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\.~-- A UTOPIA CAMPONESA oct~Vio Ianni IX Encontro Anual da Anpocs - GT "Estado e .Agricul tu r a" Águas de São Pedro, 22 a 25 de outubro de 1985

A UTOPIA CAMPONESA

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Page 1: A UTOPIA CAMPONESA

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A UTOPIA CAMPONESA

oct~Vio Ianni

IX Encontro Anual da Anpocs - GT "Estado e .Agricul tu r a"

Águas de São Pedro, 22 a 25 de outubro de 1985

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+ ••. ."-

o movimento social camponês aparece duas vezes na históriada sociedade nacional. Na primeira, ao formar-se a nação burguesa,quando a revolução burguesa cria ou organiza a sociedade nacional,em conformidade com os seus ideais e interêsses. Na segunda, 80

formar-se a nação socialista, quando a revolução popular, operário-camponesa ou socialista cria e recria, segundo outros ideais e Ln-terêsses, a sociedade n aoã onaâ herdada da burguesia.

Acontece que as duas revoluções são também revoluções agrá-rias. Transformam a sociedade em toda a sua extensão, compreendendoa cidade e o campo, a sociedade civil e o estado. Enquanto um pro-cesso social de grande envergadura, que afeta as formas de vida etrabalho, as instituições e a cultura, as relações do indivíduo,família, grupo, classe, com a sociedade como um todo e o poder es-tatal, a revolução altera também as condições de vida e trabalho,os padrões e os valores no campo. Acresce que a revolução socialnão é necessàri amente uma ruptura abrupta, total, violent 8. :Podeser lenta, desigual, contraditória. Sempre engendra ou dinamizafôrças adversas,' contra-revolucionárias. Vem de longe, vai longe.Em geral, é larga a gestação e a duração do processo revolucioná-rio, a despeito doe seus sinais mais vi eíveis, espetaculares, dr-a-

t claro que o movimento camponês aparece tsmbém em. outrasconjunturas. A história da sociedade nacional, na maioria dos paí-ses, compreende muitas manifestações de pequenos produtores rurais.As sues reivindicações e revoltas, de alcance local, regional ounacional, são acontecimentos sem os quais seria impossivel compre-ender a história nacional.

máticcs, épicos.

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2..

Cabe registrar, ainda, que a presença do campesinato na re-volução social não se organiza de modo necessàriamente revolucioná-rio. Nem sempre êle se coloca o desenvolvimento da economia, a par-ticipação no mercado, a formação da sociedade nacional, a organiza-ção da ordem burguesa, a criação de uma sociedade socialista. Incluo.sive são frequentes os movimentos de cunho tradicionalista, adversosàs transformações sociais, estranhos ao que vem da cidade, indústria,govê rno, liA história· das revoluções burguesas moctra que, em deter-minadas condições, a contra-revolução pode conseguir realmente colo-car ao seu lado partes das massas populares, pelo menos temporària-mente" (1). A guerra da Vendéia, em. 1793-1795, com inspiração cató-lica e monarqui sta, mobili zou camponeses o ontra a República cri adapela Revolução Frôncesa.A rebelião dos Cristeros, em 1926-1929,de inspiração oatólica, mobilizou camponeses contra a marcha da Re-volução Mexicana. Há elementos contra-revolucionários 'no movimentosocial camponês, já que êete não se põe necessàriamente a, transfor-mação da sociedade nacional; nem leva em conta os ideais e interês-see predominantes nesta. Nem sempre o camponês está pensando a. "re-forma agrária", que aparece nos programas, discursos e lutas dospartidos políticos, na maioria dos casos de base urbana. Pensa aposse e o uso da terra na qual vive ou vivia. Estranha quando odenominam "camponês ". Reconhece que é trabalhador rural, lavrador,sitiante, posseiro, colono, arrendatário, meeiro, parceiro eto. Sãoos outros que di zem, falam, interpretam, criam, recriam ou mesno

(1)}lanfred Kossok, "Los movimientos populares en el ciclo de 18revoluoión burguesa", publicado por Manfred Kossok, AlbertSoboul, Gerhard Brendler, Jurgen Kubler, Max Zeuske e VolfgangKuttler, Lae Revoluciones Burguesas, tradução de Juan Luis Ver-mal e Octavi Fellissa, Editorfãi Criica, Barcelona, cap. 2, pp.99-123; citação da p. 106.

•..

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•• 3

transfiguram as reivindic ações e lutas do camponês. Multas vezesêste não se reconhece no que dizem dele, ou fazem por êle, a partirde partidos políticos, e,gências governamentais, org'ãos'da imprensa,igrej aa,

Em gera~, no entanto, o movimento social 'camponês se tornaum ingrediente básico, frequentemente deoisivo, da revoluç'ão. O ca-ráter das suas reivindicações econômicas, polítioas, culturais, re-ligiosas ou outras implica no questionamento da ordem sooial vigen-te. Não se interessa pelo dilema "povo sem história" ou "povo his-tórico". Pouco se empenha, na controvérsia sôbre "movimento socia~1Iou "par-t Ldo polí tico ". A sua prática social como um todo, compreen-dendo a luta pela preservação, conquista ou reconquista de suas con-dições de vida e trabalho, acaba por tornar-se um componente daslutas sociais que se desenvolvem no âmbito da sociedade oomo um to-do. Certamente o campesinato francês, às vésperas do 1789, e depoisdas muitas reivindicações e revoltas que desenvolvia desde séculosanteriores, oertamente não estava pensando na Bastilha, em Paris.Nem o ruso às vésperas de 1917, e depois de todas as lutas que rea-lizou desde séculos anteriores, pensava no Palácio de Inverno, emPetrogrado. O movimento social oamponês pode ressoar longe, meemosendo local, regional. "Não se diga que o movimento sooial excluio movimento político. Não há, jamais, movimento polítioo que não se-ja, ao mesmo tempo, social" (2).

As revoluções burguesas seriam mal explicadaa se não se levaem conta a maior ou meno presença do c~pesinato. Isso é verdadepara a Inglaterra, França, Alemanha, Italia, Russia, China, Méxioo,Brasil e outros paises, compreendendo revoluções prematuras, tardias

(2) Karl Marx, Miséria da Filosofia, tradução e introduç'ão de JoséPaulo Netto, Livraria Editora Ciênoias Humanas, São Paulo, 1982,p. 160.

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, 4... ~.

ou maduras. Toda revolução burguesa, na medida em que expressetambém o desenvolvimento das relações capitalistas de produção,implica na revolução a.grária. A acumulação originária, o desen-volvimento extensivo e intensivo do capitalismo no campot e mono-poli zação da propri eda.de e exploração da terra, ~ deeenvol vimen todesigual e combinado, êsses são processos estruturais ocorrendosimul taneamente com a revol'ução. São a expressão e o produto damarcha da revolução, vista na perspectiva. de soei edade nac ione.l.tsse é o contexto mais amplo no qual emerge o movimento social cam-ponês. Daí a sua significação hist6rica. Expressa o protesto dotrabalhador rural, da comunidade como uma forma de vida e trabalho,em face da revolução agrária provocada pela indústria. "A produçãocapi teliate. aomente sabe desenvolver a técnica e a combinação doprocesso social de produção minando, ao mesmo tempo, aa duas fontesoriginai a de tôda riqueza: .! terra ~ .2. homem" (3).

Entretanto, o campesinato tem sido derrotado em mui tas ba-telhas. Não dispõe de condiçõee para torna.r-se uma classe hegemô-

terna. Não se coloca a conquista do poder, do estado. Não formulanica. Subsiste, ao longo do tempo e das lutas, como classe aubal-

um projeto alternativo para a organização da sociedade nacional. Lutadesesperado para defender o seu modo de vida, um modo de vida dife-rente, dissonante daquele que se instala e expande com a revolução

alcançar a vi t6ria, aai arruinada, inexora.velmente, pelas consequên-

burguesa. :Por isso as muitas derrotas. "Coisa singular: nas trêsgrandes revoluções burguesas são os camponeses que fornecemm as tro-pas de combate, e êles também, precisamente, a classe que, depois de

(:3) Karl Marx, EI Capi tal, :3 tomos, tradução de Wenceslao Roces,Fondo de Cultura Economica, México, 1946-1947, tomo I, cap.XIII, p. 555.

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5-..~,.

cias econômicas dêsse triunfo" (4). Por isso zapata não teve mui too que fazer, quando conquistou o lugar física em que se encontravao centro do poder naoion81, em 1914. "Na naite de 24 de novembro,depois que os últimos carrancistas haviam evacuado a cidade de Mé-xico, os primeiros contingentes sulistas (zapatistas) entraram qua-se que envergonhadamente na capital. Por não conheoer qual era opapel que deviam desempenhar, não saquearan nem praticaram pilhagem,mas, como meninos perdidos, vagaram pelas ruas, batendo às portas epedindo comida. (•••) O próprio Zapata não se sentia mais tranquilo"do que os camponeses que compunham a sua fôrça (5).

Mas é discutivel afirmar que ve campesinato é Ifprimitiyo","pré-polí tico", IIsemhi stória", "sociaJ. e culturalmen te inferior"devido à "natureza da economia camponesa". Reitera-se a idéia declasse subalterna, em uma acepção negativa, quando seeecreve que"no fundo, os camponeses são e sentem-se eubaã t ernea, Com rarasexceções, sua perspectiva. é a de reformar a pirâmide social, nãodestruí-la". Busca-se compreender o campo a,partir da cidade, massem passar pela ótica camponesa. "Os camponeses são perfei tamentecapazes de julgar a situação política local, mas a sua dificuldadereal está em distinguir os movimentos políticos mais amplos que po-dem determiná-Ia ti (6). predomina uma visão externa, na qual sobres-saem aspectos econômicos e pOlítioos.

A situação agrária brasileira, em diferentes momentos,tem sido examinada nesses têrmos. "Do ponto de vista polítiCO, a

(4 )

(6)

Fredrich Engels, DeI Sooia.lismo Utópico al Socialismo Científi~,Editorial Progreso, Moscou, 1978, pp. 16-17. Tradução da respon-sabilidade da editor a.John Womach Jr., za~ta, y la Revoluci6n Mexicana, tradução deFrancisco Gonzálezamburu, Sigla Veintiuno Editores, México_1969, p. 215.Eric J. Hobsba~, Loe Campe!inos y 1a Políticd, tradução de Ale-jandro Férez, Editõrial Anagrama, Barcelona, 1976, pp. 22, 24 e27-28. No mesmo livro encontra.-se o texto de Hamza .Alavi, "LasClases Campeeinae y Ias Leal tades Primordiales".

(5 )

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luta pela terra - o que é diferente de luta pela aplicaçã.o da.le-gislaçã.o laboral agrária vigente - somente se apresenta em fonnageneralizada e aguda nas á.reas de fronteira agrícola, não sendoportanto o que caracteriza as regiões agrícolas mais importantesdo país. Embora a luta pela terra se apresente em determinados pon-toe como enfrentamentos armados entre Jagunços. grileiros e Ia,ti•.fundiárioa de um lado, e posseiras (e indígenas) de outro, comoproblema político ela se encontra cirounsorita e relativamente iso-Lada ••• li. Essas lutas seriam epenas'"a expressão da voracidade dosgrandes latifundiários ou capitalistas territorializadGs que buscam"limpar" suas terras de posseiros". Revelam '·0enoontro do grandecapital territorializado (investimentos das grandes emprêsas nacio-nais e multinacionais na pecuária, na agroindústria e em atividadesextrativas) com a eoonomia de subsistênoia desenvolvida por p08sei-ros" (7).

Essa interpretação leva um contrabando evoluoionista, alémde privilegiar o "eoonômioo li. Não aponta" nem implioa, as d~~eõeeaocí.aí e e culturais da oondiçã.o camponesa. Esquece o significadodas formas divergentes de vida e trabalho, em face das criadas pelocapitaliemo, como formas que podem r-epr-e sentar- aí.ternatí.vaa críticas.A comunidade camponesa pode ser ilusória, pretérita, romântioa. Maspode ser uma metáfora do outro mundo.

De fato, o movimento aocia! camponês não se propõe a conquie-ta do poder estatal, a organização da sooiedade nac Lonaã , a hegemoniacamponesa. Essas talvez sejam tarefas do partido polítioo. Pode sera.tarefa da classe operária, assooiada oom outras oategorias eecã aã a,

inclusive o campesinato. Mas iS80 não elimina nem reduz o s1gnific&-do revoluoionário das mui tas lutas que êese movimento reali za. :Em

(7) Paulo Sandroni, Qpestão Agrária e Campesinato, Editora Polis,São Paulo, 1980, IlP. 24 e 25.

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7~.. , ..

essência, o seu caráter radical está no obstáculo que representa à

exp~naão do capitalismo no campo; na afirmação da primazia do valorde uso sobre o valor de troca, a produção de valor, o trabalho alie-nado; na resistência. à transformação da terra em monopólio do capi-tal; na afinnação de um modo de vida e trabalho de cunho comunitário.

Aliás, não foi por acaso que Marx embatucou quando Vera ze-súlich lhe perguntou, em 1881, se havia possibilidade de que a co-muna rural russa se desenvolvesse na via socialista; ou se, ao con-trário, estava destinada a perecer com o desenvolvimento do capita-lismo na Russia. ~ase é um dos m~entos mais intrigantes e bonitosda biografia intelectual de Marx. Escreveu vários rascunhos, bus-cando uma resposta que fosse também uma reflexão sobre as condiçõesdo desenvolvimento do capitalismo, e' socialismo, naquele país. Na-turalmente procurou infor.mar-se melhor sôbre o que estava ocorrendoa.lí,nos anos reoen tes e em todo o século dezenove. Reconhecia quea expropriação do oampesinato acompanhava o desenvolvimento capita-lista ne Inglaterra, França e outros países. Mas julgou que êssenão precisava ser o mesmo caminho na Russia. Em certo passo da ver-são da carta que, afinal, enviou à sua correspondente, dizia: "Con-vencí-me de que esta comuns é o ponto de apóio da regeneração socialna RU8sia, mas para que posaa funcionar como tal será preciso eli-minar primeiramente as influ~ncias deletérias que a soossan por to-dos os lados e, em seguida, assegurar-lhe as condições normais paraum desenvolvimento espontâneo" (8). Aliás, em uma oarta anterior,de 1877, para a redação de uma revista político-literária, Marx jáhavia revelado um interêsse muito espeoial pela comunidade rural.

(8) Karl J.1arxa Vera Zasú1ich, carta de Londres, 8 de março de 1881 t

publicada em: K. Marx e'F. Engels, El Porvenir de la Comuns Ru-ral Rusa, tradu~ão de Félix Blanoo, Cuadernos de Pasado y Pre-sente, nQ 90, Mexico, 1980, 1'1'. 60-61; citação da p. 61.

"Se a Ru aad a continua, marchando pelo caminho que vem percorrendo

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8... ,-.

desde 1861, desperdiçará a. mai s bela oportunidade que a hi stóri a

j amais ofereceu a um povo, para evã tar tôdas a.s fatai s vici ssi tu-

des do regime ca.pitalista" (9). É fundamental constetar o desafio

que representou, pare Marx e outros, a idéia de que a comunidade

rural poderia ser preservada, ou recriada, no socialismo. O que

está em causa, nesse ca.pítulo intrigante e belo do pensamento de

Marx, é o reconhecimento de que o socialismo tem algo ou muito a

ver com a comunidade; que o socialismo seria uma forma comunitária

A revoluçã.o socialista é sempre uma revolução popular, na

de organização da vida e trabalho.

qual estão presentes camponeses, empregados e outras categorias so-

ciais, trabalhadores da cidade e campo. Nessa revolução, o campe-

sinato reaparece como f~rça social, ~s vezes decisiva. E essa pre-

sença será tanto mais forte quanto mais precário tiver sido o en-

caminhamento da questão agrária pela revolução burguesa. O que tor-

na particularmente decisiva a presença do campesinato na r-evoLuç ão

soe iali ata é fato de que a revolução burguesa nem resolve nem en-

caminha satisfatàriamente a questão agrária. É possivel dizer que

a import~ci a do campesinato nas revoluções soviética, 'chinesa, vi e-

vietnami ta, sandinista e outras se deve ao fato de que elas se de-

ram em paises bàsicamente agrários. Mas essa conetatação não eXpli-

ca tudo. Fode ser o indício de algo mais fundamental. A realidade

é que a persistência. do carater agrário de um país ~ode ter muito

a ver com a farma da revolução burguesa que nele se dá. Em certa me-

dida, pode- se di zer que a rôrça revolucionária do cempeaí.n at o ten

muita relação com o caráter da revolução burguesa.

(g) Karl Harx, Carta à Redação de otiéchestviennie Zapiski (Anaisda Pátria), escrita em fins de-r877; publicada em K. Marx e F.Engels, El Porvenir de Ia ComunaRural Ruaa, citado, pp. 62-65;citação da p. 63.

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9...,.•.

o capitalismo pode revolucionar de modo amplo o mundo agrá-rio, o que em geral destroi mui tas das bases das oondições de vidae trabalho do camponês. O desenvolvimento extensivo e intensivo docapitalimno no campo - compreendendo a acumulação originária, a mo-nopolização da propriedade e da exploração da terra, etc. - destroibastante a comunidade rural. Provoca a proletarização de muitos.Joga largos contingentes no exército industrial de reserva. E o cam-pesinato que subsiste, ou se recria, já n'âo será o mesmo, não seráum fermento sooial de maior envergadura. Suas reivindicações e lu-tas tendem a adquirir outros sentidos. Pode ingressar no mercado;inserir-se na produção de mercadorias; subordinar-se à grande emprê-sa na produção de algum gênero alimentício ou matéria prima; desen-volver reivindicações econômicas e políticas de pequena burguesiaagrária. tsse é o campesinato que representa uma base social impor-tante do bonapartismo que nasce com o golpe de estado de 1851, co-mandado por Luis Bonaparte. tsse é o campesinato que se organizouno movimento populista norte-americano, que floresoeu em fins doséculo dezenove. Nesses e outros casos, quando a revolução burguesaencaminha a questão agráriadecisivamente,aegundo as exigências dareprodução do capital, a revolução que provoca no oampo oria outrospatamares. ~sses, por exemplo, são campesinatos que reivindicam areforma da pirâmide social.

Entretanto, na medida em que a revolução burguesa nã.oprovo-ca maiores transformações no mundo agrário, ~reserva ou recria umcampesinato desoontente. Aí está uma condição básica da fôrça so-cial que ele pode representar, em âmbito locel, regional ou nacional.Nesse eentido é que "oe camponeses têm fornecido a dinamite :pareporsbaí.xo o velho edifíc io II (10). Nos pa! sea predominantemente agrári os,(10) Barrington Moore Jr., Social Origine of Dictatorship and Demoora-ss: (Lord and Peaaant in the Maldng ef the Modern World), Beacon

Presa, Boston, 1966, p. 480.

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o que pode significar. que a. revolução burguesa adquiriu aí deter-

minado caráter, nesses países, "sem as revoltas camponesas o radi-

c ali smo urbano não tem sido, afinal, c apaz de reali zar transforma-

ções sociais revolucionárias" (11). Essa foi uma revelação funda-

mental da revolução soviética. "Se a questão agrária, herança da

barbárie, da antiga história russa, tivesse sido resolvida pela bur-

guesia, caso pudesse ter recebido uma solução, o proletariado russo

não teria, jama.is, c ónaegu í do subir aG.poder em 1917" (12). Àos

poucos, no século vinte, descobrem-se as dimensões revolucionárias

dos movimentos sociais que Ocorrem no campo. Isso aconteceu tam-

bem na China, em dado momento da revolução social que se achava em

marcha então. \lÊ preciso retificar imediatamente todos os comentá-

rios contra o movimento camponês e corrigir, o quanto antes, as me-

d1da8 erradas que as autoridades revolucionárias tomavam em relação

a êle. S~ente assim se pode contribuir de algum modo para o futuro

da r evo'Lução , poi s o atual ascenso do movimento camponês é um aoon-

tecimento grandioso. Muito em breve, centenas de milhões de campo-

neses, a partir das provínCias do Centro, do Sul e do Norte da China,

vão se levantar como uma tempestade, como um fur~cão de extraordi-

nária violência, que nenhuma fôrça, por mais poderosa, poderá deter.

Vencerão todos os obstáculos e avançarão rapidamente pelo caminho da

libertação. Todos os imperia.lismos, caudilhos militares, funcioná-

rios corruptos, tiranos locais e shenshi perversos serão sepu1t ado a,

Todos os partidos e grupos revolucionários, todos 08 camaradas revo-

lucionários serão postos à prova perante 08 camponeses e terão de de-

oidir se os acei tam ou rejeitam" (13). No Vietnam, um pa.ís agrícola,

(11)

(12)

(13)

Thede Skocpol, States and Soci a.l Revolutions (A Comparati ve Âns-lyeie of France, Ruesia, end China), Cambridge University Presa,Cambridge, 1984, p. 113.Leon Trotsky, A História da Revo1uç'ão Russa, 3 vols., traduçãode E. Huggins, Editora Saga, Rio de Janeiro, 1967, 1Q vol., p.62.Mao Tse- tung, Escritos Soei 01ó~iCO~ul ture.1es, segunda edi ç ãe ,Edi torial Laia"; Baroelona, 197 , l?P;24-25. Citação do "Infomeaobre uma pe9~isa do movimento camponês em Hunan", de 1927. Apro-veito a traduçeo de Daniel Fonseca em Mao Tse-tung (organizedor:Eder Sader), Editora Átice, S~o paulo, 1982. v

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11..•........~

no qual a invasão estrangeira operou a revolução burguesa, o oampe-sinato representou a fôrça decisiva da revoluçã.o socialista. ":Parao sucesso da resistênoia e da reoonstrução nacional, para obter efe-tivamente a Lndependênc í a e a unidade nacionais, é absolutamenten eceaaár-í e apoiar-mo-nos no' campesinato H (14). Na Nicarágua, o san-dinimno tem uma base importante no campo. Nesse país, a vit6riada revolução foi aseímr liAinsurreição de uma massa popular integra-da por milhares e mi~hares de camponeses, pequenos produtores, mé-dios produtores, pequenos comerciantes, pequenos artesãos; OU seja,uma Repúb.I í.o a Popular, uma República de povo humilde" (15). Aliá.s,em diversos paises da América Latina e Caribe o trabalhador ruralentra na história. nacional; muitas vezes de forma decisiva. Aconte-.ce que nesses ~aíae6t também, a revolução burguesa não resolve aquestão agrária. Ieto é, ae transfor.mações que se operam no campogeneralizam as fatais viciesitudea do regime capitalista. sem abriroutros horizontes ao trabalhador rural. Como a burguesia não resol-ve nem a questão agrária nem a questão nacional, o campesinata seconstitui como uma fôrça social básica, tanto para refomar comopara revolucionar a pirâmide da sociedade (16).

A reivindicação principal do campesinato é a posse e o usoda terra. Luta pare preservar, conquista ou reconquistar o seuobjeto e meio básico de trabalho e vida. Em face da acumulação ori-ginária, ou do desenvolvimento extensivo e intensivo do capitalismono campo, o camponês luta pela terra. Reage à sua expulsão do lugar

(15)

Ho Chi Minh, "Aos Q,uadrosCamponeses", texto de 1949, publicad.oem Escritos I (1920-1954)t tradução de Franoisco Correia, EdiçõesMaria da Fonte, Lisboa (?), 1975, pp. 75-76; citaç~o da p. 75.Jaime ~eelock Román, em entrevista a Frei Beto, Nicarágpa Livre:O Primeiro Passo, Edi t ora Civilização Brasileira, fiio de JaneIro,r9'80, p. 61.Manfred Koaaok, "Los movimientoe populares en el ciclo de Ia.re-volución burguesa". publicado em La.sRevoluciones Burguesa.s, ci-tado, p. 114.

(14)

(16)

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2..•. ...~

em que constroi a sua vida. E essa luta frequentemente adquire co-no taç áo revolucionária. Por um lado, o oamponê s resiste à proleta-rização, no campo ou cidade. E isso é contrário ao funcionamento domercado de fôrça de trabalho, aos fluxos e refluxos do exército in-dustrial de reserva, à subordinação real do trabalho ao capital. Poroutro, a luta pela terra impede, ou dificulta, a monopolização daterra pelo capital, a sua transformação em propriedade mercantil,o desenvolvimento extensivo e in tensivo do ca.pitalismo na agricul-tura. Nessas duas perspectivas, o movimento camponês adquire di-mensão naciona.l e põe em causa os interêsses prevalecentes no go-vêrno, estado. Um dos componentes estruturais da ordem burguesa é

a burguesia agrária, a indústria agrícola, a produção de valor naagricultura. Na medida em que êsse elemento da ordem burguesa sevê bloqueado em seu funcionamento ou expansão, coloca.-se em pautaum problema para as classes dominantes, o bloco de poder •

••Mas o movimento social campones não se limita à luta pelaterra. 11eemo quando eeea é arei vindica.ção principal, êle compr-e-

ende outros ingredientes. A cultura, a religião, e língua ou dia-leto, a,etnia ou raça entram na formação e desenvolvimento das suasreivindiceçõee e lutas. Mais que isso, pode-se dizer que a lutapela terra é sempre, ao mesmo tempo, uma luta pela preservação, con-quista ou reconquista de um modo de vida e trabalho. Todo um con-junto de valores culturais entra em linha de conta, como componen-tes de um modo de ser e viver.

Acontece que tôda opressão econômica é também oultural e ao•.cial, além de política. A terra não é um fato da natureza, mas pro-duto material e espiritual do trabalho humano. A relação do camponêscom ela compreende um interoâmbito sooial complexo, que implioa a cul-tura. Jamais se limi ta à produção de gêneros alimentícios, elemen-toa de artesania, matarias primas para a sa,tisfação das necessidades

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l.3

,

de alimentação, vestuário, abrigo etc, l1uito mais que isso, a.re-lação do camponês com a terra põe em causa também a sua vida espi-ritual. A noite e o dia, a chuva e o sol, a estação de plantio ea da colhei ta, o tra.balho de alguns e o mutirão, a feata e o canto,a estória e a lenta, a façariha e a inventiva, são muitas as dimen-sõ es soeiais e cul turai s que se cri am e recriam. na rela.ção do cam-ponês com a sua terra, lugar.

Muitas vezes, é na cultura camponesa que se encontram algunselementos fundamentais da. sua capacidade de luta. A sua língua oudialeto, religião, valores culturais, histórias, produções musicais,literárias e outras entram na composição das suas condições de vida.e trabalho. Visão do mundo. Na luta pela terra pode haver conota-ções culturais importantes, decisivas, sem as quais seria impossi-vel compreender a força dm suas reivindicações eoonômicas e políti-c as.

A comunidade camponesa é o universo social, econômico, polí-tico e cultural que expressa e funda o modo ser do camponês, a sin-gularidade do seu movimento social. E é precisamente aí que estáa sua fôrça. O oaráter revolucionário dêsse movimento sooial nãoadvém de um posicionamento explícito, frontal, contra o latifúndio,fazenda, plantação, emprêsa, mercado, dinheiro, capital, govêrno,rei, rainha, general, patria.rca, presidente, supremo, eatado, O seucaráter revolucionário está na afirmação e reaf! rmação da comunidade.A sua radicalidade está na desesperada defesa das euaa condições devida e trebalho. IIOS cernpone sea levantem-se em armas para corrigirmales. Mas as injustiças contra as quaí.s se rebelam são, por suavez, manifestações locais de grandes perturbações sooiais. Per issea rebelião converte-se logo em revolução e os movimentos de massaetransformam a estrutura social como um todo. A própria sociedadeconverte-e e em campo de batalha e, quando a guerra tennina, a socí, e-dade eetará mudada; e, com ela, os camponeses. Assim, a fU9Ção do

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..• ....•. ~.

c ampesinato é essenci almen te t r-ág í,c as seus esforço s para eliminar

o pesado presente somente desembocam em um futura mais amplo e in-

certo. Não obstante, ainda que trágico, está pleno de esperança" (l?).

Há uma recôndita dia.lética comunidade-sociedade no movimento dessa

história. "]ir! geral, as revoltas camponesas não se dirigem contra

tal" (18).

uma classe, mas contra uma sociedade de classes. Por isso o desespero,.

do qual surge a 2rueldade, sempre marcou de forma particular as revol-

tas camponesas. Não·é o "fanático" que se revolta para defender a

sua propriedade, como tendemos 8 orer. t sobretudo a revolta do "pro-

fano" e do "bárbaro" contra o "sagrado" e a '·civilização" do oapi-

Ao

O movimento social campones nega a ordem burguesa, as fôrças

do mercado, as tendências predominantes das relações oapitalistas de

produção. ]in geral, a. radicalida.de dêsse movimento está em que im-

pl Lca em outro arranjo da 'vida e tr-abalho. ]in sua prática., pa.à.rõea,

valores, ideais, êle se opõe aos princípios do meroado, ao predomí.

nio da mercaderia, lucro, mais-valia. Sempre compreende um arranjo

das relações sooiais no qual se reduz, ou dissipa, a expropriação,

desemprêgo, miséria, alienação.

A comunidade oamponesa pode ser uma utopia construida pela

invenção do passado. Pode ser '8 quimera de a.lgo impossível no pre-

sente conformado pela ordem burguesa. Uma fantasia alheia às leis

e determinaçõ es que governam as fêrças produ ti vas e as relações de

produção no oapitalismo. Mas pode ser uma fabulação do futuro. Para

a maioria dos que são inconformadoa oom o presente,que não concordam

com a ordem burguesa, a utopia da comunidade é uma das possibilidades

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Eric "relf, Las Luchas Campeeinaa deI Si~10 XX,' tradução de Ro-berto Reyes:Mazzoni, Sigla Veintiuno Ed1tores, México, 1972,p. 409.Kostaa Vergopouloa, "Capita.liame Diff'0rme (Le 08S de l'agricul-ture dane 1e oapits.lisne)·, publioadG por Samir Jm.1n e }(o.tssVergopouloe, La 'fleetion Faye8Dlle et 1e CapltaUSIle, tdi tlon.Anthropos, Paris, teroeira edIçlõ, 1980, pp. 61-295; oit.ç~da p , 223.

Page 16: A UTOPIA CAMPONESA

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do futuro. Dentre as utopias criadas pela crítka da sociedadeburguesat coloca-se a da comunidade, uma ordem social transpa-rente. ~sse é, provavelmente, o significado maior do protestodesesperado e trágico do movimento social camponês.