num recorte humanista de seu tempo.30

Ao pensar numa comunidade perfeita, T.M. sabia que seu ponto de partida seria a

antropologia, a compreensão da criação humana. O estudo da criação humana seria

fundamental para a formação da pessoa e da sociedade utopianas. A criação humana seria a

predisposição do próprio homem de se ver criatura de Deus, reconhecendo sua existência, sua

razão natural, a ordenança da natureza e a construção de uma conduta moral pactuada pela

convivência e pela efetivação da razão natural.

Partindo do pressuposto antropológico, o tratado político redigido por T.M. demonstra

que o melhor funcionamento de uma civilização se daria no fato de que a razão não é um

poder que por si só leva à perfeição. É a convicção de que esta se obtém juntamente com

critérios religiosos, ou seja, a razão seria incompleta sem os princípios obtidos pela religião. A

perpetuação da sociedade, por exemplo, se daria na busca da verdadeira felicidade, pela

imortalidade da alma, cujo fim é a visibilidade de Deus. A mensuração dessa condição de

cada habitante se revelaria segundo suas obras e virtudes. Nas palavras de Prevost (1969, p.

106): “um humanismo são era a condição de uma sã teologia”.

T.M já reconhecia o projeto da Modernidade, e isso era presente no humanismo da

baixa Idade Média do século XVI. Participando assim dos avanços de seu tempo, o que

constituiria mais tarde o chamado “espírito moderno”, o autor, ao mesmo tempo, não abre

mão da herança medieval presente no seu objetivo transcendental. Expressa, assim, a unidade

30 Os utopianos, se existissem de fato e não fossem apenas personagens literários, não se caracterizariam como racionalistas, nem tampouco, pode-se dizer deles, precursores do Iluminismo. Apenas se servem da razão, mas sem pô-la no lugar mais alto de suas vidas. A razão, para eles, era a faculdade de os tornarem sempre abertos à realidade. Seria aquela condição de fazer com que se alcançasse algo que não era obtido pelos sentidos.

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21

natural do homem e Deus. Assim, o tratado utopista é um tratado humanista político porque,

conforme De Silva (1992, p. 217) ressalta:

Deus e homem não se excluem, porque tampouco se excluem as obras de um e de outro. Não são adversários, e é dada ao homem a cooperação com o seu criador (a pessoa é participens creatoris). Ambos, criatura e criador, encontram nessa cooperação seu respectivo orgulho.

A reforma política de T.M. se revela na sua descrição de uma sociedade que carece, não

apenas de reforma, mas de uma nova forma. Baseia-se no humanismo que está a cargo das

ações de cada habitante, pelos usos e costumes que se coordenam na vivência dos valores

sociais e na revelação cristã. Assim, a Utopia é uma reflexão sobre os fundamentos e

condições em que se pode levar a cabo uma sociedade moderna. Aquela, que via nos valores

medievais os pressupostos de uma comunidade que se conceitua racional, que conhece nos

acontecimentos o presságio de um novo alvorecer.

Portanto, a razão seria a faculdade-guia dos utopienses, o que seria exemplo não

somente para os ingleses cristãos, mas também para os demais cristãos de sua época. Seria,

igualmente, a razão, a condutora de uma comunidade humana, a condição de uma reforma

social.

Uma questão que se colocava à mente de T.M era a viabilidade de uma reforma da

Inglaterra, e acreditava que isso não seria possível sem uma reforma da Igreja. A Utopia é

uma reflexão sobre a Cristandade e sobre os pilares evangélicos.

De Silva (1992, p. 224) afirma que T.M. constrói, na Utopia, “um programa ideológico-

político, sociológico, artístico, etc.”. Isso, porque toda civilização proposta apresenta uma

beleza sobre-humana. O utopiense é aquele homem prudente, que conhece os limites, os

ideais ou ilusões sobre as possibilidades de vida temperadas de experiência.

Assim, segundo Surtz (1957b, p. 13), o termo que representa a crítica dentro da filosofia

moreana é o vício, que abrange todos os segmentos da sociedade. A obra de T.M. busca

expor e descrever os vícios que prejudicam o Estado e as virtudes que o exalta e o faz

florescer.

No que tange aos vícios, Guilherme Budê, no prefácio de Utopia, deixa claro que a raça

humana possui desde o seu nascimento um apetite que parece um parasita presente na carne e

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que a preda durante a sua vida toda (MORVS, 2006). Serão estes apetites que iremos

descrever no decorrer desse primeiro capítulo.

1.1 Vícios decorrentes dos falsos prazeres

Segundo Baker-Smith (1991, p. 75), há uma série de experiências prazerosas, a que se

designam virtuosas ou verdadeiras, que são fundamentadas na natureza em si; mas existe

também uma série artificial, a que se designa vício ou falsa, fundamentada em convenções

sociais, o que representa uma decepção autoimposta ou, como mostra o autor: “a sociedade é

a conspiração para virar a natureza de ponta cabeça”.

Surtz (1957a, p. 40), por sua vez, relaciona as quatro causas mencionadas na obra no

tratamento de falsos prazeres: doenças corporais, satisfação desmedida de desejos básicos,

também compreendidos como desejos desonestos, opiniões falsas e, sobretudo, hábitos

pervertidos.

As doenças corporais são compreendidas no seu sentido físico e não moral. Têm como

causa um julgamento corrompido em relação ao prazer derivado da sua moléstia.31 Os desejos

desonestos derivam dos encantos perversos e maliciosos que causam muitas coisas que são

desagradáveis por si, mas são confundidas como desejos superiores, pois possuem como

objeto não só prazeres sensuais, como comida e bebida em quantidades imoderadas, ou delícia

excessiva, mas, também, ligações perversas com riquezas e honras.

As opiniões falsas decorrem de desejos de uma natureza imoral e perversa, e quando

sucumbidas sem reservas, enganam a mente com a falsa opinião de prazer. Na perspectiva

moreana, o resultado é que homens que são enganados dessa forma escolhem prazeres falsos,

como se eles ultrapassassem outros prazeres pela sua natureza, e não pelo seu engano.

Para Surtz (1957a, p. 40): “Erros intelectuais, ou pensamentos errôneos, causam aos

mortais a escolha de falsos prazeres”. Assim, ao ser seduzido a erros de julgamento pelos

desejos que surgem, o homem se torna vítima de hábitos ou costumes corruptos. Ao olhar

para prazeres falsos, como se eles fossem verdadeiros, faz-se com que a gratificação seja

31 Um exemplo seria a obesidade que pode criar falsos prazeres quando na verdade a vítima estaria apenas se subjulgando aos desejos errôneos de comer desmesuradamente. O alcoolismo é outro exemplo de doença que promove uma necessidade confundida com prazer autêntico, quando apenas se satisfaz um vício.

Page 24: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

23

derivada destes. Porém, não é a natureza da coisa, mas a sua perversidade que é a causa de

aceitar coisas amargas, ou azedas, ao invés das coisas doces.

Segundo More (1995)32, o vício possui não só uma responsabilidade individual daquele

que se ilude, mas também uma questão social, que é cabível dentro de uma sociedade que não

tem medida social, que não se constrói a partir de critérios morais.

De acordo com Surtz (1957), isso é perceptível na crítica social moreana quando

Raphael fala do costume como fonte de erro em relação ao prazer. Para o autor, T.M. está se

referindo não somente aos hábitos corruptos dos homens enquanto indivíduos, mas, também,

às falsas considerações e vícios das classes sociais, pois a sociedade fornece o ambiente no

qual uma opinião errônea pode surgir e crescer.

Surtz (1957) percebe essa crítica quando T.M. se refere aos costumes cegos dos

homens. Esses costumes são preservados nos prazeres torpes de todos os deleites desmedidos

da carne, e os mantêm ignorantes e sem cuidado ou preocupação com a doçura do prazer

espiritual. T.M. é bastante explícito quando se refere aos mortais que, em exercício de

fantasia, como se estivesse ao alcance deles poder transformar a realidade como mudam de

palavra, imaginam prazeres que ultrapassam a natureza, cheios de amargor, perversidade e

prazeres ilícitos.

A esse respeito, declaram os utopienses que tudo isso nada tem a ver com a felicidade,

antes, na maior parte das vezes, lhe serve de empecilho, porque, uma vez assentes, essas

ilusões do prazer não deixam lugar para os deleites autênticos e verdadeiros, uma vez que daí

por diante ocupam todo o espírito. T.M. prossegue afirmando que estes desvarios, embora o

comum dos mortais os tome como prazeres, não são instituídos pela natureza como

agradáveis.

Para Surtz (1957, p. 42), entre os prazeres falsos destacados pelos utopianos, existem: a

noção errônea de que quanto melhor a roupa, melhor aquele que a veste; o orgulho tolo por

honras inúteis, especialmente por uma nobreza desprovida de bens; um deleite pueril por

pedras e gemas preciosas; ouro armazenado ou riquezas guardadas para simples

contemplação; e, por fim, um entusiasmo enlouquecido por jogos de dados, falcoaria e caça.

32 LAT246/ING247/FRA629.

Page 25: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

24

O falso prazer derivado de falsa honra é particularmente repudiado pelos utopianos, pois

consideram tolos e ignorantes aqueles que exigem reverência e respeito como um direito

decorrente de seus trajes e que possuem orgulho por honras vãs e desnecessárias. Para T.M

apud Surtz (1957, p. 47): “o prazer que surge da satisfação de um desejo incomum por sinais

de respeito, quando independe da honra. Trata-se de um engodo e não é natural nem

verdadeiro”. Já que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua

natureza e já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o

que estiver acima disto não é natural. Dessa forma, o deleite nos exageros apenas demonstra o

falso prazer. Os utopianos defendem que uma sociedade deve pautar-se no valor que seja

compensável a cada cidadão, e o que acontece contra esse princípio é prejudicial para a

sociedade.

Esse entendimento fica claro quando T.M faz uma crítica à classe dos governantes. Esta

crítica possui duas funções, visto que, ao exteriorizar as suas dúvidas a respeito da viabilidade

da sua função como conselheiro, cargo que viria a ocupar em breve, torna-se incisivo na

explanação dos vícios próprios dos governantes.

1.2 Vícios dos governantes

T.M., na preocupação em localizar e citar os vícios, os exageros desmedidos e a

manutenção do estado de falso prazer pelos governantes, apresenta, nos últimos parágrafos do

segundo livro, um antagonismo entre seus personagens.

Em seu discurso sobre os vícios dos governantes, T.M mostra que, enquanto Rafael

acredita no sucesso de um governo destituído dos falsos prazeres, o personagem More afirma

que assim se procedendo: “cai por terra toda a fidalguia, a magnificência, o esplendor, a

majestade, que, como sustenta a opinião pública, é o verdadeiro ornamento e glória do

Estado” (MORVS, 2006, p. 673).33 Desta forma, pode-se ver como as aparências do Estado,

na figura e esplendor dos seus governantes, são edificadas sobre os falsos prazeres e os vícios

dos monarcas.

33 LAT246/ING247/FRA630. Vale recordar o trecho em que quando se fala de falso prazer. A população dá condições para o cultivo de falsos prazeres [...] É esta multidão que apóia o conceito falso de nobreza, baseada em um culto de ostentação que, na verdade, vira as coisas ao avesso, chamando coisas más de boas e confundindo coisas amargas com doces. [BAKER-SMITH p.178]

Page 26: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

25

Para Surtz (1957a), o primeiro ponto que T.M. destaca na crítica aos governantes é a

falta de interesse no estudo e no conhecimento. T.M questionava como governar sem dispor

de um conhecimento sobre a sua função de governante. Essa questão é de fato pertinente, pois

o que prevalecia era o desdém para com o estudo, uma característica dos nobres e dos

cavalheiros tanto na Inglaterra como na Europa. Ser chamado de erudito ou estudioso era uma

ofensa para um nobre.

Nesse sentido, T.M não conseguia entender porque os governantes não liam os livros

que já haviam sido escritos pelos filósofos. Para T.M., era relevante o rei ou governante

dispor de acesso à cultura e ao saber, como referência para um bom governo.34 É uma

condição de lucidez para aquele que pretende governar com o crivo da razão. Assim sendo,

T.M. propõe uma reforma radical da sociedade de seu tempo, e a Utopia é uma prova cabal

desse intento (MORVS, 2006).35

No entanto, T.M. tem consciência do grande desafio que isso significa ao ponderar:

“Porventura não estás tu ciente de que, se eu propuser a algum rei decisões sensatas e tomar a

peito arrancar-lhe as sementes perniciosas do mal, serei imediatamente escorraçado e posto a

ridículo?” (MORVS, 2006, p. 453).36

Depois de tecer uma crítica severa aos governantes quanto a seus vícios, T.M. sugere

conselhos que viabilizam a instauração de uma sociedade racional, mantida pela nova ordem

de racionalidade e pelos ensinamentos cristãos. No entanto, segundo Logan (1983, p. 56),

T.M. reconhece que se trata do mais relevante e sério de todos os problemas sistêmicos, em

vista do que “os conselhos bons ou maus possam acarretar, através dos governantes, em toda

uma sociedade”.37 Por isso que, em a Utopia, a objeção de Rafael para ocupar um posto no

corpo de conselho de um governante se resume a uma rejeição fundamental deste modo de

expressão política, pois ele acredita que isso na prática não funciona.38 “O ambiente da corte

corrompe o cortesão. O problema é institucional.” (BAKER-SMITH 1991, p. 101).

34 Assim, também propunha Aristóteles, a Alexandre, a cultura. 35 LAT082/ING083/FRA417. 36 LAT082/ING083/FRA417. 37 Podemos ver claramente como esta influência atua nos dias de hoje no exemplo do papel que lobistas, como “conselheiros”, exercem no nosso executivo e legislativo. 38 Para Baker-Smith (1991, p.101): “A função do conselho, de acordo com Castiglionoe, é usar a persuasão para guiar o príncipe em direção a políticas virtuosas.”

Page 27: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

26

Para Logan (1983, p. 68), em T.M., a função do conselho corrompido tem uma

finalidade de atender aos interesses individuais em detrimento dos interesses comuns. Isso se

faz presente em todos os exemplos citados por Raphael no primeiro livro da Utopia, que

reforçam a inutilidade de conselhos a governantes. Rafael menciona a preocupação dos reis

mais com as guerras do que para com a paz; a condição de bajulação que norteia o rei, que,

por sua vez, aprecia esse clima; e a conduta da corte que é regida por precedentes, o que não

permite inovação.

No primeiro livro, faz-se um exemplo do tipo de conselhos que um rei receberia dos

seus conselheiros. Uma análise de cada opção mostra conselhos nada virtuosos, embora

representassem um quadro bastante realista do cenário europeu. Rafael pede para imaginar

que está junto a um governante e que possui assento no seu conselho, em que, no mais secreto

dos aposentos, sob a presidência do próprio governante, se discutem superiores opiniões de

homens altamente sabedores dos meios e das estratégias de fazer alianças para recuperar o

que lhes escapara, tentar arruinar inimigos, conquistar e anexar territórios, contratar

mercenários, distribuir subornos de dinheiro, entregar para outros o que não lhes pertence e

atrair cortesãos. Isso, sem contar com atos de falsidade com que se trata o inimigo como

amigo e o instigam por detrás. T.M. faz uma descrição da condição que prevalece entre os

conselheiros de um governante europeu do séc. XVI:

[...] de todos aqueles que pertencem ao conselho dos reis, não há ninguém que procure aconselhar-se, seja porque alguém é de verdade altamente competente, seja porque lhe parece que é tão competente que não lhe apetece confrontar-se com o conselho de outrem, a não ser dos que aplaudem as opiniões mais que absurdas e vivem do parasitismo daqueles que procuram apenas ganhar para si as boas graças do príncipe com o seu aplauso. A analogia está na natureza, por certo: cada um elogia o que inventa, da mesma maneira que o filhote do corvo sorri para o progenitor e que ao macaco agrada a sua cria. (MORVS, 2006, p. 411).39

Mais adiante, T.M. observa que mesmo aqueles providos de boa fé estão arriscados a

cair nas tramas nefastas do poder:

[...] quem quer que seja ou ficará pervertido pelo seu comportamento depravado ou ele próprio, na sua integridade e inocência, servirá de cobertura à malícia e a estultices alheias, de tal modo que muito dificilmente alguém poderá, por via indireta, levar alguma coisa a tornar-se melhor. (MORVS, 2006, p. 473).40

39 LAT052/ING053/FRA374. 40 LAT098/ING099/FRA434.

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27

Quanto à guerra e à conquista, T.M. observa que a sociedade vê impedimento à prática

dos valores cristãos e à vivência da justiça no desejo da prática bélica por parte dos príncipes

e governantes. Nosso autor, sobre o assunto, assim observa:

[...] os próprios príncipes, na sua maior parte, estão todos mais que comprazidamente ocupados em estratégias militares [...] e preferem-nas a ações de paz ou passam muito mais tempo a congeminar de que modo, lícito ou ilícito, conseguiriam conquistar novos reinos do que a administrar bem os que lhes couberam. (MORVS, 2006, p. 411).41

De acordo com Baker-Smith (1991, p. 59), na invasão da França, em 1513, por

Henrique VIII, constata-se como jogos de guerra ainda dominavam a vida aristocrática. “Dos

quarenta e dois nobres diretamente ligados a operações militares do reino, trinta e três

estavam envolvidos diretamente nesta invasão e a metade de todas as tropas, quinze mil, eram

compostas de seus subordinados”. Para TM e Erasmus, a lição mais óbvia desta campanha são

os perigos de uma aristocracia criada para a guerra e por um príncipe determinado a superar

seus antecessores.

Sobre a guerra, T.M. é enfático, ao dizer: “A acção bélica (bellum) é algo de

verdadeiramente bestial (belluinum), mesmo que não haja qualquer tipo de bestas para quem

ela seja tão frequente, como para o homem, o recurso a ela”. (MORVS, 2006, p. 605).42

E quando decide criar a Utopia, um dos delitos e condições que deseja banir dessa

civilização é exatamente a guerra, e a proposta bélica de governo. Assim, T.M. diz que: “é

rotundamente proscrita pelos utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a

custo se encontrará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra.” (MORVS,

2006, p. 605).43

T.M. critica o governante que, na busca de um reino cada vez maior, maiores também

serão os seus problemas. O fascínio bélico próprio dos governantes corruptos e interessados

apenas em expansão e conquista acaba por proporcionar uma série de males e desavenças no

seu próprio país, como cita T.M. quando relata a respeito de um governante que havia se

apoderado de outro país.

41 LAT052/ING053/FRA374. 42 LAT200/ING201/FRA566. 43 LAT200/ING201/FRA566.

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28

[...] havia que fazer gastos, ver sair o dinheiro para fora, dedicar o sangue próprio (da população) a uma vaidade alheia; paz e segurança eram sem perspectivas, os bons costumes no país tinham decaído em razão da guerra, havia uma cupidez desenfreada de pilhagem, vivia-se um desaforo de assassínios a toda a prova, as leis eram deitadas ao desprezo porque o rei se dispersava a cuidar de dois reinos e menos era capaz de voltar a atenção para qualquer um deles. (MORVS, 2006, p. 457).44

Desse modo, como aplicar um governo justo, a prática dos valores, a implantação de

uma civilização moral e politicamente viável, se a atenção do governante estava voltada para

a guerra e sua manutenção?

1.3 Vícios da nobreza e da plebe

T.M. deixa clara em seus escritos a condição política e moral de sua época. Relata a

pauperização das instituições, a nomeação de cargos públicos como algo vergonhoso e propõe

uma crítica severa a esse contexto. Segundo Surtz (1957a, p. 49)

[...] os cargos políticos, tanto na Igreja quanto no Estado, eram sempre ocupados por membros escolhidos por sua linhagem e nobreza, e não pela sua virtude, aprendizado e prudência. O resultado era a nomeação de homens estúpidos, tolos e corruptos.45

Na Utopia, T.M. se refere especificamente a este problema de designar incompetentes a

funções públicas, causando uma inversão de valores, na qual aqueles que sustentam a

sociedade com seu trabalho e dedicação são renegados a uma classe sofrida, enquanto os

parasitas que se aproveitam dos esforços alheios são beneficiados:

Não será que é iníqua e ingrata uma nação que proporciona tantos regalos a fidalgos, como lhes chamam, a traficantes de dinheiro e a outros do mesmo gênero, que vivem na ociosidade ou que passam a vida a adular e assegurar vãos prazeres, quando, em contraste, para agricultores, carvoeiros, serviçais, condutores de carros e artesãos, sem os quais a organização pública não se aguenta, nada prevê que lhes seja favorável? (MORVS, 2006, p. 665).46

T.M. enxerga a corrupção institucional quando explica a conduta dos ricos e fidalgos

que estabelecem a “fraude privada”, e ainda adotam leis que os apóiam e que garantem que

condutas corruptas serão aprovadas por lei. E acrescenta:

44 LAT084/ING085/FRA418. 45 Erasmus, escrevendo para Faber, em 1532, declara que TM e seu pai, que não pertenciam à nobreza, mereciam os favores do rei pela sua virtude, a verdadeira origem de toda a nobreza. George Lily também diz que TM foi chamado aos cargos mais honrados do Estado apenas por recomendação da sua virtude. 46 LAT242/ING243/FRA625.

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29

É por isso que, quando olho para todos os Estados que hoje se apresentam em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não está a ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autoridade do Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os perderem, depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres e para deles abusarem. (MORVS, 2006, p. 665).47

A seguir, temos a sua crítica ao parasitismo e à exploração:

Há um número grande de fidalgos que não só passam a vida na ociosidade, como zangões atidos ao trabalho de outros, mas ainda por cima, para aumentarem os seus rendimentos, sugam os seus trabalhadores até ao sangue vivo. É de fato o único tipo de frugalidade que conhecem, pois, quanto ao resto, são tão esbanjadores que caem na mendicidade; de verdade, trazem à sua volta uma grande multidão de parasitas48, sem terem nada para fazer já que nunca aprenderam qualquer ofício para ganharem a vida. Dê-se o caso de o seu patrão morrer ou de eles caírem doentes: imediatamente são postos fora, pois se prefere alimentar ociosos a dar de comer a doentes; bastas vezes o herdeiro de alguém que acaba de morrer não tem logo o suficiente para sustentar a clientela paterna, pelo que eles terão de passar fome deveras, a não ser que se ponham a roubar. (MORVS, 2006 p. 419).49

O maior ataque que TM faz à Igreja está contido no primeiro livro, no episódio do

Cardeal Morton, e, de uma forma mais velada, no segundo, que relata a vida na ilha de

Utopia. A semelhança da vontade de Cristo exposta na sua revelação, contida na Bíblia, com a

racionalidade e propostas da religião Utópica é muito grande. E somente através da razão, os

ilhéus alcançaram o estado político desejado e idealizado pelo próprio Filho de Deus nas

escrituras sagradas. Ao mostrar que a fé cristã é lógica, ele mostrou que para ser divino tudo

tinha que fazer sentido. Deus, de acordo com T.M. não realizaria alguma coisa que não fizesse

sentido.

Na incoerência religiosa que predominava na Europa, onde os ditames do fundador da

religião cristã eram incompatíveis com os atos que vigoravam ate então, foi preciso: “[...] a

tempestade da Reforma Protestante para trazer os católicos ao juízo, reforma e reparação.

Acreditava-se que, entre os maiores males na Igreja, estavam a avareza e a ganância por

dinheiro.” (SURTZ, 1957b, p. 144). E essa era a crítica que Lutero expunha em seus

argumentos. Mesmo sem ter a ideia da dimensão de sua postura, acabou por conduzir a

47 LAT242/ING243/FRA625. 48 Nota do pesquisador: lembra-se de que um dos sinais de poder na época feudal era ter “muitos amigos”, que acompanhavam os poderosos. 49 LAT056/ING057/FRA381.

Page 31: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

30

Cristandade a uma revisão de suas bases evangélicas. Da mesma forma, T.M. chama a

atenção para os mesmos males e, diferentemente de Lutero, a quem T.M. passaria a deplorar

posteriormente, ofereceria a sua reforma nos moldes dos habitantes da Utopia.

A condição interna da Igreja, no contexto de T.M., não era diferente da condição civil

da Inglaterra e Europa. Havia uma paridade de governo. De acordo com Surtz (1957b), o

próprio Papa Urbano I (222-230) foi o primeiro a decretar que padres poderiam receber

propriedades oferecidas por devotos. No entanto, ele estipulou que nada podia se tornar

propriedade privada, mas tudo visava ao bem comum. Assim, moradias eram comuns a padres

e a hospitalidade, aberta aos laicos. No entanto, o bem comum foi substituído pelo “meu” e

“teu”, e o clero era agora visto como renda, legado e propriedade. Como não conduzir esse

contexto a uma condição de crítica, de análise política e moral?

O pior pecador não resistira à graça se todos entre o clero vivessem como deveria. O Bispo Fisher dizia que no tempo de São Paulo não havia cálices de ouro, mas havia padres dourados. Agora, existem muitos cálices de ouro e quase nenhum padre dourado. (SURTZ, 1957b, p. 146).

Um dos temas de relevância na análise de filosofia moral e política em T.M. diz respeito

à justiça que lhe é inerente. Nosso autor chega a desejar apreciar essa condição e diz que daria

a vida por descobri-la, até mesmo em lugares longínquos. Esse desejo para ele tornou-se um

anseio, porque a realidade experimentada por ele não lhe dava a devida condição para tal.50

T.M. critica veementemente a valorização dos bens materiais. Isso fica explícito em seu

discurso sobre o valor do ouro, mais aquilatado do que o próprio homem, tornando a criação

superior à criatura.51 Sua crítica torna-se tenaz, quando diz:

[...] que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por transaccionar dinheiro ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer nada ou em actividade supérflua [...]. (MORVS, 2006, p. 665).52

Como já fora dito anteriormente, a conduta do governante recai para a população. Daí a

ênfase para uma postura coerente e justa para quem governa. T.M. toma esse direcionamento,

50 Para Logan (1983, p.51) “A política jurídica inglesa não pode ser justificada por princípios morais ou religiosos e também não pode ser justificada nas vantagens que deveria gerar (não se justifica nem pela religião, nem pela moral, tampouco pelos resultados).” O próprio Estado Inglês permitiu que a doutrina cristã se rebaixasse a seus caprichos e a tirania ganhasse o seu indevido espaço. 51 LAT154/ING155/FRA509. 52 LAT242/ING243/FRA622.

Page 32: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

31

visto que a população, igualmente, apresenta vícios, fraquezas e se mostra sujeita a delitos.

Como o nosso autor mesmo expressa, quando no prefácio questiona se vale a pena se

empenhar em publicar a Utopia diante da postura dos seus concidadãos. A instabilidade da

conduta dos homens é preocupante para o nosso autor. Observa que essa condição se dá pela

ignorância das letras; pela rejeição do que é novo; pelo apego ao que lhes agrada; e pela não

aceitação a algo diferente. A instabilidade é tanta que T.M. diz:

Entretanto, para dizer a verdade, nem eu próprio ainda decidi bem comigo mesmo se irei por fim empreender a publicação. Na realidade, tantos são os gostos humanos, tão remissos os intelectos de alguns, tão ingratos os sentimentos, tão irracionais os juízos, que me parece bastante mais cordato pôr-me do lado dos que vivem despreocupados e satisfeitos, dão largas à sua natureza, sem se matarem com cuidados de publicar algo que pudesse ser de utilidade ou de recreio para outros, que ou desdenham ou são mal agradecidos. Há muitos que ignoram as letras, muitos que as menosprezam. Um bárbaro rejeita como difícil tudo aquilo que não é completamente bárbaro. Os presumidos de sábios menosprezam como trivial tudo o que não cintila com palavras fora de uso. Alguns apenas gostam de velharias, à maior parte só lhes agrada o que é deles. Este é tão carrancudo que não admite um gracejo, aquele é tão insípido que não suporta uma ironia; tão entupido têm alguns o nariz que qualquer odor lhes causa receio, como teme a água aquele que foi mordido por um cão raivoso; tão instáveis são outros que aprovam uma coisa, se estão sentados, e outra, se estão de pé. (MORVS, 2006, p. 383).53

A crítica moreana decorre, igualmente, da ociosidade, que se percebe claramente contra

aqueles que optam por esse modelo de vida. De acordo com o nosso autor, é um prejuízo

social, um desgaste político e um ônus para o país em que poucos produzem o que muitos

necessitam.

T.M. denomina esses homens de “parasitas”, porque sobrevivem do esforço alheio, da

má conduta de se fazerem vítimas do seu próprio delito. Faz uma crítica àqueles que se

apoderam da boa vontade dos que trabalham e determinam a vida deles a partir de sua própria

preguiça. Além de uma contundente crítica civil, tece igualmente um comentário aos que, na

Igreja, se servem dessa condição: “E quem poderá contar a multidão de sacerdotes e de

religiosos (tal nome lhes dão) que a isso acresce?” (MORVS, 2006, p. 507).54

Direciona sua crítica aos abastados, os grandes proprietários de terras que garantem sua

vida sobre as costas dos trabalhadores, daqueles que derramam o suor para manter o fausto de

53 LAT036/ING037/FRA353. 54 LAT128/ING129/FRA473.

Page 33: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

32

seus dominadores. T.M. faz uma crítica a esse modelo social, oneroso para os desfavorecidos

e privilegiados para os que detêm o poder. E conclui: “Com isso descobrir-se-á que são menos

do que se pensara aqueles cujo trabalho produz todos os bens de que os mortais se servem.”

(MORVS, 2006, p. 507).55

O tecido social vivido por T.M. é de esperteza de quem toma o poder às mãos, em

detrimento dos que mantinham a nobreza e a realeza como fardo socioeconômico. A sua

perspectiva utopiana de uma nova civilização não integra em seu interior essa condição

nefasta e nem admite uma postura de parasitismo de nenhum de seus habitantes. Assim, ele

acrescenta: “observe-se agora entre todos estes, quão tão poucos desempenham profissões

indispensáveis.” (MORVS, 2006, p. 507).56

1.4 A questão social da moralidade

Uma vez que a Utopia é uma obra de restauração social, T.M. tenta construí-la à

imagem dos valores cristãos. Soma, aos valores e critérios racionais, aqueles inerentes a

Cristo. Por isso, ele propõe uma interpretação mais fiel possível aos preceitos cristãos, haja

vista que foram muitos os que, distorcendo a mensagem cristã, acabaram por “permitir os

homens a se sentirem mais seguros nas suas maldades” (SURTZ, 1957a, p. 177). Isso se

conceitua, na perspectiva moreana, como sinal de hipocrisia social.

Há de se obter o ajustamento das perversões, tudo no molde das palavras de Cristo, pois

somente assim se obtém a garantia de uma sociedade purificada da maldade, pelo esforço e

pela ascese espiritual. Morvs (2006, p. 473)57 assim prescreve:

[...] quando os homens só a grande custo conseguem adequar os seus procedimentos à norma de Cristo, ajustam eles a sua doutrina aos comportamentos, como se ajusta uma régua de chumbo, para assim, ao menos de algum modo, ficarem nas proximidades.

T.M. faz essa reflexão em vista do que reconhece de seu contexto histórico-político.

Para ele, segundo Surtz (1957a), os poderosos não medem sua devoção religiosa pela regra de

Cristo, mas pela sua própria predileção emocional. Aqui ele indica um ensinamento que vai

de encontro ao governo corrupto, ilícito, e diz que, para esses governantes, “viver

55 LAT128/ING129/FRA473. 56 LAT128/ING129/FRA473. 57 LAT098/ING099/FRA434.

Page 34: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

33

sobriamente, castamente ou com complacência, é demasiadamente árduo e difícil.” (SURTZ

1957a, p. 178).58

Na perspectiva de Baker-Smith (1991, p. 44), T.M.59 não possuía simpatia para com os

mitos predominantes de então, envolvendo honra e cavalheirismo. O ideal de cavalheirismo

estava se tornando um ideal cada vez mais literário, preocupado mais com brincadeiras de

guerra do que com as verdadeiras condições de um campo de batalha. Ou seja, T.M. tece uma

crítica aos ritos, sinais e simbolismos quando estes assumem a pretensão de essenciais à fé

estabelecida no sacrifício e na memória daquele que foi ao extremo da dor e doação. Segundo

Baker-Smith (1991, p. 44), a sociedade estava “no caminho rumo à esclerose institucional, ou

seja, o parecer estava se tornando mais importante do que o ser”.60

Para Baker-Smith (1991), T.M. foi o primeiro a destacar o “elemento social da

moralidade”. Isso é perceptível quando Rafael Hitlodeu conversa com o Cardeal e propõe

uma análise sobre a criminalidade da época. Para Rafael, as injustiças sociais são a fonte das

posturas imorais da população, graças à falta de direcionamento moral dos governantes e da

nobreza. Assim, é dada uma conotação coletiva do crime, ao invés de uma perspectiva

individual.

Na pessoa de Raphael, T.M. reconhece o elemento social na moralidade, e a sua

proposta na disputa com o Cardeal Morton tem como preocupação principal o espírito de

igualdade que estaria muito presente na sua prática como juiz e chanceler.

Segundo Baker-Smith (1991, p. 105), o princípio da moralidade se mantém intrínseco

ao da igualdade, que “representava para TM a liberdade de moderar a letra da lei à luz da

consciência”. A grande questão da reforma proposta por T.M. consiste numa mudança que

teria que ser tanto moral, modificando o ser, a individualidade; como política, mudando o

coletivo, o social.61 Um traço da filosofia moral em T.M. é o trecho seguinte, onde se lê:

58 A crítica que se faz é que as paixões e os vícios dos que governavam estavam acima dos valores cristãos e as verdades da fé sucumbiam diante dos interesses pessoais e obscenos. Erasmo de Roterdã também tece uma crítica a respeito, e desde suas primeiras publicações era radicalmente contra o absurdo das pessoas que tentavam dobrar a moralidade de Cristo para a vida dos homens e não o inverso. (SURTZ 1957a p.178) 59 Como também Erasmus. 60 Ou talvez o “parecer” só fosse possível através do “ter”, pois “tendo” se parece “ser”, assim se antecipa a dualidade que vivemos hoje em que questionamos o “ter” do consumismo predominando sobre o “ser”. 61 Na análise de Baker-Smith (1991, p.216): “A natureza humana não pode ser mudada sem uma reforma das instituições, mas instituições não podem ser reformadas até que a natureza humana mude”. Isso serve de base para uma reflexão feita posteriormente pela revolução social feita por Durkheim e Weber, que admitiam a

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34

Em verdade, quando consentis que se dê uma educação má e que o comportamento moral se degrade desde tenra idade, para o punirdes apenas em momento terminal, quando os adultos revelam os vícios que eram de prever desde a infância, que estais a fazer, dizei-me, por favor, senão a criar ladrões e vós mesmos a aplicar castigos? (MORVS, 2006, p. 431).62

Uma condição inalienável de todo homem é o amparo legítimo de sua formação

integral. Somente a ação do Estado eficaz pode garantir ao homem acesso aos bens de direito,

como frisa T.M. quanto à educação. Destarte, T.M. enfatiza:

Na realidade, condenam o ladrão a castigos pesados e até horrendos quando seria preferível providenciar a que houvesse algum modo de subsistência, de forma que ninguém tivesse de enfrentar, primeiro, a cruel necessidade de ter de roubar e, seguidamente, a inevitabilidade de perder a vida. (MORVS, 2006, p. 417). 63

Nesse trecho, T.M. dá ênfase à sua perspectiva política e moral de sua sociedade

nascente. A garantia de sobrevivência e de manutenção da vida é de direito no Estado,

instituição legítima de amparo ao homem.

Na perspectiva de Surtz (1957a, p. 176), essa observação de T.M. é rica porque permite

uma compreensão sobre as causas dos problemas sociais que estão no campo da moralidade:

A avareza e a ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois, o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis. Dessa forma, a ganância e maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da abundância da natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus.

Essa crítica sobre o elemento social da moralidade está presente em toda a tradição

filosófica, nos discursos posteriores a T.M.

A hipocrisia social também se manifesta pela desigualdade. Baker-Smith (1991) destaca

que o cerne do argumento de T.M., na pessoa de Raphael, é que não pode haver uma

sociedade justa onde exista a propriedade privada. Isto se justifica porque alguns ganharão

vantagens que assegurarão posteriormente seus próprios interesses, e toda a concepção de

comunidade será subvertida. Desse modo, uma vez que a propriedade privada é admitida,

validade da instituição sobre o sujeito e do sujeito sobre as instituições. Desse modo, uma análise moderna das questões sociais que preocupavam esses cientistas sociais expressava uma herança sobre o destino dos homens. 62 LAT066/ING067/FRA394. 63 LAT054/ING055/FRA378/POR417.

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35

todas as coisas serão medidas em termos de valor monetário, e a justiça será distorcida para

gratificar o pequeno número de cidadãos ricos.64

A desigualdade é tratada como consequência do paradoxo do dinheiro, que foi

desenvolvido para assegurar acesso às necessidades da vida, mas que na verdade funcionou

para impedir que a maioria as obtivesse. (BAKER-SMITH, 1991). T.M. é muito claro quando

expõe na Utopia o seguinte pensamento: “Seria tão fácil arranjar alimento, se o afortunado

dinheiro, engenhosamente inventado para abrir as portas ao alimento, não fosse ele a barrar-

nos o caminho para ele!” (MORVS, 2006, p. 669).65 No estado de natureza, todo mundo

assegura o uso das dádivas da natureza de acordo com suas necessidades e ninguém

reclamava propriedade. Foi somente com o desenvolvimento de organizações sociais que o

sistema de direitos de propriedade foi formulado na lei. (BAKER-SMITH, 1991).

A postura de T.M. quanto à desigualdade é a seguinte:

É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar totalmente a propriedade privada. Enquanto ela subsistir, estou convencido de que há de continuar sempre a haver, entre grandíssima parte da humanidade e entre a melhor parte dela, o fardo angustiante e inelutável da pobreza e da miséria. (MORVS, 2006, p. 479).66

Morvs (2006, p. 477)67 continua defendendo o seu argumento, consciente de que o

grande empecilho para a igualdade entre os homens é que se “[...] em toda parte em que há

propriedade privada, em que todos medem tudo por dinheiro, dificilmente alguma vez aí se

poderá chegar a promover a justiça de Estado ou a prosperidade”. E ainda acrescenta,

afirmando que: “[...] não há prosperidade quando tudo é repartido entre um pequeno número

de indivíduos, que com nada se sentem saciados, enquanto os outros são condenados à

miséria”.

64 Na Política de Aristóteles, o homem, quando perfeito, é a melhor das criaturas, mas, se ele estiver isolado da lei e da justiça, ele é a pior de todas. (LOGAN 1983, p.153). Para Platão, governantes egoístas predariam sobre o resto da comunidade, o que os obriga a terem tudo em comum. T.M. compartilha a mesma visão pessimista da natureza humana que Aristóteles e Platão, e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta que é um dos motivos do comunismo utopiano ser universal. Para Logan (1983, p. 209), o argumento platônico para a inibição do egoísmo de uma classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de comunidade da propriedade, a fim de assegurar justiça distributiva. T.M. afirma que com a igualdade de distribuição todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto, onde houver propriedade privada, haverá o desmando. 65 LAT244/ING245/FRA626. 66 LAT102/ING103/FRA (texto não encontrado no Francês). 67 LAT100/ING101/FRA437.

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36

O interesse próprio se sobrepõe aos interesses coletivos. T.M. o afirma claramente:

“quando o homem se prevalece de certos títulos para avocar a si tudo o que pode, seja qual for

a quantidade de bens, e não reparte o que cabe aos outros, deixando-os na miséria” (MORVS,

2006, p. 477).68

Logan (1991, p. 133) acrescenta que, na perspectiva de T.M., “uma das grandes

patologias sociais é o luxo e o desperdício, pois o excesso pode ser tão danoso quanto a

deficiência”.

68 LAT100/ING101/FRA438.

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37

2 A FUNDAMENTAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA

UTOPIANA

Para uma fundamentação da filosofia moral e política, na perspectiva moreana, torna-se

imperativo perceber os contrastes existentes na sociedade europeia de seu tempo. T.M.

reconhece a fragilidade institucional e entende a necessidade de uma reforma, que deve

ocorrer nos moldes da condição divina de emancipação humana, nos critérios da cristandade.

Por isso, para Surtz (1957a, p. 169), de acordo com Guilherme Budé, a Utopia pagã, ao

contrário do ocidente cristão, tem se apegado tenazmente a três instituições divinas: primeiro,

a absoluta igualdade entre todos os cidadãos; segundo, um amor inabalável à paz e à quietude;

e terceiro, um desprezo por ouro e prata. Estas três instituições foram direcionadas contra os

males gritantes da Europa que lhe era coetânea. A primeira, contra a enorme desigualdade

entre ricos e pobres, nobres e comuns e entre pessoas cristãs; a segunda, contra as guerras

ininterruptas dos príncipes cristãos; e a terceira, contra a ganância por riqueza que estava

corrompendo os países cristãos.

Para Logan (1983, p. 134), a intenção de T.M. é demonstrar que existem meios para

“facilitar o alcançar da felicidade pelos seus cidadãos, [e que este] deve ser uma organização

política que possibilita a todo tipo de homem estar o seu melhor e viver felizmente.” Ou seja,

a nobreza da vida no desfrute da reputação, do prazer, erradicando toda existência de dor e do

mal. Baker-Smith (1991, p. 203) acrescenta que é uma tentativa de concentrar os homens no

estabelecimento do bem comum, constituindo uma das características próprias dos utopianos.

Para Logan (1983), T.M. assegura, em todos os aspectos da constituição utopiana,

conclusões da sua filosofia moral, pois T.M. inaugura uma nova forma de pensar, dando uma

explicação científica para as causas de pobreza, crime e injustiça. Para ele, as causas desses

males não são inerentes ao ser, mas podem ser encontradas nas condições materiais, na

apropriação da propriedade, como valor privativo, quando deve ter um caráter público.

Inauguram-se então uma jurisdição moral de sociabilidade e os critérios práticos de ordem

moral.

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38

Desse modo, Logan (1983, p. 51) diz que: “a política jurídica inglesa não pode ser

justificada por princípios morais ou religiosos e nem pelos resultados.” Pode-se dizer que

princípios, morais e religiosos é que dão resultados, é que justificam uma política jurídica.

Assim, a proposta jurídica moral é da vivência prática dos critérios que T.M. determina como

válidos para a comunidade utopiana. Ele comenta que: “a forma mais prática, ou como se

diria na atualidade, científica de se curar sintomas sociais como crime ou guerra é assumir as

ações realísticas necessárias para aliviar ou eliminar as suas causas”. (LOGAN, 1983, p. 57).

Na análise do tema em evidência, para Logan (1983, p. 55), Raphael encontra as causas

básicas do roubo (criminalidade), não no mau caráter dos ladrões (criminosos)

individualmente, mas nos defeitos do sistema social. A Utopia mostra claramente que não se

pode trabalhar com a parte sintomática dos problemas sociais sem enfrentar as causas; as

verdadeiras soluções assumem a forma de mudanças legais e institucionais designadas a

eliminar as causas. Compreende-se, portanto, que questões delituosas não podem ser

enfatizadas na ordem individual. Problemas sociais são decorrentes de injustiças sociais e

podem ser percebidos através de uma análise racional. Todo o Livro I da Utopia mostra

claramente as origens dos graves problemas sociais que acometem a Europa.

Para Logan (1983, p. 54), a proposta de todo Livro I revela a origem dos graves

problemas que acometem a Europa do Séc. XVI e que, por sua vez, não devem ser vistos de

forma isolada, mas dentro de um contexto maior, mais social.

Baker-Smith (1991, p. 105) esclarece que a característica dessa proposta se encontra na

resposta de Raphael ao advogado no caso do Cardeal Morton. Segundo ele, é inovadora

porque reconhece o elemento social na moralidade. Nesse contexto, o crime passa a ser visto

também no âmbito social e não se resume apenas ao pecado individual. A proposta de

Raphael na disputa com o Cardeal Morton tem como preocupação primordial o espírito de

igualdade, tema marcadamente presente na prática de TM como juiz e chanceler. Para T.M., a

igualdade representava a liberdade de moderar a letra da lei à luz da consciência e

circunstância. Há até uma cláusula na Lei canônica, que permite acesso comum a bens

essenciais em condições de grande necessidade. Por esse motivo, fome ou desespero podem

até justificar o roubo.

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39

2.1 A Razão

A compreensão de uma fundamentação moral e política propõe, igualmente, o

entendimento de seu embasamento, ou seja, de seu suporte reflexivo. Logan (1983, p. 04)

explica que a Utopia pode ser compreendida como “princípios que podem ser aplicados na

prática política”.

Na análise de Surtz (1957a, p. 06), “a Utopia é uma cidade filosófica. Uma criação da

razão humana sem a ajuda da revelação divina”. E os utopianos acreditam na possibilidade da

revelação divina, apesar de terem conquistado a cidade perfeita somente através da razão. A

distinção entre a razão e a fé não é tão gratuita quanto se pressupõe, pois T.M. deixa clara a

distinção explícita entre a razão natural e a religião revelada. Os utopianos acreditam que, a

não ser que uma religião seja mandada do céu e possa inspirar no homem uma opinião mais

sacrossanta, não há nenhuma que seja superior às buscadas pela razão humana. (SURTZ,

1957a).

Baker-Smith (2006) afirma que a temática sobre a formação de uma civilização racional

é institucional. A Utopia incorpora a consciência de que na política princípios gerais

normalmente operam através de estruturas institucionais específicas, e as recomendações

reformadoras de TM são dirigidas a uma mudança institucional. Encontra-se, nesse sentido, a

compreensão de que uma sociedade construída pela razão deve incorporar em suas

instituições critérios morais e políticos no mesmo nível da dimensão racional.

Desse modo, a prescrição de uma sociedade moral e política, segundo T.M., perpassa

pela harmonia não só do que é prudente e moral, mas, também, do que é prudente e cristão,

cujas instituições devem ser tanto prudentes quanto santas. Somente pela razão, é que os

utopianos são levados a princípios éticos, e a Utopia é construída extrapolando estes mesmos

princípios para o âmbito da política. Em alguns aspectos importantes, a comunidade

puramente racional de T.M. age como se fosse uma comunidade perfeitamente cristã.

A constituição de uma comunidade racional, segundo T.M., somente é aceitável quando

segue os critérios dos preceitos cristãos, que encontram sentido na práxis social, preceitos

esses vivenciados pelos utopianos em sua magnitude e excelência.

Page 41: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

40

2.2 A natureza, a base da moral utopiana

A análise da moral utopiana tem início, igualmente, na herança grega de natureza

(physis). O termo é utilizado na Utopia para dar ao termo crucial “natureza” uma base firme

na vida dos sentidos, para que possa ser estendida para uma esfera abrangente de atividades

humanas, do biológico ao teológico.69

Permite à filosofia do prazer incluir não só serviço aos outros, mas até sacrifício, já que

estes trazem os prazeres elevados de benevolência moral e esperança de uma recompensa

após a morte. (BAKER-SMITH, 1991).

De acordo com Baker-Smith (1991), o ideal de viver de acordo com a natureza é a

essência da moralidade utopiana, um amálgama deste esquema ético. T.M. apresenta ao leitor

uma filosofia do prazer70, com todas as ambiguidades que isso possa criar, e destaca a

verdadeira austeridade que governa a vida dos utopianos. Estes possuem também uma ideia

central de agir ou escolher de acordo com a natureza71, junto com outra obrigação importante,

a de assistir outros por camaradagem natural.

T.M. designa essa condição de vida de prazer de “apetência natural”, aquela que permite

tornar viável tudo o que é agradável, no usufruto dos sentidos e na reta razão. Nas palavras de

T.M., apetência natural “designa por prazer todo o movimento ou todo o estado de corpo, ou

de alma nos quais o homem, guiado pela natureza, se delicia em viver”. (MORVS 2006, p.

551).72 A “apetência natural”, como tudo o que é agradável por natureza, não se busca apenas

pelos sentidos, mas também pela reta razão.

Para os utopianos, segundo Surtz (1957a, p. 20), a natureza é atraída ao prazer e à

virtude. E as argumentações são as seguintes:

A virtude é a vida vivida de acordo com a natureza. Mas, a vida vivida de acordo com a natureza é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão. Portanto, a virtude é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão. Mas, a razão nos aconselha e nos incita a levar uma vida o mais livre de cuidados e o mais cheio de alegria quanto possível, e nos mostrar solícitos em vista da solidariedade que surge da natureza em obter o mesmo para

69 T.M. proporciona aos utopianos uma crença estoica na solidariedade humana e uma crença platonista numa divindade beneficente. 70 De cunho epicurista. 71 Herdado dos estoicos. 72 LAT166/ING167/FRA521.

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todos os outros seres humanos. Portanto, a virtude aconselha e nos incita a levar uma vida o mais livre de cuidados e o mais feliz possível.

Segundo T.M., os habitantes da Utopia definem a virtude como sendo viver segundo a

natureza, que é o mesmo que dizer que o homem foi ordenado por Deus a viver de acordo

com a forma do qual foi criado. Deixa-se conduzir pela natureza todo aquele que no desejar

ou no repudiar as coisas obedece à razão. A razão, por seu lado, antes de mais e em primeiro

lugar, inflama os homens ao amor e à veneração da divina majestade, e proporciona ao

homem a aptidão para a felicidade. Para T.M., a natureza convida e impulsiona o homem a

levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com o máximo de satisfação, e, por afinidade de

natureza, a prestar assistência aos outros para alcançarem o mesmo. (MORVS, 2006).

Para Surtz (1957a, p. 37), T.M. afirma que todo prazer é, portanto, bom ou mal por

natureza e permanecerá assim para sempre. E observa que os utopianos chegam a essa

concepção mediante a aplicação de três normas negativas. Um objeto só pode ser prazeroso

por natureza se não: envolver a perda de um prazer maior; ter como consequência dor ou

arrependimento a terceiro: causar dor e sofrimento ao próximo. Dos três, os primeiros dois

são de importância especial e valor para o indivíduo, e o terceiro, para a sociedade.

Dessa forma, os utopianos determinam que, ou em parte ou no todo, a felicidade do

homem reside no prazer. A felicidade, para a sociedade utopiana, reside naquele prazer que é

bom e honesto por natureza, tornando-se praticamente uma norma a ser vivida, a de buscar

prazeres bons e honestos para se alcançar a felicidade. Prazer é considerado por eles como

toda noção ou estado do corpo ou mente em que o homem tenha naturalmente deleite.

(SURTZ, 1957a).

Nas palavras de T.M., os utopianos consideram que a felicidade não se situa num prazer

qualquer, mas apenas no prazer bom e honesto. Todo prazer efetivamente se direciona para

esta felicidade como sumo bem. É através desta natureza, que na Utopia se considera virtuoso

seguir seus ditames, que se chega à meta final, que é a felicidade. (MORVS, 2006).

Para Surtz (1957a), os homens devem respeitar a natureza como a sua mãe, e jamais

recusar ou desprezar uma dádiva que ela colocou no mundo para o seu uso e deleite. Os

utopianos são insistentes a respeito do natural, e desprezar a beleza não é natural, como

também usar meios artificiais para aumentá-la. Os utopianos não se servem de meios

artificiais para expressar a beleza contida em cada homem. Como orienta T.M.:

Page 43: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

42

[...] já que a natureza predispõe todos os mortais a prestarem-se apoio mútuo a fim de obtermos uma vida de maior satisfação (coisa que certamente ela faz com boas razões, pois, por mais elevado que alguém se encontre na condição humana, para sozinho atrair a si o cuidado da natureza, que a todos sem excepção presta os seus favores, e a todos os que são da mesma espécie ela abraça solidariamente) é de admirar que ela nos mande uma e muitas vezes tomar cuidado em não procurarmos tanto as nossas vantagens que causemos prejuízos aos outros. (MORVS, 2006, p. 547).73

Para a vida em Utopia é preciso compreender, segundo Surtz (1957a, p. 152), que a

natureza convida e impulsiona o homem a levar uma vida com o mínimo de ansiedade e com

o máximo de satisfação, ou seja, afinidade de natureza. Ela convida a prestar assistência aos

outros para alcançarem o mesmo; nunca, efetivamente, terá havido seguidor tão severo e tão

estrito da virtude e inimigo do prazer que aponte aos outros trabalhos, vigílias e austeridades,

sem ao mesmo tempo ordenar que se dediquem a aliviar a pobreza e os sofrimentos dos

outros.

A natureza permite ao homem o exercício das virtudes que conduzem a sociedade à

vivência do modelo da civilização da cristandade.

A vivência de uma sociedade moralmente efetivada se instaura, segundo Surtz (1957a),

na visão dos utopianos sobre ouro, prata e pedras preciosas. Está sempre ligada à natureza.

Cada utopiano valoriza coisas preciosas não mais do que a natureza que elas merecem. Por

isso, existe o desprezo ao ouro que possui pouca utilidade, em comparação ao ferro, que é tão

fundamental quanto o fogo e a água. A validade do objeto encontra sentido pragmático,

viabilidade utilitarista, cabendo apenas emprego social.

2.3 O prazer, a felicidade e a virtude

A própria vida na Utopia já caracteriza a vigência do prazer. O utopiano pratica

vivamente o hedonismo, sendo essa uma das características sociais. Daí, Surtz (1957a) diz

que a sociedade utopiana, enquanto sistema comunista, está intimamente ligada a uma

filosofia, e intrinsecamente relacionada ao hedonismo utopiano.

De acordo com T.M., todas as ações conduzem ao prazer, e considera que todas as

nossas ações, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e

felicidade. (MORVS, 2006)

73 LAT162/ING163/FRA517.

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Para Surtz (1957a), os utopianos consideram o prazer como toda noção ou estado do

corpo ou mente, em que o homem tenha naturalmente deleite. Mas deve-se atentar para o fato

de que muitas coisas que, embora sejam consideradas prazerosas, pela sua própria natureza,

não contêm prazer algum.

Na perspectiva de uma sociedade hedonista, pautada na vivência do prazer, Surtz

(1957a) afirma que um dos grandes obstáculos para a aceitação da interpretação humanista da

Utopia tem sido a filosofia do prazer endossada pelos utopianos. Eles parecem

excessivamente inclinados à opinião que defende o prazer como a principal parte responsável

pela felicidade do homem. Entretanto, embora a parte que trata dos verdadeiros prazeres seja

a menos organizada e não siga uma sequência lógica, aqueles são divididos em prazeres do

corpo e da alma.

De acordo com Surtz (1957a), T.M. demonstra habilidade retórica acima de tudo no seu

uso do termo prazer (Uoluptas). Uoluptas no senso literal da palavra sempre tem transmitido

a ideia de gratificação do corpo ou dos sentidos. Na Utopia, uoluptas é atribuído a um tipo de

prazer muito elevado, e é definido como todo movimento e estado do corpo ou da mente em

que o homem tenha naturalmente deleite.

Surtz (1957a) afirma que T.M. usa, na obra, vários sinônimos para uoluptas, como:

iucunditas (pleasantness) delectatio (delight), laetitia (joyfulness), suauitas (sweetness) e até

commoda (interesses). Tanto fazendo o seu prazer (uoluptas) abraçar os prazeres do corpo e

da alma, e identificando-o com seus sinônimos indiscriminadamente, T.M. astutamente torna

mais fácil corroborar que prazer é a essência da felicidade humana. Por isso, na atribuição do

termo prazer, para os utopianos, só pode haver ou prazer ou dor. Não há nenhum estado

neutro de sensação intermediária entre prazer e dor, ou uma coisa ou outra. A natureza do

prazer como bom ou mal é imutável.

É possível pensar numa deontologia do prazer, adotando, como agir racionalmente, o

agir prazerosamente? De acordo com Surtz (1957a), é próprio dos homens agirem movidos

pelo prazer, já que este deve satisfazer suas necessidades. E cultivar o prazer significa cumprir

as regras da natureza.

Para Logan (1983), o governo verdadeiro seria aquele que buscava os verdadeiros

prazeres, no estabelecimento de que as leis educacionais, por exemplo, deveriam contemplar

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nas crianças o repúdio aos falsos prazeres e o acesso ao verdadeiro saber, adquirido por bons

livros.

O projeto educacional dos utopianos inclui o exercício dos prazeres, em que um menor

não seja obstáculo para alcançar uma maior, e que não haja arrependimento ou dor como

consequência. Da mesma forma, nenhum utopiano deve comprometer o outro ao perseguir um

prazer que é almejado.

Na percepção de Logan (1983, p. 153): “deve se dar ao homem uma educação correta

para que esses instintos o conduzam a virtude, mas se educá-lo mau ele acaba no outro

extremo”. A satisfação dos desejos é algo inerente ao ser e pode ocupá-lo pela vida inteira.

Percebe-se que a aplicabilidade do prazer encontra-se nos âmbitos individual e social,

porque é própria da civilização utopiana a vivência deste na dimensão da alteridade. A

alteridade social é respeitada nos três conceitos anteriormente citados, e este princípio

caracteriza um preceito social de que o prazer deve ser obtido “sem erro ou dano a outro ser

humano.” (SURTZ, 1957a, p. 30).

T.M. exemplifica a alteridade dos utopienses que agradecem à mãe natureza pelo prazer

de dar aos filhos o comer, o beber, o coçar e o esfregar. Tais ações derivam dos favores da sua

própria natureza. A isso pode ser acrescido o conselho moreano que diz: “aquilo que não pode

ser transformado em benefícios, que tenha os seus malefícios reduzidos o máximo possível.”

(LOGAN, 1983, p. 116).

Para Morvs (2006, p. 549)74, não pode haver na comunidade utopiana nenhum benefício

particular que entre em choque com o estado e a condição da maioria:

Cuidar do interesse de cada um, sem violar essa lei, é sensatez; cuidar, além disso, do interesse público é próprio da solidariedade. Mas apressar-se a impedir o prazer alheio para garantir o seu é, em contrapartida, uma iniquidade; pelo contrário, privar-se a si mesmo de alguma coisa, para juntá-la à de outros é, em fim de contas, prática de humanidade e de benignidade, que, nunca como nesse gesto, tanto compensa quanto dispensa. De fato, há a compensação da reciprocidade; além disso, a própria consciência de ter agido bem e a recordação do afeto e do bem-querer daqueles a quem se prestou um benefício trazem ao espírito maior prazer do que teria o corpo com aquilo que lhe foi retirado. Enfim (e aqui a religião facilmente encontrará adesão em espíritos de bom assentimento), Deus compensa com gozo imenso, que nunca terá fim, a troca de um prazer exíguo e sem duração.

74 LAT164/ING165/FRA518.

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45

É desta maneira que, depois de terem analisado cuidadosamente e sopesado a matéria, consideram que todas as nossas ações, e nelas as próprias virtudes, têm no ponto de mira o prazer como seu objetivo e felicidade.

A condição de uma civilização pautada na racionalidade admite-se quando os interesses

entre os homens devem ocorrer para o bem comum. Na perspectiva de T.M., o homem que

despreza os prazeres corporais em favor de interesses alheios, e com vistas a receber maior

prazer de Deus em recompensa as suas dores, age racionalmente e tudo está bem. Mas aquele

que se maltrata sem beneficiar a ninguém é considerado um louco. (SURTZ, 1957a).

A deontologia do prazer para os utopianos passa a ser mais rigorosa do que qualquer

outro modelo. De acordo com as observações de Surtz (1957a), os resultados práticos desses

padrões de moralidade estabelecidos para os devotos do prazer acabam se tornando mais

rigorosos e elevados do que os estabelecidos pelos cristãos. Assim, a sociedade utopiana

apresenta-se por um lado austera, mas por outro hedonista. Veremos adiante como essa

concepção parece ser uma tradição reconhecida como forma de sociabilidade.

Como devotos da razão e do senso comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e

valorizam os prazeres da alma como os mais importantes. Tais podem ser divididos em três

classes:

A primeira classe origina-se do exercício autogratificante das virtudes; a segunda constitui as recompensas da virtude, a serena consciência da nossa própria excelência moral no presente, a doce memória da nossa conduta virtuosa no passado e a inabalável esperança de alegria no futuro, nestas estando inclusas as recompensas prazerosas de atos de sacrifício, a consciência de um ato bom, a lembrança da satisfação dos beneficiados e a compensação na forma de felicidade abundante na eternidade; e a terceira classe de prazeres da alma nasce da contemplação da verdade.75 (SURTZ, 1957a, p. 62).

Para Surtz (1957a, p. 32), a relação entre prazer e virtude é decorrente da faculdade

racional pela qual um homem escolhe e evita prazeres e dores, que é a maior das suas

virtudes. É também a fonte de todas as demais virtudes, pois ensina que não podemos levar

75 Da mesma forma que Platão, os utopianos desprezam os falsos prazeres de riqueza e honra em comparação com o deleite de conhecer a verdade e a realidade. (SURTZ, 1957). Reconhecendo que o hedonismo apresenta-se como uma peculiaridade para a sociedade utopiana, é imperativo perceber como o prazer pode direcionar toda uma comunidade. Dessa forma, é preciso reconhecer a herança que T.M. admite ter recebido da tradição filosófica.

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uma vida de prazeres que não seja também uma vida de prudência, honra e justiça. E também

não levar uma vida de prudência, honra e justiça que não seja também uma vida de prazer. A

maior parte de um prazer mental surge do exercício da virtude e consciência de uma boa vida.

O sacrifício de um prazer a fim de beneficiar o seu vizinho é mais que recompensado por uma

recompensa maior e tripla: “a aprovação da nossa consciência, a lembrança da gratidão de

quem recebe o favor e a firme esperança de uma recompensa futura”.76

Para Surtz (1957a), na perspectiva de T.M são três os prazeres do corpo: dois

relacionados à saúde e o terceiro a um deleite que inunda os sentidos com uma doçura

facilmente perceptível.

Quanto aos prazeres relacionados à saúde, o primeiro ocorre na restauração do corpo,

através do alimento e da bebida. O segundo surge da desincumbência destas coisas (fezes,

urina ou sêmen). Tal prazer é o prazer sentido na excreção ou na relação sexual, ou no alívio

de qualquer coceira ao esfregar ou coçar.

Na primeira variedade de prazer sensorial, damos ao corpo o que ele anseia; e na

segunda, aliviamos o corpo daquilo que o incomoda77. A terceira variedade nem satisfaz um

desejo e nem remove uma dor, mas, no entanto, afeta nossos sentidos com um movimento

oculto, porém, bem definido, atraindo a nossa atenção para o assunto. Um exemplo é a

música. Inclusos nesta terceira categoria estão os prazeres recebidos pelos sentidos.

A respeito da felicidade, os utopianos constroem seu sistema ético reunindo razão e

religião. Eles não entendem a possibilidade de separação de Deus, ou a sua religiosidade com

a vida em sua prática diária. Na perspectiva de Baker-Smith (1991), a teologia utopiana

propõe certas crenças mínimas que se relacionam à alma individual e a seu destino post

76 Na perspectiva de Logan (1983, p.170), é relevante perceber que aí finalmente TM deriva de Platão e Aristóteles a ideia importante de que os vários prazeres podem ser classificados de acordo com a sua importância, pois, na comunidade utopiana, há também uma hierarquia dos valores. Sobre os verdadeiros prazeres e a melhor vida, Platão e Aristóteles compartilham com os utopianos a divisão de prazeres em diversas categorias. A Ética, de Aristóteles, distingue entre os prazeres da mente e a dos sentidos e, como Platão, ele acredita que ambas as formas de prazer são necessárias para a boa vida. A herança utopiana de Platão e Aristóteles é a contemplação filosófica, para eles é o maior dos prazeres. T.M. reconhece que, enquanto em Platão a contemplação filosófica da verdade é o prazer supremo, os utopianos asseguram que a principal parte do prazer mental surge da prática das virtudes e da consciência de uma boa vida. Aristóteles, na sua Ética, afirma que os vários prazeres podem ser hierarquizados de acordo com a dignidade da faculdade a que pertencem. O que se oportuniza em Aristóteles é que se antecipa aos utopianos fazer a distinção entre prazeres naturais e não naturais e também se explica que a doença e os hábitos podem fazer com que as pessoas achem que o não natural é prazeroso. 77 No entendimento dos utopianos aqueles que acreditam que uma vida feliz está focalizada na satisfação da fome, da sede e da coceira, com o alimento, a bebida e a coçação, vivem uma vida miserável.

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47

mortem. Assim, a imortalidade da alma é mantida como uma fundação essencial para a

dignidade humana. Para os utopianos, a crença de Deus tem destinado a alma para a

felicidade, e depois da morte recompensas serão concedidas a feitos virtuosos e castigos serão

impostos para atos vergonhosos. A postura prática da felicidade dos utopianos é de que não só

projetam suas preocupações com a felicidade numa pós-morte, mas pressupõem o íntimo

envolvimento do divino com o humano; isso, por conseguinte, leva à crença de que o mundo é

regido por essa força divina, e não pelo acaso. A sociedade utopiana é a expressão da regência

da fé e da razão, num sistema ético sistemático.

A concepção social de Deus é uma condição de busca da felicidade dos utopianos. Para

eles, o conceito de Deus como o fim último que o humano alcança foi tratado aqui porque é

essencial para a compreensão da ideia utopiana de felicidade.

De acordo com a reflexão de Surtz (1957a), os utopianos discutem virtude e prazer, mas

o ponto principal da disputa é no que consiste a felicidade de um homem, se derivado de uma

única coisa ou de diversas coisas mais. A predisposição utópica é a de que o fim do homem é

a alegria ou beatitude. O ponto em questão aqui é: qual é o objeto dessa felicidade ou

beatitude? Salienta-se que toda essa controvérsia está centralizada e confinada a apenas dois

objetos: virtude e prazer. A escatologia dos utopianos é a perspectiva de que o homem já

alcançou na Terra os elementos para a beatitude, resumo de sua condição terrena.

Vemos isso quando nos deparamos com a própria perspectiva de T.M (2006, p. 585),78

que diz: “Os princípios [da religião] são do tipo seguinte: a alma é imortal e por benevolência

de Deus foi feita para a felicidade; depois desta vida, à virtude e às boas ações estão

destinados prêmios, aos crimes estão destinados castigos”.

Todos os temas em ordem moral podem ser discutidos dentre os utopianos,

[...] mas primária e suprema é a questão sobre a felicidade humana: em que é que se situa, se numa única coisa se em muitas. Ora, quanto a isto, parecem mais propensos do que seria razoável para a corrente que defende o prazer, enquanto procuram definir a felicidade humana no seu todo ou na parte principal. (MORVS, 2006, p. 543).

78 LAT160/ING161/FRA514.

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A busca da felicidade, para os utopianos, está intrinsecamente relacionada com os

preceitos religiosos, porque é neles que todo o conjunto de elementos para alcançá-la está

contido. Como o próprio T.M. explana:

Nunca eles discutem sobre o problema da felicidade sem tirarem alguns princípios da religião e sem os associarem com a filosofia que se serve do raciocínio, pois sem os primeiros consideram que a razão só por si é falha e sem forças para indagar a verdadeira felicidade. (MORVS, 2006, p. 543).79

A Filosofia Moral e Política está presente no pensamento de T.M. quando da busca e

alcance da felicidade, pois isto se relaciona com a prática social do bem. Para ele, os

utopianos acreditam que a felicidade não se refere a um prazer qualquer, “mas apenas ao

prazer bom e honesto. Efetivamente, é para esta felicidade, como sumo bem, que a nossa

natureza é conduzida pela virtude e é a ela que a corrente contrária atribui a felicidade.”

(MORVS, 2006, p. 547).80

Desse modo, de acordo com Surtz (1957a, p. 36), os utopianos afirmam que, ou em

parte ou no todo, a felicidade do homem se encontra no prazer. As características que eles

exigem para o tipo correto de prazer são as seguintes: “A felicidade reside somente naquele

prazer que é bom e honesto por natureza, esta é a norma positiva”.81

Os utopianos mantinham a ordem social mediante a prática da virtude e do prazer. Isso,

eles assumiam por acreditarem que a própria natureza atrai o homem à virtude e ao prazer.

Para eles, segundo Surtz (1957a, p. 20): “A virtude é a vida vivida de acordo com a natureza.

Mas, a vida vivida de acordo com a natureza é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a

razão. Portanto, a virtude é a seleção e rejeição de coisas de acordo com a razão”.

79 LAT158/ING159/FRA513. 80 LAT162/ING163/FRA517. 81 Para Logan (1983), T.M. tem uma referência clássica grega quando lê que na Política de Aristóteles, a felicidade, não importando se os homens a encontram no prazer, na bondade ou em ambas, pertence àqueles que têm cultivado o seu caráter e mente ao máximo e mantido a aquisição de bens externos dentro de limites moderados. Aristóteles expressa mais uma vida de ação virtuosa do que na sua Ética, e tal ação aparenta-se como um componente importante quanto à contemplação filosófica. Aristóteles, na Ética, reforça que uma verdadeira vida feliz é uma vida de bondade vivida na liberdade dos impedimentos e, enquanto na Ética a felicidade perfeita é uma atividade contemplativa, na Política a quantidade de felicidade que cabe a cada indivíduo é igual à quantidade da sua bondade e sabedoria e dos atos bons e sábios que ele efetua. Desse modo, a exemplo da tradição filosófica grega, “a vida de maior prazer que, de acordo com os utopianos é a melhor vida, é, portanto, a vida da virtude.” (LOGAN, 1983, p.174).

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49

Desse modo, a própria natureza possibilita uma vida livre de cuidados, permeada de

alegria, na prática da solidariedade, em que todos vivem a virtude de viver com todos e para

todos. Nas palavras de T.M. se observa:

Importa não ser menos benevolente para si do que para os outros [...]. Efetivamente, quando a natureza nos convida a que sejamos bons para os outros, ela mesma não iria mandar depois que fôssemos cruéis e falhos de clemência para nós próprios. É, pois, dizem eles, uma vida agradável, ou seja, o prazer, que a natureza nos prescreve como fim de todas as nossas atividades; viver segundo este preceito da natureza, tal é a sua definição de virtude. (MORVS, 2006, p. 547).82

Como a sociedade utopiana pautava-se na vivência e exercício da ascese dos valores,

mediante o uso da hierarquia axiológica, Surtz (1957a) orienta que o melhor exercício é o da

virtude e consciência da boa vida. Esta é a verdadeira liberdade e desenvolvimento da alma, e

mesmo buscas intelectuais sempre devem tender a uma maior pureza da consciência e

aquisição da virtude nobre83. A ênfase em boa conduta, ao invés de preocupação intelectual,

como fonte de prazer da alma é característica do caráter e forma de pensar do utopiano.

Há entre os utopianos uma relação entre virtude e prazer. Entretanto, em que consiste

essa relação? A resposta é que a virtude é subordinada ao prazer. Todas as nossas ações,

incluindo as virtudes em si, se referem enfim ao prazer como sua finalidade e alegria. Mas

isso não é uma subordinação no sentido grosseiro. Ao contrário, a principal parte dos prazeres

da mente surge do exercício da virtude e da consciência de uma boa vida. Os utopianos

praticam a virtude porque eles presumem que o prazer está associado à realização de feitos

virtuosos e que uma boa consciência é fonte de gratificação84. Por isso, no ensino e na

instrução85, as palavras de T.M. são incisivas:

82 LAT162/ING163/FRA517 83 Erasmus, no seu Enchiridion, exclamava que o verdadeiro e único prazer (voluptas) é felicidade (gaudium) numa consciência limpa. 84 Na relação entre a vida mais justa e a vida mais prazerosa, os utopianos pensam semelhantemente a Platão em seu livro Leis, em que ele diz: [...] o ensino que recusa a separar o prazeroso do justo ajuda a induzir o homem a viver uma vida justa e sagrada, de forma que qualquer doutrina que negue esta verdade se torna vergonhosa e detestável, pois ninguém consentiria voluntariamente ser induzido a cometer um ato a não ser que envolvesse como consequência mais prazer do que dor. (SURTZ 1957a, p.19). 85 Essas palavras do autor reforçam a ideia de que a educação utopiana, tal como proposta pelos teóricos gregos, “tem uma preocupação tanto pela moral e virtude quanto pelos avanços no aprendizado.” (LOGAN 1983, p.200). Para Surtz (1957a, p.48), T.M., inspirado nos escritos de Pico della Mirandola, afirma que o aprendizado e a virtude são as coisas que se consideram e possuem mais valor do que a nobreza dos antepassados. E que “a honra é a recompensa da virtude, e segue a virtude como uma sombra segue um corpo”.

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[...] a prioridade é conferida não às letras, mas à moral e à virtude, pois colocam o máximo de diligência em incutir desde cedo no ânimo das crianças, ainda tenras e moldáveis, bons princípios que sejam úteis para manter a comunidade humana; se esses princípios tomarem assento em profundidade nas crianças, hão-de acompanhá-los, quando homens, por toda a vida e hão-de ser de grande utilidade para o Estado (cuja ruína começa com os vícios que surgem de princípios deturpados). (MORVS, 2006, p. 651).86

A honra, de acordo com Surtz (1957a, p. 47), pode ser definida como “uma

manifestação externa de estima pelo valor de outro, seja por sua virtude ou sua autoridade.” A

honra só é derivada da virtude. Assim, uma pessoa pode ser honrada por conta da sua própria

virtude, como no caso de homens virtuosos, ou por conta da virtude de outro, como

governantes e sacerdotes, a que são dadas honras porque representam Deus e a comunidade.

Da mesma forma, homens ricos são honrados não por conta de suas riquezas, mas pela sua

posição destacada na comunidade. “O prazer que surge da satisfação de um desejo incomum

por sinais de respeito, quando independe a honra, trata-se de um engodo e não é natural nem

verdadeiro.”

Os utopianos têm uma reverencia significativa para com aqueles que ocupam cargos

públicos porque, para eles, “primeiro, honra é a recompensa da virtude; segundo, honra é um

incentivo à virtude, por isso, levantam estátuas de homens notáveis para prestar-lhes honras

pelas suas virtudes e que servem para incitar em todos a virtude.” (SURTZ, 1957a, p. 47).

A honra para os utopianos serve como uma função social de incentivo aos demais. A

imitação dos nossos antepassados virtuosos e nobres é o meio mais eficaz ao perseguir a

virtude. (SURTZ, 1957a, p. 49).

Por isso, de acordo com Surtz (1957a, p. 39), os utopianos encontram na honra e no

cuidado coletivo a verdadeira dignidade. Os utopianos consideram correto cuidarem de seus

próprios interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram

totalmente injusto privar o prazer de outrem em prol do seu próprio. Privar a si mesmo de

algo para entregar a outrem é um serviço amigável de humanidade e gentileza, e pode ser

considerado um ganho maior do que uma perda, porque: “a compensação se faz na forma de

86 LAT230/ING231/FRA606.

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51

retorno de favores, oferecendo maior prazer à alma do que ao corpo que foi privado, e a

recompensa dada por Deus, em que um pequeno prazer é trocado pela alegria eterna”.87

2.4 A igualdade e o comunismo utopiano

Reconhecer que a sociedade utopiana pauta-se na igualdade, na vivência dos prazeres e

no exercício das virtudes, é uma tarefa não muito difícil, haja vista estar explícito na obra

Utopia, de T.M. Desse modo, é imperativo perceber que não é apenas a vivência que constitui

o cerne da civilização utopiana. A igualdade representa o salto, a novidade, o inusitado para

constituir toda uma reflexão na Filosofia Moral e Política.

Logan (1983, p. 182) explicita que a Utopia é uma referência à vivência do preceito da

igualdade entre os homens, pois a equidade social é veementemente reiterada. No entanto, o

sistema social, que na concepção de Surtz (1957a, p. 152) é um sistema comunista, parece

estar intimamente ligado a uma filosofia que se traduz no hedonismo utopiano.

De acordo com Baker-Smith (1991, p. 178), a prática de dispor tudo em comum

caracteriza-se como o princípio transformador que conduz à vivência e à prática da igualdade

entre os homens. Entretanto, T.M., da mesma forma que articula sua civilização com a

perspectiva grega a respeito dos valores e da honra, também encontra nos registros clássicos

dos gregos pressupostos para os princípios comunistas.88

Baker-Smith (1991, p. 166) reconhece que há uma grande divergência da proposta

platônica na República, em que a comunhão dos bens inclui a comunidade de parceiros. Os

utopianos, no entanto, praticam a monogamia e o seu código legal apóia essa prática de forma

enfática. Isso não é surpresa, visto que a unidade familiar é a base da sociedade utópica. O

87 Epicuro mesmo disse “que não é só mais bonito conferir do que receber um benefício, mas também mais prazeroso, pois nada produz alegria tanto quanto a beneficência”. (SURTZ, 1957a, p.39) 88 Na leitura de Utopia, Surtz (1957a, p.151) afirma que, de todos os grandes autores gregos, o nome de Platão é o que encabeça a lista de Raphael. É a República que os utopianos acham mais estimulante e proveitoso para os seus princípios comunistas. Uma grande diferença entre a República e a Utopia é a forma de governo. No primeiro caso, o sistema instituído é a aristocracia e no segundo, temos uma democracia livre de castas. (SURTZ 1957a, p.152). Para Logan (1957a, p.208) “as conexões mais interessantes entre a Utopia e os trabalhos teóricos gregos estão na alteração ou rejeição do que seja a Polis ideal.” Uma dessas questões bastante marcante é a que trata do comunismo. O comunismo platônico, citado na Republica, dos guardiões é bastante abrangente, pois, além da propriedade, mulheres e crianças também são comuns. As demais classes citadas não são comunistas. No livro Leis Platão ainda admite que o melhor estado seria completamente comunista, embora essa visão se refira somente a uma classe pequena de cidadãos plenos. O comunismo é, na prática, demasiadamente exigente para pessoas criadas e educadas como seus conterrâneos. De acordo com o livro Leis, as únicas instituições comunistas são: as mesas em comum e as leis requerendo a distribuição gratuita de dois terços de toda a produção agrícola para cidadãos e escravos.

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52

adultério é severamente castigado e faz parte de uma campanha legal para apoiar a

monogamia.

De acordo com os estudos de Logan (1983, p. 209), o comunismo econômico utopiano é

tão abrangente quanto o que se propõe para os guardiões platônicos, em que não há nenhuma

propriedade privada, além do que a estritamente essencial. T.M. ainda acrescenta que todos os

utopianos trocam as suas casas a cada dez anos. A grande diferença entre ambos (platônicos e

utopianos) é o fato de que o que é para os guardiões na República, o é para todos os habitantes

da ilha de Utopia.89

Logan completa (1983) que, para alguns pesquisadores, T.M. não leva em consideração

a natureza humana como ela é, mas, sim, uma imagem idealizada, pois o comunismo só

funcionaria de fato se os homens fossem cristãos perfeitos. Baker-Smith (1991, p. 140)

acrescenta que:

No estado de natureza, todo mundo assegura o uso das dádivas da natureza de acordo com suas necessidades e ninguém reclamava propriedade; foi somente com o desenvolvimento de organizações sociais que o sistema de direitos de propriedade foi formulado na lei. Assim, a lei como um sistema convencional, o ius gentium em contrapartida ao ius naturale, é um acordo entre homens para o seu benefício mútuo, mas, junto vem uma série de arranjos – propriedade, escravidão, comércio, o estado, e a guerra – que modifica as liberdades da lei natural.

A posição de TM a esse respeito, segundo Surtz (1957a), é que nem o direito natural e

nem o direito positivo divino (o Evangelho de Cristo) são a base da propriedade privada. Mas

a razão humana vê prontamente que a posse em comum é o sistema melhor adaptado à

natureza do homem. Os homens, portanto, dividem os bens do mundo por meio de acordos,

que são nada mais que a lei humana ou a lei pública.

89 Para Logan (1983, p.209) graças à natureza humana os homens são egoístas, e a propriedade privada é a maior propensão ao egoísmo. Para Platão, por sua vez, governantes egoístas predariam sobre o resto da comunidade, o que os obriga a terem tudo em comum. Nesse mesmo horizonte T.M. compartilha a mesma visão da natureza humana que Aristóteles e Platão e sugere também a remoção da oportunidade de acúmulo egoísta, que é um dos motivos de o comunismo utopiano ser universal. O argumento platônico para a inibição do egoísmo de uma classe governante é relançado na Utopia como um argumento para a necessidade de comunidade da propriedade, a fim de assegurar justiça distributiva. No final do Livro I, T.M. afirma que com a igualdade de distribuição todos os homens têm a abundância de todas as coisas, trazendo ordem para a sociedade, enquanto, onde houver propriedade privada, haverá o desmando. De acordo com Baker-Smith (1991, p.140): [...] a compreensão do comunismo utopiano pressupõe conhecimento sobre o estado primitivo da natureza e da humanidade. Existe uma distinção clássica romana entre o estado primitivo da natureza e a ascensão da vida humana civilizada.

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53

Por outro lado T.M., segundo Surtz (1957a, p. 176), compreende que a avareza e a

ganância impõem a falta sobre a abundância da natureza, pois

[...] o que a natureza liberal tem dado para ser comum a todos, os homens maliciosamente transformam em privado; o que ela tem feito visível e acessível é carregado, trancado, guardado e mantido longe dos demais por portas, paredes, ferrolhos, ferro, armas e leis.

Dessa forma, a ganância e maldade de uma minoria impõem a falta e a fome diante da

abundância da natureza e causa pobreza no meio das riquezas de Deus. Isso era condenável e

impraticável para a civilização utopiana.

Para Surtz (1957a, p. 50), à primeira vista, a Utopia pode fazer concluir que TM está

atacando aqueles que possuem títulos vazios de nobreza. No entanto, uma leitura cuidadosa

revela que o seu alvo é a riqueza, o que leva a um problema central da Utopia, que é o

binômio riqueza/pobreza. O sistema utopiano de comunismo envolve a abolição de dinheiro,

que costuma ser, por opinião pública, os verdadeiros ornamentos e honras de uma

comunidade.90 Na Utopia, todos satisfazem seus desejos contanto que trabalhem. Até

viajantes contribuem, com suas habilidades, antes de comparecer às refeições. Assim, “o

trabalho é a base do valor e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas

essenciais, como a agricultura, possui alta estima.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 202)

A leitura da Utopia conduz à compreensão de que os utopianos vão preferir sempre a

posse pública à privada, a fim de assegurar a divisão dos bens entre os seus cidadãos, para que

todos possam atingir o máximo de prazer e o mínimo de dor na sua vida terrena. Todas as

coisas estarem em comum proporciona a abundância a todos os homens. Por isso, já que

existe uma abundância de todas as coisas, nenhum homem consegue ser pobre ou necessitado.

Somente na Utopia pode-se designar o “commonwealth”, ou “bem-estar público”. (SURTZ,

1957a, p. 155)

O surgimento da postura igualitária em relação ao trabalho e ociosidade, na ilha de

Utopia, foi logo depois da vitória do Rei Utopus, quando a primeira ação tomada pelo

conquistador foi convocar todos, vencidos e vencedores, a uma mesma tarefa, isolar a

península do continente, criando assim uma ilha para facilitar a defesa do recém-conquistado

território:

90 TM anuncia que na Inglaterra de sua época a nobreza era nada mais do que uma classe de ricos.

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54

Para fazer tal obra requisitou não apenas indígenas, mas (para eles não considerarem que o trabalho era forma degradante) associou-lhes também todos os seus soldados e por isso, com a repartição do trabalho por tanta gente, a obra foi realizada com uma rapidez inacreditável; aos vizinhos (que no início se riam por considerarem que era desvario) cativou-os pela admiração e acabou com eles pelo terror. (MORVS, 2006, p. 489).91

A divisão do trabalho e o envolvimento de todos garantem que cada um trabalha o

mínimo possível, obtendo-se o máximo de rendimento, visto que ninguém trabalha pelo outro.

T.M. acrescenta: “[...] fácil é perceber-se quão poucas horas sejam necessárias para a

quantidade e a qualidade do trabalho que leva a produzir as coisas que mencionei.” (MORVS,

2006, p. 509).92

A distribuição equitativa visa aliviar o máximo possível as obrigações para cada

cidadão. Não há quem esteja isento de trabalhar, pois mesmos aqueles não envolvidos em

tarefas manuais comuns a todos estão comprometidos com outras tarefas do qual prestam

contas quanto a sua produtividade. Aos sifograntos cabe a fiscalização do trabalho, para

garantir que as necessidades solicitadas ao setor produtivo estão sendo bem atendidas.

Quando se tem uma superprodução, “se declare oficialmente a redução das horas de trabalho”.

(MORVS, 2006, p. 513).93 Quando se busca produzir o que realmente possui valor de uso,

evitando assim o desperdício ou futilidade,

[...] se pode produzir muito e eliminar a necessidade. [...] Se eles fossem postos a trabalhar e se isso se fizesse em coisas úteis, facilmente nos daríamos conta do pouco tempo que seria necessário para produzir tudo o que racionalmente se poderia prever como indispensável ou que o conforto postula (ou até mesmo uma parte de prazer que seja admissível e natural); nessas condições haveria abundância e haveria sobras. [...]. Se todos trabalhassem, a carga horária diminui para todos. Havendo seis horas apenas para trabalhar, [...] esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem. (MORVS, 2006, p. 507).94

Outro detalhe peculiar que Logan (1983, p. 214) destaca diz respeito à agricultura da

Ilha. Tendo em vista a rudeza e as privações enfrentadas pela classe de agricultores, ela possui

uma rotatividade a cada dois anos. Assim, ninguém é privado da vida na cidade, e a produção

agrícola é garantida.

91 LAT110/ING111/FRA450/POR489. 92 LAT130/ING131/FRA474. 93 LAT132/ING133/FRA478. 94 LAT128/ING129/FRA473.

Page 56: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

55

O que garante que todos trabalhem o mínimo possível é que todos contribuem. Assim,

não se sobrecarrega ninguém. A questão da ociosidade possui limites na Utopia e existe uma

eterna fiscalização para evitar a preguiça. Outra questão á a inexistência de lugares dedicados

aos vícios, como tabernas, prostíbulos, entre outros lugares de corrupção e de encontros

secretos. Toda atividade misteriosa, oculta e fora do conhecimento de todos é mal vista, pois

“cada um sente necessidade de ficar à mercê dos olhares de todos, de se entregar ao trabalho

costumado, ou de admitir uma folga de trabalho que seja repouso honesto.” (MORVS, 2006,

p. 527)95

T.M. afirma que, ao aplicar esta forma de distribuição de trabalho, em que havendo

mais pessoas trabalhando se trabalha menos, a consequência é a abundância de todos os bens,

distribuídos equitativamente, condição esta longe da sua realidade do século XVI.

No que se refere à igualdade entre gêneros, o que diferencia o trabalho entre homens e

mulheres se encontra limitado principalmente pelas suas condições físicas.96 A autonomia da

mulher utopiana é considerável e não há distinção quanto à educação de meninos ou meninas.

“Na Utopia os sexos não são apenas duplicatas, e suas funções são cuidadosamente distintas.

Mas, nas áreas mais importantes da vida, naquelas conectadas com realização moral, existe

absoluta igualdade.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 167).

2.5 A matéria do prazer

O estabelecimento da ordem social, bem como a equidade na justiça dos bens,

caracteriza, para os utopianos, a matéria do prazer como designação de todos iguais diante dos

bens, direitos e deveres. Desse modo, a vida do prazer inclui a política da partilha dos bens. O

sistema utopiano para a distribuição de comodidades foi implantado por Útopos, que

transformou o povo rude e selvagem em uma excelência maior que os demais povos do

mundo, e, ratificado pelo próprio povo, criou uma lei para impedir que os políticos mudassem

o estado do bem-estar público. (SURTZ, 1957a).

95 LAT144/ING145/FRA494. 96 Mais uma vez, notamos características platônicas, referentes à igualdade sexual, estendidas aos guardiões no campo de batalha, cujo efeito é aumentar a resistência ao inimigo, pois se trata de uma grande desgraça retornar sozinho sem o companheiro ou companheira do campo de batalha.

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De acordo com as considerações de Surtz (1957a, p. 39), T.M. reconhecia que as leis

que devem ser observadas cuidadosa e escrupulosamente são aquelas que tratam com a

partição e as comodidades da vida, ou seja, a substância do prazer. T.M. considera

[...] que há que respeitar não só os contratos celebrados entre privados, mas também as leis públicas que por comum acordo foram aprovadas, tenham elas sido promulgadas segundo a justiça por um príncipe ou tenha sido o povo a fazê-lo, contanto que não seja sob a opressão de um tirano nem devido a processo fraudulento, desde que esteja em causa a repartição de facilidades de vida, que o mesmo é dizer, matéria de prazer. (MORVS, 2006, p. 549).97

Assim sendo, o prazer tem sua matéria no bem-estar dos habitantes. Para Surtz (1975a,

p. 153), o fato de que os utopianos visualizarem as comodidades de vida como matéria do

prazer é extremamente importante para a compreensão da sua adoção e manutenção da forma

comunista de governo, já que aconselham e incentivam os homens a viver uma existência

feliz e livre de preocupações e a ajudarem os demais a uma existência similar.

Numa sociedade utopiana não há falta que caracteriza valor numa sociedade capitalista. Onde não há propriedade o bem público assume o controle. Aqui, pelo contrário, como nada existe que seja particular, é o bem público que se toma a peito. Ora, aqui, em que tudo é de todos, até porque há o cuidado de manter os celeiros públicos abastecidos, ninguém tem dúvidas de que não virá a faltar nada do que seja necessário na vida privada. De facto, não há distribuição malevolente das coisas nem alguém passa necessidade nem anda na mendicidade e, embora ninguém seja dono de coisa alguma, nem por isso deixam todos de ser abastados. (MORVS, 2006, p. 549).98

A falta da matéria do prazer pode criar egoísmo, porque toda preocupação torna-se

egoísta. “Certamente [...] quantos são os que não sabem que, se não se puser alguma coisa de

lado que lhes venha a ser útil, mesmo que o Estado viva em prosperidade, ficarão sujeitos a

morrer de fome”. (MORVS, 2006, p. 665).99 Assim, a preocupação consigo se torna mais

imperativa do que o bem-estar comum100.

Essas questões são tratadas por T.M., que diz que, seja na cidade ou mesmo no campo,

onde os habitantes vivem distantes uns dos outros, “nada falta para sua subsistência, tanto

97 LAT164/ING165/FRA518. 98 LAT240/ING241/FRA621. 99 LAT240/ING241/FRA621. 100 Estabelece-se aqui, a lei da autossuficiência utopiana que, segundo Logan (1983, p.194), se deve mais à indústria dos seus habitantes do que às vantagens naturais do seu território. Estes defeitos sérios no território, que não encontram precedentes nos exercícios gregos de melhor governo e que também não se encontram nos análogos utópicos de Novo e Velho Mundo, foram incluídos, provavelmente, por considerações teóricas e podem refletir uma consciência aristotélica de T.M. sobre as limitações que o fato coloca na teoria.

Page 58: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

57

mais que é dos campos que vêm os viveres com que se alimentam os da cidade.” (MORVS,

2006, p. 525).101 Há uma ordem social, com a contribuição de todos, dos citadinos aos

campesinos.

Para Surtz (1957a, p. 39), contanto que leis justas sobre a distribuição e propriedades

sejam observadas e invioladas, os utopianos consideram correto cuidarem de seus próprios

interesses e, mais ainda, cuidar dos interesses públicos também. Mas consideram totalmente

injusto privar o prazer de outro em prol do seu próprio.

Delegam a si, mutuamente, os utopianos, o cuidado do que é de todos, e o sentimento de

participação da comunidade e dos bens e serviços que lhes são oferecidos. A comunidade

utopiana não perfaz o seu percurso e apresenta historicidade por interesse de uma elite ou

nobreza, mas pelo desejo de todos, pela vivência da partilha e da compreensão da condição

social do outro.

Desse modo, a matéria do prazer encontra sua vertente no campo social, na prática das

leis justas e no entendimento de que uma sociedade racional acontece na equidade social,

fazendo de todos responsáveis por todos.

101 LAT142/ING143/FRA493.

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58

3 O DEVER-SER: EFETIVAÇÃO DA FILOSOFIA MORAL E

POLÍTICA

O “dever-ser” político utopiano inova as formas anteriores de sistema político.

Curiosamente, incorpora uma série de modelos diferentes dentro de um único contexto. A

pergunta que se compartilha com o leitor é: qual o sistema político que podemos atribuir aos

utopianos? Seria democrático, pela eleição direta de funcionários públicos? Ou republicano,

pela eleição indireta dos governantes? Ou aristocrático, pela meritocracia, em que somente os

mais destacados pela sua erudição é que são escolhidos para ocupar posições de destaque? Ou

ainda monárquico, pelo mandato vitalício dos seus governantes? Essas questões não são

esclarecidas pelo autor, entretanto, ele parte do princípio de que é no governo que se

estabelece a civilização da razão.

Para T.M. “é do príncipe que promana, como de fonte inesgotável, o caudal de bens e de

males para todo o seu povo”. (MORVS, 2006, p. 663).102 Sendo assim, cabe à autoridade

moral e política, bem como à integridade dos seus funcionários, o bem-estar ou a ruína de

uma comunidade. (MORVS, 2006).

3.1 O governo

Uma questão extremamente perturbadora para T.M. se encontra logo no início do Livro

Dois103, que trata da gênese da sua sociedade perfeita.

O autor deplorava a violência, mas reconheceu que a sua Utopia só seria iniciada pela

ação violenta de um conquistador, representado na obra pelo monarca Utopus. Dessa forma, é

difícil de determinar como implantar uma utopia sem a imposição da vontade individual na

coletividade. A desculpa de que seria para o bem dos habitantes conquistados não se justifica

em T.M. e representaria um argumento ético muito consequencialista para a filosofia moral

Utopiana. Se a implantação de uma sociedade utópica só se faz através da guerra, então a

102 LAT052/ING053/FRA373. 103 MORVS p.489//LAT110/ING111/FRA450.

Page 60: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

59

conquista e a implantação desta nova sociedade seguem o consequencialismo utopiano, que só

se faz presente nos assuntos militares, ou seja, a única circunstância em que os utopianos

praticam o consequencialismo, ou uma espécie de utilitarismo, que só viria a ser justificado

por Stuart Mills104 séculos depois, o qual se daria quando se procurasse diminuir os agouros

relacionados à atividade bestial que é a guerra. Dessa forma, um utopiano jamais declararia

guerra a uma nação para implantar a sua filosofia política, mas, já tendo declarado-a por

outros motivos, a implantação de um novo sistema político seria apenas uma consequência

natural do vencer e da sua conquista.

Sendo assim, aquele que implanta um novo governo deve ser um oportunista, um líder

militar que aproveita a sua chance e obtém uma vitória militar, como a de Utopus sobre os

Abraxans, enquanto eles estavam distraídos pelas suas próprias discussões religiosas. Ao

invés de ser um rei no sentido tradicional, ele usou seu poder absoluto de conquistador para

impor um sistema político que impede qualquer atitude que leve à tirania.

O seu exercício de poder é de autonegação, pois ele libera o Estado para atender e

cuidar do coletivo, ao invés dos interesses elitistas minoritários para que um novo início seja

possível. “Na verdade, ele mistura o papel de autocrata e legislador105 para o estabelecimento

bem sucedido de um estado ordenado.” (BAKER-SMITH, 1991, p. 152). Ele afirma que

quando o poder supremo é combinado em uma pessoa com sabedoria e temperança, somente

aí a natureza gera a melhor das constituições com a melhor das leis.

Se há dissonância entre as ideias cristãs de governabilidade e a perspectiva política

racional da Utopia, necessário compreender o processo de mudanças, o que não ocorrerá

pacificamente. A melhor cidade só pode ser realizada por um governante absoluto (correto),

que iniciaria por erradicar a ordem existente, instaurando uma nova perspectiva política. A

primeira coisa que precisaria ocorrer era renovar a sociedade humana com seus hábitos e

torná-la idônea para proporcionar uma República. Uma vez que este homem tenha poder e

institua todas as leis e costumes necessários para o bem-estar social, estará promovendo uma

revolução com o consenso popular.106

104 Expoente moderno do pensamento utilitarista ou consequencialismo. 105 Combinação que Platão reconheceu nas Leis como essencial. 106 Nas Leis, Platão afirma que qualquer forma de governo em que o poder supremo em um homem se une a um julgamento sábio e autolimitado, ter-se-á o nascimento do melhor sistema político, com as leis compatíveis.

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60

Quanto à dinâmica da vida política social, a perspectiva moreana é de uma unidade

federativa autônoma, mas interligada em sentido de cooperação. O governo central de Utopia

é formado pela reunião de três delegados provenientes de cada uma das suas 54 cidades, que

se reúnem em Amauroto,107 para tratarem dos interesses coletivos da Ilha. A finalidade desta

reunião é tratar dos assuntos coletivos e promover a equidade econômica entre as regiões.

Nessa perspectiva, T.M. acredita fazer da ilha uma só família, já que toda a comunidade

mantém-se responsável pelo bem-estar dos demais. Na compreensão de governo republicano

moreano, os funcionários públicos devem submeter-se a um processo seletivo que os

perfazem como representantes dos demais:

Cada trinta famílias elege, todos os anos, um representante que designam na sua primitiva língua por sifogranto e em língua mais recente filarco. A cada dez sifograntos, com as suas famílias, preside um traníboro na língua de antigamente, hoje chamado protofilarco. Finalmente, todos os sifograntos, que são duzentos, depois de jurarem que escolherão aquele que considerem mais útil, em votos secretos elegem como príncipe um de entre quatro que o povo tiver designado. De fato, cada um dos quatro bairros da cidade escolhe um representante para fazer parte do Senado. O cargo de príncipe é vitalício, e não pode ser destituído senão em caso de haver suspeita de propender para a tirania. Os traníboros ficam sujeitos à eleição anual, mas não são substituídos senão por motivo sério. Os restantes magistrados todos são anuais. (MORVS, 2006, p. 497).108

Outra característica do governo no horizonte da Utopia é a valorização dos

conselheiros. T.M. afirma as vantagens de se ter um bom conselheiro que incite o governante

a ter atitudes boas e justas para o benefício da população. Afinal, de um governante pode

jorrar, como uma fonte inesgotável, tanto benefícios como malefícios para a sua população.

De forma sutil, ele deixa entender que as pessoas providas de conhecimento e sabedoria

deveriam ser os conselheiros de governantes. Esta posição fica clara depois de Rafael falar a

respeito das suas viagens ao redor do mundo109 e da experiência que obteve de todas as suas

vivências. Dessa forma, ele faz uma espécie de modelo para o conselheiro, uma pessoa

conhecedora da diversidade humana pelo mundo e que saiba separar os conhecimentos sábios.

107 Amauroto foi estrategicamente escolhida por estar no centro da Ilha, porém, ela não é entendida como a “capital”, visto que todas as cidades são rigorosamente iguais, inclusive em importância. 108 LAT118/ING119/FRA462. 109 O livro insinua que o primeiro a fazer a circunavegação do globo seria Rafael Hithloday.

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61

(MORVS, p. 407).110 T.M dá uma rica orientação neste sentido ao expor o pensamento de

Rafael:

[...] se eu me levantar mais uma vez e porfiar em dizer que se dão ao rei todos estes conselhos, mas que eles são desonestos e perniciosos e que não só a sua honra, mas até a sua segurança está mais nas riquezas do povo do que nas suas, se eu demonstrar que os cidadãos escolhem um rei para seu bem e não para bem do rei, ou seja, com o objectivo de viverem tranquilamente no seu trabalho e nas suas preocupações, livres de serem maltratados, e que por isso ao príncipe pertence, sobretudo, cuidar que o seu povo esteja em bem, mais do que ele mesmo, como é próprio do ofício de pastor que, como tal, deve apascentar as ovelhas mais do que a si mesmo. (MORVS, 2006, p. 465).111

Nos conselhos de como governar, T.M. (2006, p. 465)112 expõe que “a majestade de um

rei exige que ele exerça o poder não sobre mendigos, mas sobre um povo de homens

abastados e felizes”. Como já foi exposto, T.M. define o prazer e a felicidade como formas

citadinas de vida.

Por isso alguém nadar em prazeres e em delícias enquanto outros só vêem gemidos e lamentações à sua volta, não é próprio de um reino, mas de uma prisão. [...] assim aquele que não sabe corrigir a vida dos cidadãos senão tirando-lhe o conforto da vida, está a confessar que não sabe mandar em homens livres. (MORVS, 2006, p. 465).113

Sobre o governo, tendo como base critérios de governabilidade no âmbito da filosofia

moral e politica, T.M. assim se expressa:

[..] havia o rei de dedicar-se ao reino dos seus pais, criar nele a maior prosperidade possível, torná-lo o mais florescente de todos; ter amor pelos seus e ser por estes retribuído, viver em unidade com eles, exercer o poder com brandura e deixar os outros reinos prosperarem, uma vez que aquilo que agora lhe coube é já mais que suficiente. (MORVS, 2006, p. 459).114

Assim, a ganância do rei seria não o de ampliar desmesuradamente o seu reino, vindo a

escorraçar-se depois, mas de possibilitar qualidade e excelência aos seus súditos. Dispor de

povo numeroso demais para ser governado não é uma lição idônea para provar a força e o

poder daquele que governa, mas, sim, as condições que garanta a todos uma mesma condição

social.

110 LAT048/ING049/FRA369. 111 LAT090/ING091/FRA426. 112 LAT092/ING093/FRA426. 113 LAT092/ING093/FRA426. 114 LAT086/ING087/FRA421.

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62

Superados os empecilhos de um bom governo, quando este compreende a razão como

elemento imprescindível para estabelecer o bem-estar entre os súditos, T.M. determina o

equilíbrio e a manutenção financeira na sociedade utopiana.

A denotação comunista de T.M. garante a sobrevivência de todos os cidadãos, como

também a prosperidade financeira. É uma inovação no campo da colheita, do mercado e da

política de crédito, que é determinada pela administração transparente e pelo estabelecimento

do patrimônio social.

Outra designação financeira é a que T.M. apresenta quando garante ao cidadão um

mercado econômico que não suprime o bem-estar, mas afiança a todos as condições

necessárias para sobreviver. Assim expõe T.M.:

Existe o costume de deixar parte dos recursos na própria cidade, pois consideram que não seria justo retirar a quem se serve daquilo que para eles não teria qualquer utilização. Quanto ao mais, se a situação o exigir, como é quando há que emprestar essa parte a outro povo, então, exigem-na, ou, pelo menos, quando há que desencadear uma guerra, pois é só para esta situação que guardam em casa todo esse tesouro que possuem e que lhes serve de apoio em casos extremos ou imprevistos, sobretudo para contratar mercenários [...]. (MORVS, 2006, p. 529).115

T.M. orienta o rei a não acumular riqueza pessoal quando isto trouxer miséria para o

povo. Ele insiste em dizer que “de fato, este capital afigurava-se bastar, quer ao rei para se

opor a qualquer rebelião, quer ao reino para combater incursões inimigas. De resto, era

insuficiente para incentivar ambições alheias.” (MORVS, 2006, p. 469).116 Garantindo a

circulação de dinheiro para as transações diárias dos seus súditos e sendo obrigado a

compartilhar com a população o excedente do que possuía acima do estipulado pela lei, “não

haveria ele de buscar violar a lei. Tal rei seria odiado pelos maus, mas apreciado pelos bons.”

(MORVS, 2006, p. 469). 117

A orientação observada é que a questão financeira não deve levar a destruição, mas

proporcionar a todos segurança e comodidade. Por outro lado, T.M. (2006, p. 469)118

admoesta a fim de que o armazenamento de ouro e prata seja para a finalidade de gastar com

115 LAT146/ING147/FRA497. 116 LAT094/ING095/FRA429. 117 LAT094/ING095/FRA429. 118 LAT206/ING207/FRA574.

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63

gastos emergenciais e para financiamentos bélicos, de modo que a política de

aprovisionamento não deve ser o empenho vital, impossibilitando a viver mais à vontade.

O acumulo de riquezas em ouro e prata pelo Estado, numa sociedade que é praticamente

autossuficiente e possui um sistema comunista, parece fora de propósito, mas é facilmente

compreendido que os metais valiosos representam uma segurança nacional, pois é livremente

usado para a guerra quando o Estado precisa defender seus interesses, seja para corromper

inimigos ou contratar mercenários. Os utopianos não se importam empenhá-los, tanto mais

que não passariam a viver menos à vontade, mesmo que aplicassem todo o aprovisionamento.

(MORVS, 2006, p. 469). 119

A guerra, no contexto utopiano, é exceção à sua regra moral em geral. Longe de seguir a

teoria da virtude, eles antecipam o consequencialismo que só viria séculos depois.120 Baker-

Smith (1991, p. 183), analisando a Utopia, acrescenta que é no seu trato com a guerra que os

utopianos são mais problemáticos. Apesar de desprezarem o ouro e a riqueza, eles fazem farto

uso destes bens contra o inimigo. A guerra, eles a consideram uma atividade subumana; não

há glória na guerra. Existe uma atitude anticavalheiresca, pois, sob todos os aspectos, a prática

de guerra utopiana viola todas as convenções mantidas pela ideologia do cavalheirismo. Nos

seus estratagemas mais sutis, eles usam a mais incavalheiresca de todas as armas: o dinheiro.

Na perspectiva consequencialista de Utopia, no trato da guerra, T.M. orienta que os

utopianos visem apenas a uma coisa na sua ação bélica:

[...] obter aquilo que pretendem; aliás, se o tivessem antes conseguido, isso teria evitado a declaração de guerra. Quando a natureza do conflito não permite composição com os inimigos, eles reclamam vingança tão cruel sobre aqueles a quem imputam o acontecido que o terror lhes retira

119 LAT206/ING207/FRA574. 120 Logan (1983, p. 215) chama a atenção para o fato dos utopianos serem radicalmente diferentes dos teóricos gregos, especialmente de Platão, na sua visão sobre a guerra. Platão considerava a guerra entre as cidades gregas como uma infeliz briga interna e doméstica [...]. Todos os que não eram gregos eram considerados inimigos naturais a serem conquistados. Em qualquer tipo de guerra, quem se destacar na batalha merece recompensas gloriosas. Aristóteles, por sua vez, no livro Politica, não possui o entusiasmo de Platão para a guerra, e observa que ela não é um fim em si mesmo, mas um meio para a boa vida. Os motivos gregos que levam um homem a se tornar um soldado, Logan (1983, p. 215) explica: “O treinamento militar não é feito para escravizar homens que não merecem tal fatalidade e os seus objetivos deveriam ser: primeiro, impedir homens de um dia eles mesmos serem escravizados; segundo, colocar homens numa posição de exercer a liderança. Liderança esta, direcionada aos interesses dos conduzidos, e não o estabelecimento de um sistema geral de escravatura; e, terceiro, possibilitar homens a se tornarem senhores daqueles que naturalmente merecem ser escravos (i.e. não-gregos)”. Logan lembra outro teórico de cidade-estado chamado Maquiavel, que diz: “quando é absolutamente uma questão de segurança do nosso país não há consideração de justo ou injusto, piedoso ou cruel, de elogios ou desgraça.” (LOGAN 1983, p.235).

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64

capacidade de voltarem a cometer ousadia semelhante. Tais são os objectivos que se propõem e que procuram obter rapidamente, sem, no entanto, descuidarem evitar perigos inúteis, de preferência a andarem atrás de loas e de fama. (MORVS, 2006, p. 611).121

Para Logan (1983, p. 221), mesmo detestando a guerra, os utopianos guerreariam para

proteger seu próprio território, expulsar um inimigo da terra dos amigos, livrar um povo da

tirania e obter território para colonização. Os utopianos justificam suas guerras coloniais com

as leis naturais. Eles consideram uma causa justa para a guerra a recusa de promover a

reforma agrária por parte de nações vizinhas.122

Baker-Smith (1991, p. 184) nos revela uma questão muito controvertida que envolve

tanto a guerra quanto os recursos financeiros: o uso de mercenários pelos utopianos. Ao

contrário da sua valorização pela vida, os utopianos desprezam completamente a vida dos

mercenários que contratam para a guerra. Outro ponto significativo, levantado por Logan

(1983, p. 197), é que nos assuntos militares a República apresentou um precedente quanto ao

costume dos soldados utopianos de serem acompanhados pela sua família no campo de

batalha, uma prática justificada pelo fato de que qualquer animal luta melhor na presença de

sua cria.

Baker-Smith (1991, p. 184) completa descrevendo as forças utopianas, as quais são

compostas por uma milícia civil, que comporta ambos os sexos, e organizadas em grupos

familiares para aumentar a intensidade da resistência.123 Até mesmo a criação de grupos de

extermínio, que visam a autoridades estrangeiras durante a guerra, mostra claramente como

eles incorporam o poder da razão nas aplicações bélicas, perseguindo um objetivo coerente

por todos os meios ao seu poder, até alcançá-lo. Os utopianos fazem um contraste com o

modo de guerra europeia, por este ser baseado em exércitos, na sua maior parte, profissionais,

repleto de elementos cavalheirescos. Para os utopianos, que não possuem nenhum senso de

honra nos assuntos de guerra, o sucesso é a única preocupação. Tirando todos os elementos

cavalheirescos, o que sobra é a vontade inquebrantável de conquistar o inimigo.

121 LAT204/ING205/FRA573. 122 Postura que justificaria hoje as invasões de terra promovidas pelo MST, no Brasil, buscando uma reforma agrícola. 123 O ideal socrático, presente na República, de pais, irmãos, filhos e mulheres, moldados juntos numa força irresistível, é, certamente, a origem do arranjo utopiano.

Page 66: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

65

T.M. defende que não há sentido numa guerra para o enriquecimento, visto que o preço

seria excessivo. Os utopianos consideram loucura, como também vergonhoso, qualquer

vitória cruenta, preferindo a astúcia derivada da razão, pois,

[...] se alcançam uma vitória encurralando os inimigos por habilidade e engano, então celebram o acontecimento a grandes gastos e organizam um triunfo público, levantando os troféus como se nisso estivesse envolvido um acto de bravura. Só nessas circunstâncias se gabam de terem actuado como homens e terem procedido com valor; fazem-no todas as vezes que vencem desse modo, dado que nenhuma criatura, com excepção do homem, o poderia fazer, já que implica forças de inteligência. De facto, explicam, com as forças do corpo, lutam os ursos, os leões, os javalis, os lobos, os cães e outras feras, que na sua maior parte nos ultrapassam pela força e pela ferocidade, mas todas são vencidas pela inteligência e pela razão. (MORVS, 2006, p. 611).124

Para Logan (1983, p. 222), a Utopia mostra que todo assunto referente à guerra foge de

todo e qualquer sistema moral de igualdade e parece que, por se tratar de algo tão bestial,

envolve outro sistema moral: o consequencialismo, que visa aos resultados. Observa-se que os

resultados que são buscados seguem rigorosamente o princípio de que, se não há como

impedir o mal, que se minimizem os seus danos o máximo possível. Há, portanto, um caso de

confronto entre a deontologia do cavalheirismo europeu e o consequencialismo utopiano.

Atos impensados aos cavalheiros numa guerra seriam feitos tranquilamente pelos utopianos

visando a alcançar os resultados buscados. Como já citado, os utopianos em geral são

extremamente desprovidos de cavalheirismo medieval125, e mesmo a contragosto atribuem um

valor inferior à vida de todos os demais povos, inclusive a dos seus aliados.126

Na hierarquia bélica dos combatentes envolvidos nas contendas dos utopianos, os

mercenários serão os primeiros sacrificados. Havendo necessidade de mais soldados, eles

124 LAT204/ING205/FRA570. 125 Chivalry. 126 Talvez seja mais adequado afirmar que os utopianos colocam a vida dos seus acima de todos os demais. Para Logan (1983, p. 215), os utopianos desconhecem os conceitos de inimigos e escravos naturais e consideram que a guerra é uma atividade boa somente para animais e a encaram com a mais absoluta aversão. Eles consideram infame a glória alcançada em guerra. Estas atitudes, que derivam dos estoicos, seguem o conceito de uma fraternidade humana universal que os utopianos, tanto quanto os estoicos, derivam da razão. Quando os utopianos são obrigados a guerrear, suas táticas são governadas por considerações humanitárias que os estoicos aplicariam a todas as guerras, mas que Platão restringe a disputas internas e domésticas. Platão se opõe à prática de devastar as terras e queimar as casas de inimigos gregos; da mesma forma, os utopianos não arrasam o território do inimigo ou queimam sua colheita. Assim como os guardiões platônicos não consideravam a população como seus inimigos, mas somente a minoria responsável pela briga, os utopianos sabem que gente comum não vai para a guerra por sua própria escolha, mas pela loucura dos governantes. T.M. aceita alguns princípios dos teóricos gregos, mas refina estes princípios formulando mais precisamente a relação entre as metas do indivíduo e as metas da comunidade e, por reconhecer a inevitabilidade destes conflitos, aplica o método do cálculo de prazer da ética epicuriana para a solução de tais conflitos.

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66

chamam aqueles para quem estão lutando a favor e, depois, as forças armadas dos demais

aliados. Somente em última instância, adicionam um contingente de seus próprios cidadãos.

[...] nem por isso os tomam à sua parte, a não ser para protegerem as suas fronteiras ou para escorraçarem os inimigos que tenham invadido os territórios dos aliados ou bem assim, quando levados por sentimento de comiseração, se propõem libertar da servidão e do jugo de qualquer tirano algum povo oprimido pela tirania (fazendo-o, aliás, por filantropia). (MORVS, 2006, p. 605).127

Os motivos que levam ao combate vão da defesa à retaliação, inclusive respondendo a

ataques. Após minucioso estudo do caso e esgotados todos os recursos para uma solução

pacifica e diplomática, a guerra é declarada.

Tal decisão, porém, é tomada não somente de cada vez que uma pilhagem se fez mediante incursão armada, mas também, e nesse caso com sentimentos mais hostis, quando os seus homens de negócios, em qualquer povo, seja em razão de leis iníquas, seja por violação imperdoável de leis boas, são objecto de ataque, sob capa de justiça. (MORVS, 2006, p. 605).128

Buscando evitar a todo custo o envolvimento dos seus próprios cidadãos na contenda,

quando se torna imperativa a participação de utopianos, esses se mostram inimigos intrépidos

e determinados. A força do seu ataque aumenta com o passar do tempo, tornando-se mais

obstinada.

Apesar de valorizarem a vida, o sacrifício no campo de batalha só visa a um resultado: a

vitória ou a morte. Isso se deve à absoluta tranquilidade que possuem em relação aos seus

entes queridos que ficaram em casa, pois nenhum combatente se preocupa com os seus filhos,

por saber que nada faltará caso um ou os dois genitores sejam abatidos no campo de batalha.

“A sua perícia da disciplina militar gera intrepidez; enfim, a mentalidade em que foram

formados (com doutrinas com que se foram imbuindo desde a infância e com boas práticas

coletivas) acrescenta maior coragem” (MORVS, 2006, p. 623).129

O preparo de um combatente utopiano vem de muitos anos de treinamento, cada um,

especializado na sua arma. Diferentemente dos europeus da sua época, os utopianos

naturalmente investem parte do seu tempo livre em exercícios marciais, preparando-se para a

remota possibilidade de se envolverem em combate.

127 LAT200/ING201/FRA566. 128 LAT200/ING201/FRA566. 129 LAT212/ING213/FRA581.

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67

Os camponeses Ingleses também eram estimulados no período medieval a se

exercitarem em atividades marciais; a diferença é que eles tinham quase certeza de que iriam

participar de excursões militares tão logo chegassem a primavera e os campos semeados.

Os governantes e nobres europeus usavam livremente seus próprios cidadãos no campo

de batalha, a ponto de que a mortandade decorrente de guerras, que duravam décadas, acabava

por comprometer o fornecimento de mão de obra camponesa para as atividades agropecuárias.

O contraste entre o alto preparo de um combatente utopiano e a remota possibilidade de

participar de um conflito armado se faz com o camponês europeu, pouco preparado

militarmente e com grandes chances de se envolver de fato num conflito.

A visão utopiana sobre a guerra é o inverso da ética cavalheiresca do seu tempo, que

desprezava a estratégia e honrava o derramamento de sangue.130 A arte da guerra utopiana,

não cavalheiresca, tem como premissa a ideia de que a honra e a glória cavalheiresca e os

métodos de guerras falsamente heroicos servem aos interesses de uma pequena classe de

homens decadentes, todos corrompidos por costumes violentos, príncipes tirânicos e alguns

dos seus nobres apoiadores.

A estratégia utopiana segue um humanismo racional e o ódio à tirania, e usa qualquer

meio que a razão pode criar para terminar uma guerra com vitória, mas com o mínimo de

baixas tanto do inimigo quanto de si próprio. Só há um conflito nesta ética consequencialista

utopiana quanto à minimização dos efeitos da guerra, pois sempre há

[...] a intenção de eliminar a maior quantidade de mercenários possíveis, pois, há uma política de genocídio contra todos os mercenários, pois, não importa quantos eles perdem e consideram que seriam da maior utilidade para a raça humana se o mundo fosse aliviado desse povo abominável e ímpio. (LOGAN, 1983, p. 226).

3.2 O dever-ser da nobreza meritocrática

T.M. reconhece a estrutura nobiliárquica de Utopia. Assim, ele descreve as diferentes

funções existentes na comunidade e as suas funcionalidades.

130 Logan (1983, p.226) reflete que as táticas de guerra utopianas são perfeitamente consistentes com o pacifismo de humanistas da linha erasmiana. Estes humanistas estavam profundamente impressionados pela crítica estoica da ética marcial da Antiguidade, e eles rotineiramente aplicavam técnicas estoicas racionais que desbancavam visões cavalheirescas das táticas e glória marciais da Idade Média.

Page 69: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

68

Assim, o serviço público constitui uma necessidade para a comunidade utópica, mas, ao

contrário do costume europeu de associar cargos a pessoas de que se queira tirar algum

proveito próprio, para quem delega estes cargos, o costume utopiano seria o exato oposto.131

Isso porque T.M. adverte que “aquele que anda a cata de uma magistratura só ganha

frustrações com isso”. (MORVS, 2006, p. 597).132

Como os cargos são distribuídos de acordo com votação popular, secreta e universal,

com base nos méritos e popularidade de cada candidato, que se encontra absolutamente

proibido de fazer qualquer promoção pessoal ou sequer mostrar interesse no cargo, não é de

se admirar que os candidatos sejam sempre pessoas de alta estima da população, repercutindo

positivamente na relação com as autoridades. T.M. mostra claramente a enorme diferença

destas relações na Europa e na Utopia:

As relações com os magistrados são de convivialidade feita de amabilidade, e de facto nenhum deles é arrogante nem grosseiro; tratam-nos por pais e eles demonstram que lhes fica bem esse título; as homenagens são-lhes prestadas de espontânea vontade, não são impostas contra vontade. O próprio príncipe não se distingue dos outros cidadãos por trajar diferentemente ou usar diadema, mas por andar com um manipulo de espigas de trigo na mão, como é característica de um pontífice ser precedido por círios. (MORVS, 2006, p. 597).133

De acordo com pesquisas realizadas por Logan (1983, p. 151), um dos temas evidentes

em T.M. é a educação. Isto porque, como um bom humanista, a formação do ser humano era

uma prioridade na civilização utopiana. Desse modo, a educação caracterizava, acima de tudo,

uma necessidade.

Na perspectiva educativa, T.M., de acordo com Logan (1983, p. 200), afirma134 que não

há necessidade de tantas leis para cidadãos bem educados, o que reflete, na sociedade

utopiana, no fato de terem poucas leis, graças a uma população bastante educada.

Para Baker-Smith (1991, p.190), a educação é um tema evidente em T.M. e, segundo o

autor, como afirma Raphael, o declínio de um Estado sempre pode ser seguido de vícios que

131 Para Logan (1983, p.197), de Platão T.M. retira a regra de que aqueles que buscam funções públicas a desqualificam para tal. Isso pode ser encontrado no argumento de Platão de que “aqueles que são capacitados de governar, os verdadeiros filósofos, vão repudiar poder político enquanto que os moralmente inferiores sempre vão ter a esperança de alguma compensação da sua própria inadequação de uma carreira política.” 132 LAT194/ING195/FRA558. 133 LAT194/ING195/FRA558. 134 E neste ponto se assemelha a Platão.

Page 70: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

69

surgem de atitudes errôneas. Educação, na Utopia, é uma questão de política nacional, e a

formação dos jovens, uma função desprezada na Europa, é atribuída, na Utopia, à categoria

mais reverenciada na comunidade, os sacerdotes.

Há um clima científico na Utopia, que caracteriza uma condição moral e política.

Baker-Smith (1991, p. 181) ressalta que a vida intelectual utopiana é direcionada a três áreas

distintas: a primeira é cientifica, no sentido prático: os ilhéus são observadores habilidosos do

mundo natural, tanto do ambiente imediato quanto dos céus e, junto com o interesse em

medicina, ambas as ciências contribuem para o bem-estar físico; a segunda, com seus debates

sobre filosofia moral, é direcionada para a saúde espiritual; e a terceira pode ser resumida

como especulativa ao invés de prática, e leva em direção à teologia natural.

Para Surtz (1957a), a estrutura da sociedade quanto à questão de função educacional se

divide em três classes de estudantes: a primeira, os profissionais, pessoas que se destacam nas

suas atividades profissionais ou de conhecimento e que são isentas de todas as outras tarefas,

a fim de se dedicar ao estudo; na segunda, estão todas as crianças em idade escolar, porque a

educação é universal e compulsória na Ilha; e a terceira constitui-se de uma boa parte da

população adulta, que se dedica ao estudo e à leitura quando nas suas horas de folga.

Este envolvimento pelo estudo condiz com sua filosofia do prazer, pela sua convicção

de que os prazeres da alma são superiores aos do corpo, e por estarem persuadidos de que,

entre os prazeres da mente, a contemplação da verdade traz verdadeiro deleite. O povo como

um todo é incansável na sua busca intelectual. Literatura é objeto de amor, porque é a fonte de

grande prazer. Há um enorme contraste com o desdém para o estudo da nobreza europeia,

conforme explicitado anteriormente.

Na perspectiva de Logan (1983, p. 200), a educação utopiana tem diversos aspectos.

Um deles é a preocupação tanto pela moral e virtude, quanto pelos avanços no aprendizado. O

processo educacional utopiano se compunha de treinamento militar para todos os cidadãos, e

os jogos se mantinham presentes nas etapas educativas, caracterizando-se como uma parte

delas.

Quanto à questão da filosofia moral utopiana, a educação ensina as crianças a fazerem

distinção entre os verdadeiros e os falsos prazeres, dando preferência aos primeiros. Segundo

Logan (1993, p. 200), T.M. afirma que: “não há necessidade de tantas leis para cidadãos bem

Page 71: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

70

educados, o que reflete na sociedade utopiana o fato de terem poucas leis, graças a uma

população tão educada”.135

T.M. comenta a respeito da necessidade de instituições assegurarem que os cidadãos

desenvolvam e mantenham um padrão de comportamento necessário para a realização e

preservação das metas da política racional. Da mesma forma, comenta a respeito da natureza

particular destas instituições, que constituem um sistema de educação formal; da proibição

legal de certas formas de mau comportamento; de uma rede de reforços positivos e negativos

para encorajar um comportamento apropriado; e de um sistema de justiça criminal.

Para Logan (1983, p. 202), este controle social, além das proibições legais, envolve uma

multidão de reforços positivos e negativos para encorajar o bom comportamento e

desencorajar o mau. Estes dispositivos, desenvolvidos para afetar o comportamento por um

apelo às emoções, refletem a concepção de que a natureza humana inclui um enorme

elemento não racional.136

T.M. reconhece a importância da lei para o bom governo, acompanhada do efeito

educacional que dispõe do indivíduo para melhor manuseio e, consequentemente, o deixa

mais disposto ao cumprimento das leis. Por isso, na comunidade utopiana, de acordo com

reflexões de Logan (1983, p. 202), “o dirigente deve elogiar e recomendar alguns cursos de

ação e censurar outros, e em toda área de conduta ele deve assegurar que qualquer um que

desobedecer é desgraçado”.

Um traço humanista se faz mister em T.M., quando se observa seu interesse para com a

educação moral e o ensinamento das virtudes. O autor prioriza o conhecimento que se deve ao

homem ligado à formação do homem integral. Aqui, encontra-se a validade de uma reflexão

da postura filosófica moral e política, quando a civilização utopiana, além do conhecimento

das letras, traz inclinação ao conhecimento da formação ética e política, fornecendo

instrumentos para a construção de uma nova sociedade. Para tanto, assim se dirige T.M.:

Ministram eles instrução a crianças e jovens: prioridade é conferida não às letras, mas à moral e à virtude, pois colocam o máximo de diligência em instilar desde cedo no ânimo das crianças, ainda tenras e moldáveis, bons

135 Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus exercícios sobre o melhor governo. 136 T.M. pode ter derivado seu interesse de controle social de Platão que explora a questão nas Leis.

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71

princípios que sejam úteis para manter a comunidade humana; se esses princípios tomarem assento em profundidade nas crianças, hão-de acompanhá-los, quando homens, por toda a vida e hão-de ser de grande utilidade para o Estado (cuja ruína começa com os vícios que surgem de princípios deturpados). (MORVS, 2006, p. 651).137

Em estudos realizados por Surtz (1957a, p. 78), observa-se que a educação cuidadosa

das crianças é responsável pelas boas ideias dos utopianos. Uma vez implantados na criança

valores verdadeiros, estes permanecerão por toda a sua vida e serão proveitosos para a defesa

e manutenção do Estado.

Assim, dentro de um cenário renovador da civilização utopiana, observa-se o quanto a

educação apresenta sentido e validade, garantindo equidade entre os homens. T.M. está além

de seu tempo quando percebe que o acesso ao saber garante ao homem seu espaço social.

Desta forma, Surtz (1957a, p. 151) revela a preocupação utopiana com formação das crianças

enquanto garantia para a formação do Estado. Os utopianos perpetuam a verdade entre

crianças e adultos, em parte por educação e em parte por boa literatura e aprendizado.

Esta reflexão decorre da própria percepção que o texto de Utopia expressa quando

Raphael não hesita em responder que os utopianos formam suas ideias corretas tanto pela

educação, quanto pelo gosto do aprendizado e da boa leitura. “A diferença entre elas está no

fato de que a educação se aplica à disciplina e ao treinamento, ao passo que o aprendizado

abraça especialmente o conhecimento advindo de aulas, palestras ou livros.” (SURTZ, 1957a,

p. 78).

Quanto à questão da filosofia moral utopiana, a educação ensina as crianças a fazerem

distinção entre os verdadeiros e os falsos prazeres, dando preferência aos primeiros. Pois,

conforme anteriormente explicitado, cidadãos bem educados necessitam de poucas leis”.138

T.M. deixa claro que “entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode ser

desconsiderado por causa da sua religião”. (MORVS, 2006, p. 541).139 Uma única pena é

prevista em lei, que é justamente para resguardar a estabilidade familiar tão importante nesta

civilização comunista, pois os que a rompem, traindo o vínculo matrimonial, são punidos com

a servidão mais grave. Quem se entregar a um envolvimento íntimo antes do casamento é

137 LAT230/ING231/FRA606. 138 Quando se trata de um bom governo, a educação ganha no cenário grego um tema evidente. Um exemplo disto é que Platão e Aristóteles dedicam mais espaço à educação do que a qualquer outro tópico nos seus exercícios sobre o melhor governo. 139 LAT220/ING221/FRA594.

Page 73: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

72

punido com o impedimento de casar, e isso é considerado uma grande vergonha para o

malfeitor e principalmente para a família, que é acusada de não saber educar o membro

adequadamente nos costumes dos ilhéus. Existe uma questão a ser destacada:

[...] se uma das pessoas lesadas, apesar de a outra parte não o merecer, persistir em afecto por ela, não lhe está vedado permanecer fiel à lei do matrimônio, aceitando acompanhar o culpado nos trabalhos a que for condenado; acontece, por vezes, que o arrependimento de um e o acompanhamento empenhado de outro, ao induzirem o príncipe a ser indulgente, conseguem restituí-los de novo à liberdade. Porém, ao que volta a cair em falta, a pena de morte é o castigo a ser infligido. (MORVS, 2006, p. 541).140

Os utopianos são mais severos nos castigos com os próprios ilhéus do que com os

estrangeiros, visto que todos tiveram acesso à educação de melhor qualidade; por isso, não

pode alegar desconhecimento das leis e costumes, além de terem tido melhores condições de

desenvolver o seu caráter.

Quando se aborda a temática das leis na Utopia, não podemos esquecer a eficácia e

aplicabilidade do sistema penal. T.M. deseja que o corpo legal tenha como função deter o

crime, reformar e reabilitar o criminoso e reparar o mal que fora acometido a alguma vítima.

(LOGAN, 1983).

Nesse contexto, segundo Baker-Smith (1991, p. 110), estabelece-se como meta no

sistema penal utopiano destruir os vícios, mas salvar os criminosos.

Na Utopia, todos os criminosos são escravos, entretanto, o contrário não se dá. A

distinção se faz nos termos atribuídos a estes: servus e famuli. Os servus, tratados como

subumanos, contempla: primeiro, criminosos utopianos que recebem a forma mais severa de

penalidade, pois as suas educação e criação são motivos suficientes para evitar o erro;

segundo, prisioneiros de guerra, já que os Utopianos consideram criminosas as pessoas que

lutam contra eles, por isso fazem cumprir pena na Ilha141; e, terceiro, os condenados à morte

noutros lugares e comprados pelos utopianos estão cumprindo penas judiciais. Os famuli

consistem de voluntários estrangeiros que, por sua vontade própria, decidem oferecer a sua

mão de obra aos utopianos; estes são recebidos como trabalhadores e vivem livres. Dessa

140 LAT190/ING191/FRA554. 141 Convém a observação de que os utopianos só escravizam prisioneiros de guerra capturados nos conflitos em que eles próprios participavam.

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73

forma, a escravidão é encarada primariamente como uma condição penal, embora, para os

estrangeiros que são voluntários, ela possa se tornar benevolente.

Os escravos rebeldes são executados, mas, para os verdadeiramente arrependidos,

sempre há esperança de perdão em troca de penitência sincera. Neste aspecto, o sistema penal

é reformativo, ao invés de punitivo, e é um grande avanço em relação à prática europeia. A

exceção se faz aos prisioneiros adquiridos no estrangeiro, e sua reabilitação pode ser menos

garantida. No caso dos prisioneiros de guerra, estes, de todos, são os que menos são

reabilitados. (BAKER-SMITH, 1983).

Um castigo severo infligido ao seu concidadão é um excelente objeto de lição para os

utopianos, que preferem a escravidão à morte como castigo. O exemplo do escravo dura mais

tempo para deter outros de crimes semelhantes. No caso de uma ofensa severa, é vantajoso,

para a moralidade pública, que o castigo seja efetuado publicamente142. O sistema criminal

utopiano proporciona a severidade do castigo ao grau de hediondez do crime. Criminosos

incorrigíveis são executados como bestas indomáveis, que não podem ser contidas por prisão

ou corrente.143

3.3 O dever-ser da plebe

A constituição de uma nova civilização carecia de cidadãos capazes de renovar as

estruturas atrasadas, corruptas e decadentes da velha Europa. Como um exímio humanista,

T.M. pretendia fazer dos utopianos homens fortes e vigorosos, pois assim deveria ser a nova

sociedade criada por ele. T.M. mesmo dá uma descrição dos habitantes, mostrando que:

[...] de corpo, são eles destros e robustos, de forças maiores do que a estatura deixaria prever, ainda que ela não seja baixa. O seu solo não é uniformemente fértil nem o clima é dos mais salubres, mas eles protegem-se contra a temperatura mediante um regime alimentar apropriado, e com tal solicitude cuidam da terra que em nenhum outro lugar haverá colheitas e rebanhos mais reprodutíveis, nem corpos de homens mais vigorosos e menos atreitos a doenças. Assim, poder-se-á admirar a diligência com que executam os trabalhos que habitualmente fazem os lavradores, de tal modo que não só uma terra um tanto ingrata por natureza é melhorada pela sua habilidade e pelo seu trabalho. (MORVS, 2006, p. 565).144

142 A concepção didática do castigo é encontrada na obra platônica Leis. 143 Como também recomenda Platão nas Leis. 144 LAT178/ING179/FRA538.

Page 75: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

74

Quanto à forma de se organizarem, T.M. apresenta um modelo novo de cidadão e uma

nova dimensão de sociedade. Por isso, acrescenta: “É um povo acolhedor e alegre, inteligente,

que gosta do lazer, bastante sofrido nos trabalhos braçais a que se entregam. De resto, aliás, é

comedido nas suas ambições, infatigável em se entregar ao trabalho do espírito.” (MORVS,

2006, p. 567).145

Uma preocupação igualmente humanista, e que retrata a preocupação moreana com a

condição dos utopianos, é o tratamento dado àqueles que se caracterizavam como excluídos

ou discriminados socialmente. Assim, adverte ele que:

Troçar de um homem disforme ou estropiado é tido como torpe e baixo, não por aquele que é posto em troça, mas por quem assim o faz, pois lança estultamente em rosto a um infeliz, como se fosse uma falta, o que não está em suas mãos poder ser evitado. (MORVS, 2006, p. 595).146

Desse modo, condena toda forma de caçoar, rir e discriminar os desvalidos, como uma

crítica à sociedade em que vivia. Os esquecidos e humilhados socialmente não existiam no

contexto do reino e nem havia quem se preocupassem com eles.

A paridade sexual na sociedade utopiana também era uma peculiaridade, visto que o

espaço dado à mulher na Utopia era significativo, pois a ela era dada a mesma condição que

aos homens, até mesmo a habilidade militar para com o combate. (MORVS, 2006, p. 605).147

Caracteriza isto, portanto, uma inovação para a sociedade tradicional do tempo de T.M.

Baker-Smith (1991, p. 165) acrescenta ainda que o papel da mulher na vida utopiana

pode ajudar a revelar alguma coisa do seu caráter único. Nota-se um traço marcadamente

patriarcal no ordenamento da sociedade. Ao casar, as mulheres passam a conviver com os

maridos no domicílio deles, e elas participam de tarefas mais leves, como tecelagem,

trabalhos agrícolas, alimentação e cuidados maternos. Dentro da família individual, atendem

aos seus maridos, assim como os jovens atendem aos mais velhos. No final de cada mês, as

esposas fazem uma confissão de suas falhas aos pés do seu marido, como as crianças fazem

aos pés dos seus pais, numa versão secular de uma tradição monástica.

145 LAT178/ING179/FRA538. 146 LAT194/ING195/FRA557. 147 LAT200/ING201/FRA566.

Page 76: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

75

Outra descrição significativa feita à população utopiana, além da condição social

feminina, era a realidade do idoso e de funcionários públicos. Para Logan (1983, p. 212),

embora não haja exceções à regra comunitária, para idosos e alguns funcionários públicos são

permitidos certos privilégios, como: a isenção de trabalho manual, a preferência de alguns

assentos de oficiais e idosos nas refeições em comum e a distribuição dos melhores quitutes

aos mais idosos. Tudo isso serve apenas para destacar a autoridade destes grupos, conferindo-

lhes um destaque.

Na hierarquia familiar, “é ao mais idoso que compete chefiar a família”. (MORVS,

2006, p. 517).148 Todos na família devem obediência ao parente mais antigo, a não ser que,

por senilidade, ele tenha perdido faculdades, situação em que é substituído pelo que vem a

seguir na idade. Isto tem como resultado possibilitar aos membros mais responsáveis de uma

comunidade assegurar o comportamento correto dos menos responsáveis. Desse modo, o

contexto social, quanto ao povo que habita a ilha, não é complexo, revelando o desejo de T.M.

de estabelecer uma sociedade sem burocracia e pautada nos critérios e valores cristãos. É

também uma crítica ao modelo europeu de burocratismo e de corrupção institucional.

Numa análise da constituição familiar de Utopia, Baker-Smith (1983) ressalta que os

utopianos praticam a monogamia, e o seu código legal apóia essa prática de forma enfática.149

Isso não é surpresa, pois, a unidade familiar é a base da sociedade utópica. Há, no entanto,

costumes bem peculiares:

Se tal costume para nós se torna objecto de riso e o censuramos por estulto, eles, pelo contrário, admiram-se de que haja uma estultice tão grande da parte de todos os outros povos a ponto de, quando se trata de comprar um potro, em que a operação envolve pouco dinheiro, serem tão cautelosos que recusam fazer negócio sem o verem em pêlo, depois de lhe retirarem a sela e depois de lhe arrancarem todos os adereços, não vá acontecer que debaixo das mantas se esconda alguma matadura, mas, quando se trata de escolher cônjuge, em que a situação é de ficar acompanhado, a gosto ou a contragosto, para um vida inteira, procedem com tamanha displicência que deixam todo o corpo encoberto pela roupa e avaliam a mulher no seu todo por um palmo mal medido (de facto não mais se vê que não seja o rosto) e trazem-na para junto de si sem terem em conta o perigo, que é grande (se só

148 LAT136/ING137/FRA482. 149 Existe uma grande divergência em relação à proposta platônica na República, em que a comunhão dos bens inclui a comunidade de parceiros. Entretanto, o costume de apresentar noivos nus uns aos outros antes do casamento possui paralelo nas Leis platônicas, em que o dançar nu preenche a mesma função.

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76

derem com ele depois), de quadrarem mal um com o outro. (MORVS, 2006, p. 587).150

Todo utopiano sabe quem são seus filhos, mas as famílias nucleares são integradas nas

famílias estendidas de cada casa, que, em regra, são ligadas por sangue. Estas casas, por sua

vez, são integradas dentro de famílias maiores, encabeçadas pelos sifograntos (ou filarcos), o

que resulta em a ilha inteira ser considerada como uma única família. Esta elaborada

organização familiar é um dos meios pelos quais os utopianos se protegem dos possíveis

efeitos nefastos do seu igualitarismo.

Cada família contém entre 10 (dez) e 16 (dezesseis) adultos na cidade, e até 40

(quarenta) no campo. Sobre cada uma, preside o casal mais idoso, o paterfamilias e sua

esposa. O magistrado mais baixo, chamado de sifograntos (ou filarcos), proporciona uma

ligação entre a familiae de uma cidade e o senado. Existem 200 (duzentos) deles. Cada um é

eleito por um grupo de 30 (trinta) famílias para servir por um ano. Das suas funções

constitucionais, a sua principal tarefa é supervisionar o trabalho e evitar a preguiça. Outro

papel é assegurar que o governo não perca contato com o cidadão. Os eruditos representam o

grupo de onde são eleitos estes funcionários públicos. Os sifograntos (ou filarcos) possuem

um papel primordial entre os dois extremos da constituição, limitando o poder do senado e

proporcionando a oportunidade para a participação popular no debate. Quanto aos números da

população:

Existem 6 mil famílias com uma média de 13 adultos em cada cidade, isto é, 78 mil. Se isto é duplicado no campo, então cada Cidade-estado possui em torno de 156 mil adultos, e a Utopia possui 8 milhões e 424 mil adultos. Em 1516 a população de Londres era em torno de 60 mil e da Inglaterra 2 milhões e 300 mil, dos quais somente 300 mil residiam em cidades. (BAKER-SMITH, 2006, p. 196).

T.M. redige uma série de orientações para a população utopiana, indo desde a

quantidade de habitantes que devem compor a ilha, pois o número de habitantes de cada

cidade deve ser mantido dentro da média predeterminada. Quando existem famílias

excedentes ou deficitárias, pessoas são deslocadas para compensar. Se, no entanto, exceder o

máximo estabelecido para a ilha, fundam-se colônias utopianas em terras estrangeiras, onde

houver terra improdutiva. Convém escutar do próprio autor suas ideias sobre a reforma

agrária:

150 LAT188/ING189/FRA550.

Page 78: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

77

Se os donos originais aceitarem, ficarão todos unidos pelas mesmas instituições e pelos mesmos costumes, facilmente se fundem as populações em benefício de ambos os povos. Efetivamente, mediante as suas instituições, conseguem que aquela terra, que a outros pareceria ingrata e estéril, se torne fecunda para os dois povos. Quando os indígenas recusam as novas leis, expulsam-nos das fronteiras que eles próprios definem para si; contra os que opõem resistência recorrem à luta, pois consideram haver razões plenamente justas para uma guerra, quando qualquer povo implantado num território dele não se serve, mas apenas preserva a propriedade, deixando-o improdutivo e ao abandono, proibindo o seu uso e a sua posse a outros que por lei natural nele devem procurar subsistência. (MORVS, 2006, p. 515).151

No contexto das acomodações domiciliares, é interessante destacar sua padronização. O

que pode diferenciar uma moradia da outra são os jardins, a única coisa de que eles podem

sentir falta quando são obrigados a mudar de residência a cada dez anos. Podemos dizer que

os jardins urbanos são o principal deleite dos cidadãos. Baker-Smith (1991, p. 160) alega que

existe um aspecto simbólico nisto: o jardim representa a harmonia da arte e da natureza. Uma

reconciliação da ordem com a fecundidade. Os jardins são simbólicos na própria Utopia, pois

modificam o dano causado num jardim perdido anteriormente e o deleite na antecipação de

um paraíso reconquistado. No decorrer da era humanista, o jardim persiste como o ambiente

preferido para diálogos literários, como foi o diálogo que originou a Utopia, de acordo com a

obra. (BAKER-SMITH, 1983).

Quando se fala em moradia na Utopia, significa reconhecer o trabalho de quem produz

na cidade. Característicos do trabalho na ilha são o esmero e o comprometimento com os

resultados, e a construção civil não seria diferente. O capricho com o qual os prédios são

levantados e a sua manutenção constante são típicos de uma sociedade na qual não há o

comprometimento da qualidade por questão pecuniária.152 Deste modo, com um trabalho

mínimo envolvendo uma manutenção constante, os edifícios utopianos são conservados por

muitíssimo tempo, e os responsáveis pela construção civil dificilmente teriam trabalho a

executar se não lhes fossem dadas ordens para o preparo antecipado de material para

construção, como o corte e tratamento da madeira e o ajuste das pedras, para que, quando a

necessidade surgir, caso ocorra alguma obra, ela possa ser construída rapidamente. (MORVS,

2006).

151 LAT134/ING135/FRA481. 152 Na sociedade europeia, os custos envolvendo a manutenção das moradias muitas vezes estavam acima das condições dos moradores. O resultado é a degradação dos imóveis a ponto de inviabilizar o seu conserto, necessitando demolir para construir outro a um custo maior.

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78

T.M. também fez uma série de orientações, voltadas para o vestuário utopiano, de

maneira a revelar a condição em que cada habitante ocupa na ilha. As roupas são simples,

porém confortáveis, e são produzidas por cada casa. Quando necessitam, por motivo de

trabalho, usam artigos de couro, mas normalmente se vestem usando o linho e a lã sem

tingimento, com a cor original do tecido. Assim, ele diz: “quanto ao linho, ele reclama menos

trabalho e por isso o seu uso é mais frequente; mesmo assim, no linho só atendem ao candor,

na lã apenas olham ao asseio, não levando em conta a delicadeza do fio.” (MORVS, 2006, p.

507).153 Dessa forma, evitam os exageros muito comuns na Europa do tempo do autor, em que

nunca parecia haver o suficiente para se vestir:

Em consequência disso, enquanto noutros lados por vezes se tornam necessárias para uma só pessoa quatro ou cinco togas de lã, de diversas cores, e outras tantas túnicas de seda (aliás, para os mais requintados nem dez bastam), aí qualquer um se contenta com uma apenas, a maior parte das vezes, para dois anos. Não há de facto razão alguma para andar em busca de mais para com elas se abrigar melhor contra o frio ou parecer mais bem vestido com uma nova peça ou com uma nova cor. (MORVS, 2006, p. 507).154

Lembre-se que os utopianos julgam o valor de todas as coisas de acordo com sua

natureza e, já que roupas, por sua natureza, visam apenas à proteção e à modéstia do corpo, o

que estiver acima disto não é natural. Portanto, o deleite nos exageros apenas demonstra o

falso prazer.

T.M. faz com que a roupa de todos os utopianos seja do mesmo corte, com exceção de

masculino e feminino, solteiro e casado. Estas roupas persistem imutáveis através das

gerações. São agradáveis a vista, ajustadas para o livre movimento do corpo e adaptadas para

o frio e o calor. Enquanto que as roupas profissionais, feitos de couro, duram em torno de

sete anos, as demais vestimentas duram por volta de dois anos155.

A tradição cristã herdou dos hebreus uma predileção por um horário dispensado para a

alimentação e sempre reservou especial atenção para as refeições. T.M., herdeiro desta

153 LAT132/ING133/FRA478. 154 LAT132/ING133/FRA478. 155 “Os utopianos são como Lycurgus que, como Erasmus conta no seu Apophthegns, baniram a arte da tintura, pois, enquanto a cor prazerosamente engana a vista, a natureza da coisa é corrompida.” (SURTZ, 1957a, p.46). Surtz (1957a) continua afirmando que a única preocupação é com a limpeza do tecido, e nenhum valor é atribuído ao tamanho do fio.

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79

tradição judaico-cristã, igualmente reconhecia a necessidade de prescrever orientação para os

utopianos com relação à alimentação. Assim, T.M. explica que:

[...] as refeições do meio-dia são bastante ligeiras, as do fim do dia são mais largas, pois às primeiras segue-se o trabalho, às outras sucede-se o sono e o descanso da noite, que é considerado de bom efeito para uma digestão que seja saudável. Não há jantar que passe sem música (58) e nunca falta uma sobremesa sem alguma guloseima. Queimam-se aromas e espalham-se essências, nada poupam que sirva para tornar agradável o convívio. Efetivamente, por seu natural, são levados a pensar que nenhum tipo de prazer é de excluir, contanto que dele não provenha qualquer inconveniente. (MORVS, 2006, p. 563).156

Outra orientação significativa de T.M. é de que, depois que o encarregado dos doentes

retira a porção de alimentos prescritos pelos médicos, o restante seja distribuído

equitativamente pelas mansões, de acordo com a quantidade de pessoas de cada uma, “tendo-

se, contudo, em atenção o príncipe, o pontífice, os traníboros, bem como os embaixadores e

todos os forasteiros” (MORVS, 2006, p. 521)157, sem deixar de incluir os idosos, pois para

estes são reservados aquilo que não há como ser dividido igualitariamente a todos. Todos os

visitantes, referidos aqui como forasteiros, quando os há, possuem sempre acomodações bem

equipadas.

Os horários das refeições são ao meio-dia e no fim da tarde, e são anunciados por uma

trombeta de bronze. Todos, menos os acamados, se dirigem para o refeitório localizado na

mansão do sifogranto. Apesar de não ser proibido levar alimento para comer em casa,

ninguém dispensa a comodidade dos restaurantes onde, além de haver muita fartura, ainda

existe, no caso da refeição no final da tarde, por ser mais demorada, acompanhamento de

música. (MORVS, 2006).

As posições que cada um ocupa no refeitório dizem respeito aos seus cargos e a sua

idade. Destaca-se o Sifogranto com a sua esposa na companhia de um casal de mais idade,

quando não acompanhado do sacerdote e da esposa, caso haja um templo na área. Desta mesa

se tem a vista geral do refeitório. Nas demais mesas, sentam quatro:

[...] frente a frente, e alternadamente, ficam colocados os mais jovens e os anciãos, com a finalidade de assim por toda a casa se relacionarem os que são da mesma idade e se misturarem os que são de tempos diferentes; assim foi estatuído, dizem, para que a gravidade dos anciãos e o respeito que lhes é

156 LAT142/ING143/FRA493. 157 LAT140/ING141/FRA486.

Page 81: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

80

devido ponham cobro a qualquer leviandade insensata dos jovens (já que nada se pode fazer ou dizer que escape aos vizinhos, quaisquer que eles sejam).” (MORVS, 2006, p. 563).158

Quanto à temática da saúde, T.M. não se refere a isto como algo relevante, visto que a

preocupação está com a vida de prazer. Se a condição do utopianismo é a da experiência da

vida saudável, falar de doença parece ser um desuso na ilha. No entanto, T.M. revela que

mesmo “sendo eles os que menos precisam de conhecimentos médicos, em parte alguma lhe é

dado maior crédito, até porque colocam a sua aquisição no plano das partes mais belas e mais

úteis do saber, já que lhes permitem perscrutar os segredos da natureza.” (MORVS, 2006, p.

575).159 Acreditam os utopianos que Deus, que na obra é comparado a um autor, revela a sua

criação para ser contemplada pelo homem, que foi o único a ser agraciado por esta capacidade

de admirar a obra divina. (MORVS, 2006).160

Os doentes são muito bem cuidados, “e não lhes faltam com nada que lhes possa servir

para restabelecer a saúde, seja em medicamentos, seja em dieta alimentar”. (MORVS, 2006,

p. 583).161 Os hospitais, mais parecendo pequenas vilas em tamanho, localizados fora da área

urbana, são bem equipados e repletos de funcionários capacitados. Revela-se aqui o altruísmo

cristão da prática da caridade e do cuidado com os fracos e os desvalidos. Para T.M., não há

como instaurar uma civilização sem o emprego destes conceitos humanistas, tão esquecidos

na sociedade do seu tempo.

Quanto ao trabalho na ilha, observa Surtz (1957a), como devotos da razão e do senso

comum, os utopianos seguem um raciocínio lógico e valorizam os prazeres da alma como os

mais importantes.

Os seus habitantes dividem o dia, incluindo a noite, em vinte e quatro horas de tempos iguais: seis horas são dedicadas a trabalhar, três antes do meio-dia, depois das quais tem lugar o almoço que se prolonga pela sesta em descanso, retomando de seguida o trabalho durante três horas, para tudo terminar com a refeição principal. Uma vez que se contam as horas a partir do meio-dia, é às oito horas que se deitam; o sono exige oito horas. (MORVS, 2006, p. 505).162

158 LAT142/ING143/FRA490. 159 LAT182/ING183/FRA542. 160 LAT182/ING183/FRA542. 161 LAT186/ING187/FRA546. 162 LAT126/ING127/FRA469.

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81

Antes do amanhecer, são disponibilizadas palestras sobre os mais diversos assuntos, em

que a participação para os estudantes é obrigatória, sendo abertas para os demais membros da

comunidade. Graças a uma vontade de se instruir cada vez mais, inerente ao utopiano, essas

palestras são bastante populares. No entanto, para aqueles que não se interessam por

disciplinas intelectuais, “se alguém quiser aplicar esse mesmo tempo a trabalhar no ofício que

lhe cabe (há quem não tenha dotes para se dedicar a disciplinas intelectuais), não fica

impedido de o fazer, mas até é elogiado por ser útil à comunidade”. (MORVS, 2006, p.

505).163

Riquezas e honrarias nada significam para os utopianos, que desprezam estes falsos

prazeres, pois afirmam que nada se compara com o deleite de conhecer a verdade e a

realidade. Este é o motivo por detrás da decisão de reduzir as horas de trabalho ao máximo

para que os cidadãos possam ter o máximo de tempo para se dedicar a perseguir os

verdadeiros prazeres, pois “acreditam que todos os cidadãos devem se libertar do serviço

corporal para alcançar a liberdade da mente, é disso que eles acreditam que consiste a

felicidade desta vida.” (SURTZ, 1957a, p. 62).164

Na Utopia, todos satisfazem seus desejos, contanto que trabalhem. Até viajantes devem

contribuir, com suas tarefas costumeiras, antes de serem alimentados. Assim, o trabalho é a

base do valor, e a vida está de tal forma ordenada que o trabalho em tarefas essenciais, como a

agricultura, possui alta estima na sociedade utopiana.

Mencionar a temática de religião significa dizer que é algo que reúne a instância pública

e a efetivação do Estado. Os utopianos dispõem da condição pública da religião, em que todos

exercem a sua confissão de fé amparada pelo Estado (SURTZ, 1957b, p. 189).165

A política de tolerância, implantada pelo primeiro governante da Utopia, atende aos

interesses da religião, pois permite que a melhor religião, a verdadeira, se revele. Com isso,

163 LAT126/ING127/FRA469. 164 Baker-Smith (1991, p.202) relaciona a condição do trabalho na Utopia com o dinheiro, o que revela o quanto ele pode ser objeto que corrompe a dignidade humana na ilha, à luz das investigações que realizou sobre T.M. Dinheiro é o meio pelo qual uma comunidade natural é corrompida para um sistema artificial, em que os ricos controlam em benefício próprio. Numa sociedade em que dinheiro, um mero cifrão, substitui o valor intrínseco das coisas, distorções fundamentais se tornam possíveis. 165 Para Baker-Smith (1991, p.172) “A crença na alma, conforme os conceitos platônicos, demonstra que os utopianos são platonistas florentinos. Este aspecto da influência de Platão era particularmente proeminente no início do Século XVI.” Surtz (1957b, p.49) complementa: “Aeneas Silvius declara que os príncipes filósofos, principalmente Sócrates, Platão e Aristóteles, possuem as mesmas verdades: eles acreditam nas mesmas coisas que os cristãos a respeito do governo do mundo, da imortalidade da alma, e a respeito de Deus”.

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82

acreditam os utopianos que nenhuma religião pode ser fonte ou ocasião de danos ou maus

tratos.

Para Surtz (1957b), a distinção e a relação entre razão e revelação fornecem a base para

a interpretação humanista da Utopia, pois os humanistas da época acreditavam numa força

inata e natural da verdade, pois nada é mais poderoso que a verdade. Isso significa dizer que

os utopianos são livres para manterem qualquer outra verdade religiosa, contanto que eles

acreditem na existência e providência divinas e na imortalidade da alma humana.166 A crença,

no entanto, tem que satisfazer duas condições: primeira, ser fundamentada num argumento

racional; e, segundo, não conduzir a uma vida amoral.

Para Baker-Smith (1991, p. 189), “a religião utopiana possui uma característica

revolucionária partindo de mitos locais a princípios gerais.” A vitoria de Útopus sobre os

nativos por conta das divergências religiosas o tornou precavido quanto ao lidar com as

crenças dos seus súditos, permitindo uma liberdade religiosa. No entanto, existe uma

construção de elementos religiosos comuns a todas as religiões, os quais são destacados e

usados para formular a essência de um culto nacional. Todos os cidadãos participam do

louvor público conduzido no templo, e o rito dos cultos particulares é reservado para o lar.

De acordo com Surtz (1957b, p. 119), a dependência singular utopiana na sua

racionalidade torna seus habitantes:

[...] ignorantes da ordem supernatural na qual vivem e, portanto, só podem filosofar a respeito da ordem natural. Consequentemente, não fazem distinção entre atos naturalmente bons e atos supernaturalmente ou salutariamente benéficos. Mas, eles acreditam na providência e no ser supremo que impôs como condição a observância da lei moral que está imbuída na natureza humana e que se tornou conhecida através do uso da razão humana.

Surtz (1957b, p. 10) complementa ainda que:

[...] a religião natural é nada mais do que a complexidade de verdades a respeito de Deus. É o especulativo e o prático vistos através da luz natural da razão e os deveres que fluem destas verdades. Na revelação sobrenatural, de onde advém a religião, Deus fala diretamente ao homem e atesta a verdade que ele diz também de uma forma sobrenatural.

166 Recorda-se que esta é a condição sine qua non para a moralidade utopiana.

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83

Mais adiante (SURTZ 1957b, p. 49), relaciona as verdades básicas que, de acordo com a

lei de Útopos, cada utopiano sensato defende. Primeiramente, a existência de Deus é

pressuposto e, implicitamente, contida nesta lei. Todos os utopianos acreditam na existência

de um ser supremo, mas discordam na sua identidade. Em segundo lugar, há a crença de que

Deus se comporta em relação ao homem e ao universo com uma providência amável. Em

terceiro lugar, a crença dos utopianos sensatos na imortalidade da alma humana. Por último,

como um importante corolário, a fé na providência, pois é necessário acreditar na retribuição

futura para a alma imortal.

Há uma evolução religiosa em Utopia, pois Surtz (1957b) observa que a discussão dos

utopianos sobre a vida boa dos mortos possui duas finalidades: primeiro, estimula os vivos no

exercício da virtude; e, segundo, serve como forma de veneração que agrada aos mortos. Eles

acreditam que os mortos estão presentes quando se conversa a respeito deles. A razão para

isso é que os mortos podem andar por onde querem e não são mal agradecidos às boas

companhias que tiveram em vida. Homens bons, acreditam os utopianos, depois que morrem,

possuem um incremento no seu amor e caridade.

Desse modo, podemos verificar que a religião utopiana mostra uma tendência evolutiva

que parte de cultos específicos para uma formulação mais intelectual do divino. Só

gradativamente, estão eles abrindo mão da superstição e compartilhando de uma compreensão

intelectual de Deus em comum. O que Raphael descreve é a emergência de um sistema de

teologia natural que ascende às imagens restritas de seitas em particular, por isso, não há

estátuas nos seus templos. (BAKER-SMITH, 1991).

Page 85: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

84

CONCLUSÃO

O presente trabalho teve por objetivo defender a existência de uma filosofia moral e

política utopiana. Como toda filosofia moral e política, o ponto inicial se faz através de uma

leitura crítica de uma situação histórica, seja no presente ou no passado. Com os elementos

extraídos dessa visão, idealiza-se como aquela situação deveria ser, propondo soluções para

os problemas observados. Além da crítica e do dever-ser, todo estudo da moralidade, seja

individual ou coletiva, deve possuir uma fundamentação filosófica.

A filosofia moral e política utopiana não se encontra exposta em conceitos estanques,

como costumeiramente encontra-se nos estudos sobre o tema, mas, inserida dentro de uma

pseudorrealidade, cujas leitura e coerência se mostram viáveis, ou não. Portanto, não se trata

de estudo de teoria pura, na qual os conceitos são abstraídos da realidade, mas antes uma

teoria experimental, em que o leitor se defronta com a aplicabilidade e a viabilidade dos

conceitos.

Na Utopia de T.M., podemos ver nitidamente uma crítica contida, essencialmente, no

Primeiro Livro, embora não se atenha a ele, e um dever-ser que se concentra nas páginas do

Segundo Livro, mas estando presente também no Primeiro. Este dever-ser se encontra

exemplificado na práxis, quando se apresentam as soluções para os problemas expostos na

crítica.

A crítica está concentrada em duas questões elementares: uma individual, que é o falso

prazer; e a outra, coletiva, que promove a desigualdade. Ela se faz não somente no repúdio a

atos nefastos cometidos na busca de falsos prazeres, mas também na flagrante demonstração

da desigualdade que imperava na Europa.

Na crítica aos governantes, T.M. rejeita a predominância dos interesses pessoais sobre

os coletivos. O pensamento corrente à época era de que os súditos foram dados por Deus para

o desfrute e a realização pessoal dos governantes, ou seja, a população era apenas os meios

para se atingir os fins do regente. T.M. inverte esta ordem perversa, transformando a

população no verdadeiro propósito de se governar.

Page 86: A FILOSOFIA MORAL E POLÍTICA NA UTOPIA DE THOMAS MORUS

85

A crítica feita aos nobres também se aplicava ao clero, detentor do mesmo status de

nobreza. T.M recusa a exploração dos protegidos e o desrespeito à justiça, que atentava

somente para os seus próprios interesses, relegando a população a um segundo plano.

A população, no entanto, também não escapa do escrutínio de T.M. quanto a sua

dissimulação, ao querer se convencer da validade dos falsos prazeres. Ele renegava estes

vícios, que não se limitavam à população, pois eram cultivados por todos e acabavam por

desenvolver os males que os assolavam, não importando a condição social.

Toda a fundamentação filosófica da Utopia de T.M. se alicerça numa única questão: a

existência de uma natureza humana, criada por Deus, para que o homem pudesse ser feliz. A

partir desta crença no Criador, desenrolam-se os demais alicerces da moralidade utopiana. O

homem teria sido dotado da capacidade de discernimento por projeto original divino, e não

teria alcançado esta condição pelo pecado original. A ele foi dado o livre-arbítrio, que se

constitui na virtude do uso da razão, meio pelo qual ele pode escolher entre os falsos e

verdadeiros prazeres.

O dever-ser moreano se vê demonstrado em todas as áreas da vida utopiana e tem como

base a educação, objeto da Ética da Virtude, que proporciona a formação do homem e cidadão

ideal, resultando na sociedade perfeita. Tudo se ramifica desta peculiaridade, tão inovadora

para a sua época.

Por fim, mister se destacar a importância da utopia moreana. A partir de tão singela

obra, cunhou-se um termo, fundou-se um gênero que permeia as ciências humanas e

construiu-se uma base para o socialismo, comunismo e comunitarismo contemporâneos. Em

quase cinco séculos de existência, continua oferecendo soluções para os graves problemas

enfrentados pela sociedade até os dias atuais.

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86

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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