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A Folha de São Paulo e a infância marginalizada Maurício de Medeiros Caleiro * Índice 1 Introdução ............. 1 2 A “questão da infância” ...... 3 2.1 A infância como construção histórico-social ......... 3 2.2 Tristes trópicos: a infância bra- sileira no contexto colonial ... 4 3 A imprensa e a “questão da infância” 5 4 A Folha de São Paulo e a situação da infância ............. 7 4.1 Dados gerais da pesquisa .... 7 4.2 Trabalho infantil ......... 10 4.3 Prostituição infantil ....... 12 5 Criminalização e direitos humanos 15 5.1 Questionando a inimputabili- dade penal ........... 15 5.2 A Febem e o sistema prisional . 16 5.3 A infância e o debate em torno dos direitos humanos ...... 20 6 Conclusões ............ 22 7 Referências bibliográficas ..... 23 7.1 Sites consultados ........ 25 7.2 Matérias e sub-retrancas utilizadas 25 Resumo Este trabalho procura desenvolver um exame crítico da cobertura jornalística des- tinada à problemática da infância marginali- * Universidade Federal Fluminense zada pelo jornal Folha de São Paulo no pe- ríodo compreendido entre janeiro de 2001 e março de 2002. “Moral e fisicamente, a cidade moderna vira as costas a seus fi- lhos. O que chamamos civiliza- ção só é para eles uma parede, um grande Não sobre o qual esbarram seus passos.” Octavio Paz 1 1 Introdução Em 1729, o escritor Jonathan Swift conce- beu uma fórmula simples e eficaz para, de uma só tacada, erradicar a chaga social da in- fância marginalizada e combater o flagelo da fome. Ante a proliferação incessante de pe- tizes relegados à miséria em sua Irlanda na- tal, o escriba, assaz inspirado, elaborou uma estratégia por meio da qual as hordas de re- melentos que povoavam Dublin, levadas ao forno, transformar-se-iam em tenro e nutri- tivo alimento para uma população vitimada pela peste e pela fome. Tal como sucedeu com Kafka, Van Gogh e outros tantos, o artista, uma vez mais, foi solenemente ignorado. Mas a sociedade não 1 PAZ, Octavio – “A tradição de uma arte passio- nal e feroz.” Em: KYROU, Ado – Luis Buñuel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 150.

A Folha de São Paulo e a infância marginalizada · 2 Maurício de Medeiros Caleiro demorou a pagar o preço de tal incúria – e a infância tornou-se, no desenrolar dos sé-culos,

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A Folha de São Paulo e a infância marginalizada

Maurício de Medeiros Caleiro∗

Índice

1 Introdução. . . . . . . . . . . . . 12 A “questão da infância”. . . . . . 32.1 A infância como construção

histórico-social . . . . . . . . . 32.2 Tristes trópicos: a infância bra-

sileira no contexto colonial. . . 43 A imprensa e a “questão da infância”54 A Folha de São Paulo e a situação

da infância. . . . . . . . . . . . . 74.1 Dados gerais da pesquisa. . . . 74.2 Trabalho infantil. . . . . . . . . 104.3 Prostituição infantil. . . . . . . 125 Criminalização e direitos humanos155.1 Questionando a inimputabili-

dade penal . . . . . . . . . . . 155.2 A Febem e o sistema prisional. 165.3 A infância e o debate em torno

dos direitos humanos. . . . . . 206 Conclusões . . . . . . . . . . . . 227 Referências bibliográficas. . . . . 237.1 Sites consultados. . . . . . . . 257.2 Matérias e sub-retrancas utilizadas25

Resumo

Este trabalho procura desenvolver umexame crítico da cobertura jornalística des-tinada à problemática da infância marginali-

∗Universidade Federal Fluminense

zada pelo jornalFolha de São Paulono pe-ríodo compreendido entre janeiro de 2001 emarço de 2002.

“Moral e fisicamente, a cidademoderna vira as costas a seus fi-lhos. O que chamamos civiliza-ção só é para eles uma parede, umgrande Não sobre o qual esbarramseus passos.”

Octavio Paz1

1 Introdução

Em 1729, o escritor Jonathan Swift conce-beu uma fórmula simples e eficaz para, deuma só tacada, erradicar a chaga social da in-fância marginalizada e combater o flagelo dafome. Ante a proliferação incessante de pe-tizes relegados à miséria em sua Irlanda na-tal, o escriba, assaz inspirado, elaborou umaestratégia por meio da qual as hordas de re-melentos que povoavam Dublin, levadas aoforno, transformar-se-iam em tenro e nutri-tivo alimento para uma população vitimadapela peste e pela fome.

Tal como sucedeu com Kafka, Van Goghe outros tantos, o artista, uma vez mais, foisolenemente ignorado. Mas a sociedade não

1 PAZ, Octavio – “A tradição de uma arte passio-nal e feroz.” Em: KYROU, Ado –Luis Buñuel. Riode Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 150.

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demorou a pagar o preço de tal incúria – ea infância tornou-se, no desenrolar dos sé-culos, um problema espraiadoall over theworld, um grave sintoma da exclusão e de-sigualdade sobre o qual o cenário dos tem-pos atuais, marcado pelo descompasso en-tre desenvolvimento tecnológico e encolhi-mento do mercado de trabalho, não acenacom alentos.

Este trabalho procura abordar criticamenteo tratamento que um grande órgão da im-prensa brasileira – o jornalFolha de SãoPaulo– dispensa à “questão do menor” – en-tendida como aquela que aflige cidadãos e ci-dadãs menores de dezoito anos, em situaçãode abandono, pobreza, marginalidade ou de-linqüência. Recusamos, porém, a definição“crianças e adolescentes marginalizadosper-tencentes à classe trabalhadora”, empres-tada do vocabulário marxista e largamenteutilizada em boa parte da bibliografia sobreo tema, por entendermos que tal definição,além de reforçar o aspecto conservador da“ideologia do trabalho”, está particularmentedeslocada no cenário do capitalismo tecno-financeiro ora em vigor, em que o desem-pregado “é objeto de uma lógica planetáriaque supõe a supressão daquilo que se chamatrabalho; vale dizer, empregos”, como aludeViviane Forrester, em seu belo e desolado re-trato impressionista das relações de trabalhona era da tecnologia,O horror econômico.2

A pesquisa comportou o exame de textossobre o tema publicados no jornal em um pe-ríodo de quinze meses – de janeiro de 2001 amarço de 2002. Após analisados e cotejadosentre si, os artigos foram divididos em doisgrandes grupos: os que retratam a infância

2 FORRESTER, Viviane –O horror econômico.São Paulo: Unesp, 1997, p. 11.

em situação de penúria e exploração – privi-legiando temas como o abandono e o traba-lho e prostituição infantis -; e aqueles que, nomais das vezes apontando-lhe um dedo acu-sador, promovem o debate sobre questões li-gadas à criminalização infanto-juvenil.

No primeiro capítulo do trabalho procu-ramos traçar um breve histórico da evolu-ção do conceito de infância, sua conforma-ção através dos tempos, sob a inflexão quelhe é imposta pelas demandas do capital –com especial atenção ao contexto colonial noqual se desenvolve a história da criança bra-sileira. Introduzimos, também, um enfoquesobre a representação da infância marginali-zada – particularmente no que tange à abor-dagem da questão pela imprensa.

A pesquisa central deste trabalho é deba-tida no capítulo seguinte, a partir de umaapresentação geral dos resultados, seguidado destaque e análise crítica dos denomina-dores comuns às abordagens sobre a ques-tão perpetradas pelaFolha de São Paulo,em matérias publicadas durante o já referidoperíodo de quinze meses. Dos temas queobtiveram maior atenção por parte do jor-nal são inicialmente comentadas as aborda-gens sobre abandono da infância e trabalhoe prostituição infantil, para então, no capí-tulo seguinte – que deve ser entendido comoo corpo principal do trabalho – aprofundaranálises sobre as relações entre criminaliza-ção, infância e direitos humanos.

Para discutir as questões suscitadas pelodestaque que aFolha de São Paulo- como,estima-se, o grosso da imprensa brasileira- confere à relação criminalidade-infância(sobretudo através dos debates sobre sis-tema prisional e diminuição da idade mí-nima de imputabilidade penal), recorre-se auma base teórica que, a partir de uma in-

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cursão à Análise do Discurso (escola fran-cesa) e sua teoria materialista do discurso, talcomo enunciada por Michel Pêcheux, privi-legia o debate contemporâneo sobre crimino-logia, tendo como base os pressupostos sobredireitos humanos sustentados por pensadorescomo Norberto Bobbio e Piéces-Barba.

O espaço dasConclusõesservirá para quese correlacione, de forma crítica, as princi-pais questões levantadas pelo trabalho a suascausas e implicações sociais, no cenário de-solado da contemporaneidade.

2 A “questão da infância”

2.1 A infância como construçãohistórico-social

No decorrrer do último século a infân-cia vivenciou uma situação paradoxal: aopasso que, pela primeira vez na história,constituíam-se – no bojo da Declaração Uni-versal dos Direitos do Homem - salvaguar-das legais a seu desenvolvimento e proteção,ela se tornou, cada vez mais, uma proble-mática contemporânea por excelência – pre-sente tanto nos grandes centros urbanos dospaíses desenvolvidos como, em maior grau,nos países ora como outrora em vias de de-senvolvimento e nos arrabaldes africanos.

Não que a exclusão infanto-juvenil cons-tituísse novidade. Uma mirada histórica re-vela que os altos índices de mortandade in-fantil remetem a tempos imemoriais, que aexploração da mão-de-obra de crianças es-tava presente mesmo na Idade Média – es-pécie de “período pré-histórico da infância”,como quer Philippe Ariés. O estranhamentopelo estado de coisas do tema na contempo-raneidade vem, como assinala Marcos Cezarde Freitas, do desfacelamento na crença de

que o desenvolvimento capitalista viria a sera principal garantia contra o desamparo dainfância.3

Há quinhentos anos, a reestruturação dasrelações sociais que a ascensão da burgue-sia mercantil passaria a ditar com o início daIdade Moderna engendrou, paulatinamente,a constituição de um espaço específico da in-fância, ante-sala de estímulo à cognição e àcriatividade destinada à criação de condiçõespreliminares para que, via educação, vies-sem a ser supridas as demandas técnicas im-postas pela nova ordem socioeconômica.

Tal processo viria a fornecer, com o pro-gressivo avanço técnico-educacional, as ba-ses para o grande salto tecnológico represen-tado pelo advento da Revolução Industrial,que imporia um novo paradigma para as re-lações entre capital e trabalho.

Assoma, com inédito relevo, a problemá-tica da infância: nas fábricas, crianças sub-metidas aos mesmos turnos de 14 ou 16 ho-ras dos adultos; nas cidades, crescimento ur-bano desordenado produzindo hordas de in-digentes mirins. Tal ligação entre desenvol-vimento capitalista, expansão urbana e au-mento da miserabilidade com reflexos nouniverso infantil viria a constituir, nas déca-das subseqüentes, o centro duro do agrava-mento da questão da infância - pois, comoalude Otávio Ianni, desenvolvimento e ex-clusão, abundância e miséria são duas facesda mesma moeda do capital.4

3ARIÈS, Philippe –História social da criança eda família. Rio de Janeiro: LTC, 1981; e FREITAS,Marcos Cezar de (org.) -História social da infânciano Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.

4IANNI, Otavio- A idéia de Brasil moderno. SãoPaulo: Brasiliense, 1982, p. 169.

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2.2 Tristes trópicos: a infânciabrasileira no contexto colonial

A imagem dos trópicos colonizados comolocus da violência e da ilegalidade encon-tra na história de suas crianças sua mais vee-mente expressão. A criança como elementoda base (base-limite, abissal) do processo deexploração da força de trabalho está presentedesde a expansão colonial, nos grumetes epajens dos 9 aos 13 anos recrutados à forçaem Portugal, alimentados com sobras e des-tinados a aplacar, com violações e estupros,o furor sexual de uma população de degreda-dos rumo aos trópicos.5

Ante tal mosaico de horrores, qualquer an-teprojeção do presente – Febem, comérciode meninas-prostitutas, crianças deformadaspelos fornos das carvoarias – não é ocasio-nal. O Brasil, pátria-mãe gentil, tem essedom único de embaralhar presente e passado,reflexos múltiplos de uma conformação es-trutural que ao fim das contas permanece amesma. A quantos eventos do presente épossível correlacionar o extermínio indígenaou sua submissão ao catolicismo, fiéis à pre-missa do padre Nóbrega de que “por medoos índios se converteriam mais rápido do quepelo amor”?6 Em que medida os efeitos dra-máticos da escravidão negreira deixaram deser um evento cotidiano?

Tais dramas tiveram na poesia épica eaguerrida de Castro Alves seu maior tradutor

5 RAMOS, Fábio Pestana – “A história trágico-marítima das crianças nas embarcações portuguesasdo século XVI. Em: PRIORE, Mary Del –Históriadas Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999,pp. 19-54.

6 Carta enviada ao provinçal de Portugal, SimãoRodrigues, janeiro de 1550. Citado por CHAMBOU-LEYRON, Rafael – “Jesuítas e as crianças no Brasilquinhentista”. Em: PRIORE_1999, op. cit.

– mas, ao menos neste caso, a frieza dos nú-meros seja talvez mais eloqüente: dos apro-ximadamente 600 mil africanos trazidos, ca-tivos, ao Rio de Janeiro nas três primeirasdécadas do século XIX, estima-se que 180mil tinham menos de quinze anos – e que só60 mil chegaram em terra com vida. Os in-ventários dos agricultores fluminenses apon-tam que 1/3 de seus escravos morriam an-tes de completar dez anos, e que mais dametade não chegava aos dezoito anos. Me-tade das crianças com até cinco anos eramorfãs, número que subia para 80% entre osde 11 anos de idade. Eis o processo de for-mação da fratura socioeconômica brasileira,hoje exposta.7

Esse quadro, em relação à infância, so-fre, nos períodos seguintes, forte inflexãodas políticas governamentais para o assunto.Enquanto, na Europa, sob a influência ilu-minista, o Estado mais e mais se afasta demodelos caritativos de assistência – simboli-zado nas chamadas “rodas de expostos”8 –,a favor de políticas de educação e de inte-gração socioeconômica, no Brasil um examedas políticas de Estado para a infância, dofinal do século XIX aos nossos dias, revela

7GÖES, José Roberto de e FLORENTINO, Ma-nolo – “Crianças escravas, crianças dos escravos”.Em PRIORE_pp. 177-191.

8 Instituição de assistência ao menor abandonadosurgida na Idade Média, na Itália, de perfil caritativoe inspiração católica, e que se espalhara pela Europaocidental. O mecanismo adotado para receber crian-ças abandonadas consistia em um cilindro vertical debases expandidas colocado junto ao portão da insti-tuição recebedora. Depositada a criança em sua base,girava-se a roda e tocava-se o sino-campainha: o ano-nimato do “doador” era preservado e o petiz passavaa ser assistido. A primeira “roda de expostos” do Bra-sil foi construída em Salvador, em 1726. Informaçõescompiladas de FREITAS, 1997 e PRIORE, 1999.

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não apenas um descompasso de mentalidade,um “atraso” estrutural - mas o quanto tal ci-são socioeconômica, tal “fratura original”,ao implicar em uma distinção fundamentalno seio da sociedade brasileira – entre elitee povo, bem nascidos e pé-rapados, homensde bem e patuléia - atua como premissa ori-entadora das políticas para a questão.

Assim, a progressiva criminalização da in-fância, diretamente ligada à conformação so-cial brasileira, passa a ser mais e mais insti-tucionalizada no país - através dos interna-tos obedientes às orientações eugenistas de-flagradas no bojo da discussão de raça comofator de degredação nacional (Nina Rodri-gues, Silvio Romero); do Código de Meno-res (1927); da Escola repressiva e de laivosfascistas da Era Vargas; e, sobretudo, apósa implementação, pela última ditadura mili-tar, de políticas obedientes à “Ideologia deSegurança Nacional” - cuja orientação re-pressiva assoma ao primeiro plano na contra-mão da história (quando os direitos específi-cos da infância passaram a ser reconhecidose, ainda que em alguns casos timidamente,aplicados internacionalmente), mantendo-sedurante os trinta anos do regime.

Com a distensão política e o longo e gra-dual processo de redemocratização do país,organismos da sociedade civil obtiveram im-portantes conquistas no Legislativo. O Es-tatuto da Criança e do Adolescente foi in-ternacionalmente saudado como um avan-çado arcabouço de proteção à infância, afi-nado com a evolução de seus direitos especí-ficos. Porém, com o não-desmantelamento ea ausência de reformas do sistema prisionaldestinado “ao bem-estar do menor” herdadodo regime anterior, o recrudescimento da in-segurança pública e o frouxa e cambianteaplicação dos códigos legislativos no país, o

ECA vem sofrendo fortes ataques e resistên-cias, sobretudo de setores conservadores edo público - mantido à beira da histeria pelonoticiário sensacionalista diário sobre a vi-olência urbana. Pior: como muitas das leisdo país, vários artigos do estatuto “não pe-garam”, ou seja, não foram incorporados àprática social, sendo continuadamente des-respeitados - muitas vezes pelos próprios go-vernos ou pela Justiça.

Dessa forma – e devido, em grande parte,às sucessivas crises econômicas de um paísque, sempre aspirando ansiosamente pelamodernidade, permanece mental e financei-ramente colonizado - a situação da infân-cia não apenas agravou-se no que diz res-peito à sua pauperização, mas bifurcou-se,desenvolvendo, através de sua criminaliza-ção, uma explosiva vertente – a qual, comodissemos, procuraremos debater com maisvagar no terceiro capítulo deste trabalho.

3 A imprensa e a “questão dainfância”

Como relata a historiografia específica sobrea infância marginalizada, esta foi, por longoperíodo, assunto das páginas policiais, sendoraro que tema relativo a seus desígnios asso-masse ao debate político-cultural do país.

Uma exceção a essa precoce manifestaçãode criminalização da infância pode ser loca-lizada no trabalho do fotógrafo J. A. Corrêa,que em 1878 publicou, no primeiro númeroda revistaBesouro - marco do fotojorna-lismo brasileiro – uma série sobre os efei-tos da fome nas crianças nordestinas, susci-tando, então, as páginas dos jornais da época,inédito debate.

Mas talvez o primeiro esforço de retra-

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tar, nas páginas dos jornais, a infância aban-donada a partir de uma ótica mais huma-nista, que cedesse espaço à expressão de suaidentidade, deva ser creditado a João do Rio(nome-fantasia de Paulo Barreto), o mulatodândi influenciado pelo naturalismo francês- movimento no qual, note-se, a infância dasruas foi tema de destaque já emOs mise-ráveis, de Victor Hugo - que, ao voltar-separa “a alma encantada das ruas” tornou-seo principal cronista da então pretensa “Parisdos trópicos.” Em “Os que começam”, eleassinala:

“Não há decerto exploraçãomais dolorosa que a das crianças.(...) Nada mais pavoroso do queeste meio em que há adolescentesde dezoito anos e pirralhos de três,garotos amarelos de um lustro deidade e moçoilas púberes sujeitasa todas as passividades. (...) Inter-rogados, mentem a princípio, ne-gando; depois exageram as falca-truas e acabam a chorar, contandoque são o sustento de uma súcia decriminosos que a polícia não per-segue.”9

Como tema, a infância viria a ganhar des-taque em obras literárias e cinematográficasnas décadas seguintes, obras que chamariama atenção para sua situação de abandono eexclusão, comoCapitães de Areia (1937),maior sucesso da carreira de Jorge Amado(mais de um milhão e meio de exemplaresvendidos); Rio, 40 Graus(Nelson Pereira

9 João do Rio –A alma encantadora das ruas.www.ig.com.br/paginas/novoigler/arquivos/almaen -cantadora.

dos Santos, 1954), uma das obras fundado-ras do moderno cinema brasileiro; e, sobre-tudo, Pixote, a Lei do Mais Fraco(Hec-tor Babenco, 1980), filme que, com amplarepercussão no país e no exterior, coloca-ria a questão no centro do debate político-cultural, chamando a atenção do público in-ternacional para a infância latino-americanae influenciando produções posteriores.

Se ao cinema brasileiro deva ser atribuídoo mérito de sintetizar para o público, atra-vés de corpos – violados – e de um rosto -o de Fernando Ramos da Silva, cuja traje-tória real confunde-se com a da ficção – odrama da infância marginalizada, à imprensadeve ser creditada a divulgação das sucessi-vas atrocidades que fizeram repercutir, naci-onal e internacionalmente, o grau de violên-cia vivenciado pelas crianças brasileiras: na“Operação Camanducaia” (1974) um ônibuscom “menores” reclusos e policiais os levaaté uma beira-de-estrada, onde são espanca-dos e jogados de uma ribanceira; a “Organi-zaçao Pena de Morte” (1989/1990) atua emVitória, encoberta por autoridades da Secre-taria de Segurança, eliminando a sangue frio,no período, entre 17 e 21 “meninos de rua”;na “chacina da Candelária” (1993) sete “me-ninos de rua” são assassinados por policiaismilitares enquanto dormem; “Jovens incen-diados na Febem” (1998): no “Quadriláterodo Tatuapé”, em resposta a um soco desfe-rido em um monitor, um grupo de jovensé encarcerado a um quarto, que é incendi-ado, provocando uma morte por carboniza-ção; “Meninos emasculados do Maranhão”(2001/.2002): os corpos de 21 garotos, cas-trados e mortos, são paulatinamente achadosno interior do Maranhão. (Como se observaao analisar a repercussão bem menor alcan-çada pelos dois últimos crimes listados, pa-

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rece que a sociedade vem “se acostumando”com tais atos)

Na esteira dessas arbitrariedades, o paíspassa a chamar a atenção dos organismos deproteção à infância, que não tardam em cons-tatar uma situação de anomalia social, coma violência contra crianças não raro chance-lada pelo Estado, cuja inação permite o ano-nimato dos grupos de extermínio - no maisdas vezes a ele supostamente associados.

Em 1993, o jornalista Gilberto Dimens-tein (que para parcela representativa do pú-blico leitor tornara-se então uma espécie deespecialista em infância ao publicar o premi-adoA guerra dos meninos, em que relata aação de grupos de extermínio de “meninosde rua”, e ao investigar a prostituição infan-til na Amazônia emMeninas da noite -an-tes de se tornar o principal representante dobom-mocismo voluntarista na imprensa) de-clara: “O Brasil é conhecido internacional-mente como o país em que se registra a maiortaxa de violência contra crianças por gruposde extermínio. Em entrevista àFolha, o prin-cipal dirigente da Anistia Internacional, Pi-erre Sané, comentou que não existe nada pa-recido na África, na Ásia ou na América La-tina (...) As entidades de direitos humanosestão municiadas com documentos e estatís-ticas mostrando que o ciclo da impunidade,apesar da pressão dentro e fora do país, estápiorando.”10

As estatísticas divulgadas anualmentepelo Movimento Nacional de Meninos e Me-ninos de Rua (MNMMR) corroboram larga-mente, até nossos dias, a afirmação final dojornalista. Diante de tal quadro, como se

10 Folha de São Paulo, 25/07/1993.ApudFRON-TANA, p. 26.

comporta a imprensa? É o que procuraremosexaminar a seguir.

4 A Folha de São Paulo e asituação da infância

4.1 Dados gerais da pesquisa

A leitura diária daFolha de São Paulo, sele-cionando todo e qualquer texto que fizessereferência direta à “questão da infância”,produz, ao fim de quinze meses, a sensaçãode estarmos diante de um fenômeno cíclico,que ao fim de determinado período, e em re-lação a esse ou àquele assunto, se reinicia,torna-se intenso, grave, urgente, para entãosubitamente minguar, até que o ciclo se rei-nicie.

Parte desse fenômeno pode ser atribuídoà dinâmica que rege a produção jornalís-tica diária, em que velocidade e novidadesão quesitos essenciais – e, como efeito re-verso, permanência e reiteração “envelhe-cem”, desgastam a notícia. Mas – e sem queisso represente um álibi à malversação jorna-lística do tema, pelo contrário - outro tantode responsabilidade por tal efeito deve sercreditado à própria imobilidade da situaçãoda infância no país: Febem, espancamentoe extermínio de “menores”, trabalho infantilnas mesmas condições degradantes (e até namesma atividade carvoeira) – os temas dasmanchetes de hoje pouco diferem daquelesdos jornais de 20, 30 anos atrás.11

Efetuada através de um processo de leiturae seleção diária de noticiário sobre o tema – ede posterior checagem por meio de pesquisa

11 Fenômeno que se pode constatar, também, pelaleitura das várias matérias da época citadas nos livrosde sabel Frontana, de Glacy Roure e de Mary Del Pri-ore, entre outros.

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virtual -, a pesquisa resultou na coleta, ao fimdo período de quinze meses e entre matériase artigos, de 162 textos.

Não estão contidos nesses números as va-riadas profissões de fé em forma de artigojornalístico sobre as benesses das crescentesações de voluntariado; os mais de cinqüentaartigos que, no período, comentaram, fize-ram publicidade ou exaltaram as ações daAbrinq; e nem o número semelhante de co-lunas de Gilberto Dimenstein que, muitasvezes referindo-se a experiências internaci-onais, destacaram projetos de ONGs e deprefeituras que priorizam o investimento emeducação e em esportes no combate à ex-clusão infantil – esforços que, combinados àmultiplicação do voluntarismo beneficiente,parecem constituir, na visão do colunista,uma espécie de panacéia, concentrada emlumpen-ações pontuais e conformada à au-sência de políticas estratégicas de Estado,para a “questão da infância.”

Esta é, portanto, uma pesquisa que privi-legia a investigação da abordagem “negati-vista” do “menor” – ou seja, que se concentraem matérias que o retratam em situação deabandono, exclusão ou delinqüência. Visa,como já foi dito em outros termos, aferir emque medida a imprensa escrita diária, repre-sentada pelaFolha de São Paulo, cumpre suafunção de refletir a situação da infância nopaís e de informar o público leitor acerca dasreais dimensões e da gravidade da questão.12

12 Para quem estiver interessado em uma pesquisaabrangente sobre o tema, A ANDI (Agência de No-tícias dos Direitos da Infância) publica anualmente,em associaçãoo com o Instituto Ayrton Senna, umapesquisa sobre a infância na mídia. O interesse, aocontrário do deste trabalho, é marcadamente “positi-vista”, como expressa o primeiro parágrafo da ediçãoreferente ao ano de 2001 (divulgada em 21/03/2002),

O noticiário sobre o “menor” privilegiou,no decorrrer do tempo da pesquisa, ques-tões ligadas à criminalização em cerca de58% dos textos. Nestes, que debateremosno próximo capítulo, é problematizado, atra-vés do enfoque à criminalização da infância,o debate sobre os direitos humanos, tantonas discussões sobre Febem/sistema prisio-nal como sobre diminuição da idade mínimade inimputabilidade penal. Os 42% restan-tes ou refletem, de maneira generalizada, asituação de abandono, de exclusão educaci-onal, a falta de perspectivas da infância de-sassistida, ou destacam a temática do traba-lho infantil (muito em evidência no períodograças, sobretudo, às implicações eleitoraisdo tema para a sucessão presidencial que seaproximava).

As motivações políticas e/ou eleitorais,aliás, são um fator decisivo para o noticiáriosobre a “questão da infância”. Ao analisar ototal de textos colhidos observa-se que 77%

cujo tom de inebriada euforia, cremos, permite entre-ver as razões de nossas reservas quanto aos métodose análises: “Em linha ascendente pelo menos desde1996, a presença de questões relacionadas à criançae ao adolescente se consolida na imprensa brasileira.Os números dorankinganual apresentado nesta edi-ção da pesquisa “Infância na Mídia” são a evidên-cia de que a consciência da necessidade de melhoriada qualidade de vida de meninas e meninos do Bra-sil, o respeito a seus direitos e a coresponsabilidade[sic] de jornalistas e veículos de comunicação quantoà promoção do desenvolvimento humano são aspectosque na última década não simplesmente despertaramo País [sic] para a urgência de encontrarmos soluçõespara nossos problemas. Não pensamos ser exageroafirmar que, ao trazer a criança e o adolescente parao centro das prioridades, a própria imprensa renovousua maneira de investigar a realidade e sua relaçãocom os leitores – agora mais construtiva

e propositiva”. Pesquisa “Infância na Mídia”,Agência Nacional de Direitos da Infância”, 2001, p.1. Disponibilizada em www.andi.com.br.

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das matérias sobre o tema decorrem de “fa-tos” políticos ou, em maior número, ligam-se à cobertura complementar ao anúncio demedidas governamentais. O destaque dado aessas matérias – das quais 12% foram man-chetes de capa -, em comparação com as de-mais, dispersas em meio ao emaranhado detextos, parece indicar que a situação da in-fância no país só assoma ao primeiro planoquando atrelada às decisões e interesses da“alta política” – e, portanto, do grande capi-tal.13

Assim, no período, o destaque conferidopelo jornal a um tema como o trabalho infan-til está diretamente relacionado – em cercade 85% das matérias sobre o assunto - a doisfatos políticos: as denúncias sobre o trabalhoinfantil em condições particularmente degra-dantes nas carvoarias do Maranhão - defla-gradas pela reação ao aumento das intençõesde voto da candidatura presidencial de Ro-seana Sarney, governadora daquele estado -;e a regulamentação, pelo governo brasileiro,após muita relutância, dos requisitos para ocumprimento das convenções 138 e 182 daOrganização Internacional do Trabalho (quedizem respeito, respectivamente, à idade mí-nima para trabalho no país e à classificaçãode 82 atividades vetadas ao trabalho de me-nores de dezoito anos).

Do total de matérias sobre a infância mar-ginalizada, os 23% restantes tampouco ex-pressam, em sua maioria, um genuíno fervorinvestigativo acerca do tema. Um terço deles

13 Alguns casos – como o identificado como o dos“meninos emasculados do Maranhão” – tornam pro-blemática tal divisão, pois, embora o caso já tivessesido noticiado antes do anúncio da eventual candi-datura presidencial de Roseana Sarney, é impossívelaferir em que exata medida o destaque que veio a terdepois deva-se ao fato político.

vem a público por estar associado a algumaanomalia social,mondo cane, propiciada, nomais das vezes, pelos efeitos do grau de in-digência a que estão submetidas as parcelasmiseráveis da população (como no caso dameretriz do Vale do Jequitinhonha que in-centivava e promovia a prostituição de suasquatro filhas, com idades entre 11 e 15 anos,e cuja simploriedade e desconhecimento docrime comoveu a própria delegada que a au-tuou).14

Como examinaremos com mais vagar aofinal deste capítulo, algumas das melhoresmatérias sobre o tema produzidas no períodoacham-se entre as duas dezenas de textos(15,6 %) não diretamente vinculados ao no-ticiário político ou à agenda governamental.São, no mais das vezes, matérias “frias”, queaparentam ter sido elaboradas com algumtempo para maturação e da qual depreende-se maior vigor investigativo.

A edição aplicada às matérias é outro im-portante aspecto a ser ressaltado. Quando es-tas contém denúncias ou acusações contra oEstado e seu aparato de “proteção” e repres-são à infância, as vozes “oficiais” - da po-lícia e de administradores prisionais ou dasautoridades estaduais de segurança públicas– vêm, quase sempre, em primeiro lugar, nocorpo do texto da matéria. Isso provoca umadistorção no já precário e questionável mé-todo com que aFolha de São Paulovisa “as-segurar” impressão de isenção jornalística -um box, de dimensões bem menores do quea matéria principal, intitulado “Outro lado”,através do qual, como o título indica, deve-ria ser expressa a defesa da(s) parte(s) acu-

14 BRAGON, Ranier. “Meninas são presas porprostituição no norte de MG.”Folha de São Paulo,22/09/2001.

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sada(s). Nessas matérias tal espaço é ocu-pado, não sem freqüência, por uma mesma“autoridade” cuja opinião já fora expressadano corpo da matéria - e que não sem freqüên-cia a reitera. Isso gera um desequilíbrio a fa-vor da parte acusada – o Estado e suas insti-tuições ditas de assistência à infância -, umaminimizaçãoa priori do caso perante o pú-blico leitor, em prejuízo deste e, sobretudodo “menor”, que continua a ser vitimizadopelas práticas que a denúncia visava coibir.

Uma das características marcantes do jor-nalismo daFolha de São Pauloé o desta-que que confere a números e estatísticas,que imiscuem-se pelos textos e pululam pe-las páginas em vistosos gráficos elaboradospela editoria de arte. No caso desta pes-quisa, é importante ressaltar o modo acríticocomo acata as estatísticas do IBGE, sobre-tudo aquelas referentes ao Censo 2000, sobsuspeição desde que avolumaram-se protes-tos de cidadãos negligenciados pelos recen-seadores – dentre os quais encontra-se esteautor, que tem residência fixa, ao contrárioda legião de “meninos de rua” que, segundodenúncias de ONGs ligadas à defesa da in-fância, passaram ao largo da principal pes-quisa oficial do país, base para o desenvolvi-mento de políticas estratégicas, se estas hou-vesse.

Pior do que essa “confiança cega” nos nú-meros é o modo descontextualizado comoestes são apresentados, sem que sejam di-mensionados de forma a permitir a corretaassimilação pelo leitor, ou correlacionadosa fatores e dados que os problematizassem.Os números sobre o avanço dos índices deescolarização de crianças na última década(em grande parte propiciados pelos efeitos

do Bolsa-escola15), aos quais o jornal recorrecom freqüência, são relativizados pelas críti-cas acerca do agravamento da já baixíssimaqualidade de ensino que o programa provo-cou, seu caráter assistencialista, sua inócuainfluência na transferência efetiva de rendaentre ricos e pobres ou o perverso incentivoà expansão demográfica a ele inerente.

4.2 Trabalho infantil

Dimensão da problemática da infância queultrapassa a “mera” condição de abandonopara impor-se como prática social visando asubsistência individual e/ou de família pau-perizada, o trabalho infantil - que atinge, nopaís, uma em cada seis crianças entre 10 e14 anos, totalizando 7,7 milhões de indiví-duos dos cinco aos dezessete anos - foi abor-dado em 34 edições do jornal no períodopesquisado. Em 43% das vezes, as maté-rias concentravam-se em destacar, com baseem diversos dados de um relatório recém-divulgado (da Organização Internacional doTrabalho, do Unicef e côngeneres), supostasconquistas do governo federal para a ques-tão.

A tendência a pautar-se pela agenda go-vernista e a crítica rasa dos dados ditos ofi-ciais se tornam ainda mais evidente na aná-lise das matérias referentes ao trabalho infan-til no país. A tônica dominante, em 9 das 11matérias produzidas no bojo da regulamenta-ção visando o cumprimento das já referidasconvenções da OIT, é meramente constatá-ria. No máximo alude-se, visando contextu-alizar o leitor, “explicar—lhe” o porquê danecessidade de tal regulamentação, a alguma

15 Programa social que paga um salário-mínimopor filho entre 7 e 14 anos mantido na escola pelasfamílias de baixa renda.

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forma mais escabrosa de trabalho infantil(como o descascar de alhos, que “apaga” asimpressões digitais e causa lesões irreversí-veis à pele).16

Mas talvez seja através da análise de umeditorial sobre o assunto que melhor se possaperceber o quanto a passividade e o confor-mismo imiscuíram-se na prática jornalística- e, conhecer o feiticeiro após tomar ciênciado feitiço, aferir o grau de contaminação daimprensa pelo ideário dito “neoliberal”, emvoga nas últimas duas décadas:

Dados da Organização Inter-nacional do Trabalho (OIT), di-vulgados na sexta-feira, atestam"uma evolução razoável"na dimi-nuição do trabalho infantil no Bra-sil dos últimos anos. De 1992 a1998, o número de crianças e ado-lescentes de 5 a 17 anos que tra-balham no país foi "reduzido em20%. Passou de 9,7 milhões para7,7 milhões".

Trata-se de um resultado semdúvida positivo (...).

O poder público "tem contri-buído"para retirar crianças do tra-balho. Programas como o derenda mínima vinculado à educa-ção, em áreas onde o trabalho in-fantil é mais problemático, surtembom efeito. A idéia é substituir aomenos parte da renda que as fa-mílias obtinham enviando criançasao trabalho por um estipêndio do

16 Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-tatística (IBGE), compilados a partir de tabelas dispo-nibilizadas, nosite oficial do órgão, sob as rubricas“Síntese de Indicadores Sociais 2000” e “IndicadoresSociais Mínimos”. www.ibge.gov.br.

Estado, pago mediante comprova-ção da frequência escolar. Tam-bém as ratificações de convençõesda OIT que visam ao equaciona-mento do problema ajudam a aper-feiçoar as ferramentas do Estadona restrição desse tipo de explo-ração infantil. Na sexta-feira, en-traram em vigor no Brasil os efei-tos da convenção 182 do orga-nismo multilateral. Com isso, 82modalidades das mais degradantesde trabalho ficarão proibidas paramenores de 18 anos.

Ainda é preciso implantar sis-temas eficazes para coibir a explo-ração infantil em grandes cidades,em atividades como emprego do-méstico, coleta de lixo etc. A cifrade mais de 7 milhões de criançase adolescentes no trabalho ainda[sic] causa vergonha.17

Menos do que a exaltação pura e simples –sem ponderações, essas estratégias discursi-vas tão caras aos editoriais! – da sem dúvidaexpressiva cifra de 2 milhões de crianças li-vres do trabalho infantil (aferida por quem?a que custos obtida? com que garantia contrariscos futuros de reversabilidade? Isso pa-rece não interessar ao jornal), salta aos olhosa nova posição conferida pelo editorial aopoder público: ele é agora um colaborador,que “tem contribuído” para a solução do pro-blema. Como isso é valorado positivamentepelo editorial, temos que o Estado está de-sobrigado, na ótica da Folha, de planejar ouexecutar políticas – ele devecolaborar.

17 Folha de São Paulo - “Trabalho Infantil”. Edito-rial, 05/02/2001.

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Não se limita a essa rendição à ideolo-gia de mercado os percalços do editorial.Além de, uma vez mais, referir-se ao Bolsa-escola sem a mínima e outrora inerente aojornalismo desconfiança crítica, a peça pa-rece acreditar que a simples regulamentaçãoda medida equivale ao banimento do traba-lho infantil na área rural e nas áreas não-centrais (já que afirma que agora é a vez defazê-la nas grandes cidades).

Expressão de ingenuidade e de falta desenso crítico incompatíveis com a funçãojornalística, o editorial, se comparado coma imagem que aFolha de São Pauloforjoupara ela mesma – independência, isenção esenso crítico afiado – põe por terra tanta ilu-são e pretensiosidade.

Porém, nesse cenário desolador, um nú-mero reduzido de matérias apontam cami-nhos e atingem um bom nível jornalísticosem se deixar impregnar pelo ideário do-minante no jornal. É o caso do belo textode Célia Chaim,Crianças trabalham comoadultos em SP, em que, partindo de um con-vite ao presidente Fernando Henrique Car-doso para que constate a exploração infantilem sua própria cidade, São Paulo, antes deviajar a Genebra para a convenção da OIT,traça um retrato sensível porém não piegasdo cotidiano de sete crianças que trabalhamnas ruas. Desmistificando a visão da misé-ria como algo remoto – a qual não cabe aopivete de rua, marginalizado e próximo, re-presentar - chama a atenção para o fato deque “o trabalho infantil não ocorre só no in-terior da Bahia, onde crianças colhem sisale quebram pedras”, mas também “na capitaldos arranha-céus americanos, dos restauran-tes de todas as etnias, das linhas aéreas paraqualquer parte do mundo, dos maiores em-

presários do país (...) Basta olhar através dovidro do carro.”

É o único, entre todos os textos exa-minados pela pesquisa, a problematizar asestatísticas referentes à infância, primeirorelativizando-as e questionando sua metodo-logia, para depois dimensioná-la ao leitor emtermos comparativos: “Ninguém sabe exa-tamente quantas crianças como Jesiel saemda periferia para trabalhar em São Paulo (...)Uma criança que fica em casa tomando contados irmãos para que a mãe trabalhe fora nãoentrará em alguma estatística sobre a forçade trabalho brasileira. Assim como a quevende chiclete nos cruzamentos movimenta-dos. ainda não faz parte das estatísticas daOIT, segundo as quais 16% das crianças nafaixa de 10 a 14 anos trabalham no Brasil. Éo mesmo índice da Zâmbia, República Do-minicana, Guatemala e Tailândia.”

A jornalista termina o artigo insistindo nadesmistificação do efeito imediato das re-gulamentações recém-aprovadas e voltando-se novamente ao cotidiano da infância ex-cluída – ao universo dos catadores que tra-balham nos lixões das cidades -, para fazercorrelação essencial, óbvia - porém tambémúnica nesta pesquisa - entre o trabalho infan-til como ocorrência inescapável à luta pelaexistência em um ambiente familiar e mise-rável – problemática que paliativos como oBolsa-escola estão longe de resolver e quesó uma profunda reestruturação da divisão derendas no país pode reverter.18

4.3 Prostituição infantil

Em fevereiro de 2002, por ocasião do carna-val, o governo decide, enfim, após protelá-la

18 CHAIM,Célia - “Crianças trabalham como adul-tos em SP”,Folha de São Paulo, 03/02/2001.

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por mais de dois anos, lançar uma campa-nha de combate à prostituição infantil. Emout-doorsespalhados pelas principais capi-tais do país, uma imagem desfocada de ado-lescente em roupas sumárias e de cores ber-rantes era encimada pela frase, em letras gar-rafais, “Prostituição infantil é crime”, acom-panhada de uma tarja preta, logo abaixo,com os dizeres: “Proteja nossas crianças”.

Se se limitasse a essa transferência de fun-ções do Estado para o cidadão – prática caraà contemporaneidade, que, no Brasil, atingiuo paroxismo por ocasião da crise de energiaelétrica durante o governo de Fernando Hen-rique Cardoso – já haveria muito a se explo-rar em relação ao anúncio. Mas há mais: otelefone para o qual o cidadão que resolvesse“proteger nossas crianças” deveria encami-nhar sua denúncia era uma linha exclusivapara tal crime conectada à polícia militar.

Acontece que não foi constituído nenhumnúcleo policial de combate a prostituição in-fantil, nem elaborada qualquer política espe-cífica para deflagrar a ação e nem sequer for-necido nenhum treinamento especial aos po-liciais que atenderiam as chamadas.

Assim, o que o governo chamou pomposa-mente de “Programa de Erradicação da Pros-tituição Infantil” não passa, na prática, demais uma linha telefônica conectada à polí-cia, travestida, porém, de política efetiva deEstado e fanfarroneada país afora pelomar-ketinggovernamental, consumindo uma pe-quena fortuna em impostos do contribuinte.

O leitor daFolha de São Paulonão tomouconhecimento dessa (tragi)comédia de erros.Com exceção de um editorial que, emboraaprovando a campanha, apontava a necessi-dade de mais medidas e mencionava a com-provação, por meio de pesquisas desenvolvi-das nos EUA, dos limites dos programas de

combate ao crime baseados em denúncia te-lefônica, o jornal limitou-se a matérias “deserviço” – a quem servem é a questão emaberto -, que noticiavam o anúncio do pro-grama e cobriam seu calendário de imple-mentação. Nenhuma palavra sobre as denún-cias que o leitor doJornal do Brasilou o te-lespectador da TV Cultura já tomara conhe-cimento.

Essa omissão reflete um descaso para como tema da prostituição infantil que se con-firma no número irrisório de matérias sobreo assunto colhidas durante a pesquisa - e, so-bretudo, na ausência de empenho investiga-tivo sistemático sobre o tema.

Das 13 matérias colhidas (menos de umapor mês de pesquisa), quatro estão ligadas aoassassinato de seis portugueses – que teriamvindo ao Brasil em busca de turismo sexual –em Fortaleza, Ceará. Embora não houvesse,a rigor, ligação específica entre o crime e aprostituição infantil, a temática do turismosexual levou tanto a repórter Karina Fernan-des como o articulista Fernando Gabeira aenveredar pelo assunto.

A reportagem de Karina, embora menci-one o baixo número de denúncias de pros-tituição infantil no país, as associações quelutam por sua erradicação e o fato do temadispor de fóruns internacionais de debate -cita o II Congresso Mundial contra a Explo-ração Sexual Comercial de Crianças, em Yo-kohama, Japão -, quando passa a retratar avida das prostitutas de Fortaleza o faz atra-vés de mulheres maiores de idade. A temá-tica da infância fica um tanto deslocada e épouco aprofundada no texto.19

Já Gabeira causou uma avalanche de pro-

19 FERNANDES, Kamila – “Plano tenta combaterturismo sexual”,Folha de São Paulo, 10/09/2001.

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testos ao propor, em um de seus artigos se-manais no cadernoTurismo, que o governorestringisse a repressão ao tráfico de mulhe-res e à prostituição infantil, adotando umapolítica de minimização de danos quanto aosexo pago adulto, já que, no seu entender,a prostituição não está restrita a efeitos daopressão socioeconômica – cita Cuba comoexemplo -, fato que se comprovaria por suaocorrência entre jovens da classe média ealta. Além disso, para o articulista, paísescomo o Brasil e a Malásia, em que há umacultura de turismo sexual, não podem se darao luxo de gastar fortunas em programas derepressão ao sexo pago, pois o rombo or-çamentário decorrente provocaria mais criseeconômica e novo ciclo de prostituição.20

Ante os muitos protestos que, como já foidito, o artigo provocou, decide retornar aotema, “com a necessária humildade”. Ape-sar de algumas ponderações, o que faz é re-afirmar as idéias anteriormente defendidas,sendo que encerra o artigo dizendo preferir“ser condenado por algumas pessoas a deixarde olhar nos olhos das centenas de prostitu-tas e dezenas de travestis que me convidarampara seus congressos no Brasil e continuamme considerando um aliado confiável.”21

A despeito de se concordar ou nãocom os termos do artigo, um pouco devida inteligente em um cenário jornalís-tico pobre de debates sobre questões sócio-comportamentais.

Mas, como se vê, mesmo quando presente,a temática da prostituição infantil tende aocupar um lugar ínfimo, no bojo de discus-

20 GABEIRA, Fernando – “Caminhos nordestinosdo turismo sexual”,Folha de São Paulo, 3/09/2001.

21 GABEIRA, Fernando – “Notas sobreum turismo que faz pensar.” Folha de SãoPaulo.10/09/2001.

sões maiores. De acordo com o recolhidopor esta pesquisa, quando não é assim – e otema é o principal – percebe-se uma grandedificuldade de tratá-lo com uma base de da-dos condizente e com alguma contundên-cia, acrescentando elementos ao mero regis-tro jornalístico – à la primórdios da imprensa- de uma ocorrência policial (pois é assimque ele é tratado nas demais vezes em quesurge).

E é importante ressaltar que não se tratade tema rarefeito no cotidiano da sociedadebrasileira. Ao contrário, como a própria ini-ciativa do governo em criar um (factóiode emforma de) plano de combate ao crime indica.A prostituição infantil há tempos deixou deser um fenômeno majoritariamnente concen-trado nas regiões Norte/Nordeste (como oera 15 anos atrás, quando Gilberto Dimens-tein examinou o tema emMeninas da noite)e hoje é marca presença até em redutos dapretensa classe média alta carioca, como alu-diu O Globo em reportagem de capa.22 OCentro Brasileiro para a Infância e Adoles-cência estima em seiscentas mil o númerode meninas prostitutas - sendo que o órgãoé governamental (subordinado ao Ministérioda Ação Social) e a prostituição infantil, pelaprópria natureza da atividade, não é afeita apesquisas e enquetes.

Portanto, o tratamento dispensado pelaFolha de São Pauloà questão não apenasestá sujeito a uma série de críticas – como ogrosso da produção jornalística no país está –, mas em desacordo com o grau de represen-tatividade social do tema – o que, do ponto

22 Dantas, Pedro - “Barra [da Tijuca] é o bairro commaior índice de exploração sexual infantil.”O Globo,12/02/2002.

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A Folha de São Paulo e a infância marginalizada 15

de vista jornalístico, é bem mais grave. Emuma palavra: omissão.

5 Criminalização e direitoshumanos

5.1 Questionando a inimputabilidadepenal

Em um de seus curtos e quase sempre cer-teiros artigos, o jornalista Jânio de Freitasafirma: “Falar no problema dos meninos derua sem falar nos seus pais é mistificação.(...) Esses meninos não são frutos espontâ-neos da rua. A elas chegam tangidos pelapobreza de seus pais. Não são meninos derua, são meninos da miséria.”23

Jânio, como se sabe, é uma exceção. Hátempos tornou-se lugar-comum no espaçomidiático brasileiro os esforços de desvin-culação dos problemas estruturais do paísde suas causas econômicas. Tal associação,ainda que reiteradamente comprovada porpesquisas e pela análise histórica, pertenceao rol daquelas que se tornaram inescapavel-mentedemodée, sob os auspícios dissimula-dos e contínuos de uma imprensa submetidacada vez mais, via sucessivas fusões empre-sariais, ao comando do grande capital.

Abordagens que levem em conta tais pres-supostos são, como já foi dito, raras naFolhade São Paulo. Abordar a “questão da infân-cia” a partir da clave da criminalização, noentanto, é recurso amplamente adotado pelojornal.

No período pesquisado conferiu-se grandedestaque ao debate sobre a diminuição daidade mínima de imputabilidade penal no

23 FREITAS, Jânio de – “Meninos da miséria”.Fo-lha de São Paulo, 27 de julho de 1993.ApudFRON-TANA, pp. 29 e 30.

país – tema que, insuflado por políticos dedireita e por uma opinião pública assustada,costuma ser reiteradamente retomado pelaimprensa, com maior ênfase nos períodos emque questões de segurança pública dominamo noticiário.

A questão foi explicitada, inclusive, naseção Opinião/Debates, em que às vezesdois contendores respondem, sob perspecti-vas opostas, determinada questão. “Dimi-nuir a maioridade penal é uma boa propostapara combater a criminalidade?” - a per-gunta foi respondida pela deputada federal(PMDB-ES) e coordenadora da Frente Par-lamentar pela Criança e pelo Adolescente,Rita Camata; e pelo militar e deputado pe-emedebista (DF) Alberto Fraga. Este brevecurrículo dos debatedores já diz algo sobresuas posições, mas convém assinalar algu-mas passagens. Rita Camata resumiu, emuma frase, o argumento principal dos que re-jeitam alterações:

Aos olhos dos que buscam ga-rantir cidadania plena a todos osbrasileiros, [a alteração] repre-senta um equívoco jurídico e umaatitude de um grau de perversi-dade incalculável.24

O texto de Fraga, diagramado abaixo dode Camata, repete a estratégia usual dos tex-tos dos defensores da alteração – não levaem conta o respeito aos direitos humanosdo “menor” infrator nem o grau de atroci-dade do sistema prisional ao qual ele estarásujeito, voltando-se somente à (parcela da)sociedade atemorizada, a qual dirige-se deforma extremamente apelativa e emocional,

24 CAMATA, Rita – “Infância ameaçada”,Folha deSão Paulo(Opinião/Debates), 13/12/2000.

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16 Maurício de Medeiros Caleiro

recorrendo ainda à sensação generalizada deimpunidade criminal (que, a rigor, não seaplica à infância e à juventude - visadas, deforma rotineira, por “esquadrões da morte” etrancafiada, à revelia do ECA, em verdadei-ras prisões -, mas a criminosos do “colarinhobranco”, a policiais e a setores do “crime or-ganizado”):

Retirar um adolescente do con-vívio normal, impedindo-o de pra-ticar atrocidades, não é uma me-dida radical ou descabida. É per-feitamente justa, principalmentena visão dos jovens e adolescen-tes filhos de pais assassinados poroutros jovens que ceifam a felici-dade e o futuro de muitos, isso sobo manto da inimputabilidade e daimpunidade.25

Tais argumentos já haviam sido esgrimi-dos de forma satisfatória no texto de Camata:

“É compreensível que a sociedade acre-dite nas soluções "fáceis"para aliviar o seupânico. Mas não podemos permitir que osintoma da violência, que tem entre as suascausas o tímido investimento governamentalna erradicação da pobreza e na melhoria daeducação, do lazer e da geração de emprego,condene nossos meninos e meninas a um sis-tema carcerário falido, no qual a possibili-dade de recuperação do ser humano como ci-dadão é comprovadamente nula.”

As palavras de Camata refletem uma posi-ção em desacordo com a maior parte das re-portagens do jornal sobre o tema. Nestas, embusca da alegada isenção, o jornalista, ao nãocontextualizar o debate do ponto de vista da

25 FRAGA, Alberto –“Desejo da sociedade”. Fo-lha de São Paulo, Opinião/Debates),13/12/2000.

evolução dos direitos humanos e ao não per-mitir ao leitor ao menos tomar conhecimentode posições como as da deputada, limita-se aexpressar a opinião, aparentemente majori-tária, dos setores da sociedade favoráveis àdiminuição da inimputabilidade penal, temadas matérias.

Em doze matérias o jornal se limita a re-fletir o “clamor” por tais alterações. Em ou-tras três exprime a opinião dos que as rejei-tam. Estaria o jornal, tal qual um político embusca de votos, conformando-se à opiniãodo público leitor – ou, posto de outra forma,buscando atender às demandas do consumi-dor? Nesse caso, como fica o pluralismo, osideais de estirpe iluminista que volta e meiaevoca para si e para o jornalismo que pratica,a “defesa dos direitos humanos” (propaladainclusive no “Manual da redação”)?

Um jornal que se pretende isento, crítico eafinado com os ideais democráticos e libertá-rios, se se quer respeitado por tais condutas,deveria, se não contrariar frontalmente a suamassa de leitores - momentaneamente envol-tos em ideais pré-civilizatórios - ao menosbuscar oferecer-lhes informação com equilí-brio de opiniões e atenta à preservação da de-mocracia de fato. Mas, ante o capital, de queserve esse idealismo tolo? – parece pergun-tar. E aFolhasucumbe uma vez mais.

5.2 A Febem e o sistema prisional

A Febem – como, de resto, quase tudo oque se refere ao sistema prisional – é um tó-pico em relação ao qual o grau de informa-ção do leitor está praticamente restrito à ca-pacidade da mídia de informar. Se em ques-tões como o abandono e a prostituição in-fantil é possível tecer um juízo – sujeito atoda sorte de deformações – a partir da ob-

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A Folha de São Paulo e a infância marginalizada 17

servação ou de impresões pessoais, isso nãose aplica de forma alguma ao sistema de re-pressão e guarda da infância. Omissa talcobertura jornalística, a tendência, pela pró-pria conformação das relações Poder-mídiano pais, é grassar omarketinggovernamen-tal, concebendo e maquiando a questão comobem lhe parecer.

Foi exatamente tal processo o que se ve-rificou em boa parte do período desta pes-quisa. Com as atenções desviadas para ques-tões mais evidentes – como as mutilaçõesprovocadas pelo trabalho infantil nas carvoa-rias ou os chamados “meninos emasculadosdo Maranhão”, as parcas referências à Fe-bem, traçadas por “autoridades”, em textosdo cadernoOpiniãodavam conta de um tre-mendo “ajuste no sistema”, enfim liberto dacorrupção e da tortura e recuperado para osfins pedagógico-psicossociais que dele se es-pera. Tudo corroborado por números e esta-tísticas, como se espera, nos dias de hoje, dequalquer projeto dito “sério”.

A ilusão durou exatos 13 meses. Em 3de fevereiro de 2002 uma extensa reporta-gem de Gabriela Athias traz à tona novas egraves denúncias sobre tortura e maus tra-tos na Febem. Narra um novo procedimento-padrão para os casos de tortura: um monitorantecipa-se à eventual repercussão do ocor-rido e registra Boletim de Ocorrência poli-cial contra um ou mais “menores”, desvi-ando foco da investigação, enquanto procuraadiar ao máximo o exame de corpo delitodos internos. Tal estratégia, somada ao te-mor dos detentos (que sempre depõem empresença do monitor que os torturou), vemdificultando as investigações.26

26 ATHIAS, Gabriela – “Laudos indicam ocultaçãode violência”,Folha de São Paulo, 05/03/2002.

Apesar da tática, o Ministério Públicoconseguiu reunir material sobre quatro ocor-rências: em duas delas “menores” que so-freram traumatismo craniano foram acusa-dos por monitores - que chegaram andandoà delegacia - de agressão. Outra diz respeitoao já citado caso de “menores” encarceradosem um quarto que foi incendiado, causandouma morte por carbonização (e a reportagemnão diz se, quantas e de qual gravidade quei-maduras nos outros detentos). Uma últimaindica um espancamento em massa, com no-vos recursos de sadismo, como uso desprayquímico e de tacos de golfe e debaseball.As denúncias chegaram ao Ministério Pú-blico graças a três funcionárias do setor deassistência psicossocial que foram demitidaspor se oporem aos maus tratos. Elas relatama continuidade de tal quadro e, ao contráriodo que o governo estadual vinha anunciando,uma situação ainda mais violadora dos di-reitos humanos nas novas e descentralizadasunidades da Febem.27

“Junte os piores garotos da Febem etranque-os por três anos em uma cela. Difi-cilmente vai haver rebelião, mas também nãovai dar para chamar isso de trabalho educa-tivo", resumiu o monitor Paulo Sérgio Farias.Um sistema descrito como “couro e tranca”tem promovido – principalmente para evitarrebeliões em ano eleitoral, segundo um dosmonitores que falou à reportagem -, longosperíodos de confinamento e surras sistemá-ticas. Tal quadro, somado à falta de higi-ene das prisões, fez com que 80% dos deten-tos da unidade Raposo Tavares contraíssemsarna ou micose.28

27 ATHIAS, Gabriela – “Demitidos vêem persegui-ção”,Folha de São Paulo, 05/03/2002.

28 ATHIAS, Gabriela - “"Couro e tranca"é regra,afirma funcionário”,Folha de São Paulo, 05/03/2002.

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18 Maurício de Medeiros Caleiro

Em que se lamente que retratando taisatrocidades, a matéria de Gabriela Athiasmarca o melhor momento da cobertura dojornal sobre o tema. Ouvindo testemunhascom nome e sobrenome, cotejando evidên-cias variadas, abrindo espaço para a respostado “outro lado” mas reiterando, ao final damatéria, a gravidade das denúncias. Penaque a sociedade brasileira pareça estar detal forma anestesiada que um quadro dilace-rante como o descrito não lhe cause como-ção, revolta ou mobilização. O governadorbalbuciou algumas desculpas, o próprio jor-nal (como veremos a seguir) amenizou a si-tuação, e a vida segue.

No universo de textos examinados por estetrabalho são raros os enfoques diferenciadoscomo o acima citado. Em apenas duas repor-tagens os próprios “menores” são ouvidos –e, ainda que corroborando, em seus depoi-mentos, a existência de tortura e maus tratos,a ênfase é meramente constatatária. O pa-drão de apuração para a questão criminal éreiteradamente fixado na maioria das maté-rias sobre o tema: são ouvidas “autoridades”prisionais e/ou policiais e do Estado, defen-sores dos direitos humanos com alguma re-presentatividade social e um ou outro “espe-cialista”. Eventualmente, no caso de umafuga que possa representar ameaça à vizi-nhança das unidades da Febem, por exemplo,“populares” são chamados a depor.29

As questões levantadas pela reportagemde Gabriela Athias fizeram com que o jor-nal se manifestasse em editorial na ediçãodo dia seguinte. Vale a pena processar um

29 Note-se que “o povo”, no caso, está “represen-tado” por pessoas envolvidas na questão de forma in-comum, já que a presença do instituto nos arredoresé, a um tempo, um dado urbano diferencial e uma pe-rigosa ameaça a tal vizinhança restrita.

exame minucioso do texto que explicita asposições daFolhaante o dantesco quadro re-tratado pela matéria.

O tolo pleonasmo do título – “Febem in-tranquila” – não deve passar sem registro. Éprenúncio do que virá a seguir:

As turbulências na Febem di-minuíram bastante em 2001: apósum biênio trágico, no qual 78 re-beliões foram registradas, só duasrevoltas ocorreram. O avanço sedeve, em boa medida, à substitui-ção do sistema anterior, no qualcentenas de adolescentes eramamontoados em grandes unidadeslocalizadas na capital, por um mo-delo mais descentralizado, base-ado em pequenos centros de in-ternação distribuídos pelo Estado.A sucessão aparentemente intermi-nável de fugas e rebeliões foi inter-rompida, e a fundação deixou defrequentar o noticiário.

O jornal dá mostras de entender por “tur-bulências” tão somente manifestações rui-dosas que chamem a atenção popular e asua própria. Assim, é inequívoco “avanço”que estas tenham diminuído, de 78 para 2,não importando por que artes. O editorialaceita de bom grado que tal “avanço” sejacreditado, como o faz o governo paulista, àdescentralização do modelo penitenciário –ainda que em sua única visitain loco a umadesses novos unidades, a reportagem tenhaconstatado, no cerne da política que garantetal “bom desempenho” da instituição, viola-ções dos direitos humanos ainda mais gravesdo que as verificadas na vigência do antigomodelo.

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Cabe observar, ainda, não haver questio-namento algum acerca dos dados sobre fu-gas e rebeliões, bem como nenhum pingo deauto-reflexão jornalística sobre os porquêsdo desaparecimento de tais temas do noticiá-rio – o que confere a este um caráter auto-regulável, perante o qual desaparece a ou-trora propalada função investigativa do jor-nalismo.

Mas nem tudo é desolação. Como reza atradição dos editoriais, há ponderações – umtanto ponderadas demais e um tanto óbvias,mas há:

Seria prematuro dizer, porém,que os problemas da Fedem foram- ou estejam sendo - efetivamentesolucionados. Há evidências deque "alguns maus-tratos"não es-tão sendo apurados e punidos, massim ocultados, como revela repor-tagem publicada ontem neste jor-nal. A dissimulação dos confli-tos pode tranquilizar a sociedadecivil, mas a longo prazo tende aagravar as dificuldades.

É indispensável substituir a ve-lha filosofia de atendimento, quemal se distinguia da adotada numapenitenciária, por um sistema vol-tado para a recuperação efetivados menores. Ex-funcionários daentidade, porém, alegam que a ins-tituição não tem caminhado nessesentido. Uma psicóloga diz tersido orientada a se afastar dos me-nores: "Não tem que dar papopara vagabundo". Outra assis-tente demitida relata ter sido infor-mada, depois de uma revista, que

as "pauladas foram um mal neces-sário".

“É difícil saber quem tem razão” – pros-segue a peça assinada pelo mais festejadoconselho editorial do país, fazendo-nos su-por que ou se trata de grave lapso profissio-nal ou há, no seio de tal conselho, defensoresde pauladas como método de reinserção so-cial da infância.

A reestruturação da entidade provocou oafastamento de centenas de servidores, e odescontentamento é grande. A Febem viveuma transição - a passagem ao novo sistemaainda não foi concluída. Espera-se contudoque a prática pedagógica que confundia edu-cação com espancamento ceda de fato lugara procedimentosmenos desumanosantes queas grandes rebeliões do passado dêem lugara uma profusão de pequenas fugas e revoltas,talvez de menor visibilidade, mas não menosperigosas.30

No último parágrafo, como se lê, uma es-pécie de “síndrome de Pollyanna” acomete oeditorialista, que não apenas afirma alimen-tar esperanças na transformação das práticaspedagógicas (“espera-se”, ao invés de “é ne-cessário”, “é imperativo” ou “urge”), como,mesmo dispondo do apurado na reportagemdo dia anterior, tem a “boa vontade” de situá-las no passado. Coroando a peça que cum-pre a função de explicitar a opinião do jornal,pede-se procedimentos “menos desumanos”– cintos e chicotes ao invés de pauladas? –no trato com os jovens infratores.

O editorial produz uma expressiva mos-tra do nível em que se encontra, no Brasil,o debate sobre a criminalização do “menor”

30 “Febem intranquila”. Folha de São Paulo,05/03/2002. Grifos nossos.

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- e, em decorrência, sobre questões que en-volvam direitos humanos e sistema prisional(ainda que, a rigor, em mais uma dessas ma-nifestações de cinismo institucional que poraqui se perpetuam, as dependências da Fe-bem não possam ser qualificadas de peniten-ciárias, já que, como já aludimos, o ECAproíbe a prisão de “menores”).

5.3 A infância e o debate em torno dosdireitos humanos

A presença majoritária (58% do total de tex-tos) da temática da criminalização no trata-mento da “questão da infância” pelaFolha deSão Pauloexpressa a relevância alcançada,hoje, por um assunto que espraia-se por ou-tros segmentos sociais e perspectivas de en-foque, e que traz no seu bojo uma série dediscussão sobre os direitos humanos.

O acirramento do debate sobre crimina-lização e direitos humanos está intrinsica-mente ligado à emergência de um “Estadopenal e policial” em substituição ao “Estadocaritativo”, como definiu Loîc Wacquant emseu estudo sobre as políticas de segurançapública norte-americana nas últimas três dé-cadas. Os EUA ocupam um lugar centralnessa transformação, como um país que temvivenciado, com maior ênfase desde a as-censão de Reagan ao poder – e sem que talquadro apresentasse distenções significativasnos oito anos em que o partido democrata,com Clinton, ocupou a presidência -, umaescalada da penalização das relações sociaisque, entre outros efeitos, intensifica a confu-são entre pobreza e marginalidade. Avança-se com furor sobre práticas comportamen-tais, a inimputabilidade penal está limitadaaos sete anos de idade e a privatização dosistema prisional impulsiona o aumento ex-

ponencial do número de presidiários nas úl-timas décadas. Com a profunda alteração docenário geo-político mundial desde a quedado Muro de Berlim, tal transformação naconcepção de Estado se encontra, em sua ex-pansão mundial, cada vez mais inflexionadapela hegemonia norte-americana. O que jáera temeroso pode tornar-se macabro com aconformação pós-11 de setembro de 2001.31

No Brasil, fraturado pela miséria, a re-pressão periférica como política de Estadofaz parte do cotidiano policial do país, e oagravamento das condições de segurança nosgrandes aglomerados urbanos, açulado pelotratamento sensacionalista do tema na mídia,tem feito com que ganhe força, particular-mente nas periferias mas também entre os se-tores médios e de elite, os ataques dos políti-cos de direita à defesa dos direitos humanos -por eles chamados de “direitos de bandidos.”

A expressão “direito de bandidos” conferea estes uma distinção ontológica em relaçãoaos demais seres humanos. Tal distinção im-pede, aos olhos de seus propaladores, que osdireitos humanos contemplem o que enten-dem por outra espécie, a criminal. Como,universais, o fazem (ou deveriam fazê-lo),recebem a pecha de “direitos humanos debandidos!”, sendo então combatidos. A refe-rida distinção ontológica impede que os de-tratores se apercebam do absurdo de se travarcombate contra um direito que também lhesdiz respeito – e de, na instabilidade socioe-conômica de nossos dias e no despreparo denossas forças policiais, virem-se, um dia, im-pelidos a praticar um ato criminoso ou de se-rem suspeitos de fazê-lo, transpassando en-tão a tênue fronteira que separa o que enten-

31 WACQUANT, Loïc – Les Prisons de le Misère.Paris: Raisons D’agir, 1999.

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dem por duas espécies distintas – preferirão,então, o cumprimento rigoroso da lei ou abarbárie das torturas e do extermínio?

O país que encontra no termo “fratura”uma correta expressão de sua conformaçãosocioeconômica, tem no termo “distinção”seu principal vocábulo de expressão analí-tica: se atentarmos ao fato de que os “me-nores” de rua, nas fotos de jornal, não po-dem, por lei, ser identificados - pois umatarja preta lhes fraciona a face – desvelamosuma construção discursiva que reproduz epreserva a distinção entre uma infância cons-tituída de sujeitos – Sacha, Sandy e Júnior -e outra anônima e sem direito à identidade –o que só intensifica sua marginalização.

A própria denominação “menor”, presenteem debates jurídicos desde o final do séculoXIX e inscrita no código jurídico do país apartir de 1927, expressa uma distinção fun-damental, aceita e disseminada na socidadebrasileira, entre crianças – esses seres lúdi-cos de sorrisos cativantes que brincam nosjardins e nas praças – e “meninos de rua” –esses marginais em miniatura, de olhar ame-açador e que roubam e aterrorizam a socie-dade. O menino de rua não é – e, como esta-bele essa distinção, não poderá jamais ser –criança. É um criminoso. Pertence, portanto,a outra ordem ontológica.32

Tal distinção, de tal forma disseminada

32 LONDOÑO, Fernando Torres – “A origem doconceito “menor””. Em PRIORE, Mary Del –His-tória da criança no Brasil. São Paulo: Contexto,1992, pp. 129-145. Apesar dessas considerações, op-tamos por fazer uso da designação “menor” – relati-vizada por aspas - ao longo do trabalho, por entender-mos que a atribuição de novos vocábulos a distinçõessocialmente sedimentadas é uma forma artificial demascará-las, e não de efetivamente combatê-las – aonosso ver, um erro crasso das guerrilhas multicultu-rais norte-americanas “politicamente corretas.”

e institucionalizada que seus fundamen-tos não costumam ser sequer percebidos,quanto mais questionados, ignora “as deter-minações primárias do comportamento anti-social: as desigualdades estruturais das rela-ções econômicas e sociais, instituídas pelasformas políticas e jurídicas do Estado, quegarantem e legitimam uma ordem social in-justa.”33

Nesse quadro - marcado pelo mani-queísmo e por preconceitos de classe - o de-bate público em torno de cidadania e direi-tos tende a se restringir à ótica da crimina-lização, “Ou seja, os discursos e as práti-cas sobre os direitos humanos não chegamà população sob a forma de igualdade, felici-dade e liberdade, mas sim de culpabilização,penalização e punição, integrando um mo-vimento mundial de obsessão punitiva cres-cente”, como aponta a pesquisadora HelenaSinger no artigo “Direitos humanos e volú-pia punitiva.”34

Essa visão distorcida – ou, para sermosexatos, invertida – dos propósitos dos di-reitos humanos cria uma pré-indisposição -hoje sedimentada - da opinião pública paracom estatutos legais a duras penas e apóscarnificinas sanguinolentas proclamados, eque representam uma grande conquista paraa humanidade – ainda que a efetivação dessaconquista permaneça um distante devir .

Na presente conformação midiática, a fun-ção de traduzir à opinião pública a dimensãoe os propósitos de tais direitos caberia, so-

33 SANTOS, Cirino dos - – “O adolescente infratore os direitos humanos.”Discursos Sediciosos(9/10),Rio de Janeiro, 2000, p. 169.

34 SINGER, Helena – “Direitos humanose volúpia punitiva.”. Biblioteca de direi-tos humanos da Universidade de São Paulo.www.direitoshumanos.usp.br/bibliografia/helena.html

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bretudo, à mídia (não mais o quarto, e simo segundo poder, como alude Ignacio Ra-monet, referindo-se mais aos porquês dessaomissão do que a uma “promoção institucio-nal” do aparato midiático ).

Questões ligadas à criminalização e a di-reitos humanos – como o debate sobre a ado-ção da pena de morte – problematizam deforma intensa o sistema democrático brasi-leiro, exemplificando à perfeição a necessi-dade de se antepor a salvaguarda de direitosmundialmente consagrados e o espaço dasminorias à expressão de maiorias eleitoraissimples. Segundo as pesquisas publicadaspela própriaFolha de São Paulonos últimostrês anos, a pena de morte a diminuição dainimputabilidade penal estão em alta entre oeleitorado – e provavelmente seriam aprova-das em um plebiscito com votação obrigató-ria.

Expressando claro retrocesso tanto em re-lação às aspirações universais por justiça eigualdade quanto ao cenário de evolução ins-titucional que se esperava do mais longo pe-ríodo democrático da história brasileira, talquadro deve à imprensa e à mídia - ou àomissão e inação que seus interesses finan-ceiros “lhes impõem” - parte considerável desua conformação.

6 Conclusões

“A ação ética só é virtuosa se for livre”.A bela frase, grafada pela filósofa MarilenaChauí em artigo para aFolha de São Paulo,resume os pressupostos de uma linhagem fi-losófica cujo desenvolvimento leva à proble-matização da autonomia da vontade do su-jeito face à heteronomia dos valores sociais– “a subjetividade ética é uma intersubjeti-

vidade socialmente determinada”, conclui apensadora.35

A imprensa poderia ser – ou forçosamente“deveria sê-lo”, embora talvez irrecuperavel-mente não mais o seja – um dos pilares parao avanço das discussões sobre as demandassociais. Com efeito, se levarmos em contao modelo idealista que construiu e constróipara si mesma – inspirada por ideais ilumi-nistas, orientada por teorias de responsabi-lidade social, obediente a princípios éticosgrafados em manuais de redação – podería-mos por um breve momento imaginá-la cum-prindo tal papel, antes de nos dar conta dosimperativos capitalistas que a sustentam.

Mas, na contemporaneidade, Mídia e Po-der embaralham-se e confundem-se em pro-cessos simbióticos acelerados por fusões su-cessivas que mais e mais unificam objetivoscomuns aos dois campos. Em uma palavra:capital.

Em um mundo tornado orwelliano pelatecnologia, onipresente através de telas, mo-nitores,windows, a intersubjetividade soci-almente determinada de que nos fala Chauívê-se fortemente desequilibrada a favor daação da heteronomia exterior ao sujeito. Oser sobre e para o qual foi elaborada a re-ferida linhagem filosófica é uma criaturado passado, não mais existe. Seus estilha-ços encontram-se diluídos em meio ao fluxovirtual-midiático nele continuadamente in-trojetado desde a tenra infância. Sua “au-tonomia da vontade”, embora não pare desimular presença, é, na verdade, uma lem-brança mítica, um palimpsesto ene vezes rei-ficado a milhões de gigabytes por segundo.

Nessa confusão acelerada, reflexiva e sem-

35 CHAUÍ, Marilena – “Uma ideologia perversa”.Folha de São Paulo(Caderno Mais!), 14/03/1999.

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pre aparentemente consensual o que é e oque não é violência passa a ser determinadopor um aparato midiático que tem no ca-pital a base (estrutura físico-operacional), omeio (comercialização de espaços/tempo vi-abilizando a produção) e o fim (retorno emforma de audiência/público proporcionandoo lucro). Cria-se, em decorrência, um qua-dro valorativo a partir de valores subjetivos,que camuflam a violência enquanto estruturae espetacularizam as manifestações cotidia-nas de delinqúência que dela decorrem.

Tal quadro, em relação ao tema principaldeste trabalho – a “questão da infância” esua abordagem por um órgão de imprensa –explicita porque a sociedade brasileira, emsua imensa maioria, não se dá conta do graude perversidade inerente ao fato de se man-ter passiva ante a brutal desigualdade socio-econômica - presa de um ciclo vicioso sub-reptício o qual, em última análise, estimulaa disseminação de uma estratégia discursivaque, reverberando o ideário do consumidor-leitor, acaba, em últma análise, por permi-tir a supressão dos direitos, o aprisionamentoem condições degradantes e a eventual morte“acidental” de crianças que, paupérrimas,sem acesso a moradia, educação, alimenta-ção e lazer, lutam para sobreviver da únicamaneira que se lhes oferece.

Revela assim, justamente quando se criaadentrando as portas da (pós)-modernidadeprimeiro-mundista, seu caráter retrógrado,seu pendor autoritário, a “incapacidade paratolerar o princípio formal e abstrato da igual-dade perante a lei”; seu desfalecimento antea letargia gozosa do entretenimento vir-tual/televisivo/”Silvio Santos vem aí”, indi-ferente ao proliferar da desigualdade, da cor-rupção, da baixa política, no país em que “alegalidade se constitui como círculo fatal do

arbítrio (dos dominantes) à transgressão (dosdominados) e, desta, ao arbítrio (dos domi-nantes).36

A análise estrutural da dinâmica que regea opinião pública desautoriza, pelos moti-vos acima apontados, prognósticos alentado-res. Resta, hoje, apenas uma vaga e não-autorizada esperança de que, em meio aocenário de crescente e espetacularizada vio-lência e de irresponsável e banalizante açãoda mídia, a sociedade brasileira encontremeios de fazer valer, para homens, mulhe-res e, prioritariamente, crianças, os direitosque, à custa da morte de milhões, a huma-nidade, que volta e meia teima em ameaçararremessá-los à lata de lixo da história, fir-mou.

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