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V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22 - setembro 2005. A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DE PAULO FREIRE Abigail Guedes Magalhães 1 Anderson dos Santos Romualdo 2 Maria Cristina Garcia Lima 3 Regina Coeli Barbosa Pereira 4 Sâmya Petrina Pessoa de Oliveira 5 RESUMO A discussão sobre a formação de professores nos leva a refletir uma educação acessível a todos e que respeite as peculiaridades humanas, o que nos remete ao pensamento de Paulo Freire. Torna-se necessária uma (re)significação nos diversos segmentos sociais e a escola, como uma instituição inserida numa sociedade plural e cambiante, discute a possibilidade de mudança, buscando romper com os entraves pelos quais a educação vem passando. Na realização de uma prática escolar inclusiva devem-se considerar os sujeitos historicamente constituídos como seres capazes da transformação e com direito a participar do processo de construção do mundo. O objetivo de nosso trabalho é oportunizar aos educadores uma reflexão crítica da historicidade do processo educacional, visando uma educação humanista, que tem como um de seus principais pilares a realização de uma práxis voltada para a diversidade. Palavras-chave: Formação de professores – diversidade – educação. Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho se não viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos. (FREIRE, 2000, p. 67). Nos dias atuais os debates sobre a educação para a diversidade fazem-se cada vez mais intensos pela urgência das mudanças que se fazem necessárias e que oportunize uma educação para todos. Dessa forma, buscamos discutir uma prática que compreenda o desenvolvimento do sujeito numa dimensão histórica, social e cultural que atenda as suas peculiaridades e respeite as diferenças. Buscamos, assim, na pedagogia humanista esses fundamentos cuja reflexão Paulo Freire (2003) denomina como prática-educativo-progressista, que deve se desenvolver baseada numa relação de autonomia do educando, ou seja, transformar sua curiosidade ingênua e crítica em conhecimento. Compreender o desenvolvimento da consciência crítico-reflexiva como uma característica de construção faz parte de uma ética universal. Mas será que nós educadores e educadoras estamos preparados para exercer essa prática crítico-reflexiva? Ao discorrer sobre essas questões, Freire (2003) nos esclarece que: 1 Especialista em Educação. Núcleo de Educação Especial da UFJF ([email protected] ). 2 Graduando em Pedagogia pela UFJF e bolsista IC/CNPq ([email protected] ). 3 Graduanda em Pedagogia pela UFJF e bolsista PIBIC-UFJF/CNPq. ([email protected] ). 4 Doutora em Filosofia. Professora da UFJF ([email protected] ). 5 Graduanda em Pedagogia pela UFJF ([email protected] ). 1

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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DE PAULO FREIRE

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V Colóquio Internacional Paulo Freire – Recife, 19 a 22 - setembro 2005.

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA A DIVERSIDADE NA PERSPECTIVA DE PAULO FREIRE

Abigail Guedes Magalhães1

Anderson dos Santos Romualdo2

Maria Cristina Garcia Lima3

Regina Coeli Barbosa Pereira4

Sâmya Petrina Pessoa de Oliveira5

RESUMO

A discussão sobre a formação de professores nos leva a refletir uma educação acessível a todos e que respeite as peculiaridades humanas, o que nos remete ao pensamento de Paulo Freire. Torna-se necessária uma (re)significação nos diversos segmentos sociais e a escola, como uma instituição inserida numa sociedade plural e cambiante, discute a possibilidade de mudança, buscando romper com os entraves pelos quais a educação vem passando. Na realização de uma prática escolar inclusiva devem-se considerar os sujeitos historicamente constituídos como seres capazes da transformação e com direito a participar do processo de construção do mundo. O objetivo de nosso trabalho é oportunizar aos educadores uma reflexão crítica da historicidade do processo educacional, visando uma educação humanista, que tem como um de seus principais pilares a realização de uma práxis voltada para a diversidade.

Palavras-chave: Formação de professores – diversidade – educação.

Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda. Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da eqüidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho se não viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que fizemos e o que fazemos. (FREIRE, 2000, p. 67).

Nos dias atuais os debates sobre a educação para a diversidade fazem-se cada vez mais intensos pela urgência das mudanças que se fazem necessárias e que oportunize uma educação para todos. Dessa forma, buscamos discutir uma prática que compreenda o desenvolvimento do sujeito numa dimensão histórica, social e cultural que atenda as suas peculiaridades e respeite as diferenças. Buscamos, assim, na pedagogia humanista esses fundamentos cuja reflexão Paulo Freire (2003) denomina como prática-educativo-progressista, que deve se desenvolver baseada numa relação de autonomia do educando, ou seja, transformar sua curiosidade ingênua e crítica em conhecimento.

Compreender o desenvolvimento da consciência crítico-reflexiva como uma característica de construção faz parte de uma ética universal. Mas será que nós educadores e educadoras estamos preparados para exercer essa prática crítico-reflexiva? Ao discorrer sobre essas questões, Freire (2003) nos esclarece que:

1 Especialista em Educação. Núcleo de Educação Especial da UFJF ([email protected]). 2 Graduando em Pedagogia pela UFJF e bolsista IC/CNPq ([email protected]). 3 Graduanda em Pedagogia pela UFJF e bolsista PIBIC-UFJF/CNPq. ([email protected]). 4 Doutora em Filosofia. Professora da UFJF ([email protected]). 5 Graduanda em Pedagogia pela UFJF ([email protected]).

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Não é possível pensar os seres humanos longe sequer da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. (p.33).

Nesse aspecto, temos que considerar a ética presente também nas ações e relações do nosso cotidiano escolar que se fortalece nas atitudes e comportamentos vivenciados quando permitimos que o educando ou a educanda atue como ser histórico-social escolhendo, intervindo, criticando, rompendo, comparando, e tomando decisões. Sendo assim, a problematização das questões deve ser debatida no coletivo de nossas salas de aula e apoiarem-se no respeito às opiniões do outro. Neste sentido, Freire (2001) ressalta que a tarefa fundamental do educador e da educadora é:

[...] uma tarefa libertadora. Não é para encorajar os objetivos do educador e as aspirações e os sonhos a serem reproduzidos nos educandos, os alunos, mas para originar a possibilidade de que os estudantes se tornem donos de sua própria história. É assim que eu entendo a necessidade que os professores têm de transcender sua tarefa meramente instrutiva e assumir a postura ética de um educador que acredita verdadeiramente na autonomia total, liberdade e desenvolvimento daqueles que ele ou ela educa. (p.78).

Quando aprofundamos essa discussão compreendemos que a construção do conhecimento se faz de forma mais dinâmica, em ambientes heterogêneos, onde a diferença seja percebida como aspecto positivo no processo educativo. As diferenças de gêneros, etnias, religiosas e outras passarão a ser consideradas como fatores desencadeantes de novos construtos. Os embates e conflitos decorrentes desse novo momento onde se estabelecem as mudanças nos apontarão para um fazer coletivo diferenciado e, conseqüentemente, para a busca de metodologias que atendam a todos os alunos.

Ao afirmar que “formar é muito mais que puramente treinar o educando no desempenho de destrezas” (FREIRE, 2003, p.14), Freire nos convida a repensar nossa prática educativa. É necessário que o professor assuma-se como sujeito da produção do saber e saiba que ensinar não é transferir conhecimentos, mas criar possibilidades para a sua construção. Portanto, formar e ser professor, é uma relação de comunhão, aceitação de valores inerentes a cada sujeito de aprendizagem envolvido nesse processo.

Uma adequada formação do professor é de fundamental importância para o exercício de sua prática, pela postura que irá adotar no encaminhamento de suas ações. Nos últimos anos, essa formação tem passado por uma revisão crítica substantiva, uma vez que muito se tem questionado sobre o papel da educação na sociedade e a falta de clareza sobre a função do educador.

Isso remete à questão da formação tradicional dos educadores que acontece desvinculada da situação político-social e cultural do país e que considera o professor como um especialista em conteúdos, um transmissor de saberes acumulados, desvinculados da realidade do aluno e do contexto social mais amplo.

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No início dos anos 70, essa formação apresentou um caráter simplesmente instrumental, como conseqüência da influência do desenvolvimento tecnológico e científico. A educação se constituía em elaboração e execução de planos de ensino dentro de uma visão sistêmica.

O professor foi transformado em um simples transmissor acrítico e mecânico de conhecimentos e informações. Sua formação ficou reduzida à aquisição de instrumentos que propiciassem a transmissão desse conteúdo. A ênfase exclusiva no treinamento técnico do professor acabou prejudicando sua formação profissional. Este aprendeu como fazer, mas não aprendeu para que fazer.

A partir dos anos 80 surge um movimento de consciência política e cultural no país e ao mesmo tempo emerge a necessidade do professor estar ciente de seu papel de agente sócio-político. Foi preciso analisar e redimensionar a função da dimensão pedagógica do ensino, neste novo contexto. E ainda superar a preocupação maior com a modernização de métodos de ensino e recursos tecnológicos para se preocupar com as novas funções sociais e políticas da educação.

A perspectiva crítica educacional fez com que essa formação tomasse novos rumos. O discurso do compromisso político do professor, a procura de novas alternativas de competência, a conscientização sobre o seu papel e da educação para a sociedade passaram a ser a principal preocupação dos envolvidos com a tarefa docente. O questionamento dos educadores apontava para o que seria uma competência profissional englobando a dimensão política do ato pedagógico. Neste sentido, Freire (2003) nos remete a seguinte reflexão:

E que dizer de educadores que se dizem progressistas mas de prática pedagógico-política eminentemente autoritária? Não é por outra razão que insisti tanto, em Professora sim, Tia não, na necessidade de criarmos, em nossa prática docente, entre outras, a virtude da coerência. Não há nada talvez que desgaste mais um professor que se diz progressista do que sua prática racista, por exemplo. É interessante observar como há mais coerência entre os intelectuais autoritários, de direita ou de esquerda. Dificilmente, um deles ou uma delas respeita e estimula a curiosidade crítica nos educandos, o gosto da aventura. Dificilmente contribui, de maneira deliberada e consciente, para a constituição e a solidez da autonomia do ser do educando. De modo geral, teimam em depositar nos alunos apassivados a descrição do perfil dos conteúdos, em lugar de desafiá-los a apreender a substantividade dos mesmos, enquanto objetos gnosiológicos, somente como os aprendem. (p.109-10).

Ser sujeito de experiência não é somente ser sujeito de informação, de opinião, do trabalho, do saber, do julgar, do fazer, do poder, do querer, pois, o verdadeiro sentido de experiência se fundamenta no diálogo, que permite que haja transformação dos sujeitos envolvidos nesse processo. É saber escutar, refletir, apreender a lentidão, dialogar com o outro, para enxergar neste a diversidade dos saberes, tendo consciência de que somos seres inacabados enquanto estivermos convivendo e experimentando com o outro o prazer da busca do conhecimento. Este conhecimento sempre virá a somar na formação humana, jamais podendo defini-la.

Os homens então, dotados de uma racionalidade, estão a cada momento em busca de ser mais, em busca de sua própria compreensão enquanto sujeitos sócio-histórico-interacionistas. Portanto, Freire entende os homens e mulheres como seres inconclusos, ou seja, em constante processo de busca e construção. E ainda os reconhece como:

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[...] seres que estão sendo, seres inacabados, inconclusos em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. (FREIRE, 2002, p. 72-3).

E esse inacabamento, ou melhor, a consciência dele, é condição sine qua non do ser humano. E a partir desta conscientização, o homem e a mulher possibilitam a abertura para buscar em seu interior sua própria transformação; tornam-se mais críticos para o enfrentamento das situações-limites que lhes são impostas socialmente. Nas palavras de Freire (2003):

É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”, disse certa vez, por pura teimosia, mas por exigência ontológica. (p.58).

Para apreendermos este sentido de experiência é preciso entender que a aprendizagem se dá nas interações, nas interlocuções, nas trocas, portanto, a nossa busca é constante e não passageira, enquanto sujeitos inconclusos e abertos a desvendar os saberes que a experiência tem a nos oferecer.

Freire (2002) nos aclara essa questão do ser inconcluso, em especial educador ou educadora e sua práxis, quando diz que:

Aí se encontram as raízes da educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. Daí que seja a educação um quefazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos homens e do devenir da realidade. Desta maneira, a educação se re-faz constantemente na práxis. Para ser tem que estar sendo. (p.73).

O ser ex-posto na experiência corre o risco de ser transformado por esta, pois, se ele não consegue problematizar as ações do cotidiano escolar, ele não internalizará estas transformações, nunca terá sensação de completude. O sujeito de experiência corre o perigo de se indignar, ou seja, não se conformar com a situação posta, buscando sempre respostas às suas indagações, nunca se acomodando. Portanto, experiência não é prática, pois essa nem sempre está sensível e reflexiva ao momento vivido.

A formação de um profissional competente, necessário às novas condições econômicas, políticas, sociais e culturais do país exige um preparo adequado. As dimensões técnica e política da educação tornam-se os elementos norteadores das propostas de ensino.

A escola hoje requisita um professor que expresse em seu fazer pedagógico as dimensões humana, tecnológica e política e que seja capaz de visualizar os efeitos sociais do trabalho pedagógico e dos condicionamentos que nele interferem, que saiba selecionar criticamente as orientações de sua práxis.

A preocupação básica na formação de professores não pode ser somente a de lhes oferecer os conteúdos das disciplinas pedagógicas, mas também a de preparar profissionais

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comprometidos com um projeto de sociedade voltado para a construção do homem integral – ético, estético, político e social.

A competência técnica e o compromisso político do professor certamente eliminará de sua prática o subterfúgio de culpar somente o aluno pelo fracasso escolar e excluir aqueles que apresentem dificuldades de aprendizagem.

Há urgência em preparar educadores aptos a enfrentar os desafios colocados por uma sociedade em mudança. Ser educador nesta nova dimensão significa comprometimento com a construção de uma nova realidade.

É preciso formar o professor restaurando-lhe o seu “ser docente”, no sentido ontológico para que possa exercer uma prática humanizada.

A prática pedagógica se desenvolve como instrumento de manutenção ou transformação do status quo. A formação do professor pode significar a tentativa de modificar ou manter não somente o trabalho pedagógico-educativo, mas também o processo histórico da sociedade como um todo.

Freire faz uma crítica à pedagogia tradicional denominada por ele “educação bancária”, sendo esta o exercício de uma prática massificadora, de treinamento, na qual os educandos tornam-se meros receptores de conteúdos que são “depositados” pelos educadores de forma a manter os primeiros à margem do conhecimento e de sua razão de existir. Nesta educação, a relação existente entre os envolvidos no processo ocorre verticalmente, já que os educandos transformam-se em reprodutores e copiadores, ou seja, sujeitos a-críticos, tendo o discurso do educador como verdade absoluta, não intervindo no processo educacional em momento algum. Freire (2002) ressalta que este tipo de educação:

[...] conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo narrado [...] os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será. Quanto mais se deixarem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão. Desta forma, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante (p.58).

Contrapondo-se a esta prática, Freire propõe uma educação problematizadora, que forme um sujeito crítico, participativo e atuante na sociedade com o objetivo de transformá-la para que todos tenham iguais oportunidades. Esta é a “educação libertadora” que Freire defende como justa e igualitária e que desperta no indivíduo a sua vocação ontológica, ou seja, ser sujeito de sua própria realidade. Nesta perspectiva, a relação existente é horizontal, pois a troca de experiências e conhecimentos entre educador e educando é constante, e um não se sobrepõe ao outro. Nas palavras de Freire (2002):

Não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição entre o educador e os educandos. [...] Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se

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tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. (p. 68).

A prática pedagógica não comporta mais o ato de depositar ou de apenas transmitir conhecimentos e valores que condicionam o aluno a uma visão parcializada da realidade. Ela deve se estabelecer a partir do conhecimento existente, elaborando novos conhecimentos. Assim, esta prática se transforma em uma situação gnosiológica, com o desenvolvimento de uma postura ativa e co-participante dos sujeitos nela envolvidos.

Por ser tarefa de “sujeitos”, o conhecimento exige ação e reflexão do homem sobre o mundo, sobre a realidade em que vive. A reflexão leva os alunos a assumirem uma postura crítica diante dos problemas com os quais se deparam no dia-a-dia.

Para Freire (1981), o ato de conhecer envolve um movimento dialético que vai da ação à reflexão sobre ela e desta a uma nova ação “para o educando conhecer o que antes não conhecia, deve engajar-se num autêntico processo de abstração por meio do qual reflete sobre a totalidade “ação-objeto”, ou, em outras palavras, sobre formas de orientação no mundo” (p.50).

Todo problema requer contextualização. Ele não pode ser analisado de modo parcial, isoladamente, mas numa perspectiva global, relacionando-se o aspecto em questão com o contexto no qual acontece. A problematização elimina a memorização e a repetição mecânica dos conhecimentos e faz com que o aluno perceba a realidade dos fatos de forma mais aprofundada. É a problematização, portanto, que torna autêntica a aprendizagem e propicia o domínio do conhecimento de forma efetiva.

A conscientização possibilita ao aluno inserir-se no processo histórico; reconhecer que o homem faz a história e que é capaz de mudar o seu rumo. Conforme Freire (1980), a conscientização produz a desmitologização, ou seja, propicia ao educando reconhecer os mitos que camuflam a realidade social para melhor decifrá-la. A conscientização acontece quando se ultrapassa a simples apreensão do fato, para analisá-lo de forma crítica. Quando se permite aflorar a consciência racional o homem passa a orientar suas ações pelo pensamento, por meio da lógica. Dessa forma, educar pela conscientização significa possibilitar a busca de plenitude da condição humana.

Segundo Freire (2002): Somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, também, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação. A que, operando a superação da contradição educador-educandos, se instaura como situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu ato cognoscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza. (p.83).

Agindo assim, o educador possibilita ao aluno a oportunidade de elaborar seu pensamento, aprofundar a compreensão que tem de si, do outro, do mundo, do contexto social mais amplo. Este método de ensino dialógico acompanha algo da maiêutica socrática6, fazendo com que o 6 O método socrático, como é denominado, consiste numa dialética, em que a discussão se desenvolve em dois tempos, - a ironia e a maiêutica. A ironia socrática consiste em perguntar, fingindo desconhecer o assunto (= dúvida fictícia e metódica), com vistas a refutar a tese contrária e preparar a tese verdadeira. A maiêutica (de: "4 , b T = parir) de Sócrates conduz o interlocutor a descobrir paulatinamente o conhecimento sobre o objeto de discussão. No caso de Sócrates que

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aluno por si, sob orientação do professor possa elaborar conhecimento, adquirir informações.

A reflexão, a conscientização, só podem acontecer por meio do diálogo do qual o educador deverá fazer uso constante. Na medida em que a prática educativa não pode acontecer pela simples transferência acrítica do conhecimento, o diálogo torna-se, portanto, elemento imprescindível para o processo educativo. Ele se constitui no encontro de sujeitos interlocutores na busca da compreensão e significação para o conhecimento que se desvela. Acontece com a co-participação de sujeitos no ato de pensar.

É na dialogicidade e na problematização que educador e educando, conjuntamente, adquirem uma postura crítica e o domínio do conhecimento. De acordo com Freire (2003), não pode haver diálogo se não há humildade e se não se reconhece a possibilidade de uma constante troca com o outro. O autor nos questiona:

Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim?

Como posso dialogar, se me admito como um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros, meros “isto”, em quem não reconheço outros eu?

Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os que estão fora são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”? Como posso dialogar se parto de que a pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presença das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar? Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto ofendido com ela? Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e definho? (p. 80-1).

É pelo diálogo que o professor vai fazer com que o aluno caminhe, desenvolva seu raciocínio, tome posicionamentos. Mas, em Freire, o diálogo não exclui o conflito, e sim, ativa discussões, solicita participação e presença do educando. O diálogo não é uma discussão polêmica nem mesmo hostil entre o educador e o educando, mas é o elemento básico da conscientização, da busca do saber, da verdade. É uma ação conjunta, que requer envolvimento de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem. Para isso, o professor precisa ter atitude de abertura, de aceitação do outro com sua subjetividade. Daí o que se põe em evidência é a unidade educador-educando, num processo de intercomunicação. O professor que tem respostas prontas obriga o aluno a se calar, elimina o diálogo e estabelece uma relação de poder entre eles, ao mesmo tempo em que bloqueia a capacidade de pensar do educando, ou melhor, sua capacidade de ser.

Com a chamada quebra de paradigmas, deflagradas na Modernidade e refletidas na atual sociedade, muitas das práticas educacionais que por vezes se mostraram puramente tecnicistas, vieram à tona nas discussões de toda a esfera educacional. E, no que tange aos indivíduos envolvidos nesse processo, os educandos passaram a ser vistos, por uma corrente

supunha haver idéias inatas, a maiêutica consistia, mais precisamente, em fazer recordar, despertando os conhecimentos virtualmente possuídos. [...]. Além disto, a maiêutica era caracterizada pela sua concepção inatista, bem como pelo fato de havê-la denominado em função à profissão de sua mãe, que era parteira. (http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/ novo/2216y098.htm).

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progressista, como agentes da transformação social, ou seja, como seres-sujeito do quefazer.

Sendo assim, a questão da individualidade impulsionou, ou ao menos abriu espaço para uma reflexão crítica, um novo olhar dos educadores, que até então mantinham a idéia de classe homogênea. Cada ser é dotado de individualidade, contexto social e, principalmente, um fato que é essencial na educação, cada educando tem seu nível de desenvolvimento. Conseqüentemente, uma classe escolar é heterogênea em todos os seus aspectos.

Os alunos considerados fora dos padrões socialmente estabelecidos de “normalidade”, em face de um pensamento conservador, ficam marginalizados, estereotipados, segregados do convívio com os ditos “normais”. Em algumas sociedades, ser negro, ser velho, ser mulher, ser criança, ser deficiente etc., representou ao longo dos tempos – e ainda representa – uma condição de subalternidade de direitos e desempenho de funções sociais.

As diversas formas de discriminação são reflexos da padronização social, que é ingenuamente explicada, por uma visão caritativa ou mesmo de proteção, chegando até no discurso em prol da segregação para se fazer um treinamento para posterior convívio social.

É nesse contexto de discriminação que Freire se posicionou contra todo um sistema social que exclui um indivíduo mediante um fator peculiar do sujeito. Isto é uma perversidade do homem moderno. Freire (2003) declarou que:

Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível. (p. 120-1).

Na realização de uma prática escolar inclusiva devem-se considerar os sujeitos historicamente constituídos como seres capazes da transformação e com direito a participar do processo de construção do mundo. Para isso torna-se necessária a construção de uma nova ética. Neste sentido, Freire (2003), em relação à ética universal esclarece que:

Quando, porém, falo da ética universal do ser humano estou falando da ética enquanto marca da natureza humana, enquanto algo absolutamente indispensável à convivência humana. Ao fazê-lo estou advertido das possíveis críticas que, infiéis ao meu pensamento, me apontarão como ingênuo e idealista. Na verdade, falo da ética universal do ser humano da mesma forma como falo de sua vocação ontológica para o ser mais, como falo de sua natureza constituindo-se social e historicamente não como um a priori da História. (p.18).

Dessa forma, compreender o conceito de inclusão em seu sentido amplo significa reestruturar a nossa práxis, reavaliar as interações do nosso cotidiano escolar e adequá-las à realidade social e cultural de nossos alunos. A escola inclusiva deve ser aquela que busca construir no coletivo uma pedagogia que atenda a todos os alunos e que compreenda a diversidade humana como fator impulsionador dessa nova forma de organizar as aprendizagens.

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Se um dos princípios da inclusão é a celebração das diferenças, entendê-la como agente de transformação de nossa realidade educacional é respeitar nos educandos suas singularidades. É fazer do nosso espaço escolar o lugar onde as experiências coletivas sejam vivenciadas considerando as atitudes éticas adotadas pelo grupo como condições indispensáveis, capazes de promover mudanças significativas nos processos sociais. Entretanto, para isso, torna-se necessário investir na formação de professores no sentido de aprofundar os questionamentos de como realizar uma prática escolar que acompanhe as mudanças ocorridas em decorrência dos avanços trazidos, sobretudo pelas novas tecnologias que nos oferecem outra forma de cognição e conseqüentemente outras formas de relações sociais.

A concepção de educação tradicional que se apóia na idéia de padrão, de homogêneo não se insere mais nesse espaço-tempo que estamos acompanhando hoje. Assim, compreender o verdadeiro papel de um educador ou uma educadora progressista, com vistas a realizar uma pedagogia que atenda a todos os alunos significa formar para o múltiplo e para o heterogêneo, ou seja, conscientizar-se da necessidade de adotar uma nova concepção de educação. No entanto, para realizá-la, precisamos rever nossos planejamentos curriculares, nosso sistema de avaliação, a função de seus administradores, a importância da formação continuada dos professores, e a relação professor/aluno, considerando em todas elas os conceitos da ética nas relações, que devem direcionar os pilares dessa nova escola.

Essa proposta de uma nova formação docente encontra em Paulo Freire uma vasta argumentação considerando que os fundamentos de sua obra apóiam-se em pilares que norteiam a realização de uma educação para todos. As categorias estruturais do pensamento freireano discutem as práticas desenvolvidas no espaço escolar considerando a historicidade, o diálogo, a conscientização, a inconclusão, a utopia (inédito viável), a comunhão e a libertação como realidades que deverão permear todo o trabalho do educador ou da educadora com vistas a essa construção baseando-se no respeito às diferenças sociais, culturais, étnicas e adequando-as ao espaço-tempo atual.

REFERÊNCIAS

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FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.

PAULI, Evaldo. Segundo Período da Filosofia Antiga. In: Enciclopédia Simpozio. Disponível em: < http://www.cfh.ufsc.br/~simpozio/novo/2216y098.htm > Acesso em: 25 jul. 2005.

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CONCEPÇÃO DIALÓGICA E AS NTICS: A EDUCOMUNICAÇÃO E OS ECOSSISTEMAS COMUNICATIVOS

Ademilde Silveira Sartori1

Maria Salete Prado Soares RESUMO

Alicerce do pensamento latino-americano sobre a inter-relação comunicação e educação, Paulo Freire iluminou as bases de um novo modelo comunicacional considerado por Jesús Martín-Barbero como a primeira teoria latino-americana de comunicação. Paulo Freire desponta como o educador que definiu bases sólidas para gestar os espaços dos ecossistemas comunicativos, pois sua teoria dialógica, baseada em colaboração, união, organização e síntese cultural, aproxima-se do conceito de Educomunicação. A Educomunicação é um campo teórico-prático integrado e integrador que pressupõe um modus operandi que reconceitua a relação comunicação e educação. Nestes termos, o educomunicador é aquele profissional que, tendo em conta as possibilidades comunicativas colocadas pelas NTIC, gera e gerencia ecossistemas comunicativos.

Palavras-chave: Educação dialógica – educomunicação – ecossistemas comunicativos.

INTRODUÇÃO

O século XX apresentou significativas transformações em quase todos os âmbitos: sociais, econômicos, políticos, culturais que abalaram a sociedade vigente e que estão diretamente ligadas ao surgimento das tecnologias da comunicação e da informação. Elas reorganizaram práticas, vivências, estruturas, infiltrando-se em praticamente todos os setores da sociedade, alterando rotinas sedimentadas tanto na vida empresarial quanto na particular.

Neste século da comunicação, a globalização também contribuiu para abalar estruturas e quadros de referência que serviam de parâmetros a indivíduos e coletividades. Capaz de uniformizar a sociedade, de manipular e impor padrões alheios à sociedade local e, paradoxalmente, promover um renascimento de valores culturais locais, a globalização trouxe, no rastro de sua passagem, uma exacerbação das desigualdades sociais e acirramento da exclusão social, tanto internamente aos Estados quanto no plano internacional, o que gerou uma evidente erosão social da cidadania. 7

As novas tecnologias possibilitaram a construção de uma malha de conexão entre áreas do conhecimento distintas e a criação de uma dimensão por onde transitam idéias e conceitos díspares, permitindo à humanidade vivenciar novas experiências no saber, no fazer, no sentir.

A importância que a comunicação assumiu na sociedade atual nos obriga a olhá-la como uma nova força nas relações cotidianas, em todas as esferas sociais. O século XIX reorganizou-se econômica, política e socialmente em função do desenvolvimento industrial e do crescimento 1 Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP, UESC ([email protected]) 7 Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP ([email protected].).

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das relações entre povos e culturas; o século XX confrontou-se com a onipresença dos meios de comunicação que escancarou a força dos dispositivos de informação presentes em cada canto do planeta de forma instantânea, produzindo sentidos, induzindo ideologias; tudo isso acarretou profundas conseqüências na vida individual e coletiva dos séculos XX e XXI, inclusive na educação. Martín-Barbero (1996) afirma que estamos diante de um ecossistema comunicativo conformado não pelas máquinas ou meios, mas por linguagens, saberes e escritas, pela hegemonia da linguagem audiovisual sobre a tipográfica que desordenam e remodelam as formas de aquisição do saber e do conhecimento.

Para o educador Paulo Freire, a comunicação é elemento fundamental pois é ela que transforma seres humanos em Sujeitos. Freire estabelece a relação entre comunicação e educação, na medida em que esta última é vista como um processo daquela, já que é uma construção partilhada do conhecimento mediada por relações dialéticas entre os homens e o mundo. A COMUNICAÇÃO

O campo da Comunicação transita por diferentes áreas, incorporando um espírito transdisciplinar, o que longe de enfraquecê-la, confere-lhe uma vitalidade ímpar nessa transgressão de fronteiras disciplinares e cruzamento de posturas científicas.

Para Pierre Bourdieu, campo é um universo que “[...] possui sua doxa específica, conjunto de pressupostos inseparavelmente cognitivos e avaliativos cuja aceitação é inerente à própria pertinência” (BOURDIEU, 2001, p. 122). Identifica, assim, vários campos como o científico, o jornalístico, o literário, o artístico, e cada um consiste em uma institucionalização de um ponto de vista, “[...] um conjunto de pressupostos e de crenças partilhadas [...] inscritas em certo sistema de categorias de pensamento” (BOURDIEU, 1997, p. 67). Ao contemplar uma determinada problemática, um campo é:

[...] um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes, permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço – que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em conseqüência, suas estratégias. (BOURDIEU, 1997, p. 57).

Neste sentido, em “História das Teorias da Comunicação”, Armand Mattelart e Michèlle Mattelart entendem o campo da comunicação como um:

[...] campo de observação científica que, historicamente, se inscreveu em tensão entre redes físicas e imateriais, entre o biológico e o social, a natureza e a cultura, os dispositivos técnicos e o discurso, a economia e a cultura, as perspectivas micro e macro, o local e o global, o ator e o sistema, o indivíduo e a sociedade, o livre-arbítrio e os determinismos sociais. (MATTELART e MATTELART, 1999, p. 10).

Esse campo em profunda e contínua mutação é caracterizado por Venício Lima (2001) como “desarticulado, conflituoso e em permanente crise teórica”, o que não impede a Comunicação de, mesmo possuindo contornos vagos e indefinidos, estar na centralidade da discussão no final do século XX e início do XXI, prestando-se aos mais diversos usos estratégicos.

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A palavra “comunicação” é entendida, muitas vezes pelos especialistas, como possuidora de duas faces: como um processo em que A envia uma mensagem para B, sobre o qual a mensagem tem um efeito determinado ou pode ser enfocada como uma negociação e um intercâmbio de sentido, no qual as mensagens, as pessoas, suas culturas e a “realidade” interagem para possibilitar a produção de sentido, ou seja, a sua compreensão. (O´SULLIVAN, 2001, p. 52).

O autor latino-americano Jorge Huergo (2001) explica que, etimologicamente, a palavra “comunicação” provém da palavra latina “communis” que significa “tornar comum”. São dois sentidos apresentados pelo verbo: o primeiro, como transitivo, tem o significado de “transmitir” e “persuadir” e está intimamente ligado a “divulgação”, quer dizer, enquanto um fala, o outro escuta. Estabelece-se uma relação de poder em que um é o que transmite, detém o conhecimento e o outro simplesmente recebe, numa relação vertical que se torna mais acentuada ainda quando levamos em consideração os meios de comunicação de massa. Esse sentido do verbo comunicar foi chamado por Paulo Freire, no livro Educação como Prática da Liberdade (1967), de alienação da ignorância, pois o outro que recebe não pode ter o processo de conhecimento sem a “doação” daquele que detém o saber.

A segunda interpretação entende o verbo como reflexivo e, nesse sentido, ‘comunicar’ é ‘tornar comum’, ‘partilhar’ e ‘dialogar’. Transformou-se, em alguns casos, em um sentido quase religioso, como a idéia de comunidade ideal de comunicação, de Jürgen Habermas, baseada na vontade subjetiva dos participantes (comunicação intersubjetiva) e na idéia de comunicação como uma condição da vida social. A comunicação seria um agir, um comportamento, uma expressão humana observável e identificável. No agir comunicacional, as ações são orientadas para o entendimento mútuo, o ser que inicia o processo comunicacional é também produto dos processos de socialização.

Se o conceito de comunicação apresenta, como diz Lima (2001), a ambigüidade de ter no seu significado dois extremos – de transmitir, sentido unidirecional e o de compartilhar, processo participativo – o significado também sofreu alterações ao longo do tempo. Ela teve vários sentidos, tais como: “(a) de objeto tornado comum – uma comunicação ou comunicado; (b) de meios físicos de transporte, as vias de comunicação – estradas, rios, canais; e (c) os meios tecnológicos de transmissão de informação, isto é, a (imprensa, cinema, rádio, televisão)” (LIMA, op. cit., p. 25).

Oscilando entre a transmissão – aí envolvida a técnica (ou a funcional como quer Dominique Wolton, 2002) – e a comunicação como interação, há, contemporaneamente, uma tendência a associar o conceito de comunicação aos meios de comunicação de massa, face às radicais transformações por que passaram as tecnologias da comunicação no final do século passado.

A dissolução de barreiras entre os diferentes meios tecnológicos, do analógico ao digital, que acontece com aparatos como telefone, televisão, máquina fotográfica, computador e que estão convergindo para um único sistema e convivendo num mesmo aparelho só reforça a posição central que a comunicação assume no mundo contemporâneo. Ela passa a ser considerada como legitimadora de discursos, comportamentos, ações e atua como um instrumento de consenso, assim como foram “a religião nas sociedades tradicionais, o progresso nas sociedades modernas ou a produção na sociedade industrial” (RODRIGUES, 1999, p. 13).

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Forma-se o que Adriano Duarte Rodrigues chama de uma “ideologia comunicacional” (RODRIGUES, op. cit.) no processo da modernidade; a ela caberia redefinir um novo tipo de racionalidade, já que os modelos lógicos fundamentados ou na vertente racionalista, baseada na razão técnico-científica ou na anti-racionalista, vanguardista, exauriram-se durante o processo. Apresentando-se de modo confuso, com pretensões arcaizantes de sociabilidade, a ideologia da comunicação vem carregada de anseios de refundação, de recomeço, de nova era. É do autor a seguinte definição de comunicação:

A comunicação não é um produto, mas um processo de troca simbólica generalizada, processo de que a sociabilidade, que gera os laços sociais que estabelecemos com os outros, sobrepondo-se às relações naturais que estabelecemos com o meio ambiente. Se todos os seres vivos estabelecem em permanência trocas imediatas e espontâneas com o mundo natural que os rodeia, nos homens esta interação não é imediata; é mediatizada por símbolos culturais concebidos, elaborados e legados por sucessivas gerações, como a linguagem verbal, os gestos e os comportamentos, o vestuário, a arte, a disposição e o arranjo do espaço público ou do espaço privado. Discursos e silêncios, gestos, comportamentos, ações e omissões constituem as manifestações dos processos comunicacionais, na medida em que correspondem a expectativas geradas pelas regularidades que formam o tecido das relações sociais. (RODRIGUES, 1999, p. 22).

A comunicação é um processo de expressão da participação social, de estabelecimento de contato entre pessoas, grupos e classes:

A comunicação estuda a produção, a veiculação e recepção das mensagens, tanto a nível pessoal como social, tanto na esfera do privado como na esfera pública, e a interação dos emissores-receptores numa determinada conformação econômica, política e cultural, num determinado tempo e espaço, onde se liga o factual do cotidiano com o conjuntural e estrutural. (MORAN, 1993, p. 15).

Assim, tão importante quanto estudar e refletir sobre a comunicação intransitiva, centrada nos dispositivos de que se valem os media, é investigar as possibilidades contidas na comunicação transitiva, proporcionada por complexas redes interpessoais.

Na medida em que a educação transformou-se em espaço privilegiado de discussão e cidadania, é um importante tecido comunicativo, torna-se vital colocar a comunicação no centro no fazer pedagógico, quer para questionar os mecanismos não transitivos nas suas diferentes feições, entendê-los e poder agir sobre eles, quer para promover ecossistemas comunicativos que destravem os nós pelos quais a educação está passando.

OS ECOSSISTEMAS COMUNICATIVOS

Walter Benjamin (1982) foi, talvez, o primeiro a entrever o nascimento do novo sensorium que se formava no intervalo entre as novas condições de produção e as transformações culturais promovidas pelas novas tecnologias da comunicação e informação. Essa mudança permite uma aproximação com tudo aquilo que até então estava distante para as massas – a arte, por exemplo, mas não só ela – desmistificando, com a ajuda das técnicas, aquilo que possuía a aura de sagrado, o que era mantido resguardado e inacessível à população em geral. Esse sensorium permite romper o distanciamento e revigorar o sentimento de igualdade da massa diante da cultura, prerrogativa antes apenas da elite.

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Por intermédio das novas tecnologias e do desenvolvimento da nova sensibilidade, criou-se uma energia que perpassa os novos mecanismos de apreensão do mundo “pela mediação de conectar-se ou desconectar-se dos aparelhos, sempre com destaque para a televisão” (BACCEGA, 2000, p. 10), que pode ser percebida nas empatias cognitivas e expressivas, desenvolvidas, principalmente, pelos jovens. Martín-Barbero explica que “frente à língua e ao território, as (linguagens) eletrônicas, audiovisuais, musicais, ultrapassam essa limitação, produzindo comunidades hermenêuticas que respondem a novos modos de perceber e narrar a identidade” (MARTÍN-BARBERO, 1998, p. 58). Identidades que são capazes de “amalgamar e fazer conviver ingredientes de universos culturais diversos” (MARTÍN-BARBERO, op. cit., p. 13). Instaura-se, assim, um ecossistema tão vital quanto o ambiental: o ecossistema comunicativo:

Se trata de una experiencia cultural nueva, o como W. Benjamin lo llamó, un sensorium nuevo, unos nuevos modos de percibir y de sentir, de oír y de ver, una nueva sensibilidad que en muchos aspectos choca y rompe con el sensorium de los adultos. Un buen campo de experimentación de estos cambios y de su capacidad de distanciar a la gente joven de sus propios padres se halla en la velocidad y la sonoridad. No sólo en la velocidad de los autos, sino en la de las imágenes, en la velocidad del discurso televisivo, especialmente en la publicidad y los videoclips, y en la velocidad de los relatos audiovisuales. Y lo mismo sucede con la sonoridad, con la manera con que los jóvenes se mueven entre las nuevas sonoridades: esas nuevas articulaciones sonoras que para la mayoría de los adultos marcan la frontera entre la música y el ruido, mientras para los jóvenes es allí donde empieza su experiencia musical. (MARTÍN-BARBERO, 2000, p. 49).

Para a Biologia, a noção de ecossistema inclui tanto fatores bióticos (vivos: animais, plantas, bactéria entre outros) quanto abióticos (ambiente físico) inter-relacionados dinamicamente. Pode ser considerado como o conjunto dos relacionamentos mútuos entre os seres vivos e o meio ambiente. No ecossistema, acontecem trocas e ele está em contínuo dinamismo; não é determinado por seu tamanho, mas por sua estrutura e seus padrões de organização.

Jésus Martín-Barbero (2000) quem articulou o conceito de ecossistema comunicativo, não apenas conformado pelas tecnologias e meios de comunicação, mas também pela trama de configurações constituída pelo conjunto de linguagens, representações e narrativas que penetra na vida cotidiana de modo transversal.

Adilson Citelli (2000, p. 246) é enfático ao assegurar que, diante das experiências culturais descentradas (formas de socialização, de dispositivos de identificação, de cultura) e onde “nada acontece na esfera pública sem que exista uma mediação de alguma mídia, de alguma forma de trânsito internacional”, é preciso “[...] assegurar a base democrática aos cidadãos”.

Esta é a razão pela qual, para Martín-Barbero (2000), é vital que a escola absorva a idéia de que é preciso incorporar um trabalho sério que contemple o novo sensorium e os media, além de evitar que se aprofunde o fosso entre a sensibilidade e a cultura dos professores e dos alunos. Por esse viés, a escola prioriza a interação com os novos campos de experiência surgidos da reorganização dos saberes, dos fluxos de informação, das redes de intercâmbio, além de interatuar com os novos modos de representação e de ações cidadãs, que interligam o local com o mundial. Dessa forma, deve, portanto, assumir o trabalho com o ecossistema comunicativo como a dimensão estratégica da cultura (MARTÍN-BARBERO, 1996). O desafio é como inserir na escola um ecossistema comunicativo que contemple ao mesmo tempo: experiências culturais heterogêneas, o entorno das novas tecnologias da informação e

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da comunicação, além de configurar o espaço educacional como um lugar onde o processo de aprendizagem conserve seu encanto. (MARTÍN-BARBEIRO, 1996)

As políticas culturais e comunicacionais na educação devem passar pelas “ambiguas y complejas interacciones entre el ecosistema comunicacional y el sistema político en su indelegable responsabilidad de dinamizar la educación y creatividad cultural, incluyendo em ambas la invención científica y la innovación tecnológica” (MARTÍN-BARBEIRO, 2002, p. 56). Uma postura crítica aos meios de comunicação só será eficiente quando inserida em um projeto educativo cultural mais amplo.

Ismar de Oliveira Soares (1999) desenvolve o conceito de ecossistema comunicativo de modo mais abrangente. O pesquisador deseja estabelecer bases sólidas para a inter-relação comunicação e educação, a qual chama de Educomunicação, que trabalha “a partir de um substrato comum que é a ação comunicativa no espaço educativo, ou seja, a comunicação inter-pessoal, grupal, organizacional e massiva promovida com o objetivo de produzir e desenvolver ecossistemas comunicativos através da atividade educativa e formativa”. Soares insere o conceito na perspectiva da gestão comunicativa: compreende “a organização do ambiente, a disponibilidade dos recursos, o modus faciendi dos sujeitos envolvidos e o conjunto das ações que caracterizam determinado tipo de educação comunicacional” (SOARES, 2002b, p. 125).

Por esse ângulo, falar em ecossistema comunicativo implica buscar a descentralização de vozes, a dialogicidade, a interação. As relações devem buscar equilíbrio e harmonia em ambientes onde convivem diferentes atores. Não é apenas no mundo tecnológico que atua o ecossistema comunicativo, mas em todas as esferas e a comunicação.

Assim como há a necessidade de uma relação equilibrada entre homens e natureza, é necessária a criação de “verdadeiros "ecossistemas comunicativos" nos espaços educativos, que cuide da saúde e do bom fluxo das relações entre as pessoas e os grupos humanos, bem como do acesso de todos ao uso adequado das tecnologias da informação”. (SOARES, 2002c).

Para Soares, o conceito de Educomunicação está intrinsecamente ligado ao de ecossistema comunicativo, já que a primeira é representada pelo “conjunto de ações que permitem que educadores, comunicadores e outros agentes promovam e ampliem as relações de comunicação entre as pessoas que compõem a comunidade educativa”. (SOARES, op. cit.). Ou seja, o lócus de ação da Educomunicação são os ecossistemas comunicativos, que, para Soares, devem conter fluxos comunicativos positivos; existe mesmo uma recomendação de que ao geri-los “é interessante começar a partir dos pontos de consenso” (Ibidem), evitando conflitos.

EDUCOMUNICAÇÃO

Importante questão referente à inter-relação comunicação e educação diz respeito ao papel da comunicação nas relações interpessoais, de trocas entre sujeitos. Nesse sentido, pode ser entendida como uma comunicação transitiva, “é o processo de expressão da participação social, do estabelecimento de contato entre pessoas, grupos e classes. A comunicação expressa a dinâmica do cotidiano, a existência social do indivíduo e a do indivíduo na

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sociedade”, conforme José Manuel Moran (1993, p. 11). É fundamentalmente uma prática vivida, um campo de trocas e de interações que possibilita a expressão, o relacionamento, o ensino e o aprendizado.

Essa outra maneira de ver a comunicação passa pela perspectiva do compartilhamento, da troca e de entendimento entre as pessoas. Nesse sentido, aproxima-se da visão de teóricos da educação, como Paulo Freire, para quem a comunicação é fundamental nas relações humanas, assim como a inter-relação de seus elementos básicos no processo educativo. Para haver conhecimento, é necessária uma relação social igualitária e dialogal entre os sujeitos, que resulta em uma prática social transformadora.

Baseado em Freire, Francisco Gutierrez defendia o princípio de que o “processo de comunicação é essencial à educação” e que “o processo de aprendizagem é autêntico quando se efetua uma mudança naquele que aprende. Por esse motivo a aprendizagem pressupõe a interação, o intercâmbio.” (GUTIÉRREZ, 1978, p. 33-39).

O princípio da ação e do diálogo comunicativos podem ser alargados se relacionarmos com a dimensão da comunicação pessoal de José Manuel Moran:

A comunicação caminha na direção da inclusão, da integração. Da inclusão de pessoas diferentes, de formas distintas de ver. Caminha na aproximação de mais pessoas, de mais grupos; no estabelecimento de vínculos, de pontes para aproximar-nos das pessoas, sem isolar-nos em grupinhos, “panelinhas”, ou seitas. [...] Pela comunicação não só expresso emoções, sentimentos, como também lido com afeto. Pela comunicação busco afeto, carinho, ser querido, amado. Se essas emoções são bem gerenciadas, são positivas, facilitaremos todas as atividades em todas as dimensões e direções das nossas vidas. A rejeição, a falta de afeto, de aceitação nos desestrutura, nos joga para fora de nós mesmos numa busca frenética de qualquer compensação, reconhecimento, aceitação. (MORAN, 1998, p. 10-16). [...] Ou seja, ao falarmos de ecossistema comunicativo seria interessante pensar na qualidade das relações interpessoais do processo, visto que não podemos desconsiderar que, antes de tudo, temos seres humanos que estão interagindo. Jorge Huergo já havia percebido esse fato ao analisar o sentido de diálogo que contém o termo “comunicação”. Para ele, a interação entre sujeitos nem sempre acontece de modo perfeito. La comunicación rara vez es simétrica, en el sentido de "entre iguales", y armoniosa, en el sentido de "no conflictiva"; por eso vamos a considerar a la comunicación dialógica como un encuentro, antes que como un acuerdo: un encuentro donde los que se encuentran cargan con sus memorias, sus conflictos, sus diferencias. (HUERGO, 2001).

A inter-relação comunicação-educação gerou estudos que foram desenvolvidos pelo Núcleo de Comunicação e Educação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade São Paulo (NCE-ECA/USP), preocupado em fundamentar, pesquisar, desenvolver e solidificar um novo campo, a Educomunicação, que por sua natureza inter-relacional, “estrutura-se de modo processual, mediático, transdisciplinar e interdiscursivo”, sendo vivenciado pelos seus atores através de áreas concretas de intervenção social, que podem constituir-se em vertentes”, de acordo com Ismar de Oliveira Soares. (SOARES, 1999, p. 65). O autor define a Educomunicação como:

O conjunto das ações inerentes ao planejamento, implementação e avaliação de processos, programas e produtos destinados a criar e fortalecer ecossistemas

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comunicativos em espaços educativos presenciais ou virtuais, assim como a melhorar o coeficiente comunicativo das ações educativas, incluindo as relacionadas ao uso dos recursos da informação no processo de aprendizagem." (SOARES, 2002a, p. 115).

Quatro áreas de intervenção foram sistematizadas ao se pensar a abrangência da Educomunicação:

a) Educação para a Comunicação, preocupada com a reflexão a respeito dos impactos e influências dos media, na relação entre os pólos do processo de comunicação (Estudos de Recepção) e no campo pedagógico pelos programas de formação de receptores autônomos e críticos frente aos meios (Educação para a Comunicação, “Media Education” ou “Media Literacy”). No continente latino-americano, também é conhecida como “leitura crítica dos meios”, “educação para a televisão” ou “educação para os meios”;

b) Mediação tecnológica na educação que compreende os procedimentos e as reflexões em torno da presença e dos múltiplos usos das tecnologias da informação na educação;

c) Gestão comunicativa, voltada para o planejamento, execução e realização dos processos e procedimentos que se articulam no âmbito da Comunicação/Cultura/Educação. Dela faz parte o planejamento das relações entre os professores e alunos, entre direção, corpo docente e alunos ou nas relações entre a escola e a comunidade onde está inserida. Além disso, também há o planejamento de ações voltadas à criação de ambientes favoráveis ao desenvolvimento do ensino, à implantação de projetos de educação frente aos meios de comunicação, à implementação do exercício artístico, ou mesmo, à disseminação das tecnologias num plano de ensino.

d) Reflexão epistemológica que vê a inter-relação Comunicação e Educação como fenômeno cultural emergente e instiga projetos de pesquisa para legitimação do novo campo e investigações sobre as vertentes que compõem a Educomunicação, constituindo-se uma reflexão acadêmica.

A inter-relação Comunicação/Educação já tinha acontecido em épocas e momentos anteriores, ainda que mais intuitiva e não tão sistematizada. Célestin Freinet na França e Paulo Freire no Brasil são considerados os desbravadores da área Educação para Comunicação. Embora atuassem em contextos bem diversos, trabalhassem com públicos distintos – Freinet na educação de zero a 14 anos, Freire na educação de adulto – e apresentassem objetivos diferentes – o francês visava mudanças na estrutura e pedagogia escolares, o brasileiro buscava uma reorganização sócio-política do mundo – havia muitas semelhanças entre eles. Ambos tinham uma concepção política da educação, acreditavam na não neutralidade do ato pedagógico, sustentavam o diálogo e a colaboração, alertavam para a manipulação do ser humano e, sobretudo, estavam convictos da possibilidade de transformação do indivíduo e da sociedade. A vista de acesso era a livre expressão, o diálogo e a cooperação.

PAULO FREIRE

Para entender a história da inter-relação comunicação e educação latino-americana após os anos 70, é preciso voltar os olhos para Paulo Freire que desenvolveu fundamentos sólidos

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para um novo modelo educomunicacional, essencialmente horizontal, democrático e dialógico. A matriz freireana perpassa o pensamento de vários teóricos da comunicação da América Latina, principalmente Mário Kaplún, Jesús Martín-Barbero, Guillermo Orozco-Gómez, Francisco Gutiérrez. Martín-Barbero atribui a Freire “la primera teoria latinoamericana de comunicación, ya que no sólo tematizó prácticas y procesos comunicativos de estos países sino que puso a comunicar a América Latina consigo misma y con el resto del mundo”. (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 20).

O educador brasileiro, mais do que inaugurar um pensamento dialógico, democrático e libertador na pedagogia nacional e latino-americana, transformou-se em um marco na história da Educação. Sua concepção de educação popular abalou as bases do ensino elitista vigente, repercutiu internacionalmente e produziu uma ruptura no percurso histórico da educação/comunicação. Ele apostava na educação por intermédio do audiovisual. Já na década de 60, a Conferência Nacional dos Bispos havia aprovado o uso da Telescola no Movimento de Educação de Base (MEB). Além disso, acreditava também na educação em outros espaços que não o da educação formal.

Extensão ou Comunicação? elaborado em 1968/1969, reflete a importância da comunicação no processo de conhecimento. Básica nas relações humanas, ela se apresenta como uma relação social igualitária, dialogal, na co-participação dos sujeitos no ato de conhecer.

A explosão das tecnologias da comunicação e informação leva o pensador a afirmar que mais que a utilização de uma técnica ou tecnologia, a problematização e a conscientização são fundamentais no ato pedagógico.

Isso não significa ignorar ou rejeitar novas tecnologias ou linguagens; ao contrário, é preciso apropriar-se delas, com critério, para reavivar a humanização do homem: é preciso discutir os meios de comunicação e a quem eles servem. É uma crítica política e não tecnológica.

O projeto educacional que construiu visava ao fim da opressão e das desigualdades sociais por intermédio do desenvolvimento da consciência crítica e histórica. Suas bases alicerçavam-se em uma teoria do conhecimento que se pautava pelo respeito ao educando, pela busca da autonomia e pela dialogicidade, a partir de um pensamento crítico e libertador, na busca pela igualdade, justiça e união, pressupostos orientadores na construção de novos paradigmas educacionais.

Ao partir da realidade do educando para encontrar temas geradores que vivificassem a educação, Freire substituía uma visão mais simplista por outra crítica, e partia do pressuposto de que havia em cada ser humano um saber único, ainda que rudimentar, mas de onde era possível estabelecer uma nova relação com a vida. Inaugurava, assim, uma metodologia dialógica que renegava a transmissão vertical de conteúdos: do mestre, que detém o conhecimento, para o aluno, que devia absorvê-la. Essa educação que chamou de “bancária” estava na raiz da dominação cultural.

Para Freire, não existe educação neutra, é impossível separar o processo de aprendizagem do processo político, já que ao construir significados de uma realidade, estamos atribuindo valores que podem ser imobilizantes ou, ao contrário, ativos, que acreditem que reflexão e ação podem transformá-la. A educação problematizadora desenvolvida por ele procura

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desvelar o mundo e é calcada numa relação dialógica entre educador e educando. “O educador já não é mais o que apenas educa, mas o que enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. [...] Os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo.” (FREIRE, 1978, p. 78-79).

O sentido atribuído ao diálogo, que pressupõe uma relação horizontal entre os seres, fundado “no amor, na humildade, na fé dos homens”, é fundamental para a estrutura do conhecimento, visto que o ato cognoscente não termina no objeto cognoscível, uma vez que se comunica a outros sujeitos igualmente cognoscentes. “A educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados.” (FREIRE, 1979, p. 69). Tem-se, assim, uma teia de interações que estabelece a sintonia entre comunicação e educação.

A comunicação é o elemento pelo qual é possível transformar o ser humano em sujeito da sua própria história, vivendo uma relação dialética, em diálogo, que o conduz a uma consciência crítica e a uma transformação.

O mundo social humano não existiria se não fosse capaz de se comunicar. A comunicação é um processo de interação de Sujeitos em diálogo, elemento estruturante e intrínseco ao ser humano. Este é o primeiro dos três níveis, chamado de antropológico: a comunicação como constitutiva do ser humano. (LIMA, 1981).

O segundo nível, epistemológico, parte do pressuposto de que só acorre conhecimento na comunicação; ele é o resultado da relação social entre dois sujeitos mediatizados pelo objeto que querem conhecer: “o sujeito pensante não pode pensar sozinho; não pode pensar sem a co-participação de outros sujeitos no ato de pensar...” (LIMA, op. cit, p. 63).

A dimensão política, terceiro nível, é entendida quando lembramos que não há conhecimento e nem comunicação se a relação entre os sujeitos não for igual. A comunicação para Freire, diz Venício Lima, é uma relação social igualitária, dialogal que produz conhecimento, uma prática transformadora e política.

A visão que Freire tem da comunicação dialógica parte de um paradigma sócio-estrutural; não se trata de um enfoque no âmbito pessoal, mas social e político, muito diferente do individualismo baseado na auto-realização. Ele condena os que acreditam que indivíduos possam ser transformados enquanto as estruturas sociais são mantidas intactas.

Isso não significa que Freire não se preocupe com o indivíduo, com o particular; pelo contrário, a esfera pessoal só encontra sua plenitude quando está inserida no todo; a auto-realização só tem sentido na medida em que está conectada ao outro.

A dialogicidade como essência da educação libertadora apresenta algumas características importantes: a colaboração (a ação dialógica só se realiza entre sujeitos), união (fundamental para a consciência de classe ou de grupo), organização (momento da aprendizagem em que se busca transformar) e síntese cultural (instrumento de superação da cultura):

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La puerta a la comunicación que nos abre P. Freire es básicamente a su estructura dialógica. Pues hay comunicación cuando el lenguaje da forma a la conflictiva experiencia del convivir, cuando se constituye en horizonte de reciprocidad de cada hombre con los otros en el mundo. (MARTÍN-BARBERO, 2002, p. 30).

TEORIA DIALÓGICA EM PRÁTICA: UM EXEMPLO.

No cerne da Educomunicação está a concepção dialógica de Freire. Trabalhos desenvolvidos nesse campo interdisciplinar colocam em prática os princípios de colaboração, união, organização e síntese cultural. Um exemplo foi o projeto Educom TV – a linguagem audiovisual na escola: uma ação educomunicativa, desenvolvido pelo Núcleo de Comunicação e Educação - NCE, do Departamento de Comunicação e Artes, da Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo, ECA-USP, em parceria com a CENP/SEE - Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e a GIP/DTE. Este projeto constitui-se de um curso que capacitou 2.243 professores da rede pública do estado de São Paulo para o uso do audiovisual em sala de aula, por intermédio de atividades on-line realizadas por meio de um Ambiente Virtual de Aprendizagem, em 2002.

A estrutura do Educom TV era constituída de 3 coordenadores, 35 tutores – cada um responsável por uma sala virtual de aprendizagem com cerca de 65 cursistas –, equipe operacional, equipe de suporte técnico, além de articuladores. O conteúdo pedagógico foi distribuído ao longo dos meses de junho a dezembro em 10 módulos. Esses se compunham de parte teórico-reflexiva, exercícios dissertativos relacionados à prática diária docente e ao uso das NTCI, além de solicitarem intensa navegação por hipertextos e discussões em chats e fóruns.

O projeto foi educomunicativo e lastrado em Freire, pois tanto no desenho pedagógico interno do curso - concepção do AVA, seleção dos tutores, elaboração do material didático e relações travadas entre tutores, coordenadores, suporte técnico – quanto nas relações com os alunos, atendia aos três princípios apontados por SIERRA (2000, p.21-22), da relacionabilidade, da alteridade e da dialogicidade:

A escolha dos tutores para o projeto Educom TV foi norteada pelos princípios da Educomunicação. Recrutados entre alunos de pós-graduação, mestrandos ou doutorandos, vinham de diferentes áreas do conhecimento: Pedagogia, Cinema, Filosofia, Física, Biologia, Letras, Sociologia, Antropologia, Geografia, Artes e Jornalismo. A heterogeneidade da formação dessas pessoas foi fator determinante para a construção de um saber conjunto, partilhado pelo grupo, que contribuiu para a união e o estabelecimento de laços de confiança entre os membros da equipe. (SOARES et al, 2004).

O tutor tinha tripla função: a primeira, pessoal, era estabelecer uma relação de cordialidade e confiança entre os participantes; a segunda, tecnológica, deveria orientar seus educandos a utilizar as ferramentas disponibilizadas pelo curso e a terceira, pedagógica, consistia em avaliar e comentar as respostas dos cursistas aos exercícios, dentro do ritmo de cada um, estimulando-os a reverem sua prática pedagógica de modo a que pudessem ter um novo olhar sobre a educação, sobre os meios de comunicação e as novas tecnologias, sem, contudo, desqualificar as crenças que carregassem:

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Os textos e os exercícios, assim como o contato com os tutores, valorizavam a aprendizagem como “construção de significados”, em uma dimensão cooperativa ou colaborativa da aprendizagem que pôs em evidência o papel dos pares e a tutela do “adulto” nas situações de aprendizagem (ou seja, aprendizagem como ato social). (SOARES et al, op. cit.).

Dentro da concepção dialógica, as três funções desempenhadas pelos tutores do Educom TV “convergiam para a valorização e a ressignificação do papel do professor que deveria, ele também, sentir-se parte integrante de uma teia colaborativa de seres humanos envolvidos em questões pedagógicas e educacionais.” (SOARES et al, op.ci.t) A relação dialógica entre os pares criou um ecossistema comunicativo eficiente e permitiu que os professores-cursistas questionassem suas práticas e conceitos e incorporassem uma nova visão sobre sua prática pedagógica.

[...] A forma em que se deu a relação entre cursistas, tutores, coordenação geral, equipe operacional e equipe técnica, teceu laços colaborativos consistentes evidenciados pela troca dialógica e assídua de experiências e idéias que culminaram com o bom resultado do projeto. Os resultados deste curso aparecem consubstanciados nos trabalhos finais - alguns surpreendentemente rigorosos em relação aos conceitos envolvidos e outros dotados de acentuada criatividade. (SOARES et al, op.cit.).

De fato, os resultados obtidos ao final do curso indicam que o professor se transformou ao final do projeto Educom TV. Foram elaborados, em parcerias, 980 projetos interdisciplinares, o índice de permanência esteve em torno de 91% (considerado muito bom para cursos on-line) e a pesquisa avaliativa final realizada com os professores revelou que houve efetiva contribuição na qualidade do ensino ministrada pelos professores.

CONCLUSÃO

No mundo atual em que é preciso educar numa sociedade em que os dispositivos tecnológicos e midiáticos produzem outras sensibilidades, deslocalizam o saber, inauguram novas formas de expressão, Comunicação e Educação caminham juntas.

Ao despontar como educador que percebeu a “comunicação humana como diálogo.” (Lima, op. cit. 71) e entendeu as inter-relações entre educação e comunicação, Paulo Freire forneceu uma base teórica sólida para a gestão de ecossistemas comunicativos, pois sua teoria dialógica, baseada em colaboração, união, organização e síntese cultural, aproxima-se do conceito de Educomunicação. A Educomunicação configura-se assim como campo teórico-prático integrado e integrador que pressupõe um modus operandi que reconceitua a relação comunicação e educação. Como diz Venício Lima:

No momento em que as potencialidades das tecnologias interativas acenam para a quebra da unidirecionalidade e da centralização das comunicações, o conceito de comunicação dialógica, relacional e transformadora de Freire oferece uma referência normativa revitalizada, criativa e desafiadora para todos aqueles que acreditavam na prevalência de um modelo social comunicativo humano e libertador. (LIMA, op. cit., p.69).

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A RELAÇÃO EDUCADOR-EDUCANDO NA PERSPECTIVA FREIREANA

Adriana Marques Ferreira1

Leonardo Docena Pina2

Thagnani Reis do Carmo3

RESUMO

O trabalho aborda as contribuições de Paulo Freire a respeito das relações entre educadores e educandos. Para tal faz-se necessário abordamos as críticas freireanas ao modelo de educação que desconsidera a diversidade como característica maior dos sujeitos. Freire destaca a postura que o professor assume de detentor do conhecimento, colocando o aluno na posição de mero receptor desse; numa relação vertical, denominando-a de educação bancária. Contrapondo-se a esse perfil de educação, evidenciamos a educação para a liberdade que considera todo indivíduo como agente de sua transformação, neste modelo a relação é horizontal, dialógica para que assim, o educando possa ter consciência de que não esta apenas no mundo, mas com o mundo, buscando formas de transformar a realidade.

Palavras-chave: Relação educador – educando, diálogo, diversidade.

Este trabalho é fruto de um projeto de pesquisa financiado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) intitulado “Uma leitura crítica da Educação Especial a caminho da inclusão”, cujo objetivo é analisar a contribuição que Paulo Freire, Vygotsky e Michel Foucault deram no processo de ruptura paradigmática da exclusão para a inclusão. Neste cenário Paulo Freire ocupa um lugar de destaque na defesa dos direitos humanos e na valorização de todas as pessoas como sujeitos historicamente inseridos no processo permanente de mudança de si e da realidade.

Para tal, é utilizada a metodologia da análise de discurso, “AD”, em sua vertente francesa, que busca compreender os efeitos de sentidos derivados e/ou constitutivos dos movimentos dos discursos.

Paulo Freire em suas obras sempre se demonstrou preocupado com a relação do ensino e aprendizagem desenvolvidos no sistema educacional. Preocupação esta que possui seu cerne na relação estabelecida entre educador ou educadora e educando ou educanda.

Primeiramente, vale pontuarmos que o ato de ensinar inexiste sem aprender, pois foi a partir da condição humana de que todos são capazes de aprender que ao longo dos tempos, homens e mulheres foram desenvolvendo maneiras, métodos de educar. Desta forma, é o ato de aprender que justifica a relação estabelecida entre professores e professoras com seus alunos e alunas.

Perante essa relevância do ato de aprender de todo ser humano, na relação educador (a) e educando (a), Freire (2002, p. 25) pontua que não há docência sem discência, ou seja, “quem

1 Graduanda em Pedagogia pela UFJF e bolsista BIC/UFJF.([email protected]). 2 Graduando em Educação Física pela UFJF([email protected]). 3 Graduanda em Pedagogia pela UFJF ([email protected]).

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ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”. Quando o (a) educador (a) se vê como sujeito formador do processo educativo e seus alunos e alunas como “objetos” que devem ser formados, e que, portanto recebem passivamente conhecimento pertencente ao sujeito que sabe e que são a eles transferidos, ocorre um esvaziamento da relação dialética de aprendizagem de toda pessoa humana.

Quanto a isso, Freire (2004) faz uma crítica severa, na qual a educação se torna o ato de depositar conhecimentos, em que os educandos e educandas são os depositários e os educadores e educadoras os depositantes. Essa seria a chamada concepção bancária de educação, na qual a prática pedagógica é reduzida ao ato de depositar, transferir e transmitir valores e conhecimentos:

Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los (FREIRE, 2004, p. 58).

Na visão bancária da educação, o saber torna-se uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão, representada pela dicotomia opressor e oprimido, sendo que ao primeiro é previsto a detenção de todo o saber e conseqüentemente, todo o poder, e ao segundo, sua impossibilidade de problematizar questões relacionadas à realidade que o oprime, tendo então que simplesmente aceitá-la como ela é.

Esta estratificação implícita na relação é uma distorção ética; se posicionar acima do outro, seja ele quem for, significa distorcer o sentido da existência humana, já que todos são seres de mesmo valor. O domínio do saber científico, a posição de professor (a), não dá a este (a) o direito de olhar os (as) alunos (as) de cima; da mesma forma, não saber determinado conteúdo não remete a idéia de o (a) aluno (a) ter menor valor.

Para Freire (2004), a educação bancária “é uma concepção que, implicando uma prática, somente pode interessar aos opressores, que estarão tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os homens ao mundo” (p.63). Daí que esse modelo de educação tende a reduzir a existência dos homens e mulheres ao mero viver; tende a fazê-los seres da adaptação, do ajustamento. Assim, lhes é negada a possibilidade de exercerem sua vocação ontológica de ser sujeito, de estar no mundo e com o mundo, de existir ao invés de apenas sobreviver. Freire (1996) destaca que é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar), são exclusividades do existir.

Neste modelo educacional, a relação educador-educando se faz vertical, de cima para baixo, definindo os que sabem e os que não sabem, reproduzindo na escola a relação opressor-oprimido. O pragmatismo ocupa o lugar da esperança. A opressão é legitimada, suprimindo-se o direito fundamental de todo homem e mulher de agirem em sua própria história. Não são reconhecidas todas as potencialidades dos sujeitos, ao contrário, as diferenças são realçadas, vistas como entraves ao desenvolvimento. A diversidade é desconsiderada diante das dificuldades formuladas e postas em prática pelo opressor, e a mudança é considerada como

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um sonho impossível de se realizar. Para os acomodados não há o que fazer além de excluir do sistema aqueles que “fogem” aos padrões de normalidade.

Observa-se que muitas condições sociais têm sido consideradas e tratadas como desviantes, fato que reflete, nas diversas situações, um julgamento social, julgamento que se requinta na medida em que as sociedades se aprimoram tecnologicamente em função de valores e de atitudes culturais específicas. Em algumas sociedades, ser negro (a), ser velho (a), ser mulher, ser criança, etc, representou ao longo dos tempos, como ainda representa, uma condição de subalternidade de direitos e desempenho de funções sociais. E é neste contexto de complexa trama de relações sociais, dentro e fora da escola, que se manifestam as diversas formas de controle, discriminação e opressão em relação aos ditos desviantes, ou seja, é no contexto social que se manifestam as mais variadas formas de preconceito e/ou aceitação daquilo que se apresenta como “diferente” ou “indesejado”, atitudes contra as quais Freire sempre se posicionou de forma contundente. Um exemplo clássico desta situação é o (a) aluno (a) considerado (a) portador (a) de necessidades especiais, principalmente o (a) chamado (a) deficiente. Ao considerá-lo (a) como incapacitado (a) a sociedade cria práticas assistencialistas, contexto este que favorece uma relação professor–aluno fundada na piedade e no sentimento de caridade, que nada mais faz do que posicionar este (a) aluno (a) no lugar de “pobre coitado (a)”, “inválido (a)”, etc.

No caso específico da deficiência, pode-se afirmar, em conformidade com Fonseca (1987), que a mesma reflete, em muitos aspectos, a maturidade humana e cultural de uma determinada comunidade. O que não se pode negar é que há, implicitamente, uma importante variável cultural e que se encontra na base do julgamento que estabelece a distinção entre “deficientes” e “não deficientes”. Segundo Fonseca (1987), “Essa relatividade obscura, tênue, sutil e confusa, procura, de alguma forma, afastar ou excluir os indesejáveis, cuja presença ofende, perturba e ameaça a ordem social” (p.9).

Direcionando o olhar para dentro da escola, encontramos, de um lado, professores e professoras conservadores, ingênuos e/ou acomodados, que facilitam o crescimento contínuo da ideologia opressora, cuja discriminação é ato corriqueiro, muitas vezes imperceptível por ser considerado comum; de outro lado, encontramos professores e professoras progressistas, considerando-se realmente educadores e educadoras comprometidos na medida em que lutam contra qualquer forma de discriminação, na medida em que se colocam em favor da esperança que os animam, e, apesar de tudo, na medida em que se colocam frente ao embate ideológico como lutadores (as) obstinados (as), que se cansam, mas não desistem.

O (a) educador (a) que aliena a ignorância se mantém em posições fixas, invariáveis, com uma visão fatalista da realidade. E a rigidez destas posições nega a educação e o conhecimento como processo de infinita busca.

Freire (2004) chama a atenção dos (as) verdadeiros (as) humanistas para o fato de que eles (as) não podem, na busca pela libertação, servir-se da concepção “bancária”, sob pena de se contradizerem em sua busca. “Assim como também não pode esta concepção tornar-se legado da sociedade opressora à sociedade revolucionária”. (FREIRE, 2004, p.66).

Contrapondo-se à educação “bancária”, Paulo Freire evidencia a educação libertadora, que considera todo indivíduo como agente de transformação, reconhecendo-o como sujeito

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histórico inserido na realidade de forma crítica. Desse modo, a relação educador-educando é amparada pela irrecusável prática do inteligir, do sempre desafiar o (a) educando (a) com quem se comunica a produzir sua própria compreensão do que vem sendo comunicado.

A educação para a libertação deve privilegiar o exercício da compreensão crítica da realidade e possibilitar não só a leitura da palavra, a leitura do texto, mas também a leitura do contexto, a leitura do mundo:

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo. (FREIRE, 2004, p.67).

Nesse modelo de educação, o (a) educador (a) progressista, comprometido (a) com a mudança, não pode apenas falar aos educandos e educandas sobre sua visão do mundo, ou tentar impô-la. É preciso dialogar para que ambos possam realizar uma leitura crítica sobre as verdadeiras causas da degradação humana. O papel do (a) educador (a) progressista é desafiar a curiosidade ingênua do (a) educando (a) para, com ele (a), partejar a curiosidade epistemológica. E é a partir da relação dialógica entre educadores (as) e educandos (as) que a prática educativa se afirma como desocultadora de verdades escondidas.

Desta maneira, Freire (2004) afirma que:

[...] o educador já não é mais aquele que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já não valem. E para ser autoridade, funcionalmente, é necessário estar a favor da liberdade e não contra a mesma. E ninguém educa ninguém e tão pouco educa a si próprio: os homens educam em comunhão mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática bancária, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos. (p.68).

Assim, a “educação problematizadora” ou “educação para a liberdade” ocorre numa relação horizontal, onde educador (a) e educando (a) estabelecem constante diálogo, buscando transformar a realidade. O respeito ao conhecimento prévio que o (a) educando (a) possui é de fundamental importância, para que se possa propor, e nunca impor, o que, e como será desenvolvido o trabalho em sala de aula. Para Freire (2004), “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens” (p.70). A educação problematizadora é uma relação dialógico-dialética entre educador (a) e educando (a), ou seja, ambos aprendem e ensinam juntos.

“Se há uma prática exemplar como negação da experiência formadora é a que dificulta ou inibe a curiosidade do educando”. (FREIRE, 2002, p.94). Os questionamentos, as perguntas, e as comparações que partem dos (as) alunos (as) durante as aulas, abrem espaço para considerações que, além de enriquecer o processo de construção do conhecimento, ampliam

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os limites do conteúdo a ser trabalhado. Daí a importância de dialogar com os educandos e educandas e dar-lhes liberdade de expressar suas idéias e curiosidades.

Freire (2001) no período em que trabalhava com educação de jovens e adultos já vivenciava uma das virtudes que considerava necessária ao educador democrático.

Que é preciso saber como ouvir, ou seja, saber como ouvir uma criança negra com a linguagem específica dele ou dela como a sintaxe específica dele ou dela, saber como ouvir o camponês negro analfabeto, saber como ouvir um aluno rico, saber como ouvir os assim chamados representantes de minorias que são basicamente oprimidas. Se não aprendermos como ouvir essas vozes, na verdade não aprendemos realmente como falar. Apenas aqueles que ouvem, falam. Aqueles que não ouvem acabam apenas por gritar vociferando a linguagem ao impor suas idéias. (p.58-59).

Muitos professores (as), porém, desqualificam, minimizam, ironizam e/ou negam as contribuições de seus alunos e alunas para não correrem o risco de responder algo que vá além das respostas prontas já preparadas. Mantêm a postura de detentores de todo o conhecimento, resguardados pela concepção bancária, que lhes dá, segundo Gadotti (1995), maior segurança ao permitir que estabeleçam limites ao que será “transmitido” em aula.

Esse autor afirma que “a elaboração do saber, além dos puros conhecimentos, não se faz sem riscos, sem desafios, para além da segurança que nossas verdades prontas nos oferecem”. (GADOTTI, 1995, p.135) Além do mais, cabe destacar que a liberdade também não se faz sem riscos, sem desafios, nem tampouco se faz, por meio de uma prática autoritária que inibe a participação dos (as) alunos (as). Quanto a isso, Freire afirma que:

O professor que desrespeita a curiosidade do educando, o seu gosto estético, a sua inquietude, a sua linguagem, mais precisamente, a sua sintaxe e a sua prosódia; o professor que ironiza o aluno, que o minimiza, que manda que “ele se ponha em seu lugar” ao mais tênue sinal de sua rebeldia legítima, tanto quanto o professor que se exime do cumprimento de seu dever de propor limites à liberdade do aluno, que se furta ao dever de ensinar, de estar respeitosamente presente à experiência formadora do educando, transgride os princípios fundamentalmente éticos de nossa existência. (FREIRE, 2002, p.66).

Desta forma, devemos assumir o papel de educadores e educadoras democráticos, não podendo negar o dever de, na nossa prática docente, reforçar a capacidade crítica do (a) educando (a), sua curiosidade e sua insubmissão. Educadores e educadoras democráticos têm como uma de suas tarefas primordiais trabalhar com os (as) educandos (as) a rigorosidade metódica com quem devem se “aproximar” dos objetos cognoscíveis - não tendo nada a ver com o discurso bancário meramente transferidor do perfil do objeto ou do conteúdo - onde ensinar é alongar o ensino do objeto e do conteúdo dentro de uma produção que gera condições de possibilitar um aprender criticamente. Tais condições só estão sendo exploradas com educadores (as) e educandos (as) criadores (as), instigadores (as), inquietos (as), rigorosamente curiosos (as), humildes e persistentes. Condição que respeite os conhecimentos e saberes que os (as) educandos (as) trazem do seu cotidiano, das suas vivências anteriores à escola. Educandos e educandas vistos dentro de uma perspectiva na qual aprendem como sujeitos da construção e da reconstrução desse saber que será ensinado, ao lado de educadores e educadoras, igualmente sujeitos do processo.

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Para que haja uma relação horizontal o diálogo é fundamental, e este consiste no respeito aos educandos e educandas. Para colocá-lo, o (a) educador (a) não pode se pôr na posição ingênua de quem se julga detentor (a) de todo o saber, deve, antes, colocar-se na posição humilde de quem não sabe tudo, levando em consideração que o (a) educando (a) é alguém com toda uma experiência de vida e também portador (a) de um saber. Desta maneira, o diálogo se impõe como caminho pelo qual homens e mulheres ganham significação enquanto seres humanos. É uma exigência existencial, é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir dos sujeitos interessados na transformação e humanização do mundo. É imprescindível que o pensar seja verdadeiro para que se tenha um diálogo, também verdadeiro e crítico, objetivando superar, assim, a contradição que se instaura entre opressor-oprimido.

Daí a importância do papel do (a) educador (a) no desenvolvimento de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também de possibilitar aos educandos e educandas a aprendizagem do pensar certo, ou seja, levar seus alunos e alunas, perante a leitura e estudo de textos ou teorias, irem além do que leram e das idéias apresentadas pelo autor ou autora. Pois “o ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente”. (FREIRE, 2002, p.31).

Outra questão relevante para Freire (2002) na relação educador-educando seria o respeito permanente que um deve sempre ter para com o outro. Esse respeito parte do compromisso firmado entre esses sujeitos quando inseridos conjuntamente no processo educacional. Respeito esse que exige do (a) educador (a) a assunção de sua autoridade de professor (a) no interior da sala de aula, tomando decisões, conduzindo o processo educacional, orientando atividades; e que por isso não pode confundir-se com prática autoritária; e que, portanto pressupõe o resguardo da autonomia e liberdade de que deve gozar o (a) educando (a), sem, contudo, tal liberdade ser confundida com licenciosidade, em outras palavras, com descompromisso para com o processo político-educativo.

A autoridade é necessária para o processo educacional e também necessária para a liberdade dos alunos e a minha própria. O professor é absolutamente necessário. O que é ruim, o que não é necessário, é o autoritarismo, mas não a autoridade. Se eu fizer isso, se eu cair nessa espécie de irresponsabilidade, em vez de gerar liberdade eu gero abuso de liberdade, e com isso, não cumpro minha responsabilidade de educar. (FREIRE, 2003a, p.177).

É preciso entender que a autoridade necessária à relação educador-educando não é a que inibe e cala os sujeitos do processo, mas sim, aquela que prioriza sua liberdade para construção de um clima real de disciplina. Trata-se de uma autoridade coerentemente democrática, que “está convicta de que a disciplina verdadeira não existe na estagnação, no silêncio dos silenciados, mas no alvoroço dos inquietos, na dúvida que instiga, na esperança que desperta”. (FREIRE, 2002, p.104).

A verdadeira disciplina não está relacionada com a obediência dos “dominados”, que por temer o poder dos “dominadores”, se curvam docilmente a eles. A real disciplina existe, apenas, quando mediada pelo mútuo respeito entre educador (a) e educando (a), de modo que, tanto o educando (a) respeite a autoridade do educador (a), e vice–versa. Para Freire (2002), “o clima de respeito que nasce de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e a liberdade dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço pedagógico”. (p.103).

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O (a) educador (a) para partilhar o seu ponto de vista sem impor, sem manipular os (as) educandos (as) deve respeitar as expectativas e as escolhas dos mesmos, tendo como obrigação de não serem neutros. Educador e educadora como intelectuais têm que intervir. Têm que se afirmar. Um dos erros cometidos em nome da liberdade dos (as) educandos (as) é se nós, como educadores e educadoras, paralisarmos nossa ação e nossa obrigação de ensinar.

Para Freire (2003b), o (a) educador (a) tem personalidade específica e tem algum espaço no qual tem de realizar algumas obrigações necessárias do ponto de vista do desenvolvimento dos (as) educandos (as). Por causa disto, a segurança do (a) educador (a) também é importante – sua capacidade de amar, de entender os outros mesmo sem aceitar a posição desses outros, e de não se zangar só porque o outro é diferente. E não dizer: “É impossível falar com você porque você é diferente de mim” (p.185).

A segurança e a clareza na compreensão do mundo nos auxiliam na nossa prática educacional. É impossível ajudar alguém sem ensiná-lo a começar a fazer algo sozinho. Serem livres para descobrir, para buscar o conhecimento. Aos educandos e educandas ensinar requer superar. E bons educadores e educadoras têm a humanidade de perceber que o conteúdo é incompleto. Ter a humanidade de também, como educador (a), perceber-se incompleto.

Sim, sou humilde porque sou incompleto. Só por isso. Não porque eu preciso que as pessoas me amem, embora eu precise que as pessoas me amem, mas não tenho que preparar nenhum tipo de armadilha para obter esse amor. Me entende? Então, se eu compreender esse processo, estou aberto, absolutamente aberto, todas às vezes, para aprender com os alunos e com as alunas. (FREIRE, 2003a, p. 188).

A padronização dos (as) alunos (as) e a educação bancária vêm sendo substituídas pela valorização da heterogeneidade humana, da diversidade, consagrando-se um período de ruptura paradigmática. A mudança é gradual e enfrenta obstáculos, mas é possível. Para tanto, torna-se fundamental que os homens e mulheres se assumam e reconheçam os outros enquanto sujeitos agentes transformadores da realidade social. Qualquer tipo de discriminação, dentro e fora da escola, é imoral e lutar contra ela é um dever, e isto faz parte das relações que se estabelecem na escola.

Em oposição a uma educação que não considera a diversidade expressa no cotidiano, em sala de aula, ou seja, que não compreende o espaço escolar como um lugar essencialmente coletivo, de encontro de diferenças, Freire ressalta a característica de inconclusão do ser humano, apontando por uma educação que reconheça e respeite os diferentes tempos de cada sujeito para que possa estabelecer as relações necessárias à constituição de conhecimentos e valores. A inconclusão, a consciência do inacabamento, a busca de uma condição melhor é a principal característica dos homens e das mulheres. Eles estão em constante processo de transformação. Uma educação que reconhece o ser humano enquanto sujeito histórico o reconhece, também, como seres inacabados, inconclusos, em e com uma realidade que, sendo histórica também, é igualmente inacabada. Isso significa a construção de um mundo em que a ação transformadora dos sujeitos resulte sempre na sua humanização. É ser predisposto à mudança, à aceitação do diferente como ser inacabado e consciente do inacabamento próprio da experiência vital, pois onde há vida, há inacabamento. Na verdade os homens e mulheres se diferem dos outros animais por terem a consciência de estarem inacabados, conscientes de sua inconclusão. E como manifestação puramente humana enraíza a educação de forma permanente na razão da inconclusão dos seres gerada dentro da sua realidade.

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Para tal é necessário um compromisso do (a) profissional com a sociedade. O (a) profissional que tenha consciência de seu papel no mundo, que seja capaz de agir e refletir, de pensar e se reconhecer como sujeito, é aquele (a) que pode se comprometer. O indivíduo que não é capaz de dialogar, de se distanciar de sua prática para que assim, possa questioná-la e transformá-la não é capaz de assumir este compromisso:

É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram como inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”, disse certa vez, por pura teimosia, mas por exigência ontológica. (FREIRE, 2002, p.64).

A diversidade, que engloba todo e qualquer indivíduo, independente de sua condição existencial (estrutura física, psíquica e/ou emocional, cor, etnia, religião etc.), começa a incomodar a diversos setores da sociedade, já que a luta pela aceitação do outro é travada por grupos diferenciados, objetivando a incorporação de um pensamento libertador.

De acordo com Freire (2002): [...] viver a abertura respeitosa aos outros e, de quando em vez, de acordo com o momento, tomar a própria prática de abertura ao outro como objeto de reflexão crítica deveria fazer parte da aventura docente. O sujeito que se abre ao mundo e aos outros inaugura com seu gosto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e curiosidade, como inconclusão em permanente movimento da história. (p.153-154).

Educadores e educadoras precisam acreditar na possibilidade de mudança. Entender que a educação, por ser uma forma de intervir no mundo, deve possibilitar o exercício da compreensão crítica da realidade a fim de atender aos interesses da classe dominada. Se posicionar a favor dos oprimidos significa estar inserido na luta pela libertação dos indivíduos e/ou das classes sociais, significa assumir politicamente uma posição perante a formação de uma sociedade mais justa e humanizada.

A escola precisa refletir o momento histórico que estamos atravessando, considerando a diversidade como característica do sujeito em processo de constante transformação, a fim de oferecer uma educação de qualidade para todos, procurando, assim, superar os obstáculos impostos à inclusão que acontecem devido à resistência de muitos em aceitar o outro com suas peculiaridades. Neste sentido, diz Freire:

Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso evidentemente escutá-las e se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível. (FREIRE, 2002, p. 136).

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O processo de ensino e aprendizagem do (a) aluno (a) se dá através das interações sociais ocorridas dentro do ambiente escolar. Deste modo, entendemos a relação educador-educando como sendo de fundamental importância neste processo. Essa interação pressupõe um querer-bem aos educandos e educandas sem medo de expressar sua afetividade. Para Paulo Freire não há separação entre seriedade docente e afetividade, estes devem caminhar juntos, porém, ele alerta para o fato de que a afetividade não deve interferir no cumprimento ético de seu dever de professor (a).

Cabe, desta forma, a nós educadores (as) e educandos (as), dentro de um processo dialógico, quebrar as barreiras existentes da “educação bancária” baseada nas relações de opressão e, juntos, percorrer novos caminhos trilhados dentro de uma educação libertadora, problematizadora. Uma educação que permita não só aprender o saber técnico e científico, mas também um saber crítico, elaborado dentro do mundo que nos cerca. E que, ainda, permita nos tornarmos sujeitos desta construção, possibilitando a vivência de situações que sejam estimuladoras da imaginação, da criação de laços de afetividade, e comprometimento, extremamente necessários à construção coletiva da escola, às relações interpessoais e, também, necessária ao contexto atual buscando a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

REFERÊNCIAS

FONSECA, Vitor da. Educação Especial. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 24 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

_______. Educação como prática da liberdade. 22 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

_______. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: UNESP, 2000.

_______. Pedagogia do Oprimido. 39 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

_______; FREIRE, Ana Maria de Araújo (Org.). Pedagogia dos sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.

_______; HORTON, Myles. O caminho se faz caminhando. 2 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2003a.

GADOTTI, Moacir. Pensamento pedagógico brasileiro. 6. ed. São Paulo, SP: Editora Ática, 1995

SHOR, Ira, FREIRE, Paulo. Medo e Ousadia: Cotidiano do Professor. 10 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003b.

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CRIATIVIDADE COMO CONSTITUTIVO DA EDUCAÇÃO POPULAR: UMA ABORDAGEM ACERCA DA DIVERSIDADE CULTURAL A

PARTIR DE PAULO FREIRE

Agostinho da Silva Rosas1

RESUMO

O presente ensaio encontra-se inserido nas discussões desenvolvidas no curso de doutoramento em educação popular2, tomando para si o propósito de identificar argumentos explicativos de criatividade como constitutivo da educação popular. Metodologicamente, as reflexões giram em torno dos termos criar e recriar aplicados por Paulo Freire quando expressa sua compreensão de homem. Pelo momento, verifica-se que o debate expressa unidade indissociável à transformação social orientada pelo respeito à vocação ontológica humana. Criar e recriar são atitudes assumidas e valorizadas pelo homem em libertação. Criatividade e cultura fazem parte de um mesmo contínuo que se articulam, como condições humanas, expressão dinâmica das ações que o homem capta do mundo e com ele responde aos desafios de sua realidade situacional.

Palavras-chave: Criatividade – Educação Popular – Diversidade Cultural.

INTRODUÇÃO

Vários têm sido os estudos que apontam um olhar explicativo sobre processo criativo e ações pedagógicas no cenário da educação formal e informal. No Brasil, nos anos 80 e com maior intensidade na última década do século XX, Alencar e Virgolim (1994) publicam estudo reunindo onze experiências bem sucedidas sobre expressão e desenvolvimento da criatividade, fazendo referência à escola. Nesta época, outros trabalhos são desenvolvidos envolvendo arte, propaganda, ciência. Mais recentes são aqueles que se direcionam às novas tecnologias e a indústria do entretenimento com jogos informatizados e criatividade. Contudo, desde o início dos tempos, o homem deparou-se com a diversidade de problemas e a necessidade de envolver-se elaborando soluções.

Vários têm sido os estudos que apontam um olhar explicativo sobre processo criativo e ações pedagógicas no cenário da educação formal e informal. No Brasil, nos anos 80 e com maior intensidade na última década do século XX, Alencar e Virgolim (1994) publicam estudo reunindo onze experiências bem sucedidas sobre expressão e desenvolvimento da criatividade, fazendo referência à escola. Nesta época, outros trabalhos são desenvolvidos envolvendo arte, propaganda, ciência. Mais recentes são aqueles que se direcionam às novas tecnologias e à indústria do entretenimento com jogos informatizados e criatividade. Contudo, desde o início dos tempos, o homem deparou-se com a diversidade de problemas e a necessidade de envolver-se elaborando soluções.

O conceito de criatividade, assim, vai tomando significados durante os tempos, aproximando processo e produto criativos como expressão da capacidade humana. Aos poucos, criatividade passa a ser conhecida como condição humana que adquire visibilidade através das relações

1 Prof. da UPE/ESEF; Assessor de Pesquisa da FACHO; Integrante do Centro Paulo Freire-Estudos e Pesquisas, Doutorando do PPGE/UFPB em Educação Popular. 2 Programa de Pós-Graduação em Educação promovido pela UFPB, com área de concentração em Educação Popular (PPGE-UFPB/turma 2004).

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que o homem estabelece consigo, com outros homens e com o mundo.

De início, contudo, criatividade foi termo associado ao sobrenatural, ao domínio da fé em Deus. Era Deus que, através dos homens, era criativo. O homem, neste sentido, seria dotado de um “dom” que o diferenciaria dos demais homens, na medida em que se encontrava entre os escolhidos por Deus para desempenhar o papel divino.

CONCEITUANDO EDUCAÇÃO POPULAR: UM PROJETO ESCRITO POR VÁRIAS MÃOS

Favorecidos pela abordagem metodológica assumida na disciplina Teoria da Educação Popular/PPGE/UFPB (2004), as discussões em torno do conceito de educação popular tomou forma a partir da diversidade de histórias de vida enunciada por cada um dos protagonistas3 que a constituiu. Em sua continuidade, foram postos em debate conceitos identificados por cada um dos protagonistas e enriquecidos por leitura especializada, resultando na construção coletiva de um conceito que passa a ser utilizado como ponto de partida para a reflexão sobre a pertinência de criatividade como um dos constitutivos à educação popular.

A estrutura desta definição, contudo, teve como intenção coletiva responder ao problema proposto: o que é educação popular?

Deste problema foram extraídos vários enunciados (Quadro 1) e em seguida sintetizados como: fenômeno de apropriação e produção dos bens culturais (empoderamento); teoria de conhecimento que tem como ponto de partida a realidade, o cotidiano; metodologias que instrumentalizam o processo de democratização; campo pedagógico que detém um conteúdo, uma avaliação; teoria política que seja pela democracia, liberdade, ação transformadora e emancipadora, práxis.

Quadro 1: Síntese dos conceitos atribuídos à educação popular Educação popular é

aquela:

• que se volta para os setores /camadas populares;

• que se manifesta em diferentes lócus de atuação;

que não tem ação exclusiva na escolarização, mas na compreensão do processo social e político que o sujeito se encontra.

Educação popular é difusa porque é um processo de construção permanente, buscando uma ação sócio-transformadora através do acesso aos saberes plurais. A transformação do indivíduo em sujeito requer uma aprendizagem cotidiana do pensar, do agir e do sentir.

Educação, mobilização, organização das classes populares.

Instrumento do processo de democratização, a partir da criação e robustecimento de um poder popular e pode ocorrer em diferentes espaços formais e não-formais.

É um processo e uma práxis político-educativa, dimensionada na perspectiva da apreensão/produção/ reformulação, expressão e socialização do conhecimento das classes populares, visando o desvelamento e interpretação da realidade, para a construção de uma ação coletiva organizada de intervenção, transformação das condições de exploração e dominação de trabalhadores(as). Educação popular comporta dimensões tais: cultura popular, diálogo, ética, autonomia, liberdade, libertação, felicidade e emancipação humana.

3 O termo protagonista é utilizado neste ensaio para identificar cada um dos doutorandos que constituem a segunda turma do Curso de doutorado em Educação Popular promovido pelo PPGE/UFPB.

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As reflexões elaboradas neste ambiente multifacetado de experiências e histórias de vida tomaram rumo de aproximação à resolução do problema (‘o que é educação popular’) na medida em que se sabia precisar o que não atendia ao conceito de uma educação que se fizesse popular. Neste sentido, o processo metodológico vivido na construção coletiva das soluções ao problema, em si, expressa uma dimensão didática favorável ao agir criativo, ao tempo em que representa uma investida diversificada de abordar o fenômeno (educação popular) enquanto instância de ensino e aprendizagem e diversidade cultural.

A partir deste procedimento didático algumas inquietações puderam ser levantadas: Seria este procedimento uma das características da educação popular? Que constitutivos poderiam ser listados de maneira que exalte a essência de uma educação popular a partir do conceito desenvolvido? Que argumentos poderiam ser elaborados para consubstanciar cada um dos constitutivos listados como expressão articulada a educação popular?

Diante destas inquietações o passo seguinte foi o de montar um conceito extraindo constitutivos consistentes à argumentação coletiva, como explicação do fenômeno educação popular (atentos à singularidade dos protagonistas). Conceito este que tomou a seguinte forma:

Educação popular é um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem, constituída de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas, com conteúdos e técnicas de avaliação processual, permeada de uma base política e cultural estimuladora das transformações sociais e, orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade (Doutorandos do PPGE/UFPB, 2004).

Dentre os constitutivos propostos, criatividade (Quadro 2) vai emergir tardiamente, durante as reflexões de outros constitutivos que já se encontravam em debate. Este, assim como o processo pelo qual se deu a construção coletiva do conceito para educação popular, deve ser compreendido como ação flexível à produção de conhecimentos em que se faz pela reflexão autêntica dos protagonistas e que preserva a condição do agir criativo.

Quadro 2: temas levantados a partir do conceito construído

Apropriação do produto da educação popular Autenticidade Autonomia Ação transformadora Aprendizagem (sentir, pensar e agir) Compromisso político Construção do sujeito Crítica Cultura Democracia Diálogo

Empoderamento Experiência Emancipação Saberes Trabalho Transitoriedade Totalidade Felicidade Igualdade Ideologia Identidade Incentivo ao desejo de saber Liberdade

Organização/sistema Pedagogia Pedagogia (metodologia própria) Práxis Prática Popular Poder popular Processo Produção do conhecimento (metodologia própria) Realidade Lócus

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Para o debate em causa, ‘criatividade e educação popular’, trata-se de tema pertinente, uma vez que a expressão da criatividade dá-se, como sugere a literatura contemporânea, a partir do sujeito e de um contexto favorável para que o processo criativo seja desencadeado. Caso contrário, quedaria num ambiente de fragmentação e obstacularização das idéias e iniciativas, tal como afirma Von Oech (1988) em ‘Um toc na cuca’, referindo-se às barreiras mentais contra a criatividade.

Com isto, pelo momento, fica a intenção de verificar se o conceito construído coletivamente pelos doutorandos do PPGE/UFPB, 2004, permite afirmar criatividade enquanto um dos constitutivos à educação popular.

CONCEITUANDO CRIATIVIDADE: BREVE RETROSPECTIVA

Historicamente, o termo criatividade assumiu diversas faces. Na Antigüidade, acreditava-se que os Deuses atribuíam poderes aos humanos tornando-os criativos. Desta maneira, criatividade, não sendo uma característica humana, encontrava-se associada a uma dádiva divina, a um Dom lançado por Deus (ALENCAR, 1986; KNELLER, 1978). Platão, de acordo com Wechsler (1993), através da sua teoria da imortalidade e das idéias, identificava o homem através de sua aproximação com a razão divina. Nesta direção, Kneller (1978) comenta que o artista, no momento da criação, perde o controle de si e age guiado por um poder superior, divino.

Em outras épocas, a exemplo da Idade Média, criatividade esteve associada aos conceitos de bruxaria ou como sinal de desajustamento e loucura. Neste sentido, Alencar (1986) refere-se aos trabalhos desenvolvidos por Witty e Lehman (1965), em que sugerem “a relação entre criatividade e doença mental ou entre […] instabilidade nervosa” (opus cit. p.12). No entanto, estas idéias já se encontravam na Antigüidade. Naquele tempo, criatividade também esteve associada como estado de loucura: “Sua aparente espontaneidade e sua irracionalidade são explicadas como fruto de um acesso de loucura” (KNELLER, 1978, p. 33). Com isto, muitos artistas e cientistas foram interpretados como loucos, como lunáticos na medida em que, pela busca de sua superação, tendiam a “forçar ao extremo a própria natureza” (opus cit., 34), colocando-se numa nuance de limiar entre insanidade e “a resolução crucial de um conflito” (KNELLER, 1978, p. 34).

Com a Modernidade, criatividade passa a ser identificada como conseqüência da produção humana. Estudiosos intrigados com questões ainda não esclarecidas, a exemplo dos “lampejos de inspiração” existentes em alguns “indivíduos privilegiados” (gifted ou talentosos4), ou dos estudos sobre características individuais, “traços” de personalidade, passam a valorizar respostas provenientes das práticas científicas, na tentativa de explicar o processo criativo como conseqüência da inteligência superdotada de alguns humanos (os gênios). Hoje, no entanto, criatividade como conseqüência da inteligência humana supera a dimensão de gênio e espalha-se como característica humana. Como conseqüência da capacidade inteligência, própria à espécie humana.

De acordo com Brown (1989), pelo menos quatro abordagens foram dirigidas à identificação de aspectos relativos à criatividade e inteligência. Algumas das teorias mais antigas são 4 Estes termos estiveram comumente atrelados aos estudos que relacionam criatividade, produção criativa, características de personalidade com indivíduos classificados como gênios ou superdotados.

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desprezadas tendo em vista as novas descobertas. Dom, lampejo de idéias, loucura, bruxaria são termos superados pelo entendimento de que “todo ser humano apresenta certo grau de habilidades criativas e que estas habilidades podem ser desenvolvidas e aprimoradas através da prática e do treino” (ALENCAR, 1986, 12). Nesta direção, criatividade deve ser compreendida como fenômeno humano mediado pela inteligência e influenciada pela aprendizagem. Este aspecto nos remete a Álvaro Vieira Pinto (1969), quando se refere à Teoria da cultura como produto da produção humana. Para ele, “cultura é, [...], o processo pelo qual o homem acumula as experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa as de efeito favorável e, como resultado da ação exercida, converte em idéias as imagens e lembranças [...] desse contato inventivo com o mundo natural” (PINTO, 1965, 123). Portanto, criatividade como cultura deriva das ações que o homem exerce no ambiente, deriva das idéias que os homens constroem, mediadas pelas “respostas originais aos desafios do ambiente” (opus cit.122). Tal como sugere Vieira Pinto, criar implica, de alguma maneira, em produção de cultura.

Retomando Brown (1989) e a relação criatividade-inteligência, é no início do século XX que se verifica maior ênfase nos trabalhos que procuram explicar criatividade: a) como “um aspecto da inteligência”, a exemplo dos testes de Quociente de inteligência (QI) de Binet e o Modelo de Estrutura da Inteligência de Guilford; b) como “uma grande parte do processo inconsciente” - Brown (1989) menciona o trabalho de Henri Poincaré (1913) ao concluir que: “a consciência de fracasso na resolução de um problema, coloca em ação o processo inconsciente que leva a uma combinação randômica de idéias, algo que pode emergir como uma apropriada solução criativa” (opus cit. p. 5) -. Kneller (1978), também comentando Poincaré, atribui a esta relação entre consciência e inconsciência o conceito “novidade”. Neste sentido, expressa que “a novidade criadora emerge em grande parte do remanejamento de conhecimento existente – remanejo que é, no fundo, acréscimo ao conhecimento” (opus cit. p. 16-17); c) como “um elemento da solução de problema” – refere-se aos estudos que procuram identificar os passos desenvolvidos durante o processo de resolução de problemas. Para Brown (1989), são exemplos os estudos de Dewey (Problem solving em 1910); Wallas (Createve production em 1926); Rossman (Invention em 1931) e, d) como “um processo associativo” que está relacionado com os estudos que pretendem articular processo criativo à associação de idéias, experiências, fatos como conseqüência da cognição humana. Como expoente desta categoria de estudos, Brown vai identificar os princípios de criatividade desenvolvidos por Spearman em 19315.

Assim como Brown (1989), Guilford e Hoepfner (1971), vão afirmar que poucos foram os estudos envolvendo produção criativa e inteligência. Com isto, o desenvolvimento de pesquisa articulando inteligência e produção criativa, avançou lentamente. De acordo com estes autores destacam-se os trabalhos realizados a partir da análise fatorial elaborados por Garnett (1919), identificando a categoria “talento”; Hargreaves (1927), “fluência” e “originalidade”; Thurstone (1938), “fluência da palavra” e Fruchter (1948), que adicionou um fator de análise denominando-o “fluência associativa”. Além destes trabalhos, identificaram pesquisas que tomaram a direção de verificar o processo criativo de gênios.

Semelhantemente, Wechsler (1993) vai referir-se à diversidade de significados associados à criatividade. Este aspecto, de acordo com a autora, aproximando-se de Brown (1989) trata de um “fenômeno complexo, [...], com múltiplas facetas”, o que tem motivado pesquisadores a 5 “O modelo básico de Spearman implica em um processo ativo em que associações com uma idéia inicial pode ser liberada de sua própria relação e, assim, conduzir a alguma coisa completamente nova” Brown (1989, 5).

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compreenderem os “processos de pensamento criativo, modalidades da produção criativa, características da personalidade criativa, tipos de ambientes facilitadores da criatividade e combinações entre quaisquer dessas formas” (opus cit. p. 1). Assim, explicar o processo pelo qual o homem expressa seu potencial criativo, inovador, parece ser tema de interesse atual. Contudo, nenhuma destas abordagens vai explicar criatividade como um dos constitutivos da Educação Popular. Muito provavelmente por deterem-se na busca de argumentos que comprovem a articulação entre inteligência e produção/produto criativo.

De certa maneira, as pesquisas têm se dividido em dois grandes grupos. Um que discute aspectos relacionados aos processos criativos, estes procuram analisar os tipos de pensamentos que predominam na descoberta criativa, bem como os passos utilizados pelo indivíduo para se atingir a produção criativa. Outros lidam com o produto criativo, priorizam a originalidade, seja sob a perspectiva do produto frente ao próprio indivíduo, seja pela relevância que o produto exalta para o social. Este aspecto é fundamentalmente relevante na medida em que disponibiliza argumentos explicativos sobre a dimensão natureza e cultura, atribuindo reflexões acerca do significado do processo e do produto criativo no e com o social. Este último grupo, possivelmente, será o que mais irá se aproximar do debate acerca da criatividade e Educação Popular. Embora os resultados das pesquisas estejam ainda atrelados à identificação de características que apontem a direção do processo ou produto criativo.

Todavia, frente ao propósito deste estudo, duas abordagens vão chamar a atenção: a educacional e a sociológica acerca de criatividade.

Os estudos de Torrance vieram contribuir, em muito, com a relação entre criatividade e educação. Permitiram análises acerca de estratégias que proporcionam incentivos, desafios ao pensar e agir divergente. A escola convencional, segundo Torrance, “premia e reforça o raciocínio lógico e convergente, onde os alunos devem sempre encontrar a melhor e única resposta para o problema ao invés de possíveis soluções” (WECHSLER, 1993, p. 18). A educação posta desta forma distancia-se do incentivo à expressão de comportamentos criativos. Faz uso de modelos punitivos e de reforço de condicionamentos que conduzem à resposta certa, como maneira de melhorar a aprendizagem. Na opinião de Wechsler (1993), trata-se de modelos que causam efeitos temporários e que exigem contínuas repetições. O conteúdo da aprendizagem ao perder seu significado para o indivíduo que aprende, vai exigir constante reforço no sentido de preservar a memorização daquilo que seja o objeto da aprendizagem. De acordo com Von Oech (1988), este modo de agir provoca “bloqueios mentais”, não exige comportamento criativo, diferentemente, se faz através do incentivo à rotina, à praticidade.

Contrário a esta perspectiva de educação, Torrance propõe que a aprendizagem seja estimulada através dos referenciais da criatividade, em que considera os interesses individuais e da motivação interna, com efeito, duradouro. Assim, Torrance avança propondo uma educação centrada no exercício de pensar divergente, no entanto não avança na discussão acerca dos significados das ações dos homens e mulheres que pensam divergentemente. Centra sua discussão na condução de estratégias que venham favorecer o agir criativamente.

A contribuição de Torrance ao debate que envolve criatividade e educação é, sem dúvida, de grande relevância quando se pensa o cenário da educação formal. No entanto, referente ao debate acerca da Educação Popular, pode-se assumir que a indicação de estratégias favoráveis ao agir criativo seja um dos indicadores fundamentais à práxis pedagógica, contudo ainda não

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responde aos problemas que emergem quando nos colocamos frente à Educação Popular.

Próxima a esta abordagem, a perspectiva sociológica e criatividade discute, fundamentalmente, os efeitos do ambiente no processo criativo. Para Wechsler (1993), “a questão que se coloca é a de como a sociedade, com suas regras e imposições, pode permitir o desabrochar da criatividade” (opus cit. p. 20). Deve-se considerar que as regras sociais vão se constituir em critérios de avaliação das produções, definindo sua legitimidade criativa. Ou seja, um produto criativo expressa seu significado através do reconhecimento social, quanto à sua utilidade. Este panorama pode ser reforçado através de Amabile (APUD WECHSLER, 1993) quando propõe que o estudo acerca da criatividade leve em consideração as referências “amplas da sociedade na qual o indivíduo está inserido” (opus cit. p. 21). Em seus estudos demonstra que as pessoas podem sofrer diversos efeitos da relação no e com o ambiente, o qual pode ser estimulador, recompensador, assim como pode ser repressor, punitivo. Nesta mesma direção, Cuéllar (1997), fazendo crítica às prerrogativas desenvolvidas nas pesquisas sobre criatividade, comenta: “a humanidade tem obtido muito mais êxito em escrever sua imaginação nas artes, na ciência e na tecnologia do que na elaboração e na inovação em matéria de novos esquemas sociais” (opus cit. p. 102).

Este aspecto coloca-nos diante da reflexão sobre o modo de ser e estar de homens e mulheres na e com a sociedade. Ao mesmo tempo em que nos coloca frente ao debate acerca dos elementos sócio-culturais responsáveis pela exclusão de direitos de grande parte da população. Indica, ainda, a necessidade de construir argumentos que venham denunciar as disparidades sociais, anunciando proposições favoráveis à expressão da cidadania. Portanto, pensar criatividade sob o olhar do viver em coletividade, converge na direção da dimensão ética e política de atitudes humanas, frente aos novos desafios de enfrentamento das desigualdades e formas de exclusão sociais.

A educação, como meio de resistência, apresenta-se como instrumento impulsionador de reflexões que poderão conduzir a um processo de transformação social, nomeadamente rumo a uma cultura humana em contexto de humanização.

Por conseguinte, não será qualquer forma de produção ou produto criativo que atenderá ao contexto da educação quando desenhada sob as características da educação popular. Aspecto este que conduz à reflexão acerca da relação criatividade e educação popular. Criatividade e educação, assim posto, sugerem novas reflexões na busca de argumentos explicativos acerca das prováveis transformações no modo de ser e estar das pessoas na sociedade frente à diversidade cultural. Este aspecto, aqui, será abordado a partir das idéias freireanas sobre educação.

CRIATIVIDADE E AS PRIMEIRAS IDÉIAS DE PAULO FREIRE EM EDUCAÇÃO

Paulo Freire (1967), nas primeiras linhas de ‘Educação como prática da liberdade’ aponta as conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade como fonte de explicação argumentativa acerca do processo de libertação humana. Por extensão, o processo de descoberta, que revela a ação de criar e recriar, pode ser explicado através destas mesmas conotações.

Antes mesmo de adentrar na reflexão que indica criatividade como constitutivo da Educação

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popular, e mais especificamente o debate referente ao termo descoberta como expressão do agir criativo, Wechsler (1993), fundamentada na teoria do intelecto de Jean P. Guilford, vai afirmar que dentre as operações cognitivas, o pensamento divergente é o que proporcionará descobertas criativas. Em sua opinião, a produção divergente leva à “formulação de alternativas variadas a partir da informação dada, procura diferentes soluções para o problema” (WECHSLER, 1993, p.12). Com isto, associa criatividade à solução de problemas como respostas diferentes e alternativas para um mesmo problema. Gardner (1996), também se referindo à produção divergente, a identifica como estrutura mental favorável ao processo criativo. Contrariamente, a esta perspectiva, a produção convergente permite a descoberta de respostas pré-definidas. Certamente que, para Paulo Freire, os propósitos de uma educação regida pela intensidade do pensar convergente, mesmo que estimulando práticas de aprendizagem pela resolução de problemas, trata-se de uma prerrogativa de modelos educacionais orientados pela prática pedagógica conservadora. Uma educação que se distancia da práxis libertadora e democrática; uma forma de educação que traduz a expressão da ‘educação bancária’6.

Aprendizagem, neste sentido, sob o incentivo da descoberta de respostas universalmente certas decorre da capacidade humana de inteligência e, de certa maneira, encerra-se nela mesma. Distancia-se do contexto e das relações que homens e mulheres, em libertação, captam e são protagonistas. Torna homens e mulheres em “coisa adestrada”. Visto que, preservando a intenção da resposta certa, única possível, caminha na direção do que Freire (1967) chamou de “domesticação” do ser humano. Diferentemente de uma práxis libertadora, a educação bancária provoca a estagnação social. Diante do anunciado pela história política-econômica mundial, que acena na direção de alternativas para a solução de problemas emergentes, a educação bancária, fixa o tempo da aprendizagem ao tempo previsto para a resolução do problema, identificando as velhas soluções, como extrato da nova aprendizagem. Impede o desenrolar da transformação social, em seu lugar massifica as soluções convergindo para a manutenção do contexto social.

Noutra direção, homens e mulheres envolvem-se num processo criativo pela leitura da “palavramundo” e da “palavra-ação” como expressões de seu próprio “quefazer” social, ético, estético, político, cultural7. Tomam consciência de que ao aprender produzem cultura, estruturam valores políticos, educacionais, psicológicos, sociais ao mesmo tempo em que sofrem influência desta mesma produção. De um lado, convivendo numa e com uma sociedade que estimule o pensar divergente, supõe-se estimular, também, o desempenho criativo. De outra maneira, sendo esta sociedade repressora, a expressão do agir criativo, mesmo que estimulado sob a lógica do pensar divergente, tende a distanciar-se da práxis libertadora em que homens e mulheres se associam numa ação revolucionária pela transformação social.

Na medida em que se relaciona, homens e mulheres estabelecem contatos com desafios que

6 Educação bancária é termo utilizado por Paulo Freire (1970) para referir-se aos modelos de educação conservadores, tradicionais em sua estrutura e estética. 7 Apesar do termo ‘cultura’ ser indicado por Paulo Freire a partir de Erich Kahler (Historia Universal del Hombre), Álvaro Vieira Pinto (1969) vai delimitar ‘cultura’ com significado que pode expressar as idéias que Paulo Freire efetivou ainda quando nos Círculos de Cultura, no MCP. Diz-nos Álvaro Vieira: “A cultura, criação humana resultante da resolução da contradição principal do homem, aquela existente entre ele e a natureza. [...] A cultura como produto do processo produtivo” (opus cit., 119).

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captam do mundo8 e que orientam seu agir. Nesta direção, Paulo Freire vai referir-se à pluralidade como conotação que exige, dos homens e mulheres, o respeito à diversidade histórica, cultural dos sujeitos em relação. Os desafios captados nas relações expressam uma pluralidade na sua singularidade. Portanto, os desafios tanto consagram elementos comuns aos homens e mulheres, como expressam uma singularidade que caracteriza a especificidade histórica de cada um e uma. O processo que conduz estes mesmos homens e mulheres, sob a dimensão da sua pluralidade, registra a diversidade cultural e histórica de cada um e uma. O agir criativo forçosamente remeterá todos e todas que se percebam protagonistas a uma ação respaldada na multiplicidade de respostas ao problema. A questão que se coloca como diferenciadora está posta no que Paulo Freire chamou de ‘vocação ontológica humana’: a condição de ser coletivamente mais.

O processo criativo orientado pelo reconhecimento da pluralidade humana e dos desafios que os homens e mulheres captam e criam/recriam, estão condicionados pelo “jogo constante de suas respostas, altera-se no próprio ato de responder. Organiza-se” (FREIRE, 1967, p. 40) na trajetória de seu agir e pensar.

Semelhantemente ao proposto por Jean P. Guilford, Paulo Freire entende que criar e recriar são condições humanas e têm influência da capacidade inteligência. Neste sentido, os homens e mulheres agindo através da expressão do pensar divergente, investem sua ação escolhendo a melhor resposta (que não é negação das demais respostas). Testa sua aplicabilidade. Age com consciência diante do desafio. Decide. No entanto, Paulo Freire adentra, além dos condicionantes da inteligência humana, noutros que estão alicerçados no interior das relações que homens e mulheres desenvolvem.

Pluralidade, como uma das cinco conotações da esfera humana, permite-nos refletir sobre a relação entre criatividade e privilégios, criatividade e cidadania. Este aspecto vai nos conduzir ao entendimento que Paulo Freire faz acerca do que é da natureza e o que é da cultura. Assim, a inteligência como capacidade humana apresenta-se no campo dos elementos da natureza, enquanto que os desafios que homens e mulheres captam da sua realidade, as idéias que formulam elaborando dinamicidade em seu agir criativo, são expressões da sua produção inteligente, portanto estão na esfera cultural. Como tal, o agir criativo denota a condição histórica pelas quais os homens e as mulheres são protagonistas.

Não há privilégio em criatividade. Contudo, sob o olhar da diversidade cultural entre homens e mulheres, sob a maneira como homens e mulheres se posicionam em suas relações, o agir criativo pode sofrer opressão, decorrendo daí inibição de ações criativas. Na negação ou opressão da pluralidade humana o agir criativo é inibido, provoca a sectarização que massifica desapropriando homens e mulheres de sua ‘vocação ontológica de ser mais’, de ser coletivamente mais. Para Freire (1967), o homem na condição de “sectário nada cria porque não ama. Não respeita a opção dos outros. Pretende a todos impor a sua, que não é opção, mas fanatismo. Daí a inclinação do sectário ao ativismo, que é ação sem vigilância da reflexão” (opus cit. p. 51).

O agir criativo, em sintonia com a perspectiva educacional libertadora, diferentemente da sectarização, tem delimitada sua amplitude na expressão mais profunda do que Paulo Freire

8 De acordo com Paulo Freire (1967, 39), “para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida”.

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chamou de ‘radicalização’9. Se expressa na medida em que homens e mulheres assumem-se política e criticamente, centrados no reconhecimento que fazem como sujeitos revolucionários no exercício de sua cidadania, de sua cultura.

Como homens e mulheres radicais vivem os seus tempos, não apenas estando neles, mas com eles. Transcendem como sujeitos revolucionários, conscientes de sua finitude terrena, ao mesmo tempo em que se reconhecem através de sua condição de estar sendo, e de sendo estar. Percebem-se em seu ‘inacabamento’ espiritual, que para Freire (1967) expressa a ligação entre o plano humano e o religioso, “cuja plenitude se acha na ligação com o Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domesticação, mas sempre de libertação” (FREIRE, 1967, p. 40).

Daí pode-se especular sobre o motivo pelo qual Paulo Freire comumente associa a ação de criar à de recriar. O agir criativo/recriativo guarda íntima relação com a existência humana de quem cria/recria, de tal maneira que, homens e mulheres ao viverem seu tempo, vivendo discernem sobre seu tempo e suas atitudes. Criam, criando, na medida em que transitam conscientemente pela sua historicidade e cultura. O agir criativo/recriativo, assim, decorre de seu estar no e com o mundo. Transcendem, transcendendo, legitimados pelo reconhecimento social de suas ações.

Por conseguinte, o agir criativo/recriativo exige dinamicidade, autenticidade e ação radical de todos e todas que se posicionam criativamente frente aos desafios que captam. As relações construídas, entre homens e mulheres que estando no mundo se fazem com ele, são relações que não se esgotam na passividade dos sectários. São relações forçosamente em movimento traduzindo a amorosidade entre os sujeitos e sujeitas em libertação. Não há privilégios entre os homens e mulheres que, em transcendência, comungam suas experiências criando/recriando soluções aos desafios que captam de sua realidade. Não se massificam como sectários, diferentemente agem como protagonistas que não se ajustam aos desafios, mas que os confrontam critica e sensivelmente às diversidades de seu tempo:

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em relativa preponderância, nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide, vão se conformando as épocas históricas. É também criando, recriando e decidindo que o homem deve participar destas épocas (FREIRE, 1967, p. 43).

A capacidade criadora, definida por Paulo Freire, encontra-se diretamente associada ao significado que os homens e mulheres atribuem a sua integração ao mundo. E isso denota a compreensão de que sua radicalidade decorre de seu reconhecimento como sujeitos enraizados, autênticos e amorosamente críticos. A criticidade10, como conotação que explica a

9 “A radicalização, que implica no enraizamento que o homem faz na opção que fez, é positiva, porque preponderantemente crítica. Porque crítica e amorosa, humilde e comunicativa. O homem radical na sua opção, não nega o direito ao outro de optar. Não pretende impor a sua opção. Dialoga sobre ela” (FREIRE, 1967, p. 50). 10 Criticidade para Freire (1967, p. 61) “implica na apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade”.

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condição humana de estar no e com o mundo e com outros homens e mulheres (‘homem como ser de relações’), expressa a posição contrária à acomodação e ajustamento dos homens e mulheres há um tempo unidimensional e a uma cultura da qual não se fazem protagonistas. Criticidade é, assim, instância fundamental do agir criativo, visto que não há expressão de criatividade quando há exploração que nega o homem ou mulher em detrimento de outro ou outra. Agir criativamente exige integração, autenticidade nas ações, amorosidade. Opõe-se a qualquer forma de opressão ou ação desumanizadora que ‘coisificam’ e ‘domesticam’ o homem. Por isso, afirma Freire (1967), “salienta-se a necessidade de uma permanente atitude crítica, único modo pelo qual o homem realizará sua vocação natural de integrar-se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreendendo temas e tarefas de sua época” (opus cit. p. 44).

A importância da captação destes temas extraídos da realidade histórica e cultural pelo homem está na delimitação de sua afirmação enquanto sujeito ou objeto; enquanto ação humanizadora ou desumanizadora; enquanto sujeito radical ou indivíduo sectário. Demanda conseqüência tanto sob atitudes orientadas por ideologias conservadoras, de dominação e opressão, portanto antidemocráticas, como, em condição antagônica, atitudes de integração cujas relações humanas são construídas a partir do reconhecimento que homens e mulheres fazem quanto aos valores, aspirações, inquietações que captam dos desafios de sua época e cultura. De um lado, a atitude descrita transcorre sob influência de uma consciência que transita alienada e alienante entre homens e mulheres que se apresentam “incapazes de projetos autônomos de vida, buscam nos transplantes inadequados a solução para os problemas do seu contexto” (opus cit. p. 53). Neste caso, as relações entre os homens, emergindo como estruturas de controle e dominação, transformam as ações humanas em puro ativismo assistenciais. Conseqüentemente, as relações tomadas pela imposição à força de uns sobre outros convergem na direção da exaltação de privilégios, rupturas na cidadania. O processo criativo tende a ser inibido e transformado em mito ou fantasia proveniente do imaginário que uns fazem dos privilégios de outros. Por conseguinte, mesmo motivado pela expressão do pesar divergente, a ação, que é conseqüência da atitude, perde sua articulação com o contexto de humanização do humano entre e com os humanos. Por isto mesmo afasta-se da vocação ontológica humana e em seu lugar tende a massificar, a domesticar todos e todas que não detêm o privilégio da decisão. Não há ação criativa/recriativa ou de descoberta criativa que não esteja insuflada pelos ares da historicidade e cultura dos sujeitos e sujeitas que se fazem protagonistas amorosamente radicais.

Nesta direção, as conseqüências transitam sob a consciência crítica que homens e mulheres elaboram dos desafios que captam de sua realidade. Em reflexão, homens e mulheres envolvem-se numa busca permanente de ser mais, transformando os desafios que captam em ‘quefazeres’ autênticos, em ‘inéditos viáveis’ construídos das ‘situações limites’ de cada um e uma. Este aspecto demanda do entendimento que Paulo Freire faz quando se refere ao processo de libertação nas relações humanas - “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 1987, p. 52). Este processo que se faz ao fazer em comunhão, de modo incisivo, nos adverte quanto ao contexto da educação que se faz ao fazer libertação. Coloca-nos diante da vocação humana de ser, sendo e de estar, estando em libertação.

O agir criativo, como conseqüência das relações que homens e mulheres constroem em sua existência, neste contexto, expressa atitude revolucionária de todos e todas que ousam, amorosa e criticamente, reconhecer-se em libertação. De tal forma que:

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Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engaja na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua ‘convivência’ com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita ao nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis” (FREIRE, 1987, p. 52).

Por conseguinte, o agir criativo é conseqüência do ‘engajamento’ que homens e mulheres optam, negando ‘pseudoparticipações’ nas ações que decide. Engajamento, este, que se faz captando os desafios e agindo através da práxis libertadora. Neste sentido, criatividade não finda em si mesma como operação da inteligência humana. Mas a transcende pelo reconhecimento que homens e mulheres elaboram acerca da diversidade histórica e cultural de cada um e uma; a transcende na medida em que se posicionam dialeticamente através da ‘ação-reflexão-nova ação’.

Sob a conotação de temporalidade, o agir criativo pode ser explicado a partir do contexto situacional em que homens e mulheres agem. Diferente dos outros animais, o homem vive um tempo multidimensional. Produzem cultura ao existir num tempo que se faz passado, presente e futuro. Atribuem significado aos desafios captados de suas realidades, refletindo sobre e a partir delas de maneira a estabelecerem sua autonomia e autenticidade no agir criativo.

Criatividade explicada sob a perspectiva expressa por Paulo Freire, superando os conceitos constituídos historicamente, cada um em seu próprio tempo, incrementa significados outros que vão além das iniciativas que a relacionaram como ‘dom’, loucura, bruxaria ou, noutra dimensão, como conseqüência da inteligência. Para Paulo Freire, criatividade associa-se ao processo de emancipação democrática dos homens e mulheres que se reconhecem como ser de relações. Por conseguinte, o agir criativo toma corpo na medida em que as relações humanas sejam orientadas pelo engajamento amoroso, autêntico de cada um e uma. O agir criativo expressa, em si, argumentos da pluralidade, da transcendência, da criticidade, da conseqüência e da temporalidade das relações humanas, entre sujeitos em libertação.

Criatividade e educação, assim posta, orientadas sob o olhar de Paulo Freire, coloca-nos diante da inquietação de que não será qualquer expressão de criatividade que irá converter a ação humana em práxis emancipatória. Antes se torna fundamental esclarecer o contexto da educação em que o agir criativo tomará expressão.

CRIATIVIDADE COMO UM DOS CONSTITUTIVOS DA EDUCAÇÃO POPULAR

Este tópico que poderia ser chamado de considerações finais toma, aqui, outro formato na medida em que se pretende exaltar a sua condição temporal frente ao conjunto de uma obra que se faz fazendo. Torna-se ousadia por se compreender em seu inacabamento, cuja estrutura expressa uma produção construída por várias mãos. Desta maneira, criatividade e educação popular, tema proposta para esta reflexão, ganha espaço argumentativo quando localizado no interior da produção (conceito de educação popular) desenvolvida pelos doutorandos do PPGE/UFPB (2004). Interage a partir da reflexão orientada pelo pensamento freireano sobre criar e recriar, indicando a esfera em que o conceito construído pode ou não expressar aproximação com o constitutivo criatividade.

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Para tanto, o conceito construído fora subdividido (sem perder sua dimensão de totalidade) em partes que expressam, em si, um conjunto de conteúdos significativos à reflexão sobre criatividade como um dos elementos que constituem educação popular.

Tomando as idéias de Paulo Freire como referência para a reflexão acerca de criatividade como um dos constitutivos da Educação Popular, como expressão da práxis educativa, meio de intervenção política de homens e mulheres em relação, criatividade foi identificada sob a condição que a faz transcender a esfera da inteligência humana. Implica em ação inteligente individual, pela sua condição natural, no entanto encontra-se, absolutamente engajada, num contexto histórico e cultural com o qual homens e mulheres interagem respeitando sua diversidade.

Neste sentido, o conceito construído possibilita fazer uma inferência na direção do reconhecimento da Educação Popular como um fenômeno de produção e apropriação dos produtos culturais, expresso por um sistema aberto de ensino e aprendizagem. Tal como Paulo Freire, entender educação popular, associando-a à produção e apropriação dos produtos culturais, indica abertura nas relações entre os sujeitos com o mundo e com outros sujeitos; indica cultura como conseqüência da produção humana, ao mesmo tempo em que afirma o reconhecimento de que produzir cultura exige, dos homens e mulheres, conhecimento e cidadania para tornar a produção uma ação de criação ou recriação centrada no que Paulo Freire definiu como ‘vocação ontológica do homem’, a busca de ser mais em comunhão. Implica em autonomia e consciência crítica, comprometida com o social para decidir a partir dos desafios que escapam de suas realidades.

A educação popular, assim, é constituída de uma teoria de conhecimento referenciada na realidade, com metodologias incentivadoras à participação e ao empoderamento das pessoas. Como tal, o agir criativo deve responder aos princípios de uma teoria de conhecimento que explique o humano na sua condição humanizadora, frente aos aspectos da sua realidade. A educação, orientada por esta perspectiva teórica, torna-se popular na medida em que tem delimitado seu campo de intervenção numa ação que não se divorcia de sua dimensão teórica, portanto, uma ação que se faz em processo reflexivo, resultando numa nova ação, cuja sua expressão esteja fundamentada pelos argumentos da práxis em diálogo. Como educação popular, o agir criativo é expressão de homens e mulheres que se encontram protagonistas de suas decisões. De homens e mulheres que têm clareza de que suas ações iniciam com relações que elaboram e retornam sob a condição de respostas aos desafios que captou.

Por conseguinte, demanda conteúdos e técnicas de avaliação processual recorrentes às conotações de pluralidade, de transcendência, de criticidade, de conseqüência e de temporalidade, com as quais os sujeitos e sujeitas engajam-se produzindo cultura. Aprendem a tomar decisões mediante relações que constituem em seu universo comunicativo, dialogando com outros homens e mulheres, assim como dialogando com o mundo, com sua realidade. Os conteúdos, assim entendidos, são dotados de significado e geradores de novos conteúdos. A avaliação, em sua condição processual, responde, qualitativamente, aos desafios captados, os quais, para Paulo Freire, consagram-se sob a condição de ‘situações limites’ mediadas pelo ‘inédito viável’ de cada um e uma.

Conteúdo e técnica de avaliação, articulados ao cenário da criatividade como um dos constitutivos da educação popular, aqui identificada, expressam maneiras de agir sob orientação do pensar divergente, amoroso, dialógico, conscientemente crítico. Encontram-se,

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o pensar e agir criativo de homens e mulheres, protagonistas de seu tempo, permeados de uma base política e cultural estimuladora das transformações sociais e, orientada por anseios humanos de liberdade, justiça, igualdade e felicidade. Diferentemente, quedaria numa educação, outra, que não a popular.

Por fim, entendendo a educação popular a partir do conceito analisado, pode-se deduzir que há uma relação implícita em seus conteúdos, os quais apontam o agir criativo na direção da práxis libertadora. Conseqüentemente, para que a criatividade seja explicada sob a condição de constituinte da Educação Popular, há de se pensar sob os aspectos que a condicionam a esta particularidade, tais como sua aproximação com diversidade cultural que permeia as relações humanas; criatividade implica na capacidade humana de inteligência para pensar e tomar decisões, a partir da dinamicidade posta ao agir dialético frente à diversidade dos desafios captados.

Agir criativamente implica num ato de amor ao homem, à mulher e ao mundo. A criação e recriação, produtos da cultura e da criação humana, expressam em si, como afirma Álvaro Vieira Pinto (1969) “duas faces de um só e mesmo processo, que passa de principalmente orgânico na primeira fase a principalmente social na segunda, sem, contudo em qualquer momento deixarem de estar presentes os dois aspectos e de se condicionarem reciprocamente” (opus cit. p. 122). Guardam estreita relação com a condição em que homens e mulheres se posicionam no e com o mundo.

Há de se pensar, criatividade, sob a complexidade que constitui o universo das relações humanas, sem, no entanto, afastar-se do humano no processo de humanização da humanidade.

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CONSCIENTIZAÇÃO COMO UMA LINGUAGEM DIVERSIFICADA

Agostinho Rosas1; Antônio de Pádua; Argentina Rosas; Arlindo Viana; Ibrantina Guedes; Jackson Pinto dos Santos; Magadã Lira; Maria Lúcia C. Silva; Mercês Lima; Nelino

Azevedo; Rubem Eduardo da Silva e Targélia Albuquerque. RESUMO

Este trabalho é conseqüência das produções do Grupo de estudo Descobrindo Paulo Freire através de sua obra que elegeu conscientização como categoria para as reflexões. Tomamos o livro Conscientização como objeto de análise, considerando os subtemas avaliação, lugar e criatividade. Constituiu-se objetivo do trabalho dialogar com Freire e os integrantes do INODEP2 acerca da conscientização como categoria ontológica do humano, perpassando as culturas num desafio à multiculturalidade. Metodologicamente, após leitura do livro, seguiram-se reflexões relacionando o cotidiano às interpretações e experiências individuais resultando neste documento. Os resultados convergem para dois focos: conceito de conscientização em Freire e, diversidade de práticas dos membros do grupo. Por fim, o trabalho consolida a conscientização como linguagem diversificada.

Palavras Chaves: Conscientização – Linguagem diversificada – Multiculturalidade.

INTRODUÇÃO

O Grupo de estudo Descobrindo Paulo Freire através de sua obra, a partir do IV Colóquio, investiu no debate acerca das teorias dialógicas e antidialógicas (Pedagogia do Oprimido) e em seguida adentrou nas discussões referentes à categoria ‘conscientização’ no contexto da teoria libertadora em educação, desenvolvida por Paulo Freire. Mais especificamente, através da obra Conscientização, teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire.

Trata-se de um livro escrito a várias mãos. De um lado, encontra-se Paulo Freire que discorre sobre si, sua trajetória histórica até sua fuga e exílio; sobre as bases filosóficas que dão sustentação ao método de alfabetização de adultos; sobre conscientização como expressão significativa do processo dialético envolto pela compreensão de mundo; sobre o processo metodológico da leitura à escrita, assim como discorre sobre práxis, utopia, libertação. De outro, a fala dos que fizeram o INODEP no ano de 1970. Ou seja, uma fala centrada na reflexão crítica sobre o pensamento de Paulo Freire.

Esta obra marca uma época que havia culminado com Pedagogia do Oprimido. De acordo com Moacir Gadotti (1996), seu título original Conscientisation: Recherche de Paulo Freire. Document de Travail, de 1971, foi publicado em português apenas em 1979 sem os textos originais de C. Welford e Thomas Sanders, incluídos na versão francesa. Nesta obra se “analisa a ação alfabetizadora na proposta freireana enfatizando alguns temas já estudados e expostos pelo autor em outras obras, principalmente em Pedagogia do Oprimido” (opus cit. p. 266).

No entanto, o tema central é conscientização. Tema este que, segundo Paulo Freire, tem origem no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), quando considera sua relevância

1 Membros do Grupo de Estudo “Descobrindo Paulo Freire através de sua obra”. 2 Institut Oecuménique au Service du Développement des Peuples.

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e profundidade teórica para a educação como prática da liberdade, uma educação que seja compreendida como “um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade” (FREIRE, 1980, p. 25).

A discussão freireana sobre conscientização irá tomar corpo a partir de sua atuação no SESI e posteriormente no Movimento de Cultura Popular (MCP). Será no foco dos debates acerca da educação popular, da educação de adultos que o pensamento freireano em educação irá desvelar-se para o mundo. De outra maneira, com a dimensão filosófica, será na condição de exilado que suas idéias irão ganhar mundo, inicialmente no Chile, posteriormente Europa, Estados Unidos, África entre outros. O Golpe de Estado de 1964 no Brasil provocou o exílio de Paulo Freire e a suspensão das atividades desenvolvidas no MCP, contudo, não fora suficientemente forte para desintegrar a projeção revolucionária das idéias de Paulo Freire pelo mundo, inclusive no próprio Brasil.

Para os representantes do INODEP, a Educação Popular no Brasil advém dos governos populistas, inicialmente com Vargas, no entanto toma maior expressão com a introdução dos camponeses, do meio rural, na legislação trabalhista durante o governo Goulart. Isto, no entanto, não expressa a otimização do envolvimento das camadas populares no exercício de uma cidadania democrática. Deste modo, a fala do INODEP vai reforçar este argumento na medida em que afirma: “limitou-se, então, o programa, à criação de uma atmosfera ideológica que não pode proporcionar as condições necessárias para a constituição de uma verdadeira ideologia popular” (FREIRE, 1980, p. 17).

Durante este período, que se encerra com a retirada de Goulart da Presidência, pode-se verificar a expressiva influência dos trabalhos realizados por Paulo Freire, na medida em que o sucesso obtido pela experiência de Angicos-RN assolou grande parte do território nacional brasileiro. A questão que se coloca deriva justamente do entendimento histórico e político que o método de alfabetização de adultos de Paulo Freire desencadeou. Um método centrado na relação dialética entre os homens e o mundo, na relação entre homens em diversidade cultural e conscientização.

O presente texto, assim como muitas das publicações de que Paulo Freire participou, também foi escrito por várias mãos. Sua construção expressa o interesse e desejo coletivo em adentrar na obra de Freire e de criar e recriar a partir da apropriação que cada um dos protagonistas faz desta mesma construção. Neste sentido, o texto toma o formato híbrido em que, de um lado, registra a compreensão coletiva sobre ‘conscientização’ em Paulo Freire e, de outro, expressa a construção individual e/ou coletiva abordando os subtemas avaliação, lugar e criatividade.

CONSCIENTIZAÇÃO, REFLEXÕES, INQUIETAÇÕES E PROPOSIÇÕES SOB A INSPIRAÇÃO FREIREANA

“Remando contra a corrente”, como já afirmava Paulo Freire em muitos dos seus textos escritos e diálogos orais, estão homens e mulheres que travam uma luta constante para construir sua própria humanidade; para conquistar/criar o direito e o dever de pensar e fazer um mundo melhor para homens e mulheres de todas as etnias, credos, opções de gênero e direções na sua sexualidade, posições ideológicas, políticas, científicas – um mundo em que se deixe nascer e afirmar um arco-íris cultural com as mais diversas tonalidades e variedades de cores, que na sua síntese irão convergir como o movimento de luz – da cor da paz.

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A boniteza deste movimento conduz à ética universal do ser humano, fundamento e práxis da produção da vida, do desenvolvimento pleno do ser humano, do ‘ser mais’; homens e mulheres juntos saberão investir na construção de uma sociedade digna, fraterna e justa.

Esta luta pela vida, pela constituição de humanidade só pode ser realizada pelo próprio ser humano, por homens e mulheres em comunhão, em comunidade. A questão que se coloca é da própria possibilidade criadora desta humanização, quando os interesses sociais, a disputa de espaço, de poder passam a ser mais fortes para determinados segmentos sociais do que a visão planetária e o compromisso ético com a afirmação de uma existência social digna, fraterna e justa.

Paulo Freire afirma esta possibilidade histórica, quando defende a vocação ontológica do ser humano de ‘ser-mais’, de homens e mulheres se fazerem seres éticos na relação uns com os outros:

A história - a história no pleno sentido do termo, a história de todo o povo e não somente dos exércitos e dos governos – não é outra coisa que as respostas dadas pelos homens à natureza, aos demais, às estruturas sociais. Não é outra coisa que a procura do homem, sua intenção de ser mais e mais homem, respondendo e relacionando-se (FREIRE, 1980, p. 38-39).3

Compreender o que Paulo Freire explica sobre a história, como possibilidade, é reunir elementos para compreensão do conceito de conscientização, da sua significação histórica e cultural:4

A história como possibilidade reconhece a importância da decisão como ato que implica ruptura, a importância da consciência e da subjetividade, da intervenção crítica dos seres humanos na reconstrução do mundo. Reconhece o papel da consciência construindo-se como práxis; da inteligência sendo inventada e reinventada no processo e não como algo imóvel dentro de mim, separado quase do meu corpo. Reconhece o meu corpo como corpo consciente que pode mover-se criticamente no mundo como pode “perder” o endereço histórico. Reconhece minha individualidade que nem dilui, amorfa, no social nem tampouco cresce e vinga fora dele. Reconhece, finalmente, o papel da educação e de seus limites. (FREIRE, 2000b, p. 97).

É importante observarmos alguns destaques desta fala de Freire sobre a história como possibilidade, para podermos entender o conceito de conscientização: a questão da decisão relacionada à ruptura; a inseparabilidade entre consciência e subjetividade; a intervenção crítica dos seres humanos; a possibilidade de reconstrução crítica do mundo pelos próprios seres humanos; a questão da consciência construindo-se como práxis; a inteligência como processo (dinâmica de invenção e reinvenção inseparável do corpo); o conceito de corpo consciente (constituição do sujeito histórico; a construção da individualidade no bojo das relações sociais); a educação como mediação na criação do sujeito histórico.

3 É importante salientar que Paulo Freire em Pedagogia da Esperança reconhece que deveria usar as expressões homens e mulheres, no lugar de homens, pois reconhece a força e determinações culturais e históricas da questão de gênero. Ao usar a expressão homens, o faz no sentido mais amplo do termo, como ser humano. 4 Paulo Freire, durante uma entrevista dirigida por Alberto Torres e publicada no livro “Educação na Cidade”, ao ser interpelado sobre as razões que o fizeram abandonar o uso do termo conscientização desde 1974, explica “Nos anos 70, com exceções é claro, falava-se ou se escrevia de conscientização como se fosse uma pílula mágica a ser aplicada em doses diferentes com vistas à mudança do mundo” (FREIRE, 2000a, p. 14). Ele explica que “ao não usar a palavra, não recusei a sua significação”. Ele reafirma a relevância conceitual, que discutiremos a seguir nesse texto.

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É importante compreendermos que para Paulo Freire questões e respostas críticas integram o processo de conhecimento, de reconhecimento e de autoconhecimento dos homens e das mulheres no mundo e com os seus semelhantes. (Freire, 1980, p.31). Dizer a sua palavra, pronunciar-se diante dos outros e do mundo é um dos sérios desafios do ser humano, enquanto ser ético, histórico e cultural.

O dizer a sua palavra, o colocar-se diante da vida, o reconhecer-se como sujeito histórico é vocação ontológica e configura-se como direito do ser humano de produzir uma existência ética, de produzir a vida plena de liberdade, solidariedade e justiça.

Para tanto, os homens e as mulheres como “seres-em-situação”- “sujeitos históricos” refletirão sobre o caráter de seres situados e se sentirão desafiados a atuar, a refletir criticamente, a criar novas ações, a transformarem-se enquanto transformam o mundo. (opus cit. p. 33).

“Pelo jogo constante destas respostas o homem se transforma no ato mesmo de responder” (opus cit. p. 37). O sujeito criador e a sua criação tornam-se inseparáveis na produção de um mundo novo, do novo ser humano.

Segundo Freire, a conscientização exige que “os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...” (FREIRE, 1980, p.26). Isto, portanto, implica compreendermos que a relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento (a realidade – o mundo) e entre os próprios sujeitos construtores do mundo não se dá de maneira linear, mas sim no enfrentamento dos desafios, na superação das situações-limite, na criação de novas possibilidades de existência, de liberdade, de justiça, de criação e (re)criação de humanidade, de busca do ‘ser mais’. Um processo ilimitável de busca e construção da humanização.

Paulo Freire coloca a conscientização como objeto e finalidade da educação. “[...] estou absolutamente convencido de que a educação, como prática de liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade” (opus cit. p. 25). “[...] os homens são capazes de agir conscientemente sobre a realidade objetivada” (opus cit. p. 25-6). Para Freire “a práxis humana” é uma unidade indissolúvel entre ação e a reflexão de cada ser humano sobre o mundo (opus cit. p. 26).

A conscientização é inseparável da prática educativa assim como a educação não pode prescindir da conscientização. Elas constituem uma unidade dialética do pensar, do fazer, do dialogar crítico, do agir e transformar o mundo para a liberdade. “A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica, na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (Idib.).

Neste sentido, o processo de conscientização possibilita o (des)velamento da realidade, pois os homens e as mulheres em relação solidária, tornam-se capazes de dialogar sobre o seu lugar no mundo, sobre o lugar em que estão situados e sobre as relações planetárias, percebendo-se como sujeitos integrados e integradores e/ou alienados dos seus direitos humanitários e humanizantes. A conscientização é um teste de realidade (FREIRE, 1980, p. 26), pois não existe fora da práxis, sem o ato de ação-reflexão-ação, sem a força da transformação.

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Ao se relacionar com o mundo e com os seus semelhantes, os seres humanos vão problematizando e construindo respostas. Os desafios movem os homens e as mulheres a se posicionarem no mundo. “No ato mesmo de responder aos desafios [...], o homem se cria, se realiza como sujeito porque esta resposta exige dele reflexão, crítica, invenção, eleição, decisão, organização, ação... todas essas coisas pelas quais se cria a pessoa e que fazem dela um ser não somente ‘adaptado’ à realidade e aos outros, mas ‘integrado’” (opus cit. p. 37).

O ser humano integrado à realidade é produtor de cultura. “Na medida em que o homem integrando-se nas condições de seu contexto de vida, reflete sobre elas e leva respostas aos desafios que se lhe apresentam, cria cultura” (opus cit. p. 38).

Os conceitos de cultura e história se dialetizam em Paulo Freire para que possamos entender a construção do processo de conscientização. Este processo expressa um compromisso histórico; este não se concretiza sem uma consciência histórica o que implica em inserção crítica de homens e mulheres na própria história, para se construírem como sujeitos históricos, capazes de intervir nos seus rumos, e não, serem arrastados por ela como “marionetes” ou “fantoches”. É através do diálogo cultural e intercultural que homens e mulheres se percebem como sujeitos, percebem o mundo e aprendem a aquisição sistemática da experiência humana.

Eles e elas não só estão imersos na experiência da realidade, os seres humanos passam a ser capazes de se distanciarem do vivido e refletirem criticamente sobre a própria experiência. Não como uma ação isolada, mas como ação refletida/coletiva no mundo. Paulo Freire chama este processo de “aquisição crítica e criadora”. É, pois, esta aquisição incorporada, crítica e criadoramente, que impregna o ser total e integra a vida plena do ser humano.

Freire nos lembra que os seres humanos cultivam e criam a cultura no ato de estabelecer relações, de responder aos desafios que lhes apresentam a natureza e o próprio mundo feito pelos homens e pelas mulheres de todos os povos e de todas as épocas e gerações. Os homens e as mulheres são criadores de cultura e também são “fazedores” da história “na medida em que o ser humano cria e decide as épocas vão formando e reformando” (FREIRE, 1980, p. 38). “[...] ao surgirem novos temas, ao se buscarem novos valores (inéditos), o homem sugere uma nova formulação, uma mudança na maneira de atuar, nas atitudes e nos comportamentos...” (opus cit. p. 39).

Esta relação entre cultura e história é marcante no processo de conscientização. Para Freire é nos períodos de transição em que homens e mulheres podem demonstrar a sua capacidade de participação ativa e criadora nos rumos da história, construindo novos marcos culturais. A educação deve permitir ao homem “chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história [...]” (opus cit. p. 40).

A conscientização é, pois, inseparável da prática educativa, sendo o seu principal objetivo. Ela é práxis e se constrói na relação dialógica, na participação ativa, na inserção crítica, no projeto político de transformação social que integra. Nesse sentido, a conscientização é ação emancipadora.

Para Paulo Freire (1987), a educação que emancipa “não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo – um mundo que impressiona e desafia a um e a

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outro, originando visões ou pontos de vistas sobre ele [...]. Nesse processo dialógico [...] a incidência da ação é a realidade a ser transformada”.

Paulo Freire, mesmo tendo deixado de usar o termo conscientização durante mais de 20 anos, insiste que “não abandonou o significado, o próprio conceito de conscientização”. No livro “Educação na Cidade” (FREIRE, 2000a), retoma a questão da diferença entre tomada de consciência e conscientização, reafirmando que “a conscientização é o aprofundamento da tomada de consciência: não há conscientização sem a tomada de consciência, mas nem toda tomada de consciência se alonga obrigatoriamente em conscientização” (opus cit. p. 112):

Trabalhar, portanto, numa postura conscientizadora, [...] é procurar, com rigor, com humildade, sem arrogância dos sectários demasiados certos de suas certezas, universais, desocultar as verdades escondidas pelas ideologias tão mais vivas quanto delas se diz que estão mortas; (opus cit. p. 113).

Quando Paulo Freire estabelece uma íntima e fecunda relação entre conscientização e alfabetização, não pretende esgotá-la ao processo alfabetizador. Muito pelo contrário, ao considerar a alfabetização como um bem social, um direito de todos e todas de pronunciarem a sua palavra, de romperem o silêncio escravizador, de pensarem e produzirem a cultura e a história, pois a leitura de mundo antecede a leitura da palavra, valoriza cada saber de experiência feito e demonstra que a conscientização é inseparável da prática educativa ética e emancipadora em qualquer tempo e espaço sociais. Paulo Freire explica:

[...] a prática conscientizadora verdadeira, precisamente porque não dicotomiza a leitura do texto da leitura do contexto a que o texto se refere ou a que se pretende aplicar o texto, jamais aceita ser reduzida a simples discurso “militante”, vazio, autoritário, ineficaz. Porque é mais do que exclusiva tomada de consciência da realidade, a conscientização exige sua rigorosa compreensão. (opus cit. p. 113). A Alfabetização enquanto aquisição, produção e reinvenção da linguagem escrita e necessariamente lida deve, por sua seriedade, constituir-se num tempo de introdução ao pensar certo. Respeitando o saber de senso comum começar a aproximar os alfabetizandos à compreensão mais profunda da linguagem, da raison d’etre das coisas, das suas dificuldades para superá-las” (opus cit. p. 116).

Paulo Freire, a todo momento, nos faz lembrar que não se pode separar teoria e prática; o pensar reflexivo sobre o mundo e a sua inserção nele; a construção da subjetividade das relações sociais, pois ambas se concretizam no mundo. Paradoxalmente, os homens e mulheres não podem construir suas subjetividades fora do mundo pois é na condição de sujeitos críticos históricos que serão capazes de transformar as relações opressoras e recriá-lo pleno de democracia. “Talvez fosse interessante para salientar mais uma vez a relação entre prática e teoria, chamar a atenção para o fato de que não é possível prática sem sua programação que pode ser refeita durante o processo permanente de avaliação. Praticar implica programar e avaliar a prática. E a prática de programar, que se alonga na de avaliar a prática, é uma prática teórica” (FREIRE, 2000a, p. 109).

AVALIAÇÃO E CONSCIENTIZAÇÃO: UM COMPROMISSO COM A QUALIDADE SOCIAL5

5 Sistematização realizada por Targélia de Souza Albuquerque, a partir das contribuições do grupo de estudos – co-autores e co-autoras deste texto.

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A primeira idéia – força explicitada por Paulo Freire (1980), para compreendermos o conceito de conscientização diretamente articulado à prática educativa, é a da validade da própria educação. Esta validade antecede a qualquer juízo de fato ou de valor, ela é uma condição de existência, de produção da vida humana – um sensor afetivo-avaliativo – como afirma Dussel (2000) a partir dos estudos neurobiológicos e culturais de Maturana e Varela (1995).

A educação toda e qualquer ação educativa, para serem válidas na perspectiva freireana devem “necessariamente estar precedida de uma reflexão sobre o homem e de uma análise do meio de vida concreto do homem concreto a quem queremos educar (ou melhor dito: a quem queremos ajudar a educar-se) [...]” (FREIRE, 1980, p. 33). Compreender que os homens e as mulheres dos vários recantos do planeta estão em processo constante de comunicação não é suficiente para garantir o desenvolvimento pleno de todos os seres humanos. A educação como prática de conscientização – uma educação emancipadora que rompa com os mecanismos controladores da regulação – é necessária e indispensável como uma forte mediação no processo de emersão crítica do mundo e de construção de um novo projeto comunitário, cuja marca maior é a existência humana, a constituição do ‘ser-mais’. Nesse sentido, a educação democrática torna-se inseparável do processo de conscientização e avaliação, que as alimenta e reconstrói.

A avaliação é uma prática conscientizadora e a conscientização não pode prescindir dela. Este diálogo epistemológico atravessa as entranhas sociais e pode ser uma possibilidade histórica de uma educação libertadora para os excluídos da terra, dos seus direitos de cidadania plena. A discussão reflexiva não pode ser dissociada da ação que a gera, por esta razão, avaliação e conscientização integram e constituem a própria práxis.

Coloquemos, agora, os pés no chão da escola, da sala de aula, dos movimentos sociais e adentremos no processo educacional que ocorre ou pode acontecer nesses diferentes espaços.

Rompamos com qualquer concepção bancária de educação e assumamos com Paulo Freire alguns pressupostos: a concepção de liberdade “[...] matriz que dá sentido a uma educação que não pode ser efetiva e eficaz senão na medida em que os educandos nela tomem parte de maneira livre e crítica” (opus cit. p. 50). Isto implica necessariamente no respeito aos educandos e às educandas – uma ética inseparável da prática educativa; educadores e educadoras estão com os educandos e as educandas, juntos como parceiros, refletindo sobre a realidade e atuando nela. Eles e elas reconhecem-se como seres concretos em relação uns com os outros e nesse processo são criadores de cultura; a existência de dois mundos distintos, mas dialeticamente interligados através das próprias relações entre os seres sociais: a natureza e a cultura. Dialogando sobre a natureza e a cultura, aprofundam a reflexão crítica sobre si e a realidade. Este diálogo profícuo possibilita a inserção no real, bem como o seu distanciamento, para desvelá-lo com autonomia; o profundo conhecimento da complexa teia de relações sociais em que os homens vivem e se constroem como sujeitos históricos permitem aos seres humanos produzirem cultura, enquanto avaliam o mundo e a sua própria existência nele; a aprendizagem já é uma maneira de tomar consciência do real e, portanto, não pode efetuar-se a não ser no seio desta tomada de consciência; a democratização da cultura como dimensão da democratização fundamental (FREIRE, 1980, p. 52); a educação problematizadora considera os seres humanos em devir. “Está fundamentada sobre a criatividade e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade (opus cit. p. 81); a educação é continuamente refeita pela práxis. Ela é revolucionária. “Ela enraiza-se no presente dinâmico e chega a ser revolucionária”(Ibid); a educação é “uma certa teoria do

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conhecimento posta em prática” (FREIRE, 2000, p. 115). A educação substantivamente democrática não separa o ensino dos conteúdos do desvelamento crítico da realidade; a educação / escola pública popular substantivamente democrática faz o chamamento do povo, estimula a presença organizada das classes sociais populares na luta em favor da transformação democrática da sociedade, no sentido da superação das injustiças sociais; comprometendo-se com ele, com a melhoria da qualidade social; o ensinar e o aprender fazem parte de um mesmo processo de conhecer. Educadores e educadoras com os educandos e as educandas são companheiros(as) nesta maravilhosa aventura epistemológica – conhecer a realidade – e praxiológica: conhecer, compreender criticamente para atuar nela com autonomia e compromisso, com vistas a sua transformação radical; o professor e a professora devem testemunhar aos estudantes como se aproximam do objeto de seu conhecimento, como aprende e apreende a teia de relações em que este é tecido. Na relação pedagógica o diálogo da significação do conhecimento precisa ser construído e reconstruído com a garantia da participação de todos e todas envolvidos no processo (Ibid). O sentido pleno da avaliação que permite o falar com como fundamento principal do falar sobre ou do falar a, colocando em destaque e dando relevância aos saberes de experiência feitos dos educandos e das educandas, bem como a coerência entre a história de vida do educador e da educadora e o trabalho educativo de construir “o pensar certo”; o respeito irrestrito aos educandos e às educandas,considerando a diferença, as diversidades culturais não como problemas, mas temas integradores e articuladores de um currículo emancipador. O compromisso com os seus direitos de cidadania, de afirmação de sua existência digna, fraterna, justa e feliz; a avaliação, inseparável da prática educativa, rompe com a regulação e afirma o diálogo, a participação, a autonomia e a solidariedade. Ela pode orientar a apropriação crítica e a reconstrução do conhecimento com o necessário rigor epistemológico, em estreita relação dialética com as produções culturais e a história de vida de cada sujeito histórico.

Paulo Freire coloca a avaliação para além de uma reflexão crítica sobre a prática. Ela faz parte do próprio processo de conscientização, integrada e integradora na e da educação como diálogo emancipador. Ele convoca cada educador e educadora a praticar uma avaliação ética crítica: avaliação fundada pela ética universal do ser humano como processo que a fecunda:

Ao pensar sobre o dever que tenho, como professor, de respeitar a dificuldade do educando, sua autonomia, sua identidade em processo, devo pensar também, como já salientei, em como ter uma prática educativa em que aquele respeito, que sei dever ter ao educando, se realize em lugar de ser negado. Isto exige de mim uma reflexão crítica permanentemente sobre minha prática através da qual vou fazendo a avaliação do meu próprio fazer com os educandos. O ideal é que, cedo ou tarde, se invente uma forma pela qual os educandos possam participar da avaliação. É que o trabalho do professor é o trabalho do professor com os alunos e não do professor consigo mesmo (FREIRE, 2000b, p. 71).

Esta postura educativa define o compromisso da avaliação com a qualidade; não com qualquer qualidade, mas radicalmente com a melhor qualidade – a qualidade social – que gera compromisso com a produção da vida, que defende e promove o direito de homens e mulheres nas suas múltiplas linguagens culturais de serem respeitados, que ensina o profundo amor ao outro como parceiro de lutas e conquistas, que unifica pela diferença.

Para Freire, “[...] ninguém luta contra as forças que não compreende...” (FREIRE, 1980, p. 41). A avaliação como movimento constante e necessário ao processo de conhecer e compreender a realidade, é uma prática social imprescindível aos processos de transformações

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em prol de uma sociedade democrática. É no desafio cotidiano de se construir o verdadeiro diálogo educativo na educação que transforma educadores e educadoras críticos companheiros inseparáveis dos seus educandos e das suas educandas, para construir a sala de aula e/ou o espaço pedagógico em diferentes espaços da sociedade – um fórum permanente e profícuo de produção da vida, da aprendizagem do próprio ser humano, de compreensão crítica do mundo.

Se colocarmos os pés na escola, ou nos mais diferentes espaços sociais, e escutarmos as diferentes vozes de crianças, jovens e adultos(as), percebemos a predominância de gritos de angústia, de medos, de ansiedades, de perguntas que nunca foram respondidas no seu processo de escolarização. Ecos de dor; marcas de suicídios inacabados por tentativas de assassinatos; histórias de vida, cujos relatos revivem experiências dolorosas e traumáticas de processos avaliativos opressores, sufocantes, destruidores e destituidores de vida.

Processos pedagógicos seletivos, que se articulam à ideologia de mercado e legitimam a prática da avaliação seletiva, para garantir o apartheid social tão útil aos “donos do capital”. A inclusão cidadã das minorias, dos excluídos da terra, de direitos fundamentais de existência digna, da diversidade cultural dos países em desenvolvimento e do terceiro mundo não interessa ao poder hegemônico. As políticas públicas de avaliação articuladas às políticas neo-liberais para a educação, comprometidas com as agências financiadoras estrangeiras sob a égide do Banco Mundial, fazem a apologia dos resultados (não importa a qualidade cidadã expressa no valor quantitativo), ressaltam a responsabilidade individual, descomprometendo o Estado de suas reais funções em favor da democracia social; políticas que se ancoram na ideologia da globalização de mercado, na visão privatista para a educação.

É evidente que as fortes pressões do Mercado invadem a escola, os movimentos sociais, a família, a igreja e muitos outros territórios sociais, devassando a intimidade de crianças, jovens e adultos. Mas, a história vem provando que a força comunitária, que a constituição de coletivos mediados por processos educacionais críticos, cuja expressão maior é a conscientização que gera e nela é gerada, movem os homens e as mulheres a remarem contra a maré e a romperem com o que parece imutável, inovando, transformando a realidade enquanto se transformam. Educadores e educadoras que, mesmo sendo xingados por seus pares, sendo muitas vezes perseguidos, conseguem praticar “a infidelidade normativa” (LIMA, 2000; 2002), e rever seus papéis já cristalizados de transgressores da ética e inovar na direção de se criar uma avaliação inclusiva, formativa e emancipadora.

Porque somos humanos, temos capacidade de avaliar a nossa existência no mundo e a realidade da qual fazemos parte e só tomando parte dela de modo crítico poderemos melhorá-la. Nesse sentido, em que pode a avaliação contribuir para melhorar a aprendizagem dos alunos e das alunas? Como a avaliação orientaria os rumos da recriação dessa escola que reúna a boniteza da luta na construção do conhecimento, do trabalho coletivo, da democracia, que seja uma unidade: estética e a ética objetivando uma educação da melhor qualidade – uma escola de alegria, de ciência, de interculturalidade e de multiculturalidade, uma educação geradora de vida?

Nós podemos iniciar este processo no dia-a-dia com nossos educandos e nossas educandas. Paulo Freire nos oferece algumas pistas: acolhimento irrestrito dos nossos alunos e alunas; profundo respeito aos saberes de experiência feitos; prática coletiva da observação e discussão sobre a relação dos conteúdos socialmente valorizados e incorporados nas propostas

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curriculares, a realidade e a história de vida de cada sujeito do processo de aprendizagem; experiência de rupturas de hierarquias, de prática abusiva de poder e aprendizagem da convivência amorosa, do diálogo, da conversação, da participação e da autonomia; criação de um clima de camaradagem, cumplicidade e fidelidade entre professores e professoras com seus alunos e alunas e entre pares, buscando construir a verdade do grupo, tão indispensável ao aparecimento dos limites, das dificuldades e à construção de situações de superação e libertação; construção do diálogo sobre os saberes de experiência feitos e os conhecimentos científicos, tecnológicos entre outros, descortinando a teia de relações em que são tecidos e desvelando significações e sentidos; garantia da vez e da voz dos sujeitos da aprendizagem de dizerem o que pensam da escola, por que estão ali, o que procuram, qual a sua significação pessoal e social; acompanhamento contínuo, sistemático e compartilhado das produções dos alunos e das alunas, em suas múltiplas linguagens, ensinando-os (as) a avaliar cada dificuldade, cada avanço, os próprios passos da caminhada; construção e recriação de projetos pedagógicos e de situações de aprendizagem como um arco-íris multicultural – geradores de vida, de desenvolvimento pleno; prática da meta-avaliação, que cria oportunidades de análise crítica dos caminhos trilhados pela própria avaliação e exige o compromisso com a melhoria da aprendizagem, da escola diretamente articulada à qualidade social; experiência democrática em cada tempo e espaço pedagógico, demonstrando a íntima relação entre educação, conscientização e avaliação – unidade dialética – síntese de múltiplas determinações e “lócus educacional” de se pensar e fazer uma educação da melhor qualidade – de se praticar a avaliação inclusiva e emancipadora – para todos os brasileiros e brasileiras; vivência de cada momento educativo como único, como território de luta por direitos de cidadania, de aventura epistemológica, de encontro mágico com o outro, de aprendizagem do bem-querer, da humildade, da criação de elos pedagógicos em defesa da vida.

Como explicou um trabalhador do Movimento dos Sem Terra (MST), José Maria Pires: “A gente planta junto e a cada semente que germina na cova dá mais vontade de plantar”. Ao avaliar a ação de plantar junto, ao constatar que o fruto do trabalho coletivo era algo real, palpável; ganhavam energia para continuar trabalhando e transformando a natureza.

Talvez possamos aproveitar esta metáfora e começar a plantar junto a semente de um novo projeto de avaliação articulado a um projeto de educação pública popular substantivamente democrática, pois a inexperiência democrática não é só dos educadores e das educadoras de dentro e de fora da escola; ela faz parte da história de todos os brasileiros e de todas as brasileiras; quanto à questão da avaliação, esta inexperiência também se estende e interpenetra os currículos e os projetos pedagógicos que se concretizam em sala de aula. Os alunos e as alunas com suas famílias, de certa forma, fazem parte da cultura da avaliação classificatória e seletiva.

Romper com paradigmas institucionalizados, enfrentar a burocracia esclerosada é procurar superar situações-limite e reinventar processos avaliativos inclusivos dialógicos. Com certeza, vários professores e professoras já plantaram sementes dessa natureza. Muitos até conseguiram fazê-las germinar. Porém, fizeram isto como experiência isolada e/ou como projeto individual, provavelmente, foram sufocados pelas adversidades/pressões intencionais ou por outras condições objetivas desfavoráveis. É necessário que as boas idéias sejam incorporadas pelos educadores e educadoras comprometidos (as) com a aprendizagem, com o desenvolvimento pleno de seus educandos e de suas educandas – se constituam como idéias-projetos comunitários – para que possam ser estratégica e amplamente difundidas, rompendo o silêncio opressor e fazendo ecoar as vozes de dignidade humana, de cidadania – expressão

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de uma linguagem multicultural – que faz cada um e cada uma de nós ser responsável pela vida do outro/da outra, enfrentar nossos medos e usufruir do direito de ousar, de sonhar a utopia da liberdade, da felicidade.

Pois, como nos ensina Paulo Freire: “O sonho de um mundo melhor nasce das entranhas de seu contrário”. O projeto de um mundo melhor escapará das nossas mãos ou será arrancado brutalmente delas, se não aprendermos juntos a pensar e a fazer a democracia nas nossas salas de aula, estejam elas onde estiverem; se não experimentarmos visceralmente uma avaliação ética, dialógica, crítica, inclusiva, emancipadora; se não tornarmos cada vez mais vivo dentro de nós e no coletivo social o significado da conscientização como condição sine qua non de toda e qualquer prática educativa.

A QUESTÃO DO "LUGAR" E SUAS IMPLICAÇÕES NO PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO6

Para discutir a relevância do “lugar” no processo de conscientização, como local de resistência e de resistência cultural diante do processo homogeneizador como o da globalização, faz-se necessário compreender as conexões existentes entre o global e o local. Pois o local é uma fração de uma totalidade espacial, e que as pessoas que nele vivem também fazem parte de uma totalidade social. Portanto, este local é articulado e condicionado pela totalidade espacial, e é esta ligação que o lugar ganha expressão mundial, o mundial que existe no local sem, todavia, anularem-se as particularidades (SANTOS, 2001).

Ao estudar o espaço geográfico no decorrer da graduação, mais especificamente a categoria “lugar” como local de resistência a situações desumanizantes, encontrei fortes ligações com as idéias trabalhadas por Paulo Freire, uma vez, que faço parte do grupo de estudo “Descobrindo Paulo Freire através de sua obra”, no Centro Paulo Freire - estudos e pesquisas. Isto me influenciou a produzir algumas conexões entre o “lugar” e o processo de conscientização. Por esta razão, pretendo tecer alguns comentários sobre o lugar porém contextualizando com o atual processo da globalização.

Segundo (IANNI, 1999), a globalização é um processo de amplas dimensões, envolvendo fluxo de capital, mercadorias, pessoas, culturas, sobretudo tecnologia e informação:

[...] a globalização do mundo expressa um novo ciclo de expansão do capitalismo, como modo de produção e processo civilizatório de alcance mundial. Um processo de amplas proporções envolvendo nações e nacionalidades, regimes políticos e projetos nacionais, grupos e classes sociais, economias e sociedades, culturas e civilizações" (IANNI,1999, p. 11).

Neste sentido, o modo de produção capitalista sedimenta-se, e conquista espaço, de forma extensiva e intensiva, apoiado em novas tecnologias, no livre mercado, na competição de produtos e serviços, nas corporações, na divisão internacional do trabalho (DTI)7, num consumismo desenfreado, numa valorização exacerbada da ideologia do “ter mais” em detrimento do “ser mais”8.

6 Elaborado por Arlindo da Silva Viana, com a contribuição do Grupo de estudo. 7 Termo utilizado por Robert Cohen, citado por Corrêa (2004). 8 Segundo Freire a vocação ontológica do homem é ser-mais, no sentido da busca de sua humanização, ver Pedagogia do Oprimido, 1987.

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A atual fase do capitalismo regida no momento pelas técnicas de informação e consumo, afeta os mais diversos lugares do mundo, no entanto de forma desigual. Esse modo de produção que ao mesmo tempo fortalece o poder político-técnico-informacional-econômico de certas nações, não minimiza as desigualdades sociais nem as contradições que constituem as redes de relações socioeconômicas em nível local, nacional, regional e global (Ianni, 1999). Um aspecto importante deste processo da globalização e que tem implicações diretas na produção e reprodução do espaço geográfico são as corporações.

Afora isso, deve-se também observar que as corporações desencadearam o aparecimento de verdadeiras cidades globais ou grandes metrópoles, “onde estão as sedes das empresas ‘que atuam como centros de gestão econômica e territorial de amplas áreas do globo” (Corrêa, 2004, 213). Conseqüentemente, a metrópole torna-se palco de estréia e difusão das metamorfoses processadas pela globalização, “bem como o lugar de onde se vê, de forma privilegiada, o mundo urbano” (CARLOS, 2004, p. 69).

Entre as transformações no processo em curso, apontamos apenas algumas relacionando-as ao espaço e a globalização. Pois, o tema central de nossas discussões e reflexões será a categoria "lugar", inserida no processo de globalização, numa sociedade multicultural. Porém, antes de adentrarmos nas reflexões, faz-se necessário desvelar o espaço onde essas transformações se expressam de forma mais visível, que é denominada de metrópole. "É na metrópole que assume a função de comando e expansão dos processos transformadores" (Idib.).

Salientamos que as transformações em curso, no momento atual do capitalismo, não atingem a metrópole como um todo. Existem espaços dentro da metrópole que resistem às transformações da globalização. Deste modo, o “lugar” traduz uma dimensão das mais importantes perante o processo de globalização, que tende a homogeneizar gostos, costumes, tradições, línguas e formas de consumo. Acreditamos que o “lugar” possa a vir a ser um poderoso foco de resistência a essa globalização perversa. Porém o “lugar” entendido como:

[...] porção do espaço apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores, é o bairro, é a praça, é a rua, e nesse sentido poderíamos afirmar que não seria jamais a metrópole ou mesmo a cidade lato sensu a menos que seja a pequena vila ou cidade – vivida/conhecida/ reconhecida em todos os cantos (CARLOS,1996, p. 20).

Ainda de acordo com a autora, o “lugar” constitui-se a base da reprodução da vida podendo ser entendido pela tríade habitante-identidade-lugar, significando dizer que o lugar dá-se no plano do vivido e que reproduziria o conhecido-reconhecido, ou seja, o lugar traduz a vida em todas as dimensões.

Paulo Freire quando relembrava fatos de sua infância, de seu trabalho no Brasil e no exterior, se reportava aos “lugares” demonstrando a possibilidade de diálogo crítico entre homens e mulheres mediado pelo mundo, valorizando respeitosamente os saberes de experiência feitos.

Por outro lado, a metrópole, não pode ser entendida como “lugar” uma vez que ela só pode ser vivida parcialmente, diferentemente do bairro como espaço imediato do vivido, das relações cotidianas mais finas, das relações de vizinhança, de ser conhecido e reconhecido, o ir às compras, o caminhar, das brincadeiras, do jogo de bola, entre outros, que permitem o aprofundamento de laços de identidade, habitante-habitante, habitante-lugar.

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No atual contexto em que a nova ordem tende a alcançar os espaços, pode-se, todavia, imaginar outros cenários onde, espaços comandados pela globalização encontrem enclaves de resistência, encontrem “lugares” em que haja a realização plena da vida9, e que esses “lugares” aumentem sua capacidade de servir à plenitude dos seres humanos (SANTOS, 2001, p. 112). Neste sentido, as possibilidades de resistência e transformação dependem de soluções a serem buscadas localmente. Nisso, o papel do “lugar” não apenas traduz um quadro de vida, mas um espaço vivido, o que permite a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e o futuro.

Uma das tendências do contexto atual apontada por Santos é a produção da carência e da escassez, uma vez que uma parcela considerável da sociedade não tem acesso às coisas, aos serviços, aos produtos. Esta experiência de carência e escassez constitui um instrumento primordial na percepção da situação de cada um e da coletividade, possibilitando o conhecimento de sua situação concreta e de seu espaço vivido “lugar”, permitindo uma tomada de consciência (opus cit. p. 131).

Neste sentido, o pensamento freireano nos fornece categorias importantes para serem incorporadas na resistência contra essa globalização excludente, e uma dessas categorias é o processo de conscientização. No entanto, segundo Freire (1981), a tomada de consciência não é ainda a conscientização, porque a conscientização pressupõe o desenvolvimento crítico e contínuo da tomada de consciência. A conscientização em Freire, implica em ultrapassar a esfera espontânea de apreensão da realidade, para atingir a esfera crítica da realidade.

Para que o processo de conscientização se desenvolva, faz-se necessário uma aproximação da realidade, do espaço vivido “lugares”, para que os sujeitos possam objetivar sua realidade, e posteriormente, desvelar outras realidades em escalas maiores: regional, nacional e global. Portanto, a condição básica para o processo de conscientização é que os homens e mulheres se percebam como seres existentes no mundo e com o mundo.

Reafirma-se que um dos aspectos mais importante no processo conscientizador é o conhecimento crítico da realidade que não pode ser aprendido e apreendido como algo que é, estático mas como algo que está sendo, num processo contínuo e dinâmico. Sendo assim, o processo de conscientização se concretiza na ação e reflexão, no que Paulo Freire chama de “Práxis”. Neste sentido, a ação e reflexão possibilitam o ato de denunciar as situações opressoras ou desumanizantes e anunciar uma situação humanizadora, “implicando que os homens assumam o papel de sujeitos históricos que fazem e refazem o mundo” (FREIRE, 1980).

Outro aspecto importante na resistência contra o processo em curso está na cultura popular, na diversidade cultural encontrada nos mais diversos lugares, que se traduz em enclaves importantes diante de uma cultura de massas, que busca homogeneizar e impor-se sobre a cultura popular. No entanto, essa cultura de massas é conduzida por um mercado cego, indiferente ao patrimônio cultural dos lugares e vai expandindo-se, de formas variadas, com maior ou menor intensidade aqui e ali. Essa expansão que ora se apresenta mais ou menos eficaz em certos lugares e sociedades jamais é completa, pois encontra resistência da cultura preexistente (SANTOS, 2001, p. 143-144).

9 Lugares em que haja mais equidade social.

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A cultura popular, enquanto produto histórico e social, abre perspectiva para fundamentar uma tomada de consciência através de sua materialização espacial. Nesta direção, abrem-se novas formas de relação entre o “lugar” e os sujeitos. Os homens e mulheres através do seu corpo, de sua criação, de sua cultura, de seus sentimentos e sua subjetividade constroem e usam os “lugares”. De tal maneira que o processo de apropriação do “lugar” ganha dimensões mais amplas através das relações vividas e pelo uso deste “lugar”. Assim, a relação entre o “lugar” e os sujeitos expressa uma identidade entre as pessoas no e com o “lugar”, possibilitando enclaves espaciais de resistência através dos “lugares”. São nestes “lugares” em que as culturas populares expressam seus valores e tradições, constituem-se palco de resistência no processo de homogeneização de costumes e culturas.

Reafirma-se que para existir estes enclaves de resistência e para que possam expandir-se, conectar-se a outros lugares faz-se necessário que o processo de conscientização emerja na coletividade. Que homens e mulheres busquem, a partir da ação-reflexão-ação, superar as “situações-limites”, transformando suas realidades através de organizações, associações, projetos comunitários, políticos ou outros. Importante é que busquem coletivamente, pelo diálogo, que idéias aflorem e possam expandir-se.

CRIATIVIDADE E CONSCIENTIZAÇÃO10

Neste cenário de discussão, em que se pretende refletir avaliação, lugar e criatividade, é interesse comum identificar aspectos que nos sejam próximos a partir do pensamento freireano e das interpretações que cada um e uma do Grupo de Estudo faz. Nesta direção, o tema ‘criatividade e conscientização’ coube a mim. Motivo pelo qual passo a intercalar a fala numa linguagem que tanto expressa minha leitura como a leitura que se mistura quando se ousa pensar freireanamente. Assim, aquilo que falo, mesmo que esteja diretamente articulado à minha individualidade, minha fala já não expressa minha individualidade em seu isolamento, mas, diferentemente, se assume num coletivo do qual faço parte.

Muito provavelmente a discussão em torno de criatividade e conscientização, sob olhar freireano, tenha nesta primeira reflexão, um dos pontos de orientação ao exercício de desvelamento de seus significados a partir de Paulo Freire. Tanto a criatividade como a conscientização apresentam-se, assim pensando, inseridas na existência humana. Conseqüentemente, criatividade e conscientização devem ser compreendidas a partir da diversidade de culturas que circunda as, também, diversificadas relações humanas. Compreensões estas que nos conduzem ao entendimento do que é da natureza e da cultura humana.

Como já mencionado anteriormente, o homem diferencia-se dos outros animais pela sua condição ontológica de ser mais, coletivamente mais. Diferencia-se pela sua condição multidimensional de temporalidade, de criticidade e de conseqüência, tal como nos alerta Freire (1967) quando delimita sua compreensão de homem no e com o mundo. É deste conjunto de elementos desencadeados pela subjetividade, própria aos humanos, que criatividade e conscientização se fazem dinamicamente através das relações construídas entre os homens em seu próprio tempo.

10 Elaborado por Agostinho da Silva Rosas, com a contribuição do Grupo de Estudo.

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Criatividade e conscientização, desta maneira, apresentam-se intimamente articuladas ao tempo presente - que não é apenas reflexo do agora, mas detêm, pela historicidade do sujeito ao criar e exercer sua consciência, informações provenientes do passado e se articulam, pela subjetividade do sujeito, a uma condição de projeção (que não é adivinhação, mas conseqüência da produção humana), num tempo em que se fará futuro -, à condição humana de admirar ao extrair da realidade os aspectos significativos. A criatividade, assim posta, é cultura. Conscientização é, igualmente, cultura.

Ambas advêm da produção humana. Exigem, como escreve Freire (1980), educação. Uma educação libertadora, centrada no princípio da humanização do homem, na sua vocação ontológica de amar, de ser amado. Conscientização, nas palavras de Freire, “é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade” (FREIRE, 1980, p. 25). E continua: “implica, pois, que ultrapassemos a esfera de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica” (opus cit. p. 26). Conscientização, assim, indica a apropriação que os sujeitos fazem de sua realidade, através da consciência, convergindo em harmonia com o processo de construção destes mesmos sujeitos. O agir criativo vai emergir neste mesmo processo.

Em Paulo Freire, o agir criativo/recriativo, tal como conscientização, tornam-se ‘quefazeres’ humanos na medida em que se cruzam as ‘situações limites’ com os ‘inéditos viáveis’ de cada um. Criatividade e conscientização estão desta maneira, condicionadas às decisões que os sujeitos (‘radicais’) elaboram. Portanto, ambas emergem de uma atitude política assumida pelos sujeitos que conscientemente, agem. Ambas fazem parte das utopias11, da diversidade de histórias e culturas implícitas no agir humano, nas relações construídas. Exige, assim, atitude autêntica de todos os que, ao criar/recriar e decidir, atuam comprometidos com a libertação dos oprimidos e de sua própria libertação. Exige reconhecimento de sua condição de transcendência, de inacabamento.

Portanto, criatividade e conscientização em Freire, é um convite à reflexão acerca da transformação social rumo às relações humanas socialmente amorosa, coletivamente democrática.

PALAVRAS INCONCLUSAS...

Atentos ao propósito que instigou este ensaio, ‘dialogar com Freire e os integrantes do INODEP acerca da conscientização como categoria ontológica do humano, perpassando as culturas num desafio à multiculturalidade’, deparamo-nos com nossa própria diversidade de culturas, na medida em que nos reconhecemos como protagonistas de nossa história e produção.

Em nossa inconclusão, vamos nos confrontar com o debate consciência/conscientização, bem como diversidade cultural/multiculturalização. Neste sentido, tanto as palavras que expressam a fala coletiva do Grupo de Estudo, como aquelas caracterizadas pelos subtemas, apontam

11 Diz-nos Freire, “utopia para mim não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão a utopia é também um compromisso histórico. A utopia exige o conhecimento crítico. É um ato de conhecimento” (FREIRE, 1980, p. 27-8).

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conscientização e multiculturalização como constituintes das utopias que somos capazes de elaborar. Semelhantemente, vamos identificar consciência e diversidade cultural condicionadas à nossa competência criativa e de decisão. Assim, conscientização que se refere à condição humana de enfrentamento no e com o mundo, externa relações dialéticas “baseadas na relação consciência-mundo” (FREIRE, 1980, 27): “[...] exige que os homens criem sua existência com um material que a vida lhes oferece...” (opus cit. p. 26).

Neste contexto, avaliação, lugar e criatividade convergem na direção do entendimento dos ‘quefazeres’ produzidos a partir do ‘inédito viável’, conseqüência das reflexões desenvolvidas no coletivo e escritas na individualidade. Desta maneira, conscientização exalta significados articulados à diversidade da linguagem, através da compreensão da leitura das palavras-mundo, palavras-ação que cada um e uma de nós expressam. Portanto, ‘conscientização como uma linguagem diversificada’ demanda atitude política frente à diversidade cultural, às utopias decorrentes da multiculturalização.

REFERÊNCIAS

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O DIÁLOGO COMO SUPERAÇÃO DA FALA INTERDITADA NA SOCIEDADE MULTICULTURAL

Agostinho Rosas1; André Felipe de A. Fell; Antônio de Pádua Santos; Arlindo Viana; Argentina Rosas; Letícia Rameh; Magadã Lira; Maria Lúcia Cavalcanti da Silva; Maria

Nayde dos Santos Lima; Nilke Silvania Pizziolo; Rubem Eduardo da Silva. RESUMO

Tem-se utilizado, nos últimos anos, uma diversidade de denominações para representar o momento histórico nomeado como “pós-industrial”, caracterizado pelo “novo paradigma técnico-econômico” e tendo como base as tecnologias de informação e comunicação: sociedade de redes, sociedade do conhecimento, sociedade da informação, etc. É nesta sociedade da informação em que “muda a própria fonte da criação de riqueza e os fatores determinantes da produção. O capital e o trabalho, as variáveis básicas da sociedade industrial, são substituídas pela informação e o conhecimento” (KUMAR, 1997 p. 24). Mas o autor adverte: “a sociedade de informação não evoluiu de maneira neutra, isenta de juízo de valor. A T.I., como todas as tecnologias, foi escolhida e moldada, de conformidade com certos e determinados interesses sociais e políticos” (KUMAR, 1997 p. 47).

INTRODUÇÃO

Nesse contexto, nunca antes na história da humanidade se teve a possibilidade, sem precedentes, de expansão do conhecimento que proporcione condições mais favoráveis de desenvolvimento autônomo; paradoxalmente, entretanto, a um momento em que a educação parece perder seu compromisso histórico com a construção do conhecimento de interesse coletivo da humanidade, aprisionando-se à seletividade de cursos utilitaristas, sistematicamente ditados / ordenados segundo a demanda do mercado neoliberal. Demo (2000) completa: “Com efeito, o conhecimento mais inovador é provocado pelo mercado, que necessita do ímpeto desconstrutivo do conhecimento, particularmente do conhecimento dito pós-moderno, colocando a inovação mercantilizada como razão maior de ser”.

Além disso, muitos acreditam que a relativa facilidade de acesso a um universo de informações dos mais diversos campos do saber humano, hoje, é condição mais do que suficiente para a construção do sujeito histórico através de um conhecimento emancipatório e transformador. Entenda-se aqui, sujeito histórico, de um modo geral, o ser humano conhecedor das resistências, conflitos e contradições da sociedade contemporânea; consciente das diversas formas de dominação social, cultural e política que constrangem a possibilidade de mudança; e que através de um esforço de emancipação e eliminação das causas de alienação e dominação, traz à tona e denuncia as condições restritivas do status quo.

A partir do exposto, o Grupo de Estudo Descobrindo Paulo Freire através de sua obra, nas suas reflexões semanais, questiona o discurso histórico de que o determinismo tecnológico é a força modeladora da sociedade, por conseguinte, o seu principal agente de transformação e progresso. Não negamos a contribuição da tecnologia da informação (T.I.) nas relações sociais, todavia, atribuímos ao diálogo, enquanto categoria necessária à educação libertadora e

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constituição do sujeito histórico, um papel de real possibilidade de transformação social em que o ser humano se encontra envolvido. T.I. NA EDUCAÇÃO: A RELAÇÃO HOMEM-MÁQUINA NO PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM

A informática só começou a ser utilizada na educação na década de 70, a partir do microcomputador, o qual foi usado para fins administrativos, evoluindo gradativamente para fins pedagógicos à medida que a linguagem de computação se aproximava da linguagem humana. A partir dos anos 80, o tema informática na educação foi bastante debatido uma vez que questões graves foram levantadas como a influência deletéria da tecnologia sobre a cognição, ênfase no pensamento lógico-simbólico e algoritmo em detrimento da criatividade, etc.

Atualmente, há uma vasta possibilidade de aplicação das novas tecnologias da informação e comunicação ao campo da educação: educação à distância, os softwares educacionais, as bibliotecas digitais, os Programas de TBT (Treinamento Baseado em Tecnologia), grupos de “bate-papo”, etc. Mas será que todas estas alternativas facilitam o processo de ensino-aprendizagem? Segundo Piaget, o aluno aprende quando elabora respostas compatíveis com o seu nível de desenvolvimento, relacionando novos conceitos ou ações aos previamente assimilados. O aluno deve ser agente do seu próprio conhecimento, aprendendo por fazer, não receber instruções acabadas que por vezes estabelecem a dicotomia entre o que o aluno já aprendeu e o novo conhecimento. Acontece, lamentavelmente, que os “produtos” educacionais disponíveis no mercado atual, apresentam pouca interatividade, irrisória inovação e escassa criatividade, direcionando o processo ensino-aprendizagem mais para a “domesticação” à determinada informação do que propriamente para a aprendizagem efetiva, e muito menos à construção do sujeito histórico crítico. Ressalta-se ainda, que a elaboração destas tecnologias educacionais é feita, na maioria das vezes, por técnicos que não entendem de educação, o que justifica a baixa qualidade didática dos pacotes pedagógicos impostos pelas escolas e empresas como potencialmente revolucionadores do ensino.

Questiona-se até que ponto a tecnologia educacional não é mera reprodutora / mantenedora da educação bancária, apenas com uma retórica e roupagem ditas modernas que objetivam essencialmente camuflar ainda mais a opressão. Por exemplo, fala-se muito em “inclusão digital” das camadas populares marginalizadas como condição de cidadania na sociedade da informação. Acontece que, segundo as palavras de Freire (1987, p.61): “[...] os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram fora de. Sempre estiveram dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para os outros”. Sua solução, pois, não está em “integrar-se”, em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la para que possam fazer-se “seres para si””.

Kerr (1996) aponta uma suscetibilidade na sociedade em aceitar a idéia de que a tecnologia é inerentemente boa, fruto de um conhecimento neutro, e que “se a tecnologia torna possível de se fazer alguma coisa, então, esta coisa deve ser feita”. No contexto educacional, não é suficiente apenas equipar as instituições de ensino com modernos recursos tecnológicos, e negligenciar a conscientização e treinamento docente para a tecnologia educacional. Tal negligência pode levar a situações onde muitas escolas possuem entulhos empoeirados de equipamentos de informática em completa ociosidade. Gomes (1999), em conferência, menciona as dificuldades advindas da absorção das novas tecnologias pelo modelo brasileiro, destacando a formação de recursos humanos na escola. São elas:

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Inexistência de um componente curricular tratando das tecnologias de informação e de comunicação, nos cursos de formação de professores para as séries iniciais. Na educação continuada, uma visão equivocada de que deve ser enfatizada uma preparação técnica, em detrimento da exploração pedagógica das tecnologias de informação e comunicação. Ausência de estímulos e orientação para atitudes de empreendedorismo.

No panorama da sociedade de informação, apresenta-se um outro aspecto da influência tecnológica no processo ensino-aprendizagem que é de ordem espaço-temporal. De forma predominante na sociedade industrial, a aquisição de conhecimentos teóricos acontecia gradativamente até um determinado grau de escolarização do indivíduo, obrigado a se deslocar fisicamente até a instituição designada para a tarefa de ensinar e aprender. Era pressuposto aceito que completando o “tempo de escola”, a pessoa possuía conhecimentos e informações suficientes para iniciar-se em alguma profissão perene.

“Na atualidade, o que se desloca é a informação”, diz Virilio (1993). E este deslocamento acontece em dois sentidos: o primeiro, o da espacialidade física, em tempo real, sendo acessada através das tecnologias de informação e comunicação de qualquer localidade geográfica do mundo. O segundo, pela sua alteração constante e veloz, sua transformação temporal intensiva e fugaz. Daí se afirmar a impossibilidade de se considerar a pessoa totalmente formada, independente do grau de escolarização alcançado.

EFEITOS DA UTILIZAÇÃO DA T.I. NO DESENVOLVIMENTO SOCIAL DO INDIVÍDUO

Na interação com uma tecnologia da informação como é o computador, estão em jogo diversos aspectos do funcionamento cognitivo, como a criação de outras formas de relação espaço-temporal; o gerenciamento da memória; a forma de representação do conhecimento e sua capacidade de modelar o real (BITTENCOURT, 1998). Por isso, o uso da T.I. na educação, de um modo geral, tem gerado dois grupos de discussão: o primeiro que a considera como instrumento de atuação pedagógica, ou seja, mais uma ferramenta disponível ao processo ensino-aprendizagem, não necessariamente se apresentando como a única e a indispensável. O segundo grupo, a preconiza como protagonista do ensino, o que significa dizer, a tecnologia educacional pode substituir a função do professor nos anos de formação do indivíduo. Antes de se considerar algumas questões sobre os efeitos do uso da T.I. no desenvolvimento social do indivíduo, vale o esforço de entender o que é a tecnologia educacional. Ely (1997) define tecnologia educacional como teoria e prática do projeto, desenvolvimento, utilização, administração e evolução dos processos e recursos para a aprendizagem. Não se pode confundir o uso da T.I. no processo educacional, com o ensino de computação, simplesmente. “O uso da informática é uma das facetas do uso da T.I. na educação e esta deve ser percebida no e para o ensino e, de modo geral, para a educação” (ARGENTA & BRITO, 1995, p.5).

Há sérias questões a serem consideradas no que diz respeito ao desenvolvimento das aptidões sociais e das competências emocionais do educando. Especialmente nos anos de formação do indivíduo, o inter-relacionamento é decisivo para que as habilidades sociais e emocionais sejam desenvolvidas; entretanto, o incentivo à atuação individualizada / isolada diante do computador, minimiza drasticamente qualquer possibilidade de estabelecer contato pessoal com outro. Acrescente-se a isso o poder deletério e incisivo da mídia em pregar o discurso de

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“moderno” ao uso indiscriminado da informática na educação, sem considerar os potenciais problemas de ordem sócio-cognitivos. Como conseqüência, é imperativa uma avaliação crítica do quão nocivo ao desenvolvimento de competências emocionais pode ser esta utilização indiscriminada da informática na educação; devendo a T.I. ser considerada como ferramenta a cumprir a tarefa de agregar valor ao trabalho docente e às relações pessoais, e não substituí-los por recursos impessoais e automatizados. Goleman (1998) completa: “O ensino com o auxílio de computador, um recurso muito em moda no treinamento hoje em dia, tem limitações quando se trata de proporcionar prática e competência emocional. Embora essa modalidade seja promissora em termos de ensino individualizado, fixação de ritmo próprio, oportunidades em caráter privado de ensaio e prática, comentário imediato sobre o progresso obtido e ajuda retificadora, e apresente outras vantagens análogas, as técnicas que usam o auxílio de computador geralmente são mais adequadas para o treinamento de habilidades técnicas do que para o desenvolvimento de capacidades pessoais e interpessoais”.

Adicionalmente, é preciso considerar a faixa etária e o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, objetivando estabelecer parâmetros para a introdução de recursos informatizados na educação. Setzer (1999), Professor Titular de Ciência da Computação do Instituto de Matemática e Estatística da USP, é contrário ao uso da informática na infância, particularmente no processo educacional, porque esta utilização estaria precocemente estimulando um raciocínio puramente abstrato. O professor justifica: “Porque o computador força o pensamento lógico-simbólico e algoritmo. Esse é um pensamento muito particular que a gente até desejaria que todos os adultos tivessem a capacidade de exercer – e eu acho que nem todos têm -, mas que é absolutamente inapropriado para crianças e jovens antes dos 15, 16 anos. Porque a gente espera que uma criança pense mais qualitativa do que formal e quantitativa, como o computador exige [...]”.

NOVAS TECNOLOGIAS, MULTICULTURALIDADE E EDUCAÇÃO

O mundo aparenta não ter mais fronteiras, pois vivemos todos num “caldeirão” multicultural. Conviver com a diversidade parece ser um dos grandes desafios no século 21. Num mundo tecnológico de hoje, as fronteiras que existiam entre os povos, tornaram praticamente inexistentes por causa da possibilidade de comunicação e interação entre os mesmos. Também a possibilidade de confrontos, conflitos, mais rápida de atingir as pessoas e provocar debates sobre as diferenças cresceu significativamente. Se a Internet e outras T.I.s e comunicação podem aproximar as diversas nações, qual então não seria a sua extraordinária capacidade de difundir culturas e auxiliar na diminuição de preconceitos, promovendo o diálogo entre as mesmas?

A possibilidade de comunidades diferentes, que falam línguas diferentes e que possuem religião, costumes e etnias diferentes, estarem se conhecendo e promovendo a desconstrução e construção de novos saberes, constitui a grande característica da pós-modernidade e efeito da globalização.

Existe, porém, em torno dessa dinâmica, a presença forte do poder político / social que exercem essas novas tecnologias sobre a população. Como retratamos na introdução desse artigo, as novas tecnologias não se apresentam neutras, estão sendo moldadas e construídas de acordo com determinados interesses. É nessa perspectiva que Freire (2000, p.101) relata seus pensamentos em defesa da compreensão das tecnologias: “É tão urgente, quanto necessária, a compreensão correta da tecnologia, a que recusa entendê-la como obra diabólica ameaçando

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sempre os seres humanos ou a que perfila como constantemente a serviço de seu bem-estar”.

Para Freire, a compreensão crítica da tecnologia em fusão com a educação que precisamos deve estar a serviço da população como ferramenta para a vocação ontológica dos homens e mulheres. Pressupõe também uma rigorosa vigilância ética sobre ela.

Pensar sobre essas possibilidades é um grande passo a dar no sentido de uma compreensão crítica que venha se fazer na mente de cada um, principalmente para quem está envolvido com educação. O alongamento do pensar por quê, para quê, para quem as novas tecnologias estão a favor é exercício do filosofar que deve trazer em seu bojo a indignação, o espanto diante do mundo e dos valores perpetuados nele quando voltados apenas para o mercado.

Nessa perspectiva pedagógica, não se deve pensar em educação ou formação técnico-científica sem deixar de pensar para quê está sendo direcionada, com que objetivo, em favor ou contra quem está sendo dimensionada. Segundo Freire, estas seriam exigências fundamentais para se pensar em uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo, necessárias ao pensamento crítico dessa sociedade multicultural.

EDUCAÇÃO LIBERTADORA-PROBLEMATIZADORA VERSUS EDUCAÇÃO BANCÁRIA

A análise da evolução do processo educacional e a possibilidade de relação com a tecnologia da informação para a emancipação do sujeito histórico torna-se mais compreensível quando se apresenta um referencial histórico das principais perspectivas educacionais facilitadoras ou não desta relação. O Quadro 1 apresenta as características das três principais concepções no século vinte.

Quadro 1 – As principais perspectivas educacionais no século XX

PERSPECTIVA CLÁSSICA

PERSPECTIVA HUMANISTA

PERSPECTIVA MODERNA

* Adaptação dos alunos aos objetivos da escola

* Adaptação da escola às necessidades dos alunos

* Harmonização entre as necessidades dos alunos e

os valores sociais * Certeza * Dúvida * Probabilidade

* Competição * Cooperação * Crescimento * Autocracia * Laissez-faire * Participação * Disciplina * Liberdade * Responsabilidade

* Reprodução * Descoberta * Criatividade * Orientação para o conteúdo * Orientação para o

método * Orientação para a

solução de problemas * Ênfase no ensino Ênfase na aprendizagem * Ênfase no processo

ensino-aprendizagem Fonte: adaptado de Gil (1994, p.27)

A experiência tem mostrado a predominância ainda da perspectiva educacional clássica, mesmo diante das potencialidades da T.I. na construção de um saber crítico, base para a formação do sujeito histórico. E esta perspectiva voltada para a reprodução; o ‘como’, ao contrário do ‘por que’, garante o exercício continuado do poder mantenedor do status quo, o

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qual dispõe dos meios de comunicação de massa e um sistema educacional que perpetuando o pensamento dominante, o faz por um processo de condicionamento social cada vez mais implícito que explícito – mais aceito como “natural” que aceito por convencimento, justamente para obter a submissão, ainda que diante da prevalência de desigualdades em suas diversas matizes. “Por isso, mais eficiente que impedir a educação formal do povo, privando-o inclusive do acesso mais elementar – a alfabetização -, é implantar um sistema de ensino e de dominação da mídia que seja capaz de reproduzir as estruturas sociais desejadas” (SILVEIRA, 2000, p.82).

Na educação bancária, presente na perspectiva educacional clássica, o educador é o único sujeito que sabe, que educa, que pensa, que diz a palavra, que disciplina, que opta e prescreve sua opção, que atua, que interfere na escolha de conteúdos programáticos, que identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, portanto é único sujeito do processo. O educando, neste sentido, é objeto do processo que tem de adaptar-se e acomodar-se às determinações do educador; o que é educado; o que não sabe; o que não pensa; o que escuta docilmente; o disciplinado; o que segue as prescrições; o que tem a ilusão que atua. Com estas características da educação bancária é impraticável o diálogo. Freire (1987), a esse respeito, comenta: “Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos recebidos” (60). A palavra torna-se verbosidade, veículo de alienação. Transita numa esfera opressora que conduz o homem à condição de “ser menos”. Como suposto dono da verdade (que já não é verdadeira, mas fanática), faz comunicados que informam a maneira de agir e pensar de outros homens.

Numa perspectiva de educação libertadora, não faz parte da vocação ontológica humana repetir palavras comunicadas por outros (opressores), porque se assim o homem fizesse, perderia sua condição radical e histórica. De nada se diferenciaria de outros animais. A pronúncia da palavra seria oca, desprovida de significado próprio. Domesticado, o homem terminaria por coisificar-se e coisificar outros homens. Para Freire, é através da palavra que o homem se faz homem. Ao dizer a palavra, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana. Neste contexto, ao pronunciar a palavra, o homem comunica sua condição situacional, seu momento na história. Aprende a dizer a sua palavra, que é, para Freire, criadora de cultura, consciência reflexiva da cultura, na medida em que se faz pela reconstrução crítica do mundo humano, pela abertura de novos caminhos.

De acordo com Fiori (FREIRE, 1987, p. 20), a palavra, em Freire, “é entendida como palavra e ação; não é termo que assimila arbitrariamente um pensamento que, por sua vez, discorre separado da existência. É significação produzida pela práxis, palavra cuja discursividade flui da história [...]. Palavra que diz e transforma o mundo”. Continua Fiori, “a palavra viva é diálogo” (Id.Ib). A palavra pronunciada com autenticidade, significativamente contextualizada, é condição diferenciadora do homem em libertação daquele que, noutro sentido, aprisiona-se, aprisionando outros homens.

Esta interpretação de Fiori pode ser reforçada pelas palavras de Freire quando, na introdução de “A dialogicidade – essência da educação como prática da liberdade”, afirma que “não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo” (opus cit., p. 77). Neste contexto, a palavra verdadeira, como elemento transformador do mundo, apresenta-se formada por duas dimensões radicalmente solidárias, constitutivas da práxis: ação e reflexão. O ato de privilegiar a reflexão, em detrimento da ação, leva a

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palavrório, verbalismo, blablablá porque conforme explica Freire “[...] não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação” (opus cit., p. 78). Já a ênfase exclusiva na ação, sacrificando a reflexão, converte a palavra em ativismo, ou seja, ação pela ação. Em qualquer uma das duas possibilidades citadas, geram-se formas inautênticas de existir, de pensar; negando a práxis verdadeira e impedindo o diálogo.

Diálogo que, na perspectiva freireana, é uma exigência existencial, através dele os homens ganham significação enquanto homens; o diálogo é o encontro dos homens para o “ser mais”, mediatizados pelo mundo por meio da ação–reflexão. Freire (1987) confirma que dialogo é palavra verdadeira, é amor, é compromisso com a libertação do homem e do mundo. Para que exista realmente diálogo é fundamental amor, humildade, confiança, criticidade, esperança, solidariedade, fé, comunicação, e este só será possível na educação libertadora ou problematizadora.

Nesta concepção de educação libertadora-problematizadora o homem é “ser de relações”, por isso mesmo criativo, disponível ao diálogo; um ser que, pela sua vocação ontológica, busca sempre humanizar-se, tendo consciência de que é um ser inacabado, portanto inconcluso. A concepção freireana de educação dialógica, problematizadora, conscientizadora e libertadora, é manifesta através das citações: “Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens” (FREIRE, 1987, p. 79) [...] “Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (80) [...] “Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em comprometer-se com a sua causa. A causa de libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é dialógico” (80).

Acrescentando: “ao fundar-se no amor, na humildade, na fé dos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que ‘confiança’ de um pólo no outro é conseqüência óbvia” (81) [...] “Não existe, tampouco, diálogo sem esperança” (82). A esperança está na raiz da inconclusão dos homens da qual se movem em permanente busca. Concluindo-se que os valores afetivos do amor, da humildade, da fé, da confiança, do comportamento e da esperança são componentes imprescindíveis à educação dialógica.

CONFRONTOS CULTURAIS COMO DESAFIO AO DIÁLOGO

Esquecendo do que é humano, deixando de ser humanizado, os homens e as mulheres não acolhem as diferenças, não conseguem equilibrar seus pontos de vista uma vez que estes estão de acordo com a lógica perpetuada pelo neoliberalismo. “O começo do caos, o princípio da desordem no mundo, é a falta de compreensão sobre o diferente”, afirma a filósofa Anita Novinsky, chefe do Laboratório de Estudos sobre a Intolerância da Universidade de São Paulo. Portanto, a multiculturalidade, enquanto possibilidade de cada um exercer livremente as suas diferenças (lingüísticas, políticas, culturais, econômicas, religiosas, etc.), pressupõe a presença da tolerância.

Para toda tolerância, há uma significação daquilo que é tolerável para cada um. Freire não nega que nessa dinâmica do diálogo com o diferente, na tentativa de compreensão do outro, possa vir a existir negatividades, conflitos, contradições e tensões. Ele não desconhece que seu sonho de uma relação dialógica entre as diferentes culturas não consegue eliminar essas tensões tão presentes nas relações. Ele considera que essas tensões são de natureza divergente, podem surgir de acordo com a forma como se encara os conflitos; dessa forma, encontrando o

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“inacabamento” que nos explica Freire (1992: 156):

A tensão necessária, permanente, entre as culturas na multiculturalidade é de natureza diferente. É a tensão a que se expõe por ser diferentes, nas relações democráticas em que se promovem. É a tensão de que não podem fugir por se acharem construindo, criando, produzindo a cada passo a própria multiculturalidade que jamais estará pronta e acabada. A tensão, neste caso, portanto, é a do inacabamento que se assume como razão de ser da própria procura e de conflitos não antagônicos e não a criada pelo medo, pela prepotência, pelo “cansaço existencial”, pela “anestesia histórica” ou pela vingança que explode, pela desesperação ante a injustiça que parece perpetuar-se.

Dessa forma, duas idéias de Freire aparecem na sua teoria de multiculturalidade, segundo Souza (2002): “a de inacabamento de sua construção e a de tensão não antagônica entre as culturas”. Percebe-se que a dificuldade da construção do diálogo não se dá apenas pela justaposição, dominação de uma cultura sobre a outra, de uma sociedade sobre a outra, que vence pelo medo. Freire retrata uma situação diferente desta, em que essa possibilidade de confronto, que ele considera necessário nas relações, e que para nós aparenta ser uma dificuldade, acontece porque está relacionada com situações de construção, de criação, de produção entre os homens e mulheres e por isso mesmo inacabada, é geradora de tensões.

Nessa perspectiva, Freire anuncia a necessidade de uma educação voltada para a não “domesticação”, como aconteceu com nossos índios brasileiros pelos jesuítas, exemplo de justaposição de culturas. Fala da tentativa de instalação de atitudes favoráveis ao diálogo, através de “um clima educativo” (SOUZA, 2002). O diálogo, por sua função, não pode encerrar a vontade de um sobre o outro, a fala de outrem sobre alguém, sobrepor a sua cultura sobre qualquer outra.

No exercício dessa atitude dialogal, através do clima educativo, estaríamos promovendo a democracia autêntica, pois “exigem a reflexão, o debate, a criticidade, o discernimento, a tomada de decisões” (SOUZA, 2002), que são formas construtivas em busca do avanço do processo democrático.

Portanto, lutar sim por essas atitudes, leva a um clima mais agradável de convivência, de tolerância raciocinada. Ao contrário, lutar contra o diálogo, que é o mesmo que lutar contra a democracia, “é fazê-la irracional”.

Freire então nos sugere sermos mais corajosos, que é o que o contexto da pós-modernidade nos exige, principalmente em termos educacionais. A exigência está para o trabalho que devemos colocar como maior importância e não deve ser esquecido: criar novas situações que venham perpetuar as atitudes de diálogo.

AÇÃO DIALÓGICA E AS CONOTAÇÕES DE PLURALIDADE, TRANSCENDÊNCIA, CRITICIDADE, CONSEQÜÊNCIA E TEMPORALIDADE

A análise e discussão acerca da ação dialógica, em Paulo Freire, nos conduz a um retorno à Educação Como Prática da Liberdade (1967), na medida em que delimita, nesta obra, o conceito de homem e mundo. Para Freire, numa perspectiva antropológico-filosófica, o homem é ser de relações que ultrapassa a esfera dos contatos; relações estas que se encontram

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influenciadas pelas conotações de pluralidade, transcendência, criticidade, conseqüência e temporalidade com as quais diferencia-se dos outros animais. Deste modo, não basta estar no mundo, o que o levaria a esfera dos contatos, mas que esteja também com o mundo2, como sujeito ativo.

Por pluralidade, Freire (1967) compreende a ampla variedade de desafios com os quais o homem responde ao mundo. Estando no e com o mundo, o homem estabelece relações situadas pela diversidade de desafios emergentes do próprio homem, assim como dos próprios desafios. Como ser de relações elabora e re-elabora suas respostas. Ao responder, organiza-se as testando e agindo conscientemente. Neste contexto, a ação dialógica deve ser compreendida sob a condição de processo que se faz pelo reconhecimento consciente dos homens sobre a diversidade de características dos desafios emergentes, na e com a relação que criam e recriam. Deve-se ainda, ao reconhecimento de que “nas relações que o homem estabelece com o mundo há, por isso mesmo, uma pluralidade na própria singularidade” (FREIRE, 1967, p. 40).

Este processo, numa perspectiva libertadora, a que pretende Freire, não se dando na esfera dos contatos3, vai exigir dos homens reflexão na direção do que denominou tipo de “consciência transitiva crítica”. Uma consciência que ressalta a “educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracterizando pela profundidade na interpretação dos problemas” (FREIRE, 1967, p. 61). Neste sentido, a conotação de criticidade4 nos coloca diante da reflexão sobre a necessidade política e social de fazermos emergir atitudes contrárias ao sectarismo, agindo como homens radicais que optam crítica e amorosamente, sem impor sua opção. Homens críticos que dialogam sobre as diversidades das opções. A ação dialógica, neste contexto, é atitude que se contrapõe à domesticação / coisificação e que se faz pela educação entre homens em libertação. Entre homens que, assumindo sua condição crítica, transcende.

Com a conotação de transcendência, Freire identifica duas dimensões: a transitividade de sua consciência e a consciência que tem de sua condição de ser inacabado. Quanto à primeira, permite ao homem “auto-objetivar-se e, a partir daí, reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um eu de um não eu” (opus cit. p. 40). A segunda, perceber que a relação que os homens constroem “jamais será de dominação, domesticação, mas sempre de libertação” (Ibid), uma vez que o conceito de homem como ser de relação ultrapassa a esfera dos contatos, da domesticação. O homem existe como indivíduo em relação. Transcende, opta na interação com outros homens situados num contexto objetivo. Assim, comunica-se dialogando. Concernente a este paradigma pode-se dizer que a ação dialógica seja o meio pelo qual os homens emergem com atitudes ética, íntegra, amorosa, politicamente comprometida com o social. Existindo, o homem toma consciência das conseqüências de sua transcendência. Não age contra a humanização dos homens, pois isto levaria a sua própria destruição. Tomando consciência das conseqüências de suas ações, em diálogo, age criando e re-criando 2 “[...] entendemos que, para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, independente dele, possível de ser conhecida” (FREIRE, 1967, p. 39). 3 Na esfera dos contatos os homens tornam-se fanáticos na medida em que vive como sectário, uma consciência transitiva ingênua. Este tipo de consciência “se caracteriza pela sua simplicidade na interpretação dos problemas. Pela tendência a julgar que o tempo melhor foi o tempo passado. Pela subestimação do homem comum. Por uma forte inclinação ao gregarismo, característico da massificação. Pela impermeabilidade à investigação, a que corresponde a um gosto acentuado pelas explicações fabulosas. Pela fragilidade na argumentação. Por forte teor de emocionalidade. Pela prática não propriamente do diálogo, mas da polêmica” (opus.cit., p. 60-61). 4 “implica na apropriação crescente pelo homem de sua posição no contexto. Implica na sua inserção, na sua integração, na representação objetiva da realidade” (opus cit., p. 61).

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respostas aos desafios que elabora, ou aos que capta no mundo.

Com a conotação de temporalidade, Freire nos conduz à reflexão sobre o significado do tempo histórico humano. Diferentemente dos outros animais, o homem é o único que existe em um tempo multidimensional. Por esta mesma razão, tendo consciência de seu tempo (passado, presente e futuro) “lança-se o homem num domínio que lhe é exclusivo – o da História e o da Cultura”. Com isto, a ação dialógica só se dará entre homens radicais, entre sujeitos enraizados que interagem situados num tempo que constitui sua realidade consciente.

Dialogar, assim, é atitude que se define e delimita na e com a relação entre o homem e o mundo, o homem com outros homens. Exige autenticidade ao pronunciar a palavra. Neste sentido, comunica-se através dos contatos que faz. O homem, assim, relaciona-se conscientemente crítico através da elaboração de argumentos que lhes sejam verdadeiros, contudo, disponível à leitura interpretativa, por isso mesmo própria, da pronúncia de outros homens e mulheres.

AÇÃO DIALÓGICA E CONSCIENTIZAÇÃO

O homem como ser de relações é lançado à tarefa de criar e recriar o seu contexto histórico. Tal tarefa apresenta, como um dos elementos significativos de realização, o diálogo.

Este, como fenômeno humano e ato de criação, é o “encontro dos homens, mediatizados pelo mundo para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (FREIRE, 1987, p. 78). Assim, para Freire (1987), “o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significado enquanto homens”, (p. 79). O esforço dos sujeitos, pelo diálogo, por solidarizar o refletir e o agir de cada um, direciona-os ao mundo a ser transformado e humanizado.

A construção do conhecimento decorrente da criação, recriação dos homens e mulheres, dá-se pela ação dialógica e exige conscientização. Freire (1987), quando comenta acerca dos temas geradores e conteúdos programáticos no contexto da educação libertadora, faz referência a este processo dialético entre ação política e conscientização. Para ele, o papel do professor “não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a nossa”. Neste sentido, continua sua reflexão afirmando da necessidade de estarmos “convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer ‘bancária’ ou de pregar no deserto” (p. 87). Com isto, remete-nos à compreensão de que as atitudes de professor e alunos estejam integradas num contexto comum de aprendizagem. Através do diálogo, professor e alunos compartilham noções de mundo. Tomam consciência do mundo, de si e dos outros, em diálogo.

No entanto, Freire ao abordar a temática conscientização, analisa os vários tipos de consciências referindo-se ao estado de intransitividade e transitividade. Para ele, a consciência intransitiva consiste numa limitação que o homem apresenta em sua esfera de apreensão, ou seja, aquilo que foge ou transcende a sua esfera biologicamente vital ou de necessidades fisiológicas é de difícil apreensão e compreensão. O plano da vida é mais vegetativo que histórico. Para Freire (1980, p. 60), “[...] a intransitividade representa um quase

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incompromisso do homem com a existência. O discernimento se dificulta. Confundem-se as notas dos objetos e dos desafios do contorno e o homem se faz mágico, pela não-captação da causalidade autêntica”.

Noutra direção, ultrapassando a esfera do vital, o homem “se transitiva”. À medida que o homem consegue aumentar a sua habilidade de captação e de respostas aos desafios circundantes, ampliando o seu poder de diálogo não só com outro homem, mas também com o mundo, ele supera a esfera da intransitividade em direção à transitividade. De início, “predominantemente ingênuo”. Na consciência transitiva ingênua há uma simplificação na interpretação dos problemas; uma fragilidade na argumentação (fruto da tendência a explicações fabulosas e impermeabilidade à investigação). Há um forte teor de emocionalidade que pode levar à polêmica, mais adiante ao fanatismo.

Contudo, é apenas na esfera da consciência transitiva crítica que homens e mulheres conseguem agir com autenticidade e amorosidade. De acordo com Freire (1967, p. 61):

A transitividade crítica por outro lado, a que chegaríamos com uma educação dialogal e ativa, voltada para a responsabilidade social e política, se caracteriza pela profundidade na interpretação dos problemas. Pela substituição de explicações mágicas por princípios causais. Por procurar testar os “achados” e se dispor sempre a revisões. Por despir-se ao máximo de preconceitos na análise dos problemas e, na sua apreensão, esforçar-se por evitar deformações. Por negar a transferência de responsabilidade. Pela recusa a posições quietistas. Por segurança na argumentação. Pela prática do diálogo e não da polêmica.

Para nós, na medida em que nos adentramos nestas reflexões, vamos nos convencendo da necessidade de nos disponibilizarmos ao diálogo cujo emprego da palavra ultrapasse a esfera biológica da educação. Compreendemos que a conscientização, pela ação dialógica, passa não somente pelo processo de captação dos dados da realidade, mas também pela captação do seu significado causal autêntico. Seja no mundo da natureza, seja no mundo cultural. Com isto, vamos concordar com Freire (1967, p. 105), de que na “consciência crítica a própria causalidade autêntica está sempre submetida à sua análise – o que é autêntico hoje pode não ser amanhã – para a consciência ingênua, o que lhe parece causalidade autêntica já não é, uma vez que lhe atribui caráter estático, de algo já feito e estabelecido”.

Enquanto na consciência crítica há uma integração com a realidade, na consciência ingênua há uma superposição à realidade. Na primeira, o homem reflete sobre a sua situacionalidade, isto é, as condições tempo-espaciais em que vive (o da história e o da cultura), sendo desafiado por ela. Na segunda, a realidade apresenta-se como uma incógnita, tal quando se está diante de uma neblina espessa que reduz a sua ação à mera acomodação, ajustamento. Por conseguinte, entendemos o papel da educação crítica e conscientizadora, como prática da liberdade, no sentido de permitir ao sujeito histórico a saída de sua imersão secular numa realidade que não entende, para o esforço capacitador de emergir para se inserir na realidade que se vai descobrindo ou, nas palavras de Paulo Freire (1987, p. 102), “[...] a inserção é um estado maior que a emersão e resulta da conscientização da situação. É a própria consciência histórica. [...] Daí que seja a conscientização o aprofundamento da tomada de consciência, característica, por sua vez, de toda emersão”.

Deste modo, compreendemos a justificada crítica à prática da educação bancária, uma vez que

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a mesma, não só inibe a habilidade criativa e crítica do educando, inexistindo o caráter reflexivo, mas enche-o de falso saber, de conteúdos impostos e distantes de sua realidade sócio-cultural. A ação dialógica e conscientização, neste contexto, leva-nos a pensar sobre a importância do processo de comunicação dialógico, na medida em que, reconhecendo um e outro e o mundo, valoriza-se as relações dos homens e mulheres pela práxis. Não podemos separar o emprego da “palavra verdadeira”, do compromisso com a transformação social; assim como não separamos a ação dialógica do contexto de uma educação problematizadora, de uma educação como prática da libertação humana.

DIÁLOGO ENQUANTO FENÔMENO DA LIBERTAÇÃO

Diante do exposto até aqui e retornando ao trabalho desenvolvido por Bastos (Formação de professores e prática educacional dialógica-problematizadora), vamos nos associar a Paulo Freire no que se refere à educação libertadora. Uma educação que não cria barreiras, em seu lugar propõe desafios sob a maneira de “situações limites”, desafios que levam homens e mulheres ao contexto do e com o “inédito viável”. Vamos concordar, também, que “a libertação desafia, de forma dialeticamente antagônica, oprimidos e opressores. Assim, enquanto é, para os primeiros, seu ‘inédito viável’, que precisam concretizar, se constitui, para os segundos, como ‘situações-limite’, que necessitam evitar” (FREIRE, 1987, p. 94).

Neste sentido, a educação libertadora, independentemente do uso das tecnologias de informação e comunicação, far-se-á entre homens e mulheres que se reconheçam como sujeitos de sua ação. Que pronunciando a palavra verdadeira tomam decisões conscientemente críticas. Decisões desenvolvidas pelo desejo de “ser mais”, de juntar-se aos que buscam, como homens e mulheres em libertação, a transformação social.

Ora, este processo de transformação só se dará na medida em que o diálogo se faça autêntico. Desta maneira, o diálogo torna-se fenômeno da libertação destes homens e mulheres que ousam estar reflexivamente criativos no e com o mundo. Diálogo autêntico que também permite a ação dialógica entre os homens e mulheres historicamente participantes de uma realidade social com desigualdades e diversidades lingüísticas, políticas, culturais, econômicas e religiosas; isto é, uma realidade social multicultural.

A educação problematizadora, em Freire, traduz esta perspectiva desafiadora e dialógica. Através dos desafios, histórica e culturalmente situados, emergem ações movidas pela reflexão. Emergem homens e mulheres que se disponibilizam dialogar. Para tanto, envolvem-se numa educação, como afirma Bastos, “que pode possibilitar...a discussão ‘rigorosa’ de sua problemática, exigindo a inserção dos mesmos em sua realidade local”.

Através da educação problematizadora, dialógica, pronunciam a palavra que resulta da práxis pedagógica influenciada por atitudes humanas de amorosidade, humildade, ética; de esperança, fé, solidariedade..., por isso mesmo, política.

Por fim, tecendo nossas considerações finais, pelo momento, ao que nos propuzemos, entendemos que a ação dialógica, no contexto da educação problematizadora numa realidade de multiculturalidade, é pressuposto necessário à libertação ontológica humana. Concordamos que a libertação dos homens e mulheres sectários, opressores em seu fanatismo, exige daqueles e daquelas que, oprimidos pela ação dos primeiros, emergem na práxis esperançosa

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de “ser mais”. Assim sendo, a libertação dos oprimidos e oprimidas depende, antes, da libertação dos seus opressores.

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REFLEXOS FREIRIANOS NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA DA IRMANDADE DO ROSÁRIO DE POMBAL-PB

Alba Cleide Calado Wanderley1

RESUMO

Este trabalho propõe estudar os configuradores da construção da Identidade afro-brasileira da Irmandade do Rosário de Pombal-PB, vista como uma construção realizada pela cultura com suas bases na educação popular. Usamos a Historia Oral como norteadora da nossa pesquisa, tecidas com as leituras de autores que trabalham com identidade e sob os pilares das teorias e práticas em educação popular construídas por Paulo Freire.

Palavras-Chave: Identidade – religiosidade – educação.

Estudos sobre identidade têm se constituído em objeto de inúmeras discussões da Antropologia. A identidade possui uma dimensão pessoal ou individual, pelo viés da psicologia e uma dimensão social ou coletiva que interessa especialmente à antropologia. Aqui, pensados pela educação popular, os mecanismos de identificação refletem a identidade em processo, assumida em situações concretas como os das festas religiosas; os processos sociais implicados na formação e conservação da identidade são determinados pela vivência em grupo.

Durante quase toda a história social da humanidade, a educação sempre existiu imersa em outras práticas sociais. Imersa no trabalho, na divisão das atividades, nos rituais e nos diversos modos de viver o cotidiano da cultura, incorporando a própria estrutura simbólica da sociedade no universo pessoal e coletivo das idéias, ações e sentimentos.

Deste modo, o homem foi estabelecendo relações de aprendizagem. O homem sabe e ensina o saber; é sobre e através das relações e das idéias do grupo que o homem vive o saber; é na convivência e na transcendência do cotidiano, que os homens entre si ensinam-e-aprendem. A educação é uma condição da própria criação e recriação do homem. Assim, é necessário que o homem crie situações para recriação desse saber.

É muito fácil imaginar, mas é difícil conhecer com certeza como uma fração do saber teria sido aprisionada por sistemas de educação e como, portanto, uma parte do ensino terá se tornado propriedade de educadores profissionais e da escola. Como educadores populares, sabemos da importância da educação escolar, mas partimos para valorizar também, aqueles que têm como seus únicos meios de educação os seus próprios grupos de vivência. A fração do saber está espalhada, é preciso procurarmos esses pedaços para podermos criar e recriar o saber, construindo assim, os saberes populares.

Pretendemos neste trabalho compreender melhor a importância do desvelamento e da internalização da idéia de identidade, por parte dos atores sociais de determinado espaço político-religioso, como categoria fundamental para a educação popular e para o processo de sustentabilidade do desenvolvimento local. A sustentabilidade estaria ligada à melhoria de vida comunitária como lembra Manoel Castells. Seria nas palavras de Paulo Freire construir a história a partir da própria história. A atribuição de significado ao conjunto de experiências do 1 Aluna do Programa de Educação, UFPB, João Pessoa-PB ([email protected]).

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indivíduo e de sua relação com sua comunidade e a partir daí o estabelecimento de seu compromisso com o coletivo.

Aqui, pensamos em saberes vividos pelo povo, tendo em vista a sua religiosidade. Assim, as festas religiosas e os próprios grupos religiosos são formas de viver o saber, são momentos das práticas de suas experiências, que os homens criam e recriam no seu cotidiano.

Na verdade, se a educação é um meio de transformar o mundo, não podemos limitar as frações da educação. Se os homens constituem o mundo, a educação não deve ser privilégio de alguns, mas um direito de todos. Se a transformação também depende do homem, a educação deve ser um encontro entre os homens. Esse encontro deve se dar em todos os locais e situações que permitam executar uma das maiores capacidades humanas que é o diálogo. Logo, podemos pensar neste mundo transformado, numa realidade concreta em que o diálogo é um mediador da educação, ou melhor, é a própria educação.

A educação popular não é um saber que se estende ao povo, mas o que está com o povo. Sendo, hoje, uma possibilidade da prática regida pela diferença, desde que a sua razão tenha uma mesma direção: o fortalecimento do poder popular de forma igualitária, através da construção de um saber cultural. Portanto, mais importante do que pretender defini-lo é descobrir onde ele se realiza e apontar as tendências através das quais ele transforma a educação na vivência da educação popular, vasculhando a onde estariam os artifícios múltiplos da educação popular.

Aqui, nos deparamos com uns dos espaços da produção, recriação e articulação do saber do povo, através da religiosidade popular, das suas festas, das suas crenças, dos grupos de expressão tanto religiosa, quanto cultural. São manifestações que simbolizam os seus saberes pela vivência em grupo. Pensamos como Brandão (1984): a educação popular é uma vivência de saberes e uma partilha do poder dentro de um mundo coletivo:

Ela se realiza em todas as situações onde, a partir da reflexão sobre a prática de movimentos sociais e movimentos populares, as pessoas trocam experiências, recebem informações, criticam ações e situações, aprendem e se instrumentalizam. A educação popular não é uma atividade pedagógica para, mas um trabalho coletivo em si mesmo, ou seja, é o momento em que a vivência do saber compartido cria a experiência do poder compartilhado (BRANDÃO, 1984, p.72).

As práticas da educação popular representam dentro da Irmandade do Rosário, através da sua religiosidade, das suas festas e grupos culturais, a vontade de criar espaços autônomos, espaços nos quais os manejos dos poderes se realizem de forma compartilhada, dentro de uma crescente relação de iguais.

Nesta perspectiva, as opções metodológicas, pela busca participativa dos sujeitos, da reflexão coletiva da prática dos próprios atores, nas relações de solidariedade entre os membros da Irmandade do Rosário de Pombal, da superação de preconceitos, vão se constituindo em pontos e opções chaves para entendermos melhor as práticas da educação popular no seu sentido mais amplo.

Como educadores/historiadores queremos ver a educação dos negros/membros da Irmandade do Rosário de Pombal no seu contexto cotidiano, no interior de sua morada: a cultura, a

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religião e a festa, são espaços das idéias, códigos e práticas de produção e reinvenção dos vários nomes, níveis e faces que o saber possui.

A dimensão educativa destacada na festa e nos grupos da Irmandade do Rosário está ligada à realidade. Um tipo de educação que busca a afirmação daquele que se educa com o grupo, senão, do próprio grupo. A educação que se constitui na Irmandade do Rosário, aqui, e para nós, está fora de qualquer dimensão ideal, e sim, produto do ambiente, possibilitando a dimensão de universalidade, exigida por qualquer processo educativo. Neste mesmo sentido, demonstra Freire (1980) que os homens enquanto “seres-em-situações” encontram-se submersos em condições espaço-temporais que influem neles e nas quais eles igualmente influem.

Desta forma, essas relações dentro da Irmandade do Rosário de Pombal-PB permitem que os negros/membros cheguem a ser sujeitos, pois o homem chega a ser sujeito por uma reflexão sobre sua situação, sobre seu ambiente concreto.

A educação, nesse contexto, gera a afirmação do educando como um sujeito integrante à sua realidade. Enquanto se afirma, tanto como indivíduo, quanto em grupo, o educando procura, paulatinamente, reivindicar os seus direitos. Constituem-se, desse modo, os subsídios favoráveis do processo educativo, voltados para aqueles que, historicamente, foi negado direito à educação.

Entendemos que, todos os locais onde exista a convivência humana são espaços da educação popular. Desde que criem situações de ensino-aprendizagem, pautadas pelo diálogo e respeito humano. Assim, passamos a vasculhar e a observar dentro da Irmandade do Rosário de Pombal-PB os ambientes em que podemos demonstrar o processo de educação popular. São ambientes da formação cultural e religiosa dos homens negros que vivem situações de construção dentro de um processo educativo.

Dentre a dinâmica da Festa do Rosário de Pombal-PB, estariam ligados ainda, os seus grupos folclóricos, os Congos, Pontões e Reisados. Sendo esses grupos que mantêm, além dos membros da Irmandade do Rosário, o vigor das manifestações religiosas da cultura negra durante o período da festa, como ainda, permitem um processo de resistência ao longo dos tempos.

Mas quais são os elementos que contribuem para que estes negros resistam frente às transformações históricas e sociais? Aqui, entendemos que o elemento primordial desse processo de resistência é a constituição dos saberes ocorridos no interior dos grupos. São capazes de manter, criar e recriar a dinamicidade das festas e da Irmandade do Rosário de Pombal-PB. Para isso, é necessário compreendermos como os negros da Irmandade do Rosário e seus grupos vivem as experiências de aprender com os outros.

Entendemos que, para uma efetiva ação educativa dentro do grupo, é necessária a participação das pessoas no processo educativo. Além do mais, essa ação educativa, determinada pelo conhecimento da realidade, não é sinônimo de transferência de conhecimento e sim, um ato dinâmico e permanente do processo de descoberta.

Para Miguel, a sua metodologia não é inovadora, mas amplia um leque de possibilidade para

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construção do conhecimento das crianças que integram o Congo-Mirim, são métodos embasados a partir de um diálogo, que promove uma significação do que se aprende-e-ensina:

Ah! E as crianças, Albinha, a gente teve também uma conquista porque, a gente usou também esse mesmo método, de iniciar ensinando as músicas, que antes elas aprendiam se quisesse, não sabiam o significado e hoje, a gente já questiona mais, lemos a estrofe e procuramos os sentidos, entendo significado, a gente vê que existe um sentido, uma cultura afro, então as crianças começam a querer a perguntar muito, querem o tempo todo ficar conversando sobre as histórias, as músicas e as danças do congo, da irmandade, ficam questionando, então eu me sinto feliz por ter oportunidade de trabalhar, isso é muito importante para a identidade do grupo, para formação do grupo, até para se criar pessoas mais conscientes do que estão fazendo, porque antes eu aprendi, e pouco sabia sobre a história do grupo; então quando eu comecei a questionar e também o que está acontecendo com eles, eu comecei a despertar para trabalhar no grupo, e trabalhar em grupo.2

Procurar dar significado ao que aprende é vincular o que se aprende ao mundo, construindo sua própria visão de mundo. Esse conceber(ver) o mundo está baseado numa relação consciência-mundo. Tomando como reflexão o que vêem, sentem e fazem, os homens vão esclarecendo suas dimensões obscuras ao tomar aproximação com o mundo. Para Freire (1980) quanto mais nos aproximamos de posturas conscientes, mais desmistificamos a realidade:

A conscientização é, neste sentido, um teste de realidade. Quanto mais conscientização, mas se “des-vela” a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo. Por isso, a conscientização não pode existir fora da “práxis”, ou melhor, sem o ato ação-reflexão. Esta unidade dialética constitui, de maneira permanente, o modo de ser ou de transformar o mundo que caracteriza os homens (FREIRE, 1980, p. 26).

Os membros dos Congos, ou melhor, as crianças ao perceber que o significado do que fazem, vai além de uma tomada de consciência, passam a refletir, questionar e procuram junto ao grupo, soluções para os problemas do grupo.

Vale ressaltar, aqui, a importância da participação das crianças na Irmandade como constituidores do processo de co-produzir o saber, como também na garantia da continuidade dos saberes. O que implica dizer que é justamente o trabalho desenvolvido com as crianças que garante a passagem da “tradição” para o futuro.

Para Miguel, o trabalho em grupo possibilita uma melhor organização e desenvolvimento de proposta para solucionar os problemas do grupo, e é a partir dessa conscientização, da aproximação da realidade que se busca uma efetiva participação dentro do grupo, buscando meios para melhorar as condições como grupo:

O grupo ele vai ter mais algumas oportunidades, a gente está elaborando projetos, parcerias com o Conselho Municipal de Desenvolvimento Agropecuário, com o COOPERAR que desenvolve projetos nesta linha cultural e rural, então a gente tem observado que é muito importante a organização e que a gente tem uma certa história, por isso, eu me sinto feliz por ter conquistado de forma espontânea um

2 Entrevista realizada para esta pesquisa em maio de 2004.

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espaço no grupo e por eles terem confiança em mim, eles nos vê como uma possibilidade do grupo não morrer.3

É através do processo de ensino-aprendizagem que se procede uma melhor organização do grupo, sendo que esse processo se constitui de forma espontânea. Em nossas conversas com Miguel, colaborador da nossa pesquisa e coordenador dos Congos, perguntamos se existiria um espaço temporal determinado para a aprendizagem das crianças. O que nos surpreendeu foi essa abertura de tempo, espaço e diálogo dentro do grupo, que aqui, elencamos como indicadores da educação popular:

Não determinamos tempo, pois a maioria das crianças pertence a nossa família, e a gente não impõe, não diz que eles têm obrigação de aprender isso ou aquilo, seria até interessante se a gente desse um empurrãozinho, mas eles não iriam ficar a vontade, à gente deixa as crianças à vontade, porque nos sentimos em família, mas acredito que a tendência da aprendizagem no grupo vai ser melhor, pois novas oportunidades estão se abrindo, então a gente está tendo mais oportunidade para investir e criar grupos mais estruturados, mais conscientes, mais preparados e para a gente mostrar um trabalho melhor.4

Freire (1980), falando sobre a educação problematizadora, define o diálogo como o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-lo. É esse diálogo que permite as expressões das crianças numa construção do conhecimento de seu grupo e do mundo, é esse diálogo impulsionando o tempo de aprender, pois, percebemos que, dentro da Irmandade, através dos Congos, o tempo em que se constitui a aprendizagem é o tempo de cada um, de forma espontânea e dialógica. Sobre a idade mínima para entrar e aprender no grupo, Miguel diz:

Primeiramente, eu diria que só basta a criança está em pé, andando, aí a gente já pode começar a procurar formas para ensinar. Aí a criança, já começa a cantar e a dançar. Não temos uma idade inicial, geralmente, é entre os três e quatro anos e também não tem idade para sair.5

Para Miguel, existe uma diferença entre a teoria e a prática, e essa era realizada através da consciência:

Estaria ligada à questão da consciência das crianças, que ainda não foi totalmente formada, mas a gente está justamente procurando meios para que a criança construa a sua própria consciência. E a gente, quer lutar para que isso aconteça, que a criança, tanto valorize o que aprende como saiba por em prática, e que lute para afirmação e continuação do grupo, queremos plantar sementes que possam dar frutos. A gente não tem tanta teoria, no meu tempo a gente só ensaiava porque os líderes insistiam para a gente aprender, e a nossa preocupação hoje, ainda é de aprender-ensinar, mas agora existem algumas preocupações de mudanças de comportamento e de sentimento.6

Ora, o que Miguel comenta sobre a conscientização, as mudanças de comportamento está bem explícito através do pensamento freireano, quando mostra que, na medida em que a consciência dos homens está condicionada pela realidade, a conscientização é, antes de tudo,

3, 4, 5, 6 Entrevista realizada para esta pesquisa em maio de 2004.

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um esforço para livrar os homens dos obstáculos que os impedem de ter uma clara percepção da realidade.

São obstáculos que a consciência dos membros dos Congos demonstram já ter superado. Prova cabal disso é a fala e as atitudes de Miguel, quando menciona:

Eu tenho um grande respeito pelo grupo, antes as pessoas zombavam, gozavam da gente, diziam “olha eles de saia”, e a gente por não entender, a gente se envergonhava, mas a gente não tinha uma teoria, o nosso interesse era mais para dançar, pela tradição, pelo pedido do pai, da família. Nós já fomos vítimas dessas conversas-críticas sobre o grupo, mas agora nós sabemos o que é o grupo, o que ele significa e o que queremos. A gente foi percebendo que isso faz parte da nossa origem, que aquelas roupas ou vestidos eram apenas estratégias dos escravos para esconder alguma coisa nas roupas, para mascarar as danças em relação aos dominantes, aqueles que queriam mandar na religiosidade do povo, no período da escravidão. Então eu pude perceber que os vestidos não tinham nada a ver com questões de ser masculino ou feminino, fazia parte do aparato do grupo, para poder expressar o sentimento do grupo, pois como você sabe, o grupo é bastante exótico, quando a gente chega e as pessoas não conhecem, têm logo aquele impacto, né porque, ver todos os homens vestidos com saia, então a gente foi tendo consciência que faz parte da identidade, do nosso grupo, que não tem nada a ver com o que as pessoas falavam. A gente se conscientizou que faz parte do grupo, das nossas origens.7

Os Congos, grupo diretamente ligado à Irmandade do Rosário de Pombal-PB, demonstram vários indicadores de como entendemos a educação popular. Uma das características, presente também na própria Irmandade do Rosário, são os laços de solidariedade, de união, pois, apesar de existir uma estrutura hierárquica, essa é só organizacional, não percebemos patentes altas ou baixas dentro dos grupos, todos, apesar de institucionalmente assumirem funções diferentes, não anulam e nem negam o papel do outro. Ao comentar sobre a composição da formação do grupo, Miguel entende que:

Olha, Albinha, existe na sua formação, o Rei que é considerado a figura central do grupo, não é que o Rei tinha uma grande importância, mas devido o grupo ter passado por algumas [...] transformações, no comportamento, de ter conquistado espaço; é claro que sou respeitado, mas o Rei mesmo não é tão importante. Então depois do rei, vem o embaixador (secretário) e os Congos. Mas não tem aquela coisa, de dizer fulano de tal é dono, o presidente, determinado, mas de forma pessoal, eu me dedico, pois estou buscando recursos e meios para melhorar o grupo e investir no grupo. E isso vai criando certo posicionamento, mas no grupo, não se tem esta ligação de maior ou menor, todos somos iguais, somos grupo.8

Percebemos, ainda, indicadores como a preocupação de formação política dos membros dos Congos, como uma construção da identidade cultural, embasada numa política de autonomia:

A gente tá buscando uma conscientização, uma militância, uma autonomia maior do grupo. Uma politização do grupo. É tanto que a gente está elaborando projetos juntos a outros órgãos, lutando para não deixar o grupo morrer e para melhorar a sua organização, estrutura e participação. Estamos tentando nos capacitar para elaborar os projetos, pois o Estado e os outros órgãos querem um modelo de projeto bem estruturado, com o objetivo de desenvolver trabalhos melhores tanto com as crianças como com os adultos... É isso, é um desafio para nós. Agora, o que

7, 8 Entrevista realizada para esta pesquisa em maio de 2004.

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está existindo dentro do grupo, é uma preocupação dos membros, para que as pessoas não usem o grupo para ter um domínio, uma política, que às vezes usa para ganhar prestígio, e a gente se preocupa com isso, para que os políticos não usem o grupo, até mesmo para que o grupo não vá se descaracterizando com interesses de terceiros.9

A preocupação de Miguel, além de trabalhar a formação cultural da criança, é criar condições para que o grupo se auto-afirme, ganhe autonomia através de militantes mais politizados e defensores de suas causas. Para Freire (1998), isso exige um reconhecimento e a assunção da identidade cultural dos educandos. A autonomia e a politização estão próximas do que Freire pensa e não do autoritarismo ditatorial.

A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem na formação democrática uma prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber (FREIRE, 1998, p. 47).

Em relação ao seu papel como coordenador, mediador das ações educativas, podemos perceber, através de nossas conversas, que Miguel trabalha no interior do grupo por sua própria identidade com o grupo, com amor e respeito. Pois, segundo Freire (1980), não é possível a existência de uma metodologia orientada pelo diálogo, se não existir o ato de amar. O amor é ao mesmo tempo o fundamento do diálogo, como é o próprio diálogo. Assim, também fala Miguel:

Como participante eu luto, tento despertar, sinto uma grande gratidão, pois eu faço por que gosto. Estou no grupo por questão de carinho e respeito, e vou lutar para garantir que todos do grupo ou que venham a entrar possam sentir o mesmo. Acho que cabe a cada um de nós sermos um militante, com esse intuito de mostrar para as pessoas que o grupo tem sua identidade; nós entendemos que o grupo é importante, pois mesmo com o sofrimento de mais de 110 anos queremos continuar lutando, para que todos possam ficar no grupo, com o amor ao grupo, valorizando, tendo consciência do que está fazendo, não fazendo só por fazer, mas a essência do que está fazendo é o que é importante.10

Desta forma, concordamos com Freire (1980), quando diz que o ato de ensinar deve ser o próprio ato de amar, conduzido pelo que é mais comum entre todos os seres: a comunicação. A qual é constituinte da pluralidade de idéias e caminho para a concretização de objetivos, ou melhor, seria a comunicação como diálogo e como elemento educativo o próprio exercício da educação.

Um outro grupo ligado à Irmandade do Rosário de Pombal-PB são os Pontões, segundo a tradição oral, um dos mais antigos da Irmandade que ainda estão em cena no plenário cultural de Pombal-PB. Não se tem um número fixo de seus integrantes, variam entre 22 e 24 membros, usam um traje simples, que renovam todos os anos, acompanham suas apresentações as lanças com pontas de maracás, enfeitadas com fitas de diversas cores. Dançam ao som do próprio grupo, com a sinfonia de fole, pífano, caixa, tambor e pratos, que para os seus membros são meios de simbolizar a comunicação e a expressão do grupo.

9, 10 Entrevista realizada para esta pesquisa em maio de 2004.

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Segundo Clóvis Rufino e João Laurentino, nossos depoentes, os membros dos Pontões, em sua maioria, moram na zona rural, são agricultores, analfabetos e “quase todos são da mesma família”. A terra em que vivem foi adquirida por herança.

Para se integrar ao grupo, não é necessário saber de imediato as práticas culturais do grupo, mas passa-se a conviver com essas práticas, com o escopo de compreender e realizar essas manifestações culturais. Neste sentido, como esse saber não se constrói e nem é codificado por escrito, seu aprendizado se faz através da observação e da prática da manifestação, sendo guardado na memória.

É a memória que também se encarrega de reformular esse aprendizado, de criar e (re)criar; procurando a extensão desse saber para os demais membros, quer seja dentro do grupo ou fora. Um dos nossos depoentes, Sr. Clóvis Rufino nos fala sobre a experiência de aprender e ensinar dentro do grupo:

O chefe dos Pontões hoje ainda sou eu. Entrei nos Pontões nas eras de quarenta; e já faz mais de trinta que sou chefe; achava bonito quando meu pai saía todo arrumado, ele era da brincadeira. Aí eu disse: papai, também tenho vontade de entrar nos Pontões; ele disse: vamos meu filho eu ensino. E quando ele morreu pediu para que eu não abandonasse os Pontões. Agora, quando o povo vai entrar a gente ensina tudinho, fazemos um treino antes de aparecer. Mas o povo precisa conhecer a história dos Pontões, aí sim, eles iriam tomar mais gosto11.

Podemos perceber, através do depoimento de Sr. Clóvis, atualmente, chefe (coordenador) dos Pontões, que a ação educativa se constrói quando se proporciona uma condição de aprender e de ensinar - uma relação pedagógica – expressando, também, uma relação do humano com o mundo, baseada nas dimensões do diálogo. O diálogo é o principio e o mediador do papel do coordenador dos Pontões que se apresenta sem imposição. Esta situação se solidifica à medida que se desenvolve o diálogo dos negros com os negros. Freire (1980), com a sua afirmação da dialogicidade como base da pedagogia popular, preza por um diálogo verdadeiro para que haja um desenvolvimento e uma construção do processo educativo.

É a simbolização do aprendizado, através das manifestações culturais, mediatizadas pelo diálogo, que configura a atuação de uma metodologia da educação popular, dentro dos grupos culturais vinculados à Irmandade do Rosário de Pombal-PB. Desta forma, assegura, por sua vez, uma metodologia capaz de possibilitar que cada membro do grupo se constitua como sujeito de sua própria história, à medida que são úteis à organização de suas apresentações, sistematizando e reelaborando os conhecimentos de seu grupo. Aos olhos de Brandão (1995), são as ações que configuram uma educação como sendo popular e não os conteúdos. Estes também devem ser produtos das ações, das relações entre seus produtores.

São nas ações que geram as habilidades e atitudes dos negros/membros, como: orientar, opinar, administrar, organizar reuniões e sistematizar as apresentações, que identificamos o caráter de uma construção de consciência, além de representarem a necessidade de organização e troca de informações entre os próprios negros.

A literatura publicada e consultada nos traz poucos dados sobre a Irmandade do Rosário, mais

11 Entrevista realizada para esta pesquisa em julho de 2004.

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escassas são, ainda, as que comentam sobre os Congos, Pontões e Reisados, grupos que atuam diretamente dentro da Irmandade do Rosário no período da sua festa. Foi necessário apelarmos para a memória e as lembranças das pessoas mais velhas, para podermos comentar sobre os aspectos educacionais imersos nas suas histórias.

Torna-se importante, para nós, trazermos à tona as histórias e as formas de expressão popular que ainda resistem, tais como: Congos, Pontões e Reisados, pois apesar de este último não ser ativo como os Congos e Pontões, está presente na mente do povo e dos seus integrantes, os quais manifestam o desejo de que ele retorne com mais vigor.

Apesar da invasão da cultura brasileira pela conhecida “indústria cultural”, o povo ainda mantém resistência a todo este processo. Tanto a população, quanto os integrantes dos reisados carregam em suas lembranças os aprendizados dentro do grupo e procuram uma reativação dessas práticas religiosas, culturais e educativas.

Neste sentido, Freire (1980) entende que a cultura, como todo resultado da atividade humana, é fruto do esforço criador e recriador do homem, do seu trabalho por transformar e estabelecer relações de diálogo com os homens. Entretanto, essas interações, através das relações dialógicas, foram afastadas, já que o poder está nas mãos de uma classe dominante. Aqui, essas forças dominantes estariam ligadas ao poder da Igreja Católica local e nela concentram, também, a cultura espiritual e material dos mais poderosos. Para Gramsci (1979), a solução para a detenção de uma cultura hegemônica é a construção de uma nova hegemonia.

Mas, apesar de pensarmos como Gramsci, esta nova hegemonia, dentro da Irmandade do Rosário, já estaria em construção, pois, na memória dos Reisados, a esperança de se reativarem como grupo não cessou. São as lembranças da época dos Reisados ativos que os seus membros trazem como exemplos para que possam fortalecer novamente as bases do grupo. Assim, no interior destes grupos, que atualmente não são tão ativos, quanto os Pontões e os Congos, percebemos que já existe um processo de conscientização. Segundo Freire (1980), quando a consciência popular se esclarece, sua própria consciência aumenta.

Segundo o depoimento de Luiz Barbosa Neto, os Reisados é o grupo mais novo vinculado à Irmandade do Rosário de Pombal-PB, pois no seu início teria ligações com a Festa do Natal12, mas o grupo já era composto por negros, e que, depois, passaram a se integrar à Irmandade. Os Reisados usam calças brancas e camisas azuis ou vermelhas e conduzem uma espada. Além de acompanharem a Irmandade do Rosário, eles encenam momentos de guerra, liderada pelo Rei, onde se destaca a figura do Mateus.

Através do depoimento de Luizinho, percebemos também o caráter educativo que o grupo mantém, pois, o nosso próprio depoente, Luizinho, foi fruto desse saber gerado pelos Reisados. Luizinho nos fala da sua própria experiência de aprendizagem dentro do grupo:

Eu fui praticamente vendo o reisado dançar na rua do comércio, no beco da cadeia, isso há quarenta anos atrás, e Chiquinho de Bembém, juntamente com seu pai Bembém; desde criança que tenho afinidade com os reisados e os pontões, tive uma ligação direta, quando na minha infância eu acompanhava os Pontões e Reisados

12 Os Reisados teriam surgido para animar as Festas Natalinas simbolizando os reis que chegaram para presentear o menino Jesus.

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dançando pela cidade, muitas vezes eu segurava a varinha dos membros e às vezes eu procurava imitar os passos de alguns, deixando até alguns como seu Elias de boca-aberta, pois não fazia parte do grupo, mas já caminhava junto com eles, inclusive ensaiando alguns passos. Clovis quando via ficava risonho; seu Elias ficava perguntando quem era aquele menino tão interessado pelos reisados, caía na farra, na dança, sempre gostei, e aos poucos foi crescendo essa paixão, esse carinho e hoje só tenho uma coisa a dizer: só quero ver o folclore de nossa terra crescer13.

Analisando as falas dos nossos depoentes, procuramos pontos em que eles indicavam propostas e soluções para a reafirmação dos grupos. Percebemos que os velhos não se vêem e nem também vêem os mais jovens que estão vinculados aos reisados, como pessoas anônimas, mas como sujeitos que querem participar da construção e transformação coletiva da história e da cultura da nossa região.

Em outras palavras, as propostas foram a preservação dos seus saberes, ou seja, o saber popular. Constituído através das práticas e das experiências populares, procurando uma maior participação dos sujeitos, garantidas pela circulação do saber através de um processo pedagógico voltado para a valorização de suas raízes, mas comprometidos com a realidade cultural.

Sendo assim, entendemos que a cultura democrática precisa ser (re)construída sobre as bases da consciência, como afirmam Gramsci e Paulo Freire, e não, da direção de uma vanguarda iluminada, como até então a história tradicional vem registrando.

CONSIDERAÇOES FINAIS

A identidade é uma construção que se processa nas relações recíprocas do cotidiano, que é retroalimentada nas manifestações culturais que são vivenciadas pelo sujeito, mediante os saberes que são compartilhados. Estes saberes são produtos da visão de mundo que constroem os sujeitos históricos. Assim, a educação popular se coloca como um pilar, fundamentando essas relações de saberes.

Queremos analisar a construção da identidade cultural afro-brasileira como uma experiência da educação popular, prática do cotidiano que se transforma em resistência, em experiências passadas de geração a geração, em produção de saberes e como elemento definidor da identidade dos grupos. A abordagem histórica, que desenvolvemos na pesquisa, visa dar uma dimensão mais ampla ao nosso trabalho, mostrando a importância das irmandades negras no sertão paraibano.

Pensamos que a Educação Popular pelo seu posicionamento teórico, estratégias e metodologias cabe perfeitamente neste fazer acontecer, ajudando a provocar mudanças, não a partir de uma lógica preestabelecida, mas mediante a interação, o incentivo, a cooperação, o desenvolvimento das competências, ampliando um leque de possibilidades para a construção da identidade afro-brasileira.

Castell (2000) define identidade como um processo de construção de significados com base

13 Entrevista realizada para esta pesquisa em julho de 2004.

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em um atributo cultural que prevalece sobre outras fontes de significado. Sua manifestação depende da internalização por parte dos atores sociais construindo a partir daí seu significado.

Fica, então, cada vez mais clara, a necessidade de entender a dinâmica e a configuração cultural do contexto de ação, para que se possam definir, de forma competente e em conjunto com a comunidade as diretrizes que melhor se adeqüem à realidade dos grupos.

REFERENCIAS

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Em Campo Aberto: Escritos sobre a educação e a cultura popular. São Paulo: Cortez, 1995.

_______. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1984.

CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra. (A Era da Informação: economia, sociedade e cultura; v.2), 2000.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1999.

FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Morais, 1980.

_______Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

_______Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.

VALENTE, Ana Lucia E. F. O Negro e a Igreja Católica. Campo Grande, MS: CECITEC/UFMS, 1994.

WANDERLEY, Alba Cleide Calado. Memórias sobre a constituição da Irmandade do Rosário de Pombal-PB, como experiência em educação popular, 2004 (dissertação de mestrado).

WANDERLEY, A. C. C. NASCIMENTO, G. B. e SILVA, J. F. (Org). Diversos olhares em educação. João Pessoa: Universitária, 2005.

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A PRESENÇA DO DIÁLOGO NA RELAÇÃO PROFESSOR-ALUNO

Alexandra Alves de Vasconcelos 1

Ana Carolina Guimarães da Silva 2

Joseane de Souza Martins 3

Lupércia Jeane Soares 4

RESUMO

O presente trabalho de pesquisa aborda o processo de interação entre professor-aluno e suas implicações na aprendizagem com base em enfoques literários, psicológicos, sócio-históricos e afetivos envolvidos pela pedagogia dialógica de Freire, na qual educador e educando desenvolvem uma relação de respeito horizontal. Com o objetivo de analisar como se processa a relação professor-aluno baseada no diálogo, suas implicações e eficácia no processo educativo, realizou-se em estudo teórico, seguido de entrevistas com alunos/as e professoras, em que se pesquisou junto aos mesmos, o prazer da educação, as oportunidades de diálogo e os laços de afetividade na interação. As entrevistas indicaram a dicotomia entre a teoria e a pratica, o que caracteriza uma abordagem de ensino tradicional nas instituições pesquisadas.

Palavras-chaves: Diálogo - respeito – afetividade.

INTRODUÇÃO

O texto decorrera sobre a analise da interação professor-aluno sob a perspectiva da Pedagogia Dialógica proposta por Paulo Freire, trazendo aspectos preponderantes como o respeito aos educandos e o desenvolvimento de uma relação intercomunicativa. Segundo Freire a relação professor-aluno constitui-se em um esquema horizontal de respeito e de intercomunicação, ressaltando o diálogo com componente relevante a uma aprendizagem significativa.

O fenômeno educativo é complexo e abrange diversas facetas que, inter-relacionadas, contribuem para a construção do processo de ensino e aprendizagem.

A pesquisa realizada buscou associar a teoria acima descrita com a pratica vivenciada no interior das instituições educativas onde ocorrem, antes de tudo, um contato humano entre pessoas que pensam e agem e têm, sobretudo, sentimentos. É preciso respeitar o outro no seu modo de ser e assim, garantir um bom relacionamento, possibilitando um clima de confiança.

Buscando esta associação, a pesquisa nos mostrou através da entrevista com os alunos que o diálogo se faz presente no dia-a-dia da sala de aula e, por vezes, se estendendo para assuntos diversos como, família, televisão e etc. A mesma informação foi confirmada no questionário efetuado com as professoras.

1 Graduanda do curso de Pedagogia – UFPB – Campus I, professora da Rede Particular de Ensino do Município de João Pessoa. ([email protected]). 2 Graduanda do curso de Pedagogia – UFPB – Campus I, professora da Rede Pública de Ensino dos Municípios de Bayeux e Santa Rita. ([email protected]). 3 Graduanda do curso de Pedagogia – UFPB – Campus I, bolsista do PRONERA ([email protected]). 4 Graduanda do curso de Pedagogia – UFPB – Campus I, professora da Rede Particular de Ensino do Município de João Pessoa. ([email protected]).

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Com a finalidade de confrontar estes dados, realizou-se durante a pesquisa momentos singulares de observações das práticas pedagógicas estabelecidas nestas mesmas turmas, onde foi verificado diversos pontos contraditórios que negam a relação acima citada.

As observações apontam para um esquema antidialógico, relação vertical, segundo Paulo Freire, em que os educandos alcançam uma aprendizagem mecânica, ignorando a construção de conhecimento e os seus inclusos. Portanto, caberia ao professor favorecer a aquisição do saber a partir do diálogo, pois é através deste que os sujeitos se encontram no verdadeiro momento de aprendizagem, diluindo-se as hierarquias.

A pesquisa também constatou que a disciplina dos alunos não reflete uma relação saudável, sendo por vezes turbulenta ou condicionada a um comportamento exemplar através de uma prática autoritária.

A INFLUÊNCIA DO DIÁLÓGO NO ATO PEDAGÓGICO

O trabalho que discorre abordará a interação Professor-Aluno na aprendizagem sob os enfoques literários, psicológicos, sócio-históricos e afetivo, buscando compreender suas influências na aprendizagem do ensino fundamental, já que, a educação é uma atividade sócio-política na qual consiste a relação entre sujeito (professor-aluno).

Para entendermos a dimensão desta relação faz-se necessário conceituar Interação:

Processo interpessoal pelo quais indivíduos em contato modificam temporariamente seus comportamentos uns em relação aos outros, por uma estimulação recíproca contínua. A interação social é o modo comportamental fundamental em grupo. (DICIONÁRIO DE PSICOLOGIA, p. 439).

Na interação Professor-Aluno, a escola enquanto instituição educativa desempenha um papel fundamental, sendo palco das diversas situações que propiciam esta interação principalmente no que tange sua dimensão socializante, a qual prepara o indivíduo para a convivência em grupo e em sociedade.

Assim, também é função da escola a dimensão epistêmica, onde ocorre a apropriação de conhecimentos acumulados, bem como a qualificação para o trabalho, dimensão profissionalizante.

Vale salientar que as dimensões citadas estruturam-se, no fator sócio-histórico que é constituído de condicionantes culturais. Neste contexto abordaremos o diálogo, condicionante fundamental para uma boa interação entre o professor e o aluno.

Segundo Paulo Freire (1967, p. 66) “[...] o diálogo é uma relação horizontal. Nutre-se de amor, humildade, esperança, fé e confiança”.

Na fala de Freire, percebe-se o vínculo entre o diálogo e o fator afetivo que norteará a virtude primordial do diálogo, o respeito aos educandos não somente como receptores, mas enquanto indivíduos.

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As relações afetivas que o aluno estabelece com os colegas e professores são grande valor na educação, pois a afetividade constitui a base de todas as reações da pessoa diante da vida.

Sabendo que as dificuldades afetivas provocam desadaptações sociais e escolares, bem como perturbações no comportamento, o cuidado com a educação afetiva deve caminhar lado a lado com a educação intelectual.

De acordo com Pimentel (1967), a afetividade é quem direciona todos os nossos atos. Ela é na verdade, o elemento que mais influencia na formação do nosso caráter.

É na escola, que a criança e o adolescente procuram buscar o atendimento de algumas de suas necessidades afetivas. Por isso é importante que, na relação entre professor e aluno, sejam levados em consideração tanto os aspectos cognitivos quanto os aspectos afetivos desta relação.

Assim, como o diálogo, o fator afetivo tem sua relevância na interação professor-aluno, o que é enfatizado por Aquino (1996, p. 50):

Os laços efetivos que constituem a interação Professor-Aluno são necessários à aprendizagem e independem da definição social do papel escolar, ou mesmo um maior abrigo das teorias pedagógicas, tendo como base o coração da interação Professor-Aluno, isto é, os vínculos cotidianos.

Com isto, estamos dizendo que a interação Professor-Aluno perpassa as aquisições cognitivas.

O diálogo é de suma importância para a interação professor-aluno no fator psicológico, sendo vínculo entre o cognitivo e as ações concretas. A essa afirmação, encontra-se justificativa na literatura de Piaget sobre o estágio das operações concretas (1997, p. 166).

A criança usa a fala para “realizar as operações que descreverá as ações cognitivas intimamente organizadas em uma rede ou sistema”.

Para Hermández “o diálogo implica a honestidade e a possibilidade de intervir em um clima de confiança”, ou seja, ele é entendido como intercâmbio e reflexão entre os sujeitos. Entretanto, favorecer a aprendizagem a partir do diálogo é algo que não ocorre de maneira espontânea, pois requer por parte do professor, ter uma escrita e conhecimento atento da turma, uma vez que o diálogo implica que as pessoas estejam abertas a nossa idéia e formas de pensar, a novas maneiras de ver, e que não estejam fechados em seu próprio ponto de vista.

Portanto, “o diálogo é uma exigência existencial que possibilita a comunicação” e “para por em prática o diálogo, o educador deve colocar-se na posição humilde de quem não sabe tudo” (GADOTTI, 1991, p. 69).

O diálogo acontece considerando as seguintes etapas: colaboração, a união, a organização e a síntese cultural que devem ser respeitadas pelo aluno o que segundo Freire (1967) se traduz no esquema abaixo:

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E

Quumma(19

O compreidéres

Osfatobasins

Ouatusupcla

SQUEMA DO DIÁLOGO

A = Professor B = Aluno

(a) A com B = Comunicação

A com B = Intercomunicação

Interação de respeito entre os pólos, em busca de algo (aprendizagem).

ando este tipo de diálogo não é alcançado na interação professor-aluno, esta se pautará em a relação antidialógica a qual possui características opostas da primeira como a nipulação, a invasão cultural e a divisão para dominação, também traduzida por Freire 67) em um esquema.

ESQUEMA DO ANTIDIÁLOGO A = Professor B = Aluno A Sobre B = Comunicado A = sem amor, sem humildade, sem esperança, acrítico.

(i) Interação de respeito rompida

educador precisa reconhecer que o educando é, também, portador de um saber adquirido suas experiência próprias, o que Ausubel chama de inclusores, são idéias que existem

viamente na estrutura cognitiva dos alunos, servindo de ponto de localização para as novas ias (COLL – 2000, pág. 234). No entanto, faz-se necessário que os inclusores sejam peitados interação professor-aluno.

protagonistas da escola vivem uma relação complexa e permissiva baseada em diversos res como autoridade explicitada por Rego (1996, p. 98): “Uma relação professor-aluno eada no controle excessivo, na ameaça e na punição provocará reações diferentes das piradas por princípios democráticos”.

tra questão que permeia o cotidiano escolar e a relação pedagogia é a indisciplina, que almente tem sido debatida, mobilizando pais, professores e técnicos, sendo esta discutida erficialmente conceituada com base no senso comum, contribuindo para uma falta de reza e consenso a respeito do significado do termo indisciplina.

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De acordo com Aquino “a indisciplina é mais um dos efeitos do entre pedagógico, ou seja, é um problema que deve ser solucionado pelo professor e o aluno no núcleo concreto das práticas educativas e do contrato pedagógico.

Os princípios democráticos propiciam nos alunos um significativo autocontrole, auto-estima e capacidade de iniciativa autônoma na interação Professor-Aluno.

O professor deve possuir habilidade ao utilizar a sua autoridade na sala de aula, pois o modo pelo qual demonstra o poder que possui contribui para sua eficiência. A prática educativa em que inexiste a relação coerente entre o que a educadora diz e o que ela faz é, enquanto prática educativa, um desastre.

Construir a autoridade cobrando obediência, impondo suas vontades e seus valores constituir-se-á como autoridade e obterá por parte dos alunos um respeito unilateral, baseado no medo das punições. Já o professor que mantém relações baseadas no respeito mútuo obterá autoridade por competência.

Esse professor ou professora consegue estabelecer relações baseadas no dialogo, na confiança e nutrir uma efetividade que permite que os conflitos cotidianos da escola sejam solucionados de maneira democrática. (ARAÚJO, 1999, p. 42).

São fatores como estes que garantem uma boa relação pedagógica, fundamentando uma melhoria no processo de ensino-aprendizagem:

Considerar o ensino-aprendizagem escolar como algo que está necessariamente imbricado processo interativo professor-aluno supõe admiti-lo também como movimento contínuo e dinâmico. É importante ressaltar que não estamos partindo do pressuposto de que são dois processos se contrapondo, mas que o ensino-aprendizagem escolar é encarado, em última instância, como inerente a grande parte do processo interativo entre professor e aluno. (SANTOS, 1995, p. 2).

Isto, porém não quer dizer que toda interação professor-aluno permite o desenvolvimento ensino-aprendizagem escolar e sim que este não tem lugar sem aquele.

Para que a aprendizagem aconteça é necessário que o professor reconheça seu papel diante da interação que manterá com seu aluno. O professor deve estar atento a sua função primeira a de saber apresentar condições favoráveis à apropriação, por parte do alunado, de conhecimentos acumulados e socialmente tidos como relevantes. São estes conhecimentos que servirão de instrumental para seu agir no mundo, para o pensar sobre si e sobre as coisas da sua vida.

O professor precisa dar, ao aluno, apoio moral e sentimentos de segurança e confiança, ou seja, estimular o autoconceito da criança. O educador deve evitar fazer críticas negativas para não aguçar a insegurança e o sentimento de incapacidade.

O educador precisa reconhecer a sua significação para o educando, respeitando as limitações do mesmo, favorecendo uma relação baseada no respeito mútuo. Assim, propiciando um ambiente escolar favorável a uma aprendizagem significativa.

Em cima destas funções, o professor cria suas perspectivas. Dentre estas, a do reconhecimento

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e da valorização da própria atividade sendo esta uma característica e/ou representação de sua identidade. “O trabalho é expressão do homem”. Existindo “[...] um eterno jogo dinâmico entre trabalho e identidade” (GOMES,1990).

Para haver maior eficácia nas perspectivas que o professor estabelece em relação aos seus alunos, há necessidade de informação que proporcione a ele uma modificação da sua representação prévia, esta modificação dependerá de várias condições: que a informação transmitida tenha credibilidade e não se choque diretamente com a visão prévia sobre os alunos, que a postura dos alunos não entre em conflito com a informação transmitida, que o rendimento esteja associado a uma mudança de expectativas. Para um melhor resultado nas mudanças de representação e de expectativas é necessário que o professor modifique seu comportamento educativo.

Em relação a perspectivas do professor, dois fatores chamaram atenção do autor Hargreaves (1977, p. 276) no qual podem determinar a relação dos alunos no decorrer da relação. “O primeiro está relacionado à importância que o aluno atribuir à opinião que o professor tem sobre ele, quanto maior for a importância e significativa, maior será a probabilidade de que lhe afete o segundo fator refere-se ao conceito que o aluno tem de si mesmo e de sua própria capacidade”.

Jussim (1986) é o responsável por uma das tentativas mais globais de integração dos diferentes fatores que determinam os efeitos das expectativas em educação. O autor propõe um modelo que abrange em três fases ou etapas o processo das expectativas: os professores desenvolvem expectativas; os professores proporcionam um tratamento educativo diferente aos alunos, em função de suas expectativas; os alunos reagem aos diferentes tratamentos educativos de tal maneira que confirmam as expectativas dos professores.

Os professores desenvolvem expectativas sobre o rendimento futuro dos alunos, apoiando nas informações e observações estabelecidas no primeiro contato da interação. Entre os fatores que podem surgir na formação dessas expectativas iniciais, o sexo, a origem étnica, a classe social, etc.); o comportamento dos alunos nos primeiros momentos da interação com o professor.

No decorrer do período escolar, as interações entre o professor e os alunos se multiplicam, com isso as expectativas iniciais sofrem uma profunda revisão podendo ser mantidas ou reforçadas. As atuações consistentes com as expectativas tenderão a reforçá-las, e as não consistentes tenderão a modificá-las. Outros fatores podem afetar as expectativas iniciais como o surgimento de distorções confirmatórias, o grau de flexibilidade ou de rigidez das expectativas e a força das atuações que contradizem as expectativas iniciais.

As diferenças no tratamento educativo que os professores proporcionam aos alunos, em função das expectativas que têm sobre seu rendimento. Estas diferenças situam-se no maior ou menor grau de atenção, no tipo de atividade oferecida, nas oportunidades que lhes são dadas para aprender, e na quantidade e dificuldade do material ensinado.

Os professores acreditam que sua capacidade de controle e de influência é maior, no caso dos “bons” alunos, do que no caso dos “maus” alunos, fato esse pode estar na origem de algumas das diferenças indicadas no tratamento educativo que proporciona a uns e outros. Ele utiliza-

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se de meios como o elogio e as críticas para incentivar ou inibir comportamentos e situações. Podendo utilizá-lo conforme o aproveitamento escolar. Portanto sua eficácia do reforço social dependerá de como este é usado, podendo o elogio elevar as expectativas dos estudantes ao desempenho escolar, quando este for coerente à ocorrência do bom desempenho ou não surtir o efeito desejado quando este é utilizado indiscriminadamente.

De acordo com a tabela da associação de Pesquisa Educacional Americana, vejamos as orientações para elogio eficaz.

ELOGIO EFICAZ ELOGIO SEM VALIDADE 1. É feito contingentemente. 1. É feito aleatória ou assistematicamente. 2. Especifica as particularidades do desempenho.

2. Restringe-se às relações positivas.

3. Mostra espontaneidade, variedade e outros sinais de credibilidade.

3. Mostra uniformidade insípida, que sugere uma resposta condicionada, dada como o mínimo de atenção.

4. Recompensa a atingimento de critérios especificados de desempenho (o que, entretanto, pode incluir os critérios de esforço).

4. Recompensa e mera participação, sem consideração aos processos ou conseqüências de desempenho.

5. Proporciona informação aos estudantes sobre a competência ou o valor do seu desempenho.

5. Não proporciona informação alguma, nem dá aos estudantes informações sobre seu status.

6. Orienta os estudantes para melhor avaliação de seu próprio comportamento relacionado a tarefas e soluções de problemas.

6. Orienta os estudantes para se compararem com os outros e pensar em competir.

7. Usar os desenhos prévios dos estudantes como o contexto para descrever as atuais realizações.

7. Usa os desempenhos dos companheiros como o contexto para descrever os atuais sucessos dos estudantes.

8. É feito em reconhecimento ao esforço digno de nota ou sucesso nas tarefas difíceis (para este estudante).

8. É feito sem consideração ao esforço despendido ou ao significado do desempenho (para este estudante).

9. Atribui sucesso ao esforço e a capacidade, implicando que no futuro podem ser esperados sucessos semelhantes.

9. Atribui sucesso somente à capacidade ou a fatores externos, como sorte ou tarefa fácil.

10. Fomenta atribuições endógenas (os estudantes acreditam que fazem esforço na tarefa porque dela e/ou querem desenvolver habilidades relevantes para a tarefa).

10. Fomenta interpretações exógenas (os estudantes acreditam que fazem esforço na tarefa por razões externas – para agradar o professor, ganhar uma competição ou recompensa etc.).

11. Enfoca a atenção do estudante em seu próprio comportamento relevante para a tarefa.

11. Enfoca a atenção dos estudantes no professor como uma figura de autoridade externa que os está manipulando.

12. Fomenta a apreciação e as interpretações desejáveis sobre o comportamento relevante para a tarefa, depois de completado o processo.

12. Entra indevidamente no processo em andamento, distraindo a atenção do comportamento relevante para a tarefa.

Fonte: BROPHY, J Teacher Praise: A functional analysis. Review of educational Research, 1981, 51.26. pela American Educational Research Association. Washington D.C. Reprodução autorizada.

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As expectativas podem conduzir o professor à percepção dos “bons” alunos como sendo os mais parecidos com ele mesmo, e, portanto, à dedicação de uma maior atenção e ajuda, além de atribuir as dificuldades dos “bons” alunos a fatores situacionais, e as dificuldades dos “maus” alunos à sua falta de competência, o que leva, no primeiro caso, a redobrar os esforços para modificar a situação e, não inibi-los.

Os alunos reagem aos diferentes tratamentos educativos recebidos mediante uma maior ou menor atenção, participação, persistência, cooperação e esforço no desenvolvimento das atividades de ensino e aprendizagem, de tal maneira que acabam se conformando às expectativas dos professores: aqueles que são depositários de expectativas positivas acabam efetivamente rendendo mais, e os que depositários de expectativas negativas acabam efetivamente rendendo menos.

Como prova disto, no final da década de 60, a partir da publicação do “pigmaleão da escola” (ROSENTAL e JACOBSON, 1968) propunham que as crenças dos professores ou suas expectativas sobre o QI de uma criança poderiam afetar no seu desenvolvimento cognitivo, ou seja, as crianças aprendiam mais quando os professores esperavam um alto desempenho, e dava estímulo para que isso ocorresse, do que quando isso não acontecia. A partir dessa década, pesquisas mostraram que as expectativas dos professores podem, sob determinadas circunstâncias, afetar a aprendizagem, independentemente da capacidade da criança.

Preocupações frente a esta realidade não inevitáveis, ao se ponderar sobre a importância das interações professor-aluno para a eficácia do processo ensino e aprendizagem. Mesmo considerando que existem inúmeras variáveis internas e externas que interferem no processo educativo, o intercâmbio de influências comportamentais entre professor e aluno parece ter uma importância particular. Há autores que apontam que conforme o rumo que tome o desenvolvimento da interação Professor-Aluno, a adaptação e a aprendizagem do estudante podem ser mais ou menos facilitadas e mais orientadas para uma ou outra direção, sendo que cabe ao primeiro tomar a maior parte das iniciativas, cabe ao professor “dar o tom” no relacionamento. Coll e Sole (1996, p. 297) destacam que a maioria das pesquisas atuais sobre as interações entre professor-aluno ancoram-se nas seguintes considerações: Por um lado, o conhecimento construído pelos alunos no decorrer das atividades escolares de ensino e aprendizagem. Porém, por outro lado, os alunos constroem “realmente” significados a propósito destes conteúdos, e os constroem, sobretudo, graças a interação estabelecida com o professor.

As interações professor-aluno desempenham um importante papel e mais do que pautadas pelas ações que um dirige ao outro, são afetadas pelas representações mútuas, ou seja, pelas idéias que um tem do outro; assim, estas interações não podem ser reduzidas ao processo cognitivo de construção do conhecimento, pois envolvem dimensões afetivas e motivacionais. Coll e Miras (1996), também, apontam que não há dúvida alguma sobre a existência e a importância do processo de construção das representações que professores e alunos constroem uns sobre os outros, o que acaba por impregnar a totalidade do processo ensino-aprendizagem.

Assim, entende-se que o processo educativo é essencialmente interativo; é efetivado por meio das relações entre professor e aluno, alunos e conhecimento, sendo a figura do professor de extrema importância por ser ele o principal responsável para fazer a mediação competente e crítica entre conhecimento e alunos, proporcionando aos estudantes a apropriação ativa do

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conhecimento.

Mesmo considerando que os atos educativos são o reflexo do contexto social mais amplo que os engloba, julga-se ser fundamental a incrementação de pesquisas visando uma melhor compreensão do fenômeno, pois somente a partir da compreensão desta realidade é que será possível empreender medidas que possam antecipar e prevenir problemas psicoeducacionais e melhorar a formação dos profissionais desta área.

Certamente, remeter a otimização da educação ao plano exclusivo da interação professor-aluno é uma concepção, ao mesmo tempo, ingênua e irresponsável. No entanto, as instituições educacionais não podem eximir-se de tarefas concernentes ao que há de mais intrínseco no processo ensino-aprendizagem, ou seja, as relações humanas:

As interações sociais são empregadas de modo genérico, situação que em nada contribui para elucidar quais delas são realmente úteis para a situação de sala de aula e quais delas cabe ao professor promover e/ou incentivar. (Cad. Pesq., n 71, nov. 1989, p. 50).

Diante do que foi pesquisado, vê-se a grande importância estudar o papel das Interações sociais em sala de aula, pois a partir da mesma, observa-se sua grande utilidade no processo educativo. É bom salientar que para se ter maior conhecimento sobre este papel é bom estudá-lo e analisá-lo da melhor forma possível. Reconhecendo que para comunicação eficaz destas interações exige-se o saber escutar que envolve a diferença entre falar a e falar com os outros. Salientando que esta escuta jamais é autoritária e exige disponibilidade para o diálogo.

A DICOTOMIA ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA

A educação constitui-se de relações interativas destacando-se entre estas, a relação professor-aluno e sua influência para o processo de ensino e aprendizagem. A relação professor-aluno durante o processo educativo sofre a influência de fatores sócio-históricos, como o conflito entre a fala dialógica e a fala impositora, as relações afetivas.

Com embasamento na literatura freireana, foram analisadas as entrevistas com alunos/as e professoras que apontaram, aspectos relevantes a influência do diálogo na interação professor-aluno. O primeiro aspecto refere-se ao prazer dos entrevistados e entrevistadas em freqüentar a escola estando ligado diretamente à mobilidade social, fato explicado historicamente desde a década de 30. Segundo Ghiraldelli Júnior (1996, p. 240), durante a década de 30, foi instituída a educação para as massas populares e esta passou a ser para as classes populares o único meio de mobilidade social. O segundo aspecto suscitado é o afetivo, os educandos explicitaram sentimentos de afeição pelas educadoras. Porém, durante as observações realizadas constatou-se que esta afeição está diretamente relacionada à figura da profissional, nas situações em sala de aula ocorreu nitidamente um sentimento de respeito unilateral (PIAGET, 1968, p. 184) não existe respeito sem afetividade. O terceiro aspecto relevante é a valorização do diálogo como instrumento de interação para os entre-pedagógicos. Constatamos através das entrevistas e observações que o fato diálogo é reduzido a transmissão de conteúdo justificando uma das funções da escola a função epistêmica. Para Freire, a pratica pedagógica não se faz apenas com ciências e técnica. A educação envolve a construção da alteridade. Os diálogos que acontecem à margem da função suscitada são

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encarados como assuntos extra-classe, renegando a importância do diálogo enquanto construtor de laços de afetividade entre alunos e professoras favorecendo a harmonia no processo educativo. Segundo Freire “a afetividade é um compromisso a ser selado entre professor-aluno, não comprometendo seu dever enquanto profissional”. As educadoras mostraram-se insensíveis a esta função primordial ao dialogo para relação professor-aluno desenvolvendo em suas praticas, embora por vezes de modo inconsciente falas de autoritarismo em uma postura antidialógica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados obtidos mostraram grande contradição ente as entrevistas e as observações. As entrevistas com as professoras, alunos e alunas indicaram a presença do diálogo no cotidiano escolar e sua influencia nas atividades pedagógicas desenvolvidas, contudo as observações apontam para um esquema antidialógico, ou seja, uma relação vertical no qual o dialogo é utilizado como instrumento de coação por parte das professoras. Resultando em uma comunicação insuficiente e conseqüentemente uma relação entre professor-aluno deficitária.

Concluiu-se que há uma precariedade na utilização diálogo nas relações entre-pedagógicas em virtude do não favorecimento do diálogo no âmbito escolar, pois é através desse que os alunos podem encontrar um verdadeiro momento de aprendizagem, diluindo a hierarquia, professor-produtor e aluno-receptor, o que facilitaria a interação entre ambos resultando em uma aprendizagem significativa.

REFERÊNCIAS

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PIAGET, Jean. Psicologia e Pedagogia. Rio de Janeiro: Forense: Universitária, 1969.

PIMENTEL, Lago. Noções de Psicologia. São Paulo: Ed. Melhoramento, 1974.

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SANTOS, C. S. G. S. Interação professor-aluno e aprendizagem de leitura e escrita numa primeira série do primeiro grau. (Dissertação de Mestrado) Mestrado de Psicologia Social da Universidade Federal da Paraíba, 1995.

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A FISIOTERAPIA NA ATENÇÃO BÁSICA A PARTIR DE UMA EXPERIÊNCIA DE EDUCAÇÃO POPULAR

Aline Barreto de Almeida1

Ana Maria Braga de Oliveira Anderson Sales Dias

Cristina Marques de Almeida Holanda Emanuel Eliezer Pinheiro Júnior

Igor de Carvalho Gomes Jomard Farias Deininger

Kátia Suely Queiroz Silva Ribeiro Paula Teles Vasconcelos

RESUMO

A ênfase que vem sendo dada à promoção da saúde e à atuação dos profissionais na atenção básica requer uma discussão acerca dos conceitos que norteiam estas práticas e a forma como elas têm sido desenvolvidas. A Educação Popular vem tendo influência crescente nesta discussão e pode dar uma contribuição importante para o debate na Fisioterapia. Pretende-se discutir elementos teórico-metodológicos que indiquem possibilidades de reflexão e reorientação da prática fisioterapêutica na atenção básica. Tal discussão se dá a partir da vivência em um projeto de extensão universitária que apresenta a Educação Popular como seu referencial teórico.

Palavras-Chave: Fisioterapia – Educação Popular – Extensão Comunitária.

INTRODUÇÃO

É opinião consensual, quando se discutem os caminhos para a saúde, que a prevenção deve ser o objetivo maior de todas as ações de saúde e que, neste contexto, a educação é parte fundamental para que as ações preventivas tenham êxito. A prática dos profissionais de saúde, contudo, tem se caracterizado por uma grande ênfase na atenção curativa, fundada em uma visão biológica da doença, com uma abordagem dos problemas de saúde restrita aos aspectos fisiopatológicos, distanciando-se da discussão em torno dos determinantes sócio-econômicos preponderantes na análise do processo saúde/doença e na intervenção sobre esses problemas. Isso tem dificultado o desenvolvimento de ações de promoção e proteção da saúde e influenciado o desenvolvimento das ações educativas em saúde em direção a práticas de caráter higienista.

A compreensão que o ser humano teve sobre as doenças, ao longo da história, sofreu influência das transformações econômicas, psicossociais e culturais que aconteceram em cada época nas diversas sociedades.

Na antigüidade, as explicações mágicas e religiosas acerca do fenômeno saúde-doença predominaram no pensamento ocidental. A primeira concepção dinâmica desse fenômeno ocorreu entre os gregos que, baseados em teorias chinesas, acreditavam que a saúde era resultado do equilíbrio entre os quatro elementos que compõem o corpo humano: água, ar, fogo e terra, e as doenças eram causadas pela ação de fatores externos que causavam um

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desequilíbrio no organismo. Hipócrates, seguindo esse pensamento, atribuía importância ao ambiente físico na causalidade das doenças. Durante a Idade Média, a explicação teórica proposta por Hipócrates acerca das doenças foi preservada, embora a prática clínica tenha sido abandonada e se revestido de caráter religioso. Ao final desse período, há um número crescente de epidemias pela Europa, que faz retornar a discussão em torno da causalidade das doenças. No Renascimento, ressurgem os experimentos e as observações anatômicas, existindo nesse período a noção de contágio das doenças, a partir da qual desponta a Teoria Miasmática. Segundo essa teoria, as doenças originam-se dos miasmas, ou seja, de partículas da atmosfera e de fermentações e putrefações dos humores (BARATA, 1985).

Com o processo de urbanização desordenado que se estabeleceu no período industrial, em que as condições sanitárias da população nas cidades eram bastante precárias, aparece a concepção da causação social das doenças, relacionando-as com as condições de vida e trabalho da população. O desenvolvimento da teoria bacteriológica, no final do século XIX, porém, faz com que a Medicina passe a fundamentar suas explicações nas descobertas das relações causais entre os microorganismos e as doenças, fundamentando-se a partir daí uma compreensão do processo saúde-doença unicausal, limitada aos aspectos biológicos. Desse modo, apesar da existência nessa época de visões que discutiam a incorporação do social no processo saúde-doença, a teoria unicausal afirma-se como hegemônica, colocando em plano secundário a visão social que se esboçava e que havia eclodido durante a Revolução Francesa (POSSAS, 1989). Na primeira metade do século XX, com a emergência de novos problemas associados ao crescimento das sociedades industriais, há uma ênfase no estudo dos problemas de saúde no que diz respeito às políticas sociais, apontando a insuficiência do modelo teórico unicausal dominante. Alguns autores, dentre os quais destacou-se Virchow, perceberam que certas doenças eram decorrentes das condições sócio-econômicas, e mesmo considerando as explicações dos bacteriologistas, afirmam que a questão do adoecimento é muito mais complexa do que uma simples relação de causa-efeito entre microorganismos e doenças (LAKATOS & BRUTSCHER, 2000).

Emergem, assim, as teorias multicausais, que explicam o surgimento das doenças como decorrente da interação dos diversos fatores existentes envolvendo o ambiente, o ser humano e os agentes etiológicos (POSSAS, 1989). O conceito de multicausalidade sofre alterações ao longo do século XX, porém, o que caracteriza os diferentes modelos dessa teoria é a tentativa de redução do social e sua descaracterização através de construções não-históricas e biologicistas (BARATA, 1985). Os fatores psíquicos passam a ser agregados ao conceito de causalidade, contudo o social é apenas referido e colocado na mesma instância dos demais fatores ambientais causadores de doença.

Fazendo uma crítica às teorias da multicausalidade, pelo fato de que elas atribuem a variáveis de hierarquia distinta quanto à causalidade, igual peso na determinação do processo saúde-doença, surge a teoria da Determinação Social das doenças. Essa teoria indica que são os determinantes de natureza sócio-econômica, em última análise, que fazem com que certos indivíduos estejam mais expostos ao risco de adoecer do que outros, e que a causalidade biológica é subordinada à causalidade sócio-econômica (POSSAS, 1989).

Na discussão sobre o fenômeno saúde-doença no espaço acadêmico atual, predomina uma perspectiva de multicausalidade, porém, é dada maior ênfase aos aspectos biológicos. A compreensão do fenômeno sob a perspectiva da teoria da Determinação Social, contudo, permite ao profissional de saúde uma concepção mais alargada do adoecimento e uma

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possibilidade de atuação mais ampla, possibilitando uma reorientação da prática, que vai se revelando insuficiente ao lidar com os problemas de saúde da população, fato que acontece mais amiúde nos serviços de rede básica de saúde.

Uma outra característica do modelo científico de atenção à saúde que tem interferido nas ações de prevenção primária é a concepção da supremacia do conhecimento científico sobre outros tipos de conhecimento, que confere ao profissional a autoridade de impor seu saber como sendo único e válido em todas as circunstâncias. Disso resultam práticas autoritárias, que colocam os sujeitos a quem essas práticas se destinam, como objetos de prescrição de normas e condutas a serem seguidas para manter ou promover sua saúde.

Nesse sentido, a prevenção primária em saúde tem sido apreendida e praticada pela maioria dos profissionais de saúde, através de prescrições que geralmente implicam mudanças de comportamentos e hábitos, que são impostas às pessoas, desconsiderando a realidade social delas e seu papel como sujeito no cuidado com a própria saúde. Uma situação bastante ilustrativa dessa questão na prática fisioterapêutica acontece nas orientações que damos aos usuários dos nossos serviços, a exemplo da orientação quanto ao uso do gelo, às orientações posturais, quando, nem sempre, temos a noção exata se as condições de vida das pessoas a quem estamos dando as orientações, tornam viável a execução das orientações recebidas.

Há diversas e divergentes compreensões do que seja, qual a finalidade e de como deve ser feita a educação em saúde. Essas compreensões variam na dependência de interesses econômicos, políticos e ideológicos, encerrando abordagens diferentes. Segundo Medeiros (1995), há, em linhas gerais, duas concepções e práticas de educação: uma que prioriza o elemento educativo em uma abordagem que desconsidera a historicidade e os aspectos políticos, considerando que os problemas de saúde ocorrem devido à ignorância e desinformação da população, e que essa questão se resolve pela educação. Essa é uma abordagem comprometida com a manutenção do sistema social estabelecido, uma vez que ela não considera a necessidade de transformação social, e sim, propõe a adequação das pessoas às regras indicadas para se ter saúde; a outra concepção compreende saúde e educação como categorias sociais, historicamente determinadas e socialmente construídas. Entende que a problemática da saúde é social e econômica e propõe transformações nesses setores.

A educação em saúde, que tradicionalmente tem sido praticada nos serviços e campanhas de saúde, baseia-se na primeira concepção aqui exposta. Ela é pautada na idéia de fazer as pessoas trocarem hábitos e comportamentos prejudiciais por outros considerados mais saudáveis. Os profissionais que adotam essa prática desconsideram a realidade social onde estão inseridos os educandos, e, muitas vezes, indicam condutas totalmente inadequadas ou irrealizáveis, em vista da condição sócio-econômica e cultural das pessoas. Em geral, essas ações educativas refletem a relação vivenciada pelos profissionais de saúde na universidade e se apresentam sob a forma de palestras e aulas, onde conteúdos científicos são depositados, sem qualquer referência quanto à possibilidade de que aquelas pessoas tenham algum conhecimento sobre o assunto em questão. Algumas vezes há uma preocupação de tornar a informação mais acessível, de maneira que procuram traduzi-la numa linguagem “popular”, para conseguir uma adesão mais efetiva dos educandos. Como essa adesão não corresponde às expectativas dos profissionais, eles têm reforçado a idéia de que o povo é ignorante e incapaz de compreender o que foi ensinado.

Essa concepção de educação em saúde há muito tempo vem sendo criticada por profissionais

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insatisfeitos com esse tipo de relação educativa. Um movimento que representou uma nova concepção de educação em saúde foi resultado da participação de trabalhadores da saúde nas experiências de Educação Popular, a partir dos anos de 1970, trazendo para o setor saúde uma cultura de relação com as classes populares que representou uma ruptura com a tradição autoritária e normatizadora da educação em saúde (VASCONCELOS, 1997). A partir daí, foi se organizando um movimento de Educação Popular em Saúde.

O método de Educação Popular foi sistematizado inicialmente por Paulo Freire e teve, no princípio, sua aplicação dirigida à alfabetização de adultos. Durante o governo João Goulart, este método foi utilizado visando à formação de eleitores “conscientes”, que pudessem eleger os políticos “progressistas”, para implementação das reformas de base (SCOCUGLIA, 1997). Esse método, mais do que servir aos fins populistas possibilitou a organização das camadas populares, e, após o golpe militar de 1964, serviu de base para os movimentos de resistência contra o regime militar, norteando a relação entre intelectuais e as classes populares. Criticando a educação bancária2 ele propõe uma educação libertadora.

No período da ditadura militar, então, há uma fusão entre Educação Popular e trabalho pastoral, e o conceito de Educação Popular passa a ser o de educação produzida pelas classes populares ou para as classes populares em função de seus interesses (PAIVA, 1984). Amplia-se o papel da Educação Popular, que deixa de ser um método de alfabetização para ser uma estratégia de fortalecimento das classes populares, utilizada por pessoas de diversas áreas do conhecimento humano.

Na área de saúde, a Educação Popular foi sendo introduzida a partir de experiências em que profissionais, atuando junto aos movimentos sociais, buscaram formas de integração e colaboração redefinindo e dinamizando ambos. A experiência mais significativa foi a do Movimento Popular de Saúde (MOPS), que se estruturou na Zona Leste de São Paulo, no início da década de 1980, e partiu de sanitaristas que atuaram em comunidades eclesiais de base, tendo conseguido reorientar e ampliar as práticas de muitos serviços. Surgem outras experiências de participação popular nos serviços de saúde, que proporcionam um aprendizado a um número significativo de profissionais de saúde que, apropriando-se da metodologia da Educação Popular, passam a criar formas inovadoras de relacionamento entre o serviço de saúde e a população, onde a principal preocupação é a colaboração no esforço das classes populares pela conquista de seus direitos e uma maior capacidade de entendimento e enfrentamento de seus problemas de saúde (VASCONCELOS, 2000a).

Os profissionais que atuavam nessa perspectiva, no entanto, não estavam conseguindo organizar espaços mais amplos onde pudessem discutir suas experiências e aprofundar a dinâmica de atuação. No início da década de 1990, durante o I Encontro Nacional de Educação Popular em Saúde, foi criada a Articulação Nacional de Educação Popular em Saúde, representando um espaço onde se poderiam integrar os diversos profissionais que atuam na área, propiciando um rico processo de interação e troca de experiências. Em 1998, surge a Rede de Educação Popular e Saúde, que é fruto de uma aliança entre a Articulação Nacional e o trabalho que vem sendo desenvolvido na Escola Nacional de Saúde Pública da FIOCRUZ, no campo da educação em saúde. Ela integra profissionais de diversos estados brasileiros e também de outros países da América Latina. Essa Rede representa um 2 Analisando as concepções de educação, Paulo Freire as classifica em bancária, na qual o educador deposita o saber, e os educandos são meros receptores, estando ela a serviço da ideologia dominante; e a educação problematizadora, que é baseada no diálogo e está a serviço da libertação (FREIRE, 1978).

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movimento de profissionais que acreditam na centralidade do trabalho de integração da ciência e das práticas institucionais em saúde, com o esforço e a luta pela saúde, que fazem hoje os vários sujeitos subalternos, e que querem ver as práticas de Educação Popular em Saúde incorporadas à tradição de atuação sanitária hegemônica (VASCONCELOS, 2000b).

No momento atual, há um crescimento das práticas de Educação Popular em Saúde e um movimento de institucionalização destas práticas. O MOPS, por exemplo, que passou por um período de enfraquecimento nos anos 1990, atualmente vem sendo revitalizado, ao mesmo tempo em que se organiza a Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Esta Articulação tem recebido apoio do Ministério da Saúde, implementando, inclusive, uma pesquisa que busca delinear o quadro das práticas e movimentos populares por todo o país, assim como, tem incentivado a organização das seções estaduais da ANEPS.

Há profundas diferenças entre a Educação Popular e Saúde e a proposta tradicional de educação em saúde. Na perspectiva da Educação Popular, essa prática não é entendida como simplesmente fazer as pessoas mudarem seus hábitos e comportamentos considerados prejudiciais, mas ajudar na busca da compreensão das raízes dos problemas de saúde da população e em procurar soluções para estes problemas. Nessa ótica se reconhece que o saber popular é bastante elaborado, com suas estratégias de sobrevivência e grande capacidade de explicar parte da realidade, de modo que só é concebível uma educação baseada no diálogo, numa constante troca entre o saber científico e o saber popular, onde ambos ensinam e aprendem. (VASCONCELOS, 1997).

Paulo Freire aponta alguns pressupostos para o diálogo. Ele afirma que não há diálogo se não há um profundo amor ao mundo e aos seres humanos e fé no seu poder de fazer e refazer, criar e recriar, na sua vocação de ser mais. Ele diz que não há diálogo, se não há humildade, pois a auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Só há diálogo se há esperança, se os sujeitos esperam algum fruto de seu que fazer, e se há um pensar crítico (FREIRE, 1978).

No processo dialógico da educação em saúde é necessário que o profissional tenha a humildade de reconhecer que seu saber não é único nem absoluto e que ele tem muito a aprender com as pessoas, mesmo aquelas que não tiveram acesso à educação formal. Só há motivação para o diálogo se há esperança de que ele possa frutificar, que dele possa surgir um saber novo, compartilhado e transformador. E também só há possibilidade de interlocução se há respeito. Respeito pela diversidade cultural, pela diferença de valores, crenças e raças, em uma perspectiva de multiculturalismo.

O multiculturalismo dá um destaque à diferença, ao tratamento diferencial, para se chegar à igualdade de oportunidades. Põe em questão o tipo de tratamento que as identidades tiveram, e vêm tendo, nas democracias tradicionais. Por meio do princípio da liberdade, os indivíduos são livres para construir suas identidades, fazer escolhas de suas pertinências sociais, políticas e culturais. (GONÇALVES, SILVA, 2003).

EDUCAÇÃO POPULAR E FISIOTERAPIA: UM CAMINHO POSSÍVEL PARA A ATUAÇÃO NA ATENÇÃO BÁSICA.

Atuar na atenção básica requer do profissional a compreensão de que as ações específicas de

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sua profissão são insuficientes para dar conta dos problemas que comprometem a saúde das coletividades, mesmo que se trabalhe em uma perspectiva interdisciplinar. Além disto, atuar tendo como meta não apenas a cura ou reabilitação de doenças, mas, principalmente, a promoção e a manutenção da saúde, é uma opção que traz implicações de ordem social, econômica e política, uma vez que promover e manter saúde pressupõe assegurar moradia, emprego, alimentação, lazer, alterar as relações de trabalho e enfrentar as opressões que marcam nossa sociedade. Isto foge da capacidade de o profissional resolver o problema através de ações individuais e requer seu envolvimento enquanto aliado das classes populares na luta por esses direitos.

Há basicamente duas opções para o profissional que atua nos serviços públicos de saúde. Uma opção é deixar-se contaminar pela idéia de que os problemas de saúde são muito grandes, e os recursos e as soluções disponíveis, insuficientes para resolvê-los, de modo que só lhe resta se acomodar a esta situação. Aí ele segue fazendo um trabalho que pretende ser curativo/reabilitador, mas nem mesmo chega a sê-lo, uma vez que, mesmo a prática curativa depende de fatores que ultrapassam o biológico. O que tem ocorrido em conseqüência desse posicionamento é que os serviços nem sempre têm conseguido dar conta desta função, o que, embora seja percebido pelo profissional, não leva a uma mudança, pois ele não costuma repensar sua prática.

Outro caminho é compreender que a extensão dos problemas que acometem a saúde das populações requer que o profissional repense e reoriente sua prática de saúde, e que o encaminhamento destes problemas aponta para alianças com a população no sentido de lutar por melhorias nas suas condições de vida e de saúde. É nessa segunda opção que há um espaço fértil para a Educação Popular.

Há aqui uma grande possibilidade de aproximação entre o profissional de saúde que se dedica ao trabalho na atenção básica e a Educação Popular, uma vez que esta não apenas fornece elementos teórico-metodológicos para essa atuação, mas ela também indica como um caminho, o engajamento do profissional com os movimentos sociais, sem os quais dificilmente as ações de promoção e manutenção da saúde podem ter resultados.

É sob a perspectiva da Educação Popular em Saúde que desenvolvemos o Projeto de extensão universitária denominado Fisioterapia na Comunidade, desenvolvido na Universidade Federal da Paraíba – UFPB - desde 1995, atuando em uma comunidade da periferia da cidade de João Pessoa – PB.

As atividades deste Projeto são realizadas em conjunto com outro Projeto de Extensão denominado Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família, do qual fazem parte estudantes de todos os cursos da área de saúde existentes na UFPB, como também estudantes de Psicologia, Comunicação Social, Serviço Social e Pedagogia. A participação dos estudantes de Fisioterapia se dá sob duas perspectivas. Como integrantes do grupo geral de estudantes, eles realizam visitas de acompanhamento às condições de saúde das famílias da comunidade e participam de reuniões com a associação comunitária e de atividades educativas coletivas, onde são tratados temas gerais de saúde a partir da demanda dos moradores da comunidade. Integram-se, nestas atividades, estudantes que estão em fases mais iniciais do curso, o que tem se mostrado muito relevante no sentido de que estes alunos vivenciem uma experiência de orientação aos cuidados com a saúde, antes de aprenderem a tratar de seqüelas. Como atuação específica do grupo de Fisioterapia, são realizados

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atendimentos fisioterapêuticos no domicílio e nas Unidades de Saúde da Família, participação em grupos de gestantes, idosos, grupos de coluna e outras atividades educativas desenvolvidas de forma pontual, vinculadas à comunidade, às equipes de saúde da família e a líderes comunitários.

Os estudantes têm um papel fundamental na organização das atividades, uma vez que eles participam da coordenação do projeto, descentralizando o planejamento e as decisões da figura dos docentes, estabelecendo uma relação mais horizontalizada entre educadores e educandos, e ainda, incentivando a autonomia dos acadêmicos e a formação de lideranças.

As ações realizadas neste Projeto partem do entendimento de que a questão da saúde tem suas raízes mais profundas nos problemas sociais, e que a educação em saúde pressupõe um compromisso com os excluídos das políticas sociais e um envolvimento na busca por melhores condições de vida para essas pessoas. Nesse sentido, a Educação Popular tem sido proposta como forma de embasamento teórico-metodológico para a atuação neste trabalho.

A Educação Popular não visa adequar as pessoas a normas de higiene, mas participar do esforço junto aos sujeitos subalternos para a organização do trabalho político, a fim de abrir caminho para a conquista da liberdade e de seus direitos. (BRANDÃO, apud VASCONCELOS, 1997).

O nosso papel é o de contribuir com os sujeitos das classes subalternas, no sentido de desvendar o lado oculto das relações sociais com os olhos deles, revelando-lhes aquilo que eles enxergam, mas não vêem, completando com eles, a produção do conhecimento crítico que nasce da revelação do subalterno como sujeito (VALLA, 2000).

A percepção quanto à importância da participação na organização comunitária surge com a experiência na medida em que alargamos nossa compreensão em relação à problemática de saúde da comunidade. Isso nos faz reconhecer a insuficiência de nossa intervenção e a necessidade de contribuirmos com a luta pelos direitos básicos desses sujeitos como forma de garantir condições mínimas de saúde.

Sendo assim, fazer educação em saúde numa perspectiva de Educação Popular é um processo de reformulação de conceitos e de reorientação de prática, e como tal surge, em alguns momentos, incoerências que são próprias desse aprendizado, de fazer e pensar de modo tão diferente do que estamos acostumados. Essas incoerências se acentuam ou se reduzem na medida em que conseguimos superar o preconceito em relação aos sujeitos subalternos.

No processo de aprendizado de uma concepção diferenciada de educação em saúde, existem avanços e estagnações. Ao longo do tempo em que desenvolvemos as atividades do Projeto Fisioterapia na Comunidade, houve situações em que, diante das dificuldades decorrentes das péssimas condições materiais de existência das pessoas de classes populares, desanimamos ao sentir a insuficiência de nossas ações. Compreender que existem muitas limitações em trabalhos junto a estes sujeitos, mas aprender a valorizar as pequenas conquistas em termos de mudança ao invés de desanimar com as dificuldades, é um avanço. Isso é mais difícil, se levarmos em consideração que, para profissionais que aprendem que o seu papel é de curar ou reabilitar, é comum o sentimento de frustração por não obterem grandes resultados com sua intervenção. Perceber que, apesar da dimensão dos problemas, existem coisas que nos

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parecem pequenas, mas que são importantes na vida das pessoas, é compreender que os “problemas são muito profundos para serem ‘curados’, mas não para serem cuidados” (VASCONCELOS, 1999).

MÉTODO

Este trabalho teve como ponto de partida as reflexões realizadas entre os participantes do projeto de extensão Fisioterapia na Comunidade acerca da atuação na atenção básica, reflexões estas que são subsidiadas por leituras de alguns dos autores aqui citados. Para a elaboração deste trabalho, contudo, foi efetuada uma revisão de literatura de modo a possibilitar a fundamentação teórica necessária a uma reflexão mais aprofundada.

Para essa revisão foram estabelecidos dois eixos de discussão, a partir dos quais os autores estudados foram selecionados. Um eixo tratou da abordagem das concepções em torno do processo saúde-doença e as conseqüentes formas de intervenção profissional, e foi baseado em autores com abordagens vinculadas à Epidemiologia Social; o outro eixo foi referente à discussão acerca das concepções e práticas de educação em saúde, estando ancorado em autores cujos estudos estão voltados para a Educação Popular.

DISCUSSÃO

A Educação Popular pode propiciar uma reflexão e uma análise dos princípios que norteiam a atuação do fisioterapeuta, especialmente na atenção básica, levando a uma reorientação da mesma. Na medida em que se percebe que na convivência com pessoas das classes trabalhadoras há muito a aprender sobre as raízes dos problemas de saúde da população, buscando conhecer a forma como eles enfrentam esses problemas e a lógica que existe no seu saber, pode-se construir novos caminhos de intervenção.

Nessa perspectiva em que há abertura do profissional para o diálogo, desponta um novo saber que toma como ponto de partida o saber popular, valorizando-o, mas também reconhecendo seus limites.

No que se refere às atividades técnicas do fisioterapeuta, a Educação Popular pode facilitar sua reorientação, tomando como base o estabelecimento de uma relação onde o diálogo sirva de elemento enriquecedor do tratamento. Isso se torna possível, a partir do momento em que o profissional valorizar o conhecimento já elaborado pelo sujeito em tratamento e sua família no lidar com a doença e as estratégias de convivência com o problema. Nesse aprendizado, é possível uma adequação e adaptação dos recursos e procedimentos à realidade do usuário, que, tendo o seu saber e participação valorizados, assume o papel de sujeito no processo de reabilitação.

Sob o ponto de vista das práticas educativas, a Educação Popular favorece uma reformulação tanto na sua fundamentação quanto na metodologia. Nessa ótica, o profissional fica consciente de que faz parte das atividades de educação em saúde, a busca do fortalecimento dos atores sociais na luta por mudanças que favoreçam a saúde, e não apenas, levar orientações a serem seguidas pela população. Essa concepção educativa também indica a necessidade de transformarmos o modo como temos feito as orientações que, ao invés de depositarmos conhecimentos sob a forma das tradicionais palestras e aulas, possamos fazer a

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abordagem numa perspectiva dialógica que pode ser enriquecida numa associação com atividades teatrais, oficinas, etc.

A experiência vivenciada tem possibilitado, ainda, um aprendizado em relação ao respeito à diversidade cultural, constatando que ela não é excludente, muito pelo contrário, as diversas culturas podem se somar nos saberes e práticas de saúde, transformando-os. Há, por parte do estudante, uma indignação e uma vontade de lutar para mudar o significado das categorias e das relações de poder, de sentir-se integrante da pluralidade de culturas e raças. Isso acabou refletindo no seu modo de interagir com a comunidade, reconhecendo-a como um conjunto de indivíduos diferentes individualmente, com histórias de vida, cultura, religião e opinião distintas, mas que passaram a ser respeitadas e colocadas em igualdade com a educação e cultura a que teve acesso em uma perspectiva de multiculturalidade.

As relações entre as distintas identidades culturais, assim como as tentativas, por partes de diferentes grupos, de afirmação e de representação em políticas e práticas sociais, são complexas, tensas, competitivas, imprevisíveis. Esse panorama conflituoso, pleno de avanços e recuos, evidencia-se tanto nos noticiários que veiculam guerras, agressões, perseguições e discriminações, como no sobressaltado cotidiano em que buscamos viver e conviver com a violência, com o fundamentalismo, com a xenofobia, com o ódio, com a exclusão social (Moreira, 2002). Na perspectiva da Educação Popular, porém, a multiculturalidade não se constitui na justaposição de culturas, menos ainda no poder exacerbado de uma cultura sobre a outra, mas na liberdade e no direito de mover-se uma cultura no respeito da outra. Reconhece-se a existência de uma tensão, embora ela seja a tensão a que não se pode fugir quando se está construindo, criando, produzindo a própria multiculturalidade que nunca está pronta (FREIRE, 2003). Com base nessa compreensão, buscamos nas nossas ações educativas em saúde a unidade na diversidade. A Educação Popular contribuiu de sobremaneira para uma constante reflexão, proporcionando a formação de um estudante mais crítico, mais realista e mais respeitador das diferenças.

Às vezes, porém, mesmo tendo como princípio a Educação Popular, noções equivocadas nos fazem questionar a direção política da nossa ação. Ao longo da nossa experiência, algumas vezes nos indagamos até que ponto nossa atuação nesse trabalho comunitário estaria servindo aos interesses dos sujeitos das classes populares ou, se pelo contrário, estaria contribuindo com a classe dominante. Ao oferecer, através da extensão universitária, um serviço de saúde a que essa população não tinha acesso, mas que deveria ser oferecido pelas instituições governamentais, nossa atuação poderia estar servindo como um paliativo para o problema, não incentivando a população na busca de seus direitos sociais.

Percebemos, posteriormente, que esse entendimento evidencia uma limitação, a partir do momento em que exclui outras possibilidades de ação num trabalho comunitário, que vão além da visão assistencialista e caminham na direção de uma atuação como aliados dos sujeitos das classes subalternas.

A oferta de um serviço do qual essas pessoas estão necessitando de imediato e não dispõem, e sem o qual sua saúde pode ficar seriamente comprometida, não é assistencialismo, “é humanismo básico sem o qual nos tornamos cínicos e sem piedade” (BOFF, 1999). Prestar o atendimento, porém, não implica na inviabilidade de uma luta por transformações, uma vez que as duas coisas fazem sentido. É um desafio, portanto, articular os dois aspectos: a familiaridade com o cotidiano e o acompanhamento das lutas mais gerais.

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Isso nos remete a questão do conceito de promoção da saúde. Na discussão atual sobre promoção da saúde, surge a idéia de empoderamento ou “empowerment”, que “é um processo que oferece maiores possibilidades às pessoas de autodeterminar suas próprias vidas” (RAPPAPORT, apud KLEBA, 2000) e que “descreve e inicia processos de auto-organização e de mútuo-apoio, que reforçam a consciência política através de ações sociais e viabilizam uma participação coletiva nas decisões sociais e políticas” (STARK, apud KLEBA, 2000).

No processo de empoderamento, faz-se necessário o desenvolvimento de uma melhor compreensão crítica das pessoas sobre seus problemas e o reconhecimento da sua capacidade de agir como sujeito no movimento de transformação social, através da participação coletiva.

Para que o profissional possa contribuir com a promoção do empoderamento nos sujeitos das classes populares, é preciso que ele reconheça as competências e habilidades desses sujeitos, ao invés de considerá-los como carentes e ignorantes. Faz-se necessária também, uma aproximação com o cotidiano dessas pessoas, a fim de conhecer suas estratégias de enfrentamento dos problemas, assim como a diversidade de soluções possíveis para cada um deles.

Esse investimento no empoderamento pode ocorrer em dois níveis. Uma possibilidade é que ele ocorra em nível grupal, através do incentivo às ações sociais coletivas e à participação na organização comunitária. Outra perspectiva é em nível individual, no contato freqüente com as famílias, por meio de discussões que favoreçam uma compreensão crítica da realidade, o fortalecimento do sentimento de autoconfiança e a vontade de assumir o controle da própria vida.

CONSIDERAÇÕES A Fisioterapia vive, atualmente, um processo de alargamento da sua atuação que vem sendo construído coletivamente no seio da categoria. O Projeto Fisioterapia na Comunidade é um espaço de experimentação dessa construção, na medida em que, na interação com outros profissionais, com os moradores e a partir das reflexões que essa prática proporciona, podem despontar novos caminhos e novas possibilidades para que a Fisioterapia possa contribuir com o enfrentamento dos problemas de saúde das camadas populares.

A Educação Popular apresenta-se, nesse contexto, como um importante norteador para os profissionais e estudantes de Fisioterapia que compreendem saúde como direito e como conquista, e que desejam reavaliar sua prática e orientá-la em direção ao fortalecimento dos sujeitos das classes populares. Mais que um instrumental metodológico, ela é uma forma de conceber o mundo, pois indica uma ação educativa estritamente vinculada à reflexão com perspectiva de transformação, baseada no compartilhamento, na solidariedade e no aprendizado mútuo.

REFERÊNCIAS

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BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.

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KLEBA, Maria Elizabeth. A Participação Social na Construção do Sistema Único de Saúde Enquanto Processo de Empowerment. Anais do VI CONGRESSO BRASILEIRO DE SAÚDE COLETIVA, Salvador, 2000.

LAKATOS, Eva Maria; BRUTSCHER, Sônia Maria. O Conceito Saúde-doença Analisado através dos Tempos e a Prática Previdenciária no Brasil. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 24, n. 54, pp-75-89, jan/abr, 2000.

MEDEIROS, Soraya Maria. Formas de Conhecimento em Saúde: confrontos e viabilidades em uma prática de educação em saúde. João Pessoa, dissertação de Mestrado em Educação-UFPB, 1995.

MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. Currículo, diferença cultural e diálogo. Educ. Soc., Ago 2002, vol.23, n.79, p.15-38. ISSN 0101-7330

PAIVA, Vanilda (Org.) Perspectivas e Dilemas da Educação Popular. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

POSSAS, Cristina. Epidemiologia e Sociedade: heterogeneidade estrutural e saúde no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1989.

SCOCUGLIA, Afonso Celso. A História das Idéias de Paulo Freire e a Atual Crise de Paradigmas. João Pessoa: Editora Universitária –UFPB, 1997.

VALLA, Victor Vicent. Saúde e Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

VASCONCELOS, Eymard Mourão. Da Articulação Nacional à Rede de Educação Popular e Saúde. Jornal Nós da Rede. Rio de Janeiro, 2000-a.

______Os Movimentos Sociais no Setor Saúde: um esvaziamento ou uma nova configuração? In VALLA, Victor Vicent (Org.). Saúde e Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000-b.

_____ Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família. São Paulo: Hucitec, 1999.

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_____Educação Popular nos Serviços de Saúde. 3 ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

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O PROCESSO DE CONSCIENTIZAÇÃO NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE LÍNGUA INGLESA

Ana Cristina de Moraes Hazin Palhares1

Tereza Luiza de França2

RESUMO

Apesar do importante papel que poderia desempenhar no processo de democratização do conhecimento, possibilitando o acesso a outras culturas e equalizando as oportunidades sociais e profissionais, o ensino de língua inglesa tem, em muitas situações, servido para a manutenção do status quo. Acreditando na co-responsabilidade dos professores por uma possível transformação através de reflexões que extrapolem as paredes da sala de aula e questionem quem as mudanças educacionais estão servindo, objetivamos, através deste estudo, reconhecer as implicações da formação continuada no pensar e fazer dos professores de língua inglesa da rede pública de ensino para uma prática pedagógica transformadora e a importância do processo de conscientização nesta formação.

Palavras-chave: Formação continuada – ensino de línguas – conscientização.

EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: TRANSFORMANDO A REALIDADE

Vivemos em uma sociedade democrática, regida por um sistema capitalista, e, por isso, bastante complexa e rica em contradições. Os avanços da tecnologia e a restrição de acesso aos mesmos pela maioria da população, maiores índices de produtividade causando o enriquecimento de uma minoria e as condições desumanas nas quais grande parte da população tem existido são apenas algumas das contradições com as quais temos convivido no momento atual. A cada dia, os problemas decorrentes desta situação nos apontam, com maior intensidade, a necessidade de mudanças para possibilitar a sobrevivência da humanidade.

Ao propor uma pedagogia que revolucione a sociedade brasileira e ajude a construir uma sociedade não capitalista, Souza (2004b) enfatiza a necessidade de primeiramente buscar conhecer e compreender como funciona a sociedade para, então, refletir e procurar alternativas. Segundo Blackburn (1997, p. 365), a sociedade seria um:

Grupo de pessoas unificado por um conjunto de relações normativas características e sistemáticas, pelas quais se entende que as ações de um membro são dignas de respostas características por parte dos outros. Fazer parte da mesma sociedade é estar sujeito a estas normas de interação.3

Já Guareschi (2004) destaca, apesar de afirmar que a sociedade é uma realidade complexa que nunca conseguiremos compreender totalmente, duas dentre várias concepções existentes. A primeira seria a noção positivista de uma sociedade como algo que já está pronto e a outra, da qual compartilha, seria a definição histórica, crítica e dialética de que a sociedade se define a partir de suas relações. O autor enfatiza que essas relações, por se darem entre pessoas diferentes com idéias diferentes são, muitas vezes, de tensão. 1 Mestranda em Educação na UFPE, ([email protected]). 2 Doutora em Educação pela UFRN e professora da Pós-Graduação em Educação da UFPE, ([email protected]) 3 Definição registrada no Dicionário Oxford de Filosofia.

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Entendemos, também, a sociedade não como uma estrutura, mas como um processo permanente de estruturação, como uma correlação de forças, ou “uma briga de foice numa noite de breu no sertão nordestino”4, nas palavras de Souza. Sempre em processo de construção, palco de conflitos e confrontos contínuos, as relações sociais entre pessoas que têm diferentes formas de agir e pensar são bastante complexas e de difícil compreensão.

Apesar das dificuldades de convivência em sociedade e da atual crise ético-política que tem se instalado, podemos encontrar diversos autores5 que propõem a existência de um mundo diferente do atual, menos desigual e mais humano. Não se trata, no entanto, de um mundo pronto. Segundo esses autores, um mundo novo é possível, mas este precisa ser (re)inventado e transformado através de experimentações e muitas reflexões e confrontos. E ao almejar participar desta transformação, nossos estudos e projetos de pesquisa devem estar inseridos nesta perspectiva de criar um outro mundo, mais justo e verdadeiramente democrático para todos.

Mas o que exatamente pode ser feito para transformar a realidade? Santos (2002) acredita na possibilidade de criarmos outra democracia, mais verdadeiramente democrática como os ideais que a formularam no princípio, com mais participação popular e, portanto, um outro mundo. Contesta a existência apenas de um modelo, de uma concepção hegemônica de democracia, aonde esta se dá em apenas algumas formalidades e acredita ser preciso lutar por uma nova democracia, experimentando e inventando, não imitando modelos prontos.

Não nos referimos aqui a uma democracia representativa nos moldes liberais, como a que atualmente existe, aonde a participação da população se restringe a alguns atos durante o período eleitoral, mas de uma democracia popular aonde “os indivíduos se tornam sujeitos públicos enquanto seres políticos ativos, se transformam em seres socializados porque desenvolvem relações sociais e responsabilidades coletivas” (SEMERARO, 2002, p. 222).

Temos na educação a possibilidade de realizar essa transformação e reconstrução da sociedade. Defendemos, como aponta Assmann (1998, p. 26), que “a educação terá um papel determinante na criação da sensibilidade social necessária para reorientar a humanidade”. Para tanto, faz-se necessário, como o próprio autor sugere, ultrapassar os discursos críticos e desenvolver propostas que contemplem conjuntamente a melhoria pedagógica e o compromisso social.

Lima (2004) reforça este pensamento enfatizando que a educação é um elemento de extrema importância para democratizar a democracia, apesar de seus limites, pois sozinha não pode mudar tudo. Para que possa haver maior participação, faz-se necessário aprender a participar, experimentar a participação e não só falar sobre e o ouvir falar dela. O autor enfatiza que o papel da educação é um papel transformador e não instrumental, não servindo apenas para gerar mão de obra para o mercado, como vem sendo anunciado por aqueles que acreditam que a educação deve estar a serviço da economia e do mercado.

Souza (2004a), por sua vez, traz uma abordagem sociológica para explicar o surgimento da educação e da escola, palavras que atualmente se confundem. O autor mostra que a educação

4 Expressão utilizada com freqüência pelo professor João Francisco de Souza em suas aulas para descrever as dificuldades de convivência entre as pessoas na sociedade. 5 Destacamos os estudos de Freire (1970, 1980, 1996), Lima (2004), Santos (2002) e Souza (2004).

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vai muito além da escolar e que devemos buscar uma educação para a transformação da sociedade, para a humanização, e não para a desumanização, como temos presenciado ao longo dos anos. Uma educação através da qual as pessoas possam ser mais humanas e mais solidárias e que não se preocupe apenas em formar profissionais para ingressar no mercado de trabalho. Uma educação que não apenas aceite a diversidade, mas que a incentive, que a crie, que não apenas procure transmitir saberes, mas que leve as pessoas a refletirem e ajude a criar uma nova realidade.

Apesar das muitas promessas políticas, à educação não se tem dado a devida importância, e, como reforça Santos (2001, p. 79), “dentro dos inúmeros projetos políticos instituídos em nível federal, estadual ou municipal, a incidência da educação ser concebida como instrumento de democratização não apenas no discurso, mas principalmente como prática, corresponde a um percentual quase inexistente”.

Ao analisarmos a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 1996), é possível ilustrar esta diferença entre o discurso e a prática de forma bastante clara. A nova lei exalta a educação e a coloca como preocupação central das políticas públicas, mas, segundo Brzezinsky (1997, p. 149), as “ações sucessivas de desvalorização social e econômica dos profissionais da educação e o desmantelamento do ensino superior” têm mostrado exatamente o contrário. Essa realidade é muito semelhante à descrição de Anísio Teixeira (apud BRZEZINSKY 1997, p. 147) que mostra a existência na sociedade moderna de dois mundos diferentes: o mundo do sistema (o dos padrões, do esperado e dos discursos oficiais) e o mundo vivido (o real, da luta pela igualdade e pela democracia).

No mundo real, como alertam vários autores, entre eles, Gatti, 1997, algumas políticas excludentes, contrariando promessas feitas pelo poder público, não têm investido de maneira adequada na qualidade da educação e nos profissionais desta área e as conseqüências têm se mostrado muito graves. Os índices de evasão escolar e repetência têm aumentado e a melhoria do ensino não tem sido priorizada. Isso tudo em um mundo no qual as transformações estão acontecendo de maneira muito rápida, aonde os conhecimentos se renovam a cada dia, e que ameaça excluir aqueles que não estiverem atualizados e preparados para enfrentar estes novos desafios.

Mas o que fazer diante desta situação? Um dos possíveis avanços da LDB apontados por Brzezinsky (1997, p. 163), mas que poderá ficar apenas no discurso se não for exigido por aqueles que lutam em defesa da educação, é a garantia e direito dos profissionais de educação à formação continuada e até de licença remunerada para aperfeiçoamento profissional. Pois, como destaca Weber (1996, p. 9):

[...] qualquer mudança concreta no sistema educacional tem no professor um de seus principais agentes. De fato, é sobretudo através da ação docente, da prática pedagógica que ele desenvolve, que se realizam mediações entre a instituição escolar e a sociedade em que a mesma se insere.

Por isso, compreendendo a centralidade do trabalho do professor no trabalho educativo, é que sua formação tem se tornado motivo de tantos estudos, reflexões e embates nos últimos anos. Neste sentido, acreditando que a educação tem um papel de extrema importância no processo de transformação e democratização e, como afirma Souza (2004a, p. 18), que a educação “pode contribuir para a humanidade do ser humano”, uma das questões mais importantes, e

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com a qual estamos particularmente interessados neste estudo, é como a formação de professores pode contribuir para a democratização da sociedade e para a construção de um mundo mais justo e igualitário para todos.

Mais especificamente, buscamos compreender como a formação de professores de língua inglesa pode contribuir para esta construção, indagação esta que vem acompanhando mais de uma década de envolvimento com o ensino desta língua com constantes questionamentos acerca da prática docente e seus reflexos na sociedade. Em alguns momentos desta trajetória, não estava claro qual seria a importância deste ensino para a humanização da sociedade.

Refazendo o percurso de formação e exercício profissional, é possível constatar que, subjacente à maior parte deste, havia uma grande ênfase em questões metodológicas. Trabalhávamos e nos preocupávamos sempre, de forma às vezes até repetitiva, com questões como o método de ensino mais adequado, o ensino da gramática, o uso do livro didático, as novas tecnologias, as quatro habilidades - falar, ouvir, ler e escrever, planejamento de aulas, dentre outras temáticas, sem levar em consideração questões sociais e as repercussões da prática docente fora da sala de aula.

Ao cursar uma disciplina de educação em curso de especialização6, um novo mundo estava sendo desvelado. Educação humanizadora, preocupada com a cidadania e com a transformação da sociedade eram idéias nunca pensadas ou vivenciadas como professora de inglês e como ser humano. As inquietações geradas por estes pensamentos levaram a questionar porque este conhecimento não é trabalhado na graduação e a procurar conhecer melhor a formação de professores de línguas.

Estudos e pesquisas apontam que a função do professor de língua estrangeira no passado, como constata Volpi (2001, p. 126) se limitava meramente a aplicar um método ou utilizar materiais didáticos previamente elaborados, transmitir os seus conhecimentos a partir de decisões tomadas por especialistas baseados em teorias lingüísticas muitas vezes por ele desconhecidas. O professor era e ainda é, em muitos casos, considerado o único responsável pelo processo de ensino e o aluno não passaria de um agente passivo, receptáculo de informações e conhecimentos transmitidos pelo professor.

Muitos métodos de ensino de línguas foram elaborados, repassados, “dominados”, e depois trocados por outros mais modernos. Passamos, em geral, de um extremo a outro, ora enfocando o ensino da gramática como base da língua, ora quase proibindo o ensino de gramática em favor de um ensino que privilegiasse a comunicação. No entanto, apesar de enfoques diferentes, a maioria dos métodos considerava o ensino da língua de forma isolada, como auto-suficiente, sem encorajar a reflexão dos professores sobre o que estavam ensinando e nem problematizar como se dava o processo educativo e as questões sociais e políticas como intrínsecas ao processo.

Ao debruçar-nos sobre os atuais estudos acerca da formação do professor de línguas, principalmente de língua inglesa, pudemos constatar que, apesar de muitos ainda se restringirem à questão metodológica, existem algumas publicações que começam a questionar essa visão reducionista e que colocam a necessidade de uma educação transformadora e humanizadora. Lopes (2003), por exemplo, ao demonstrar e exemplificar a 6 Curso de Lingüística Aplicada ao Ensino de Língua Inglesa, realizado na FAFIRE entre 2000 e 2001.

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importância do discurso na sociedade, enfatiza a necessidade do professor de línguas buscar compreender a realidade atual para situar sua prática ao invés de assentá-la num vácuo social excluindo-se da vida política e social, como tem ocorrido muitas vezes sob a desculpa de que ensinar línguas não tem nada a ver com política. Leffa (2001, p. 334), por sua vez, afirma, na mesma linha de pensamento, que:

[...] a sala de aula não é redoma de vidro, isolada do mundo, e o que acontece dentro dela está condicionado pelo que acontece lá fora. Os fatores que determinam perfil do profissional de línguas dependem das ações, menos ou mais explícitas, conduzidas fora do ambiente estritamente acadêmico e que afetam o trabalho do professor.

Estariam entre as ações mais explícitas, por exemplo, leis e diretrizes do governo e projetos das secretarias de educação e entre as menos explícitas ações resultantes das relações de poder permeando a sociedade globalizada. Mas quantas dessas ações e de seus efeitos são, de fato conhecidas e compreendidas pelos professores de línguas e qual o engajamento desses profissionais em ações sociais e políticas?

Na atualidade, defendemos, como destaca Celani (2001, p. 33), que o professor de línguas estrangeiras tem, como educador, um compromisso com seu aluno, com a sociedade e consigo mesmo. Diversas e drásticas mudanças em relação ao papel do docente e do processo de ensino e aprendizagem que, segundo Volpi (2001, p. 126) “constitui-se em um compartilhar de responsabilidades, onde tanto o aluno como o professor interferem de forma integrada e solidária”7 deixam bastante clara a necessidade de transformações também em relação à formação desses professores.

Por isso, uma das importantes questões a serem pensadas no momento é como a formação continuada pode contribuir para que os professores de línguas a percebam que seu trabalho não se restringe às quatro paredes de sala de aula e que esta prática docente vai além das regras de uso da língua e metodologias de ensino e que exige um conhecimento da sociedade para que possa ser educação, transformadora e emancipatória, ou, como diria Vasquez (1977, p. 201), práxis revolucionária.

Pensamos ser necessário, portanto, explorar e desvelar as possíveis contribuições da formação continuada de professores de língua inglesa da rede pública para a prática docente. Será importante descobrir se esta formação está partindo da realidade e das necessidades dos professores envolvidos, levando-os a refletir criticamente sobre a prática em sala de aula e seu papel na sociedade. É mister também compreender as razões e fatores que têm contribuído para os possíveis avanços da formação continuada e apontar novos caminhos e desafios para uma formação crítica e transformadora.

Este estudo é de grande pertinência e importância para o momento histórico que vive a educação, pelo fato da necessidade cada vez mais presente de uma formação continuada, permanente e transformadora de educadores na luta por um outro modelo de sociedade. A relevância desse projeto deve-se, também, ao importante papel que o aprendizado de uma língua estrangeira tem no processo de democratização do conhecimento, possibilitando o acesso a outras culturas e equalizando as oportunidades sociais e profissionais.

7 Grifos do autor.

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FORMAÇÃO CONTINUADA: CAMINHOS E POSSIBILIDADES

Compreendendo, como sugere Giroux (1997), que os professores têm um importante papel a desempenhar na reinvenção da sociedade e que sua formação profissional é parte de um projeto político mais amplo e da própria luta social, faz-se necessário compreender como esta formação tem acontecido, quais as suas contribuições e desafios para um presente e futuro frente ao qual nos recusamos a permanecer passivos. E para compreender melhor o processo de formação de professores é também necessário pensar sobre a formação do próprio ser humano.

O estudo do ser humano como ser inacabado e sua eterna busca pelo novo na tentativa de completar-se e de ser mais sempre foi uma das principais inspirações para as reflexões e os escritos de Freire8. Segundo o autor, esta inconclusão é o “núcleo fundamental onde se sustenta o processo de educação” (1983, p. 27). E por isso, a educação, como tentativa do homem de se completar e de ser mais, teria um caráter contínuo e permanente.

Neste mesmo sentido, sabendo que o papel que os professores precisam estar preparados para exercer é bem mais complexo e exige competências que precisam ser adquiridas com a experiência da docência, dar continuidade a esta formação, buscando completar-se como ser humano e profissional é mais que necessário. Como afirma Leffa (2001, p. 341), a formação de um profissional “reflexivo, crítico, confiável e capaz de demonstrar competência e segurança no que faz é um trabalho de muitos anos, que apenas inicia quando o aluno sai da universidade”.

Ribeiro (1999), na mesma linha de pensamento, insiste que a formação de professores é um longo processo de desenvolvimento profissional, e não um momento único e passageiro, e argumenta que a formação continuada tem papel ativo na vida do professor; não sendo vista apenas como um dever a cumprir para progredir no plano de carreira nem como um acúmulo de cursos. Segundo o autor, o papel da formação continuada é, portanto, de “reestruturação e de aprofundamento dos conhecimentos adquiridos [...] e de produção de novos saberes”.

O conceito de formação continuada é, como podemos ver, bastante abrangente, o que nos aponta várias possibilidades de estudos a realizar e de ações de formação. De fato, apesar de ser uma área de pesquisa recente e das dificuldades encontradas para concretizar muitas das propostas apresentadas, pesquisas na área de formação continuada vêm se proliferando e apontando novos caminhos a serem seguidos. Fusari (2000, p. 23) destaca que uma das provas do crescimento desta área é o espaço que a formação continuada tem ocupado em congressos e reuniões de educadores e ainda, poderíamos acrescentar, a quantidade de publicações existentes sobre esta temática.

Podemos afirmar que grande parte desses estudos destaca a importância de uma formação vista sempre como um processo, no qual o professor esteja sempre questionando suas crenças e atitudes e refletindo sobre sua prática para poder recriá-la. É proposta uma noção de formação continuada mais ampla, que extrapola os limites da sala de aula e propõe repensar a educação, a cidadania e a sociedade como um todo.

8 Paulo Freire, pensador e educador comprometido com a educação popular para a libertação das classes oprimidas e para a humanização da sociedade.

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Vários trabalhos9 têm apontado a universidade como lócus responsável por intermediar esta formação. Marques (2000, p. 209) argumenta que:

[...] todas as instituições responsáveis pela educação devem ser envolvidas nos processos de formação continuada do educador. Cumpre, no entanto, dediquemos aqui atenção especial às responsabilidades específicas da universidade. Escola de educação do educador, à universidade não é atribuído apenas o processo formativo formal. Deve a ele dar continuidade e propiciar-lhe as rupturas exigidas pelo exercício da profissão na concretude das exigências renovadas.

Também tem sido enfatizado, nos mesmos estudos, a necessidade desta formação ser planejada a partir e em função da realidade da escola e dos professores envolvidos. Marques (2000, p. 207) insiste, sobre a formação continuada, que “nesse processo formativo que é o exercício de profissão centrado na vida da escola, rico de possibilidades e virtualidades, deve enraizar-se e dele irradiar-se, como em foco de origem e de retorno”.

Lembramos, como destaca Fusari (2000, p.23), que a formação continuada depende das condições de trabalho dos professores, mas também de suas atitudes em relação ao seu desenvolvimento profissional. Pois segundo o autor, “cada educador é responsável por seu processo de desenvolvimento pessoal e profissional [...] não há política ou programa de formação continuada que consiga aperfeiçoar um professor que não queira crescer”.

Ainda de acordo com Fusari, algumas condições devem ser asseguradas para que um projeto de formação continuada seja bem sucedido. Entre elas, destacamos a necessidade de valorizar e ouvir as experiências, idéias e expectativas dos educadores e a compreensão da formação continuada como condição básica para o desenvolvimento profissional, como parte do trabalho educativo e não como um evento esporádico. Não são, portanto, algumas palestras ou até mesmo um curso isolado que irão resultar em mudança e transformação da prática pedagógica. Como afirma Murray (1995), ao discutir a melhor maneira para profissionais da educação aprenderem a usar a Internet, os professores necessitam de oportunidades para usar o que está sendo aprendido e pessoas ou recursos que possibilitem responder perguntas que certamente irão surgir após o curso e, principalmente, na prática da sala de aula.

Não basta apenas repetir em sala de aula aquilo que foi observado em cursos ou palestras; isto seria a simples reprodução de uma ação que talvez não tenha nem sido bem compreendida. Faz-se necessário, refletir sobre as ações ao colocar em prática o que está sendo aprendido, para então poder, a cada dia, ir transformando e aprimorando a prática docente de forma crítica e consciente.

A reflexão desempenha um papel principal nesse processo de formação continuada. Como defende Freire (1996, p.43-44), “[...] é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”. Silva (2002, p. 27) também reforça este mesmo pensamento ao afirmar que “é no exercício profissional que a reflexão possibilita o surgimento de idéias inovadoras, exigindo do professor respostas construídas no espaço de atuação, nas divergentes realidades, necessitando-lhe criar novas formas e perspectivas de perceber e de agir”.

9 Destacamos os trabalhos de Ferreira, 2003; Celani, 2001; Volpi, 2001 e Marques, 2000.

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Placco e Silva (2000) apontam uma questão bastante relevante ao discutirem a formação continuada dos professores. Segundo as autoras, ao longo dos últimos anos, vários meios de formação vêm sendo utilizados para tentar continuar esse o processo de educação, mas quando o trabalho desses profissionais é analisado, tem se verificado “quão pouco os aspectos trabalhados se têm traduzido em ações diferenciadas ou transformadoras em sala de aula” (2000, p.28).

Alguns problemas centrais que talvez sejam responsáveis por essa realidade foram levantados, mas talvez os mais importantes sejam dois: que as necessidades dos professores não são levadas em consideração antes de elaborar ações de formação, e, ainda, durante esta formação não é discutido como o aprendizado que está sendo feito poderá se tornar ação capaz de transformar a sala de aula. É esperado que os próprios professores reflitam isoladamente e cheguem às suas próprias soluções, o que muitas vezes não acontece. Alguns professores até passam a desvalorizar a formação já que não parece ajudar a melhorar a qualidade de suas aulas.

Sousa (1997, p.30) constatou, durante uma pesquisa de campo sobre os cursos de formação continuada de professores no Ceará, que “os saberes e as metodologias utilizadas pelas professoras investigadas não são respeitados dentro dos programas de formação continuada [...] ocorre que as orientações dadas às professoras são para que estas troquem suas práticas escolares por outras que nem dominam”. Nesse caso, os professores trabalham com concepções pedagógicas instituídas por alguns de seus superiores, mas nem sempre bem compreendidas.

Também constatamos que, apesar da participação de muitos profissionais em cursos e capacitações, a situação do ensino de língua inglesa nas escolas públicas não tem melhorado nos últimos anos. Faz-se, então, necessário, analisar os processos de formação continuada nos quais esses professores têm se engajado e como essas oportunidades vêm sendo trabalhadas dentro do espaço escolar, durante reuniões pedagógicas, em reflexões coletivas e trocas de saberes e experiências e dentro de sala de aula. Essa reflexão pode ser de grande importância para fazer a ligação entre o que é aprendido em cursos e a realidade da sala de aula. Concordamos com Porto (2000, p. 20) quando sugere que a formação e a prática pedagógica devem ser consideradas como parte do mesmo processo, já que “as situações com as quais se defronta o professor exigem respostas construídas no espaço onde emergem”.

Pensamos, diante desse cenário, que um dos maiores desafios da formação continuada de professores de língua inglesa na atualidade é contribuir para que os professores reflitam criticamente sobre sua prática docente dentro e fora de sala de aula para que tenham melhores condições de “formar cidadãos capazes de enfrentar os desafios postos por essa nova civilização sem que se tornem instrumentos dos novos padrões de exploração do trabalhador pelo capital”. (SILVA, 2001, p.88). Trata-se, portanto de uma luta por uma educação libertadora e uma formação continuada que contribuam para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e igualitária para todos.

Sabemos que o ensino de línguas estrangeiras pode desempenhar um importante papel no processo de democratização do conhecimento. Segundo Tramonte (2002, p. 2), “o conhecimento em língua estrangeira é hoje considerado um direito, um requisito para o exercício de uma cidadania plena, não apenas para os alunos em fase escolar, mas para a maioria da população.”

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Podemos constatar, no entanto, que ao longo da história do ensino de línguas no Brasil este direito não vem sendo plenamente respeitado. E isto não tem acontecido apenas com o ensino de língua inglesa, mas de várias outras disciplinas. Tramonte (ibidem) afirma, ainda, que no contexto monolingue brasileiro o acesso à língua estrangeira tem sido privilégio de poucos e afirma ser necessário reverter esta história, transformando o ensino de línguas estrangeiras em instrumento de democratização do saber e de equalização das oportunidades sociais. Nesta perspectiva, que também defendemos, o aprendizado da língua estrangeira poderá possibilitar o contato com outras culturas e o acesso ao conhecimento universal acumulado pela humanidade de maneira mais uniforme.

Idéias semelhantes que ressaltam a importância do aprendizado de línguas estrangeiras podem ser encontradas também nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (1998) para o terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental10. Um dos principais objetivos do documento é “restaurar o papel da Língua Estrangeira na formação educacional” (p. 19). Segundo os PCN, o papel do aprendizado de uma língua estrangeira é importante pela possibilidade que o aluno tem, através desse estudo, de se perceber melhor como ser humano e cidadão, de desenvolver sua consciência crítica e de compreender as diversas formas de viver a experiência humana. O documento também ressalta que o aprendizado de uma língua estrangeira é um direito de todos os cidadãos e que a escola não pode mais se omitir em relação à sua responsabilidade, enfatizando ser função da escola, e não dos cursos particulares, não apenas oferecer o ensino de línguas estrangeiras, mas garantir a todos o acesso a uma “educação lingüística de qualidade” (p.21).

Ao descrever a situação atual do ensino de línguas nas escolas, o documento destaca que apesar do privilégio que as línguas estrangeiras detêm na sociedade, o ensino destas não é visto como importantes na formação do aluno, muito menos como um direito a ser assegurado e, por isso, não têm lugar de destaque no currículo. Na realidade, apesar do importante papel que poderia desempenhar, o ensino de línguas nas escolas, e, em nosso caso, de inglês, tem se transformado em motivo de polêmica ao longo dos anos. Vários autores buscam apontar as dificuldades no processo de ensino-aprendizagem da língua inglesa tanto no ensino público como no privado. Segundo Coelho (2002, p. 18), um dos problemas no ensino de inglês é o baixo nível de competência na língua materna, tanto no que diz respeito à pobreza vocabular, como a uma falta de rigor estrutural. A autora acredita que independentemente dos métodos utilizados, o aprendizado sofrerá influências da língua materna, e se esta não está bem estruturada, o aluno provavelmente terá dificuldades em estruturar a língua estrangeira.

Rodrigues (2003, p. 144) destaca que muitos professores afirmam ser impossível ensinar uma língua estrangeira em salas muito numerosas onde alunos têm níveis de conhecimento diferentes. Além do número excessivo de alunos, os Parâmetros Curriculares também chamam atenção para outras dificuldades com as quais se deparam os professores, como a falta de materiais, a reduzida carga horária dedicada à disciplina e a ausência de ações contínuas de formação dos professores.

Apesar da maioria das propostas de ensino de línguas situarem-se na abordagem comunicativa de ensino, o documento do MEC destaca que os exercícios que são realizados em sala de aula, em sua maioria, trabalham com estruturas gramaticais de forma descontextualizada. Dourado

10 Documento de reorientação curricular elaborado pela Secretaria de Educação Fundamental do MEC para os anos finais do ensino fundamental.

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e Obermark (2001, p. 394) afirmam que, na contramão dos estudos e dos parâmetros curriculares que objetivam a formação crítica do cidadão, as propostas dos livros didáticos favorecem a leitura de texto não para interpretar e construir significado, mas para repetir e recuperar a informação lida.

Uma das soluções propostas pelos PCN para melhorar os problemas diagnosticados é investir tanto na formação inicial quanto na continuada, vista como “contextos para a reflexão por meio do desenvolvimento dos professores em práticas de investigação” (p. 109). Encontramos, de fato, no documento, recorrentes apelos aos professores para que se envolvam em reflexões sobre sua prática em sala de aula e para que aprendam a refletir de forma sistemática para que gerar massa crítica e contribuir para o desenvolvimento da profissão.

Em relação ao ensino de língua inglesa, especificamente, uma das questões mais importantes que vem sendo bastante destacada é a multinacionalidade desta língua, que a torna ainda mais importante na atualidade. Leffa (2001, p. 343) destaca que o inglês, além de ser a língua mais estudada do mundo é também usada em mais de 70% de publicações científicas, é a língua das organizações internacionais e não tem fronteiras geográficas. Além de ser a língua oficial de 62 paises, é a língua estrangeira mais falada do mundo, havendo dois falantes não nativos que a usam para comunicação para cada falante nativo.

Power (2005) em matéria de destaque da Newsweek11 escreve que agora a língua inglesa é mais utilizada como segunda língua ou língua estrangeira do que como língua materna, o que vem modificando a própria língua. Já não existe mais tanta preocupação em falar e escrever como os ingleses ou americanos, mas apenas de se comunicar com sotaques e costumes da própria cultura. Torna-se, portanto, ainda mais rica e importante a oportunidade de estudar a língua inglesa como língua estrangeira, por possibilitar o conhecimento de novas e diversas culturas, facilitando, através do diálogo intercultural, a existência de situações de multiculturalismo.

Apesar do importante papel que poderia desempenhar em nosso país, o ensino de língua inglesa tem excluído, e não incluído a maior parte da população, ou como destaca Gimenez (2000, p. 3), tem servido para a manutenção do status quo. Muitas vezes os que sabem inglês, por ter maior e mais rápido acesso a informações, têm mais oportunidades de ingressar no mundo do trabalho. Como, então, reverter essa situação e democratizar o ensino de língua inglesa? A autora sugere que professores precisam se conscientizar do seu papel como co-responsáveis por uma possível transformação através de reflexões que extrapolem as paredes da sala de aula e questionem quem as mudanças educacionais estão servindo.

Recorrendo a Freire (1980, p. 25), sendo conscientização o conceito central de suas idéias sobre a educação, podemos ter um melhor entendimento da complexidade desta proposta. Segundo o autor, a conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica [...] Quanto mais conscientização, mais se ‘des-vela’ a realidade, mais se penetra na essência fenomênica do objeto, frente ao qual nos encontramos para analisá-lo (idem, p. 26).

11 Revista americana de grande expressão.

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Esta conscientização é, de fato, algo bastante complexo, mas que acreditamos ser imprescindível e inadiável, pois enquanto não a tivermos, estaremos sendo manipulados. Afinal de contas, é este “olhar mais crítico possível da realidade, que a ‘des-vela’ para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante” (idem, p. 29) que nos permitirá compreender melhor as nossas próprias ações e o papel do trabalho educativo. Afinal de contas, como transformar aquilo que não se conhece bem, nem se sabe porque precisa ser transformado? E, neste mesmo sentido, como educar(-se) sem compreender bem quais são as reais necessidades de todas as pessoas envolvidas no trabalho educativo por não conhecer bem o mundo em que vivem?

Precisamos retornar às idéias de Freire da inconclusão do ser humano como base da educação e a nossa vocação de sempre ser mais humano não apenas refletindo na boniteza das idéias, mas encontrando maneiras de agir, compreendendo a realidade para podermos transformar situações menos humanas em situações mais humanas. E um dos papéis mais importantes da educação numa perspectiva humanizadora é justamente permitir que todos tenham o direito de construir essa humanidade em si mesmo e nos outros, vencendo os conflitos que estão sempre presentes nas relações, e participando e reinventando a sociedade, com mais solidariedade, cooperação e respeito pela vida humana.

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ADOÇÃO DO MODELO GERENCIAL DE GESTÃO NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO MUNICIPAL E DESAFIOS A CONSTRUÇÃO DE UMA

SOCIEDADE MULTICULTURAL

Ana Lúcia Borba de Arruda1

RESUMO

Este trabalho buscou analisar como os princípios do modelo gerencial de gestão postos em prática no âmbito da gestão educacional no município de Panelas-PE consistem num desafio não só à consolidação da gestão democrática em âmbito local, bem como à efetivação de uma sociedade reflexiva, democrática e de pessoas em construção de sua humanidade na convivência dos diferentes. O modelo de gestão gerencial para educação está pautado na administração empresarial, que busca obter um melhor desempenho do sistema escolar a partir da utilização de técnicas e princípios alicerçados no controle do desempenho e da produtividade, com forte caráter centralizador e autoritário e ignora por completo a gestão democrática participativa que aponta para uma práxis pedagógico-administrativa e conscientizadora, compreendida no pensamento de Paulo Freire como instrumento de ampliação dos espaços democráticos e participativos da população.

Palavras-chave: Modelo Gerencial de Gestão - Gestão Democrática Participativa - Sociedade Multicultural.

GESTÃO DA EDUCAÇÃO: NOVOS DIRECIONAMENTOS A PARTIR DO MODELO GERENCIAL DE GESTÃO

O pressuposto teórico desta investigação fundamenta-se no entendimento de que a relação entre as mudanças ocorridas no âmbito da gestão da educação advindas com a reforma administrativa do Estado está articulada as alterações no "padrão da regulação estatal", postas pelas exigências da nova ordem mundial, o que implica em mudanças significativas não só nas instituições que prestam serviços ao Estado, bem como na sua estruturação interna.

No exame dos temas relacionados a tal questão, há que se considerar o processo de redemocratização vivido pelo país, a partir do final da década de setenta, pois a necessidade de se reformar o Estado tornou-se uma forte reivindicação de diversos segmentos da sociedade civil das mais diferentes tendências2, como resposta aos problemas de ordem econômico-financeira por que passou, e passa, a economia brasileira e como conseqüência das modificações da economia mundial.

Entretanto, é na década de noventa, na gestão de Fernando Collor de Melo, que se dá início ao processo de reforma do Estado, sob a égide da "modernização do país". Modernidade essa que terá que ser construída a partir da negação do Estado, pois nesse momento o Estado é um obstáculo ao desenvolvimento do país, logo é considerado como sinônimo de atraso como bem afirma Collor de Melo, em seu discurso no qual anuncia a reforma econômica em 16 de março de 1990, "o Estado não é mais o motor de nossa história nem tábua de salvação. Na

1 Mestre em Educação pela UFP, professora da FBV e professora substituta da UFPE (DMTE) ([email protected]). 2 Dentre esses blocos, podemos mencionar um que de fato vislumbrava a efetiva democratização do aparelho do Estado e da sociedade, almejando aumentar os espaços dos movimentos populares, e outro que objetiva adequar o aparelho do Estado às solicitações da nova economia internacional. Pois, como salienta Oliveira (1999, p.72), a reforma do Estado precisa ser analisada sob o ângulo das classes populares e o ângulo do bloco dominante.

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democracia, quem salva a nação não é o governo, é a sociedade" (NOGUEIRA, 1990, p.4). Este debate emerge num cenário marcado pela crise fiscal do Estado e por um momento no qual fortes críticas são feitas à máquina estatal, como inoperante, que fornece serviços de má qualidade, dentre outros.

Contudo, a reforma do Estado iniciada com Fernando Collor de Melo, só veio a ser implantada com força total, a partir do primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), em 1995. A reforma como vem se processando, tem por base princípios3 que possuem relação direta com os postulados neoliberais e se apresenta como uma estratégia de readaptar a estrutura administrativa do país às imposições da nova ordem do capitalismo em nível mundial, e de garantir a inserção do país no cenário internacional, bem como o seu "ingresso no Primeiro Mundo".

Nessa direção, o Estado, como instituição que responde pela regulamentação e controle das políticas públicas, terá que assumir um novo perfil, isto é, tornar-se mais enxuto e flexível no agenciamento das políticas públicas, viabilizar o desenvolvimento econômico, utilizando para isso a intervenção e o controle do mercado em detrimento da ação dos administradores públicos.

Na realidade, o que se percebe é a intenção de transferir atribuições do Estado para a iniciativa privada e a sociedade civil, e quando não for possível tal transferência ou privatização, cabe ao Estado incorporar em suas ações a lógica do setor privado.

Percebe-se, pois, que os encaminhamentos dados na gestão de Fernando Henrique Cardoso estão em consonância com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, pois esse pretendia:

[...] modificar a ação do Estado, de tal modo que sua intervenção reguladora, em cada setor específico, se tornasse eficaz. A intenção central era reconstruir a própria administração pública em novas bases modernas e racionais (FREITAS, 2000, p.89).

As diretrizes centrais da reforma do Estado, com base nas orientações neoliberais, influenciaram diretamente as políticas públicas em geral, e se refletem nas reformas educacionais propostas a partir da década de noventa. Essas aparecem "revestidas" por um discurso onde a busca pela eficácia, competitividade, produtividade e excelência passam a ser germinadas/fertilizadas no âmbito educacional.

Vale ressaltar que esses discursos, realizados no campo da educação, foram construídos com base em acordos e recomendações de organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, sobre prioridades e estratégias para a modernização da educação e do ensino. As orientações provenientes dessas agências é que fornecem os marcos de referência para a formulação ou aperfeiçoamento das políticas vigentes, delimitando assim as áreas prioritárias para a mudança.

3 Sobre os princípios defendidos no Plano Diretor da Reforma do Estado, elaborado pelo Ministério da Administração Pública e Reforma do Estado em 1995, confira introdução desta dissertação.

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De acordo com Vieira (2002), os impactos dos "cenários de reforma"4 estão repercutindo diretamente na agenda para a reforma da área educacional, pois nesta estão sendo solicitadas: "exigências de expansão do sistema educacional, de mais e melhor escolaridade, de organizações enxutas e eficientes, de escolas eficazes, de professores bem treinados" (p.8). Mais adiante, complementa a autora, afirmando que "o rol de novidades é amplo. Pode ser visualizado na carteira de empréstimos dos organismos que financiam as reformas em um amplo espectro de países clientes; o Brasil não escapa a regra".

Importa ressaltar que nas últimas décadas do século XX, vem-se discutindo intensamente a necessidade de se reformar o Estado, pois diante de uma suposta crise de governabilidade e credibilidade, ele se tornara incapaz de dar conta das novas necessidades impostas pela reestruturação produtiva e pela mundialização da economia. Como conseqüência, assistimos a um movimento internacional de reforma do aparelho do Estado que teve início na Europa e nos Estados Unidos, alcançando, posteriormente, a América Latina.

Tal movimento está estreitamente relacionado com o "novo" enfoque que vem sendo dado à administração pública, isto é, com o gerencialismo5.O ideário da administração pública gerencial tomou maiores proporções a partir da década de 80, principalmente na Inglaterra, sob o governo de Margareth Thatcher e nos Estados Unidos, na era Ronald Reagan.

Cabe destacar que, mesmo sem apresentar resultados concretos sobre a efetividade da adoção do modelo gerencial pela administração pública, para Ckagnazaroff (1997), as razões que estariam levando gestores públicos a copiar o setor empresarial estão relacionadas à necessidade de a administração pública oferecer respostas "eficientes" ao discurso gerencialista. Para o autor, a adoção do Programa de Qualidade Total por instituições públicas é um dos exemplos dessa resposta que vem sendo emitida enquanto estratégia de mudança, principalmente pelos governos locais.

No caso brasileiro, a tentativa de imprimir à ação estatal os princípios da administração pública gerencial, ou nova gestão pública, ou new public management, teve início nos anos 90, ainda no governo de Collor de Melo.

Contudo, a Reforma Administrativa do Estado de fato efetivou-se no governo de Fernando Henrique Cardoso, fazendo emergir assim o novo modelo de gestão que viria a ser uma referência para os três níveis governamentais – federal, estadual e municipal. O principal articulista e implementador da administração gerencial foi o ex-ministro Luís Carlos Bresser Pereira. Na visão de Bresser Pereira (1996), o modelo de gestão gerencial se contrapõe à administração patrimonialista, que se apropria privadamente do patrimônio público e à administração pública burocrática à medida que a administração pública gerencial toma por base uma concepção de Estado e de sociedade democráticos e plurais, considerando a existência de conflitos, a cooperação, a incerteza e o papel dos cidadãos na defesa de seus interesses.

4 Termo utilizado por Vieira para designar as forças que impulsionaram as mudanças na área educacional a partir de meados dos anos noventa, a saber: consolidação da globalização, redefinição das formas de organização do Estado e o fortalecimento do papel das agências internacionais. 5 O gerencialismo pode ser compreendido como a introdução de técnicas e práticas das organizações privadas no âmbito da administração pública, a fim de atingir objetivos preestabelecidos com mais eficiência, economia e eficácia.

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A adoção de um modelo administrativo nessa direção faz depreender a idéia que existe uma sociedade portadora de um certo nível cultural e político em que as práticas patrimonialistas não se fazem mais presentes. Esse prisma de análise e compreensão fortalece ainda mais quando tomamos conhecimento de algumas características da administração gerencial, citadas por Bresser Pereira (1996, p.272), a saber:

Descentralização política, pela transferência de recursos e atribuições para os níveis regionais e locais:

Organizações com poucos níveis hierárquicos em vez de piramidal; Organizações flexíveis no lugar de unitárias e monolíticas, nas quais as idéias de multiplicidade, de competição administrativa e de conflito tenham lugar; Definição dos objetivos a serem atingidos na forma de indicadores de desempenho sempre que possível quantitativos, que constituirão o centro do contrato de gestão entre o ministro e o responsável pelo órgão que está sendo transformado em agência; Controle por resultados, a posteriori, em vez do controle rígido, passo a passo, dos processos administrativos; Administração voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de auto-referido.

Cabe registrar, ainda, que a posição desse autor acena no sentido de reconhecer que a administração pública gerencial, tal como a moderna gestão empresarial, fundamenta-se na teoria administrativa das organizações, deixando a teoria econômica das organizações, representada por Taylor e Henri Fayol, em segundo plano. Afirma Bresser Pereira que, a partir de George Elton Mayo, a teoria das organizações passou a ter matriz sociológica ao invés de econômica, descartando assim a perspectiva economicista, que reforça o caráter autoritário em prol de uma abordagem mais humanística e participativa.

Contudo, diversos autores brasileiros, nos últimos anos, destacando-se, dentre eles, os trabalhos de Oliveira (1998); Carvalho (1999) e Diniz (2000), também vêm emitindo inúmeras críticas à administração pública gerencial6.

Uma análise dessas críticas e das respostas do ex-ministro nos revela que a sua principal preocupação é demonstrar que o modelo de gestão gerencial não está baseado no ideário neoliberal e conduz a um contexto social mais democrático.

No tocante à educação, os primeiros trabalhos publicados, voltados para área de administração educacional, surgem a partir de 1913 nos Estados Unidos. Nos artigos escritos pelos teóricos fundadores da Teoria Geral da Administração, há aplicação dos princípios e normas tanto do taylorismo como do fayolismo no campo educacional.

A estrutura hierarquizada e autoritária preconizada por Taylor e Fayol, que pressupõe o uso da coerção para o cumprimento de tarefas, tem implicações profundas e diretas na administração escolar, pois as escolas são estruturadas de tal forma que o poder de coerção, inerente ao processo administrativo, é levado até as últimas conseqüências. Diretores, coordenadores, professores e pessoal de apoio, dentre outros, exercem freqüente e indiscriminadamente seu 6 Um desses argumentos fundamenta-se na idéia de que a administração gerencial, deixa de lado o desenrolar da atividade administrativa, isto é, o acompanhamento do processo, satisfazendo-se apenas com os resultados apresentados ao final. No caso da empresa privada, tal ação pode até ser viável mas, em se tratando da administração pública, os meios também interessam à população, devendo ser objeto de fiscalização e normas pois, numa democracia, o povo não espera apenas das instituições públicas os resultados.

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poder de dominação sobre os alunos, tornando-os dóceis, submissos e conformistas, ou seja, adestrados para receberem pacificamente a dominação. Para Tragtenberg (1976), esta ação revela que: "o aparelho escolar contribui para a reprodução da força de trabalho, na medida em que transmite saber e regras de conduta (ler, escrever e contar), que têm um destino produtivo" (p.8).

De acordo com essa perspectiva, o diretor escolar tem seu perfil definido pelos princípios do poder, com autoridade e competência técnica, estando comprometido com a eficácia da organização, devendo desempenhar bem suas funções, principalmente a de agente de controle.

Importa ressaltar que a administração educacional que se dá neste contexto ocorre de forma centralizada e burocrática, disseminando, assim, relações autoritárias e verticais no interior do sistema educacional, como bem destaca Moacir Gadotti (1996, p.137), "o administrador torna-se um defensor dos interesses do Estado dentro da Escola e não um defensor dos interesses da população no sistema".

No bojo da evolução das teorias da administração, o movimento da Escola de Relações Humanas e da Escola Comportamentalista vão ressaltar a importância das relações sociais como elemento determinante dos resultados das práticas organizacionais, relativizando, assim, a idéia de que era possível uma racionalidade da administração baseada na organização do trabalho, como defendiam Taylor e seguidores. Para Kuenzer (1984, p.41), "é a partir do comportamentalismo que começa a se desenvolver com profundidade a preocupação com a construção da teoria de administração educacional". Entretanto, há que se destacar que a administração, a partir dessas escolas administrativas, assumiu um caráter mais "humano"; sem contudo abandonar os princípios da autoridade e da hierarquia, além de continuar reforçando a divisão entre os que planejam (especialistas racionais) e os que executam (indivíduos irracionais).

As palavras de Ferreira (2002, p.28)7 expressam com pertinência o papel que o administrador terá que assumir a partir deste movimento:

O papel do administrador é de ser um agente integrador, decisor, promotor da 'fusão' entre indivíduo e instituição. Esse profissional deverá situar-se como mediador entre a produção institucional através da eficácia, e a produtividade humana através da eficiência, contribuindo decisivamente para alcançar os objetivos estabelecidos pela instituição.

Como é possível perceber, os conceitos clássicos da administração, embora importantes para orientar o trabalho dos administradores escolares, são insuficientes pois não levam em conta as especificidades e complexidades da escola. Em outras palavras, as escolas representantes tanto da teoria administrativa quanto da teoria organizacional não elaboraram estudos específicos que viessem contribuir com as práticas administrativas em organização escolar. Dessa forma, a administração escolar se restringiu aos aspectos puramente administrativos, burocráticos e instrumentais, distanciando-se das discussões que envolvem a prática pedagógica.

Nesta direção, importa destacar que a administração educacional brasileira não terá um 7 Aqui nos referimos ao artigo elaborado pela Profª. Dra. Rosilda Ferreira Arruda, intitulado "Gestão da Escola".

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percurso muito diferente do quadro que acabamos de desvelar. Pois, de acordo com Sander (1989, p.12), "[...] administración pública y gestión educativa prevalecientes en Europa y Norteamérica han sido extensamente adoptadas en América Latina y el Caribe."

A partir de 1930, o Brasil adota um enfoque empresarial baseado nos princípios do taylorismo/fayolismo8 como forma de organização do trabalho que irá influenciar tanto a administração pública como a privada. De acordo com o autor supracitado:

La evaluación de dichos estudios demuestra que, desde la década del 30, sus autores buscaron los elementos conceptuales y metodológicos en las teorías clásicas y psicosociales de administración concebidas en Europa y en los Estados Unidos de América (SANDER, 1989, p.12).

Partindo desta mesma ótica, o sistema educacional não fugiu à regra e terminou incorporando a essência da organização burocrática na estruturação de suas atividades. Sobre essa questão Sander (1984), acrescenta que a administração da educação incorporou, sem contestar a validade, todos os princípios da administração lançados pelas várias teorias e escolas administrativas.

PARA ALÉM DO MODELO GERENCIAL DE GESTÃO: A GESTÃO DEMOCRÁTICA PARTICIPATIVA

De acordo com o encaminhamento dado à administração da educação, a partir da discussão acima mencionada, os eventos que começam a ser realizados nos primeiros anos da década de 60 e no decorrer de 70, se efetivaram enquanto surgimento de associações de profissionais da educação voltados para o estudo e reflexão da administração da educação e suas relações com os fatores sociopolítico-econômicos e culturais9. Verifica-se, então, nas incursões feitas sobre a administração da educação no Brasil, uma crescente preocupação com a complexidade e a especificidade das organizações de ensino e, como conseqüência, a necessidade de se proporem e se construírem "modelos" que orientem as ações e práticas dos administradores neste tipo de organização.

No final da década de setenta e início de oitenta, a sociedade brasileira enfrenta sérias crises políticas e econômicas que repercutem em seus diversos setores. Essas crises, refletidas no sistema educacional, exigem novas proposições para um contexto de cunho mais democrático. Tais propostas, em suas concepções, defendem uma escola pública democrática e de qualidade, o envolvimento dos agentes educativos nas decisões. As manifestações de lutas dos trabalhadores em educação, ocorridas nesse período, tiveram como eixo as mudanças na gestão e na organização da escola, assim como a luta por uma política de valorização do magistério.

Nesse contexto de luta pela construção da democracia e de instalação do processo de 8 De acordo com Kuenzer (1984, p.40), o primeiro trabalho publicado no Brasil sobre o fayolismo na administração da escola pública foi o de Querino Ribeiro, em 1938. 9 Dentre essas, podemos mencionar a formação da Associação Nacional de Profissionais de Administração da Educação (ANPAE) em 1961, que na ocasião realizou o I Simpósio Brasileiro de Administração Escolar em São Paulo, o I Congresso Interamericano de Administração da Educação (1979) em Brasília que sob o patrocínio da ANPAE, da Organização dos Estados Americanos (OEA) e do Conselho Universitário de Administração da Educação dos Estados Unidos (UCEA) formaram a Sociedade Interamericana de Administração da Educação.

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democratização da educação brasileira é que a Carta Constitucional de 1988 institui a "democracia participativa" e a possibilidade do povo exercer o poder "diretamente" através da Gestão Democrática do Ensino Público (Art.206, inciso VI) que, posteriormente, será reafirmado no Artigo 3º da LDBEN de 1996 - e nas Constituições de vários Estados, o princípio da Gestão Democrática. Princípio este que veio ser reforçado, mais tarde, no Plano Nacional de Educação elaborado pelo Ministério da Educação em 1998:

A eficiência e eficácia da gestão exigem, portanto, uma política específica dirigida em termos das seguintes diretrizes: formação de quadros técnicos qualificados e permanentes no Ministério da Educação e nas secretarias estaduais e municipais e especialmente no que diz respeito aos sistemas de informação, avaliação e planejamento, a desburocratização e a descentralização da gestão, especialmente através de uma maior autonomia das escolas, às quais devem ser repassados, automaticamente, os recursos necessários à manutenção do cotidiano escolar, uma gestão democrática e participativa especialmente no nível das escolas, mas também através dos conselhos Estaduais e Municipais, que assegure a fiscalização do uso e destinação adequada dos recursos disponíveis (MEC,1998, p.78).

Nessa perspectiva, a incorporação da Gestão Democrática do Ensino Público na forma da Lei significa, para os trabalhadores em educação e outros segmentos "progressistas" da sociedade, a possibilidade de se forjar uma cultura de participação na qual a comunidade pudesse vir a exercer o acompanhamento e o controle social sobre as ações da administração pública. Assim sendo, a Gestão Democrática reflete o desejo de uma sociedade que rejeita o autoritarismo, o clientelismo, o assistencialismo e a corrupção e, ao mesmo tempo, propõe introduzir novas bases sociais e políticas que impeçam os velhos acordos entre as elites. Nesse sentido, a gestão democrática por promover a instituição de direitos à comunidade traz consigo "germes" da transformação social. Desta perspectiva, é que vemos as possibilidades de juntos podermos chegar à diversidade, avançar para criar espaços públicos transnacionais, onde seja possível uma outra noção de direitos. Não os direitos abstratos, que existem para mascarar as desigualdades, mas os direitos organizados e concebidos politicamente que desmascaram as desigualdades.

As reflexões aqui registradas permitem perceber que a própria lei proclama a participação da comunidade na gestão da educação, na tomada de decisões, no acompanhamento e na fiscalização de todo o processo de gestão. Contudo, a participação, o acompanhamento e a fiscalização comunitária na gestão da educação devem ser analisados em diferentes estados e municípios, sendo necessário levar em conta o grupo político local e o nível de consciência alcançado pela população, pois, muitas vezes, a instauração da gestão democrática é inviabilizada como conseqüência da ação centralizadora de grupos políticos conservadores, principalmente em espaços locais tradicionalmente controlados por “coronéis” e políticos com práticas de dominação autoritárias.

Desta forma, é comum encontrarmos governos estaduais e municipais que apresentam medidas/políticas em sintonia com o planejamento nacional, no sentido de garantir acordos e vantagens, mas na prática inviabilizam qualquer ação que venha por em risco o seu poder e sua concepção de sociedade. No caso específico da região Nordeste, muitas vezes, esta situação é agravada em função das práticas clientelistas e da política do favor. Portanto, mesmo não estando consolidada em todo o país, a gestão democrática é uma ameaça à perpetuação de práticas conservadoras e autoritárias e aponta para um outro tipo de sociedade: reflexa, reflexiva, gregária, democrática, totalitária, de dominados e submissos, de pessoas em

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construção de sua humanidade na convivência dos diferentes, portanto, numa interculturalidade, configurando assim uma sociedade multicultural.

ADOÇÃO DO MODELO GERENCIAL DE GESTÃO NO ÂMBITO DA EDUCAÇÃO MUNICIPAL DO MUNICÍPIO DE PANELAS - PE

Como sabemos, pois é uma prática comum na política brasileira, a cada nova administração municipal (estadual ou federal), emerge uma nova concepção de sociedade, de educação, bem como de gestão de educação que é disseminada por toda a rede, seja no nível municipal, estadual ou federal de ensino, interferindo diretamente em sua estrutura e funcionamento. No município de Panelas, tal situação não é diferente, e pode ser percebida a partir de 1997, quando um novo grupo político assume o poder municipal.

No âmbito da gestão municipal de Panelas, que já vem em seu segundo mandato, podemos apontar que existe uma lógica "perversa", pois enquanto o governo federal institui e divulga os mecanismos de descentralização e municipalização como forma de "promoção" da participação e controle dos diversos segmentos da sociedade da formulação e implementação das políticas municipais, no caso do município, constata-se, no concreto, que as ações que deveriam ser "descentralizadas" do poder municipal para a comunidade local, a fim de que haja a referida participação, na realidade, não acontecem.

Isto quer dizer que nesta gestão houve, e ainda há, uma concentração de poder de decisão sobre os rumos das ações desenvolvidas no poder municipal na pessoa do prefeito, pois os diversos órgãos de gestão do município, como é o caso das secretarias, atuam no sentido de apenas executar as decisões tomadas pelo poder central. Sendo assim, neste contexto, centraliza-se o poder de decisão, enquanto se descentraliza o processo de execução. Vale enfatizar que na gestão do município de Panelas iniciada desde 1997, não foram abertos espaços institucionais de participação da população, pois nem os conselhos que deveriam ser instituídos por força da Lei foram criados10,aliás, foram apenas formalmente. Outro indício de que a participação da sociedade não é incentivada pelos gestores locais é o fato do município não promover as Conferências Municipais de Educação (CME) como mecanismo democrático que pode vir a incentivar a participação popular, como o fizeram diversos municípios pernambucanos.

Nota-se, pois, que os objetivos e as diretrizes da política educacional do município estão sendo elaborados sem a participação da comunidade e representantes dos setores ligados à educação municipal. Portanto, percebemos que a viabilização da gestão democrática torna-se inviável numa conjuntura em que o debate sobre questões relevantes para a população não é estimulado. Vale destacar que, embora seja mencionada no Estatuto do Magistério a necessidade de se fortalecer a gestão participativa na escola, esta aparece apenas como atribuição do professor a ser realizada no nível da gestão das escolas. Nessa perspectiva, o Estatuto dispõe que um dos deveres do professor é "fortalecer a gestão participativa das unidades escolares" (Art. 48). Diante disso, nos indagamos como pode o professor incentivar a gestão participativa na unidade escolar se ele mesmo é excluído do processo de participação e do debate mais amplo?

10 Constata-se, pois que a existência do Conselho de Acompanhamento do FUNDEF no município de Panelas se dá apenas no papel, apenas como cumprimento de exigência legal para garantia do repasse dos recursos federais.

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Assim, o enfoque de gestão da educação assumido em Panelas, desde 1997, defende claramente os princípios que sustentam o modelo de gestão gerencial no âmbito da educação e se encontra articulado ao modelo de administração pública gerencial proposto pelo ministro Bresser Pereira (1996), no âmbito do projeto de Reforma do Estado brasileiro. Este tipo de gestão propõe reformar o aparelho do Estado através da descentralização dos procedimentos administrativos, além de supervalorizar os processos de controle e avaliação dos resultados.

Partindo dessa compreensão, a gestão do município de Panelas buscou se adequar, em parte, às normas e aos encaminhamentos dados à gestão da educação no âmbito do governo federal, enfatizando o caráter centralizador e autoritário das decisões e menosprezando o caráter democrático e participativo da gestão. Para tanto, no ano de 1998, foram elaborados os seguintes documentos: "Estatuto do Magistério da Rede de Educação da Prefeitura Municipal de Panelas"11, Lei n.º 814; o "Plano de Carreira e Remuneração do Magistério de Panelas"12, Lei n.º 813; e o Sistema de Avaliação da Rede Municipal (SAREM), todos fundamentados nos critérios de produtividade e desempenho docentes como elementos-chaves para combater a evasão, a repetência e elevar os índices educacionais do município. Essa compreensão pode ser sustentada no texto do Plano quando este estabelece que será concedido incentivo ao docente que apresentar: "I - Melhor índice de desempenho e aproveitamento nas capacitações, cursos e similares; II - Menor índice de evasão escolar e III - Melhor índice de conhecimento dos discentes" (Art. 7º).

Percebe-se uma grande preocupação da gestão em relação aos processos de controle e avaliação dos resultados. E, como sabemos, pois a história não nos permite omitir, o controle e a fiscalização excessivos das ações educacionais, além de hipertrofiar as estruturas, dificultam a construção de uma rede de ensino pautada na autonomia, também um princípio fundamental para pensarmos a gestão democrática da escola pública.

Constatamos, pois que o poder local, nessa conjuntura, não se apresenta como espaço privilegiado e capaz de viabilizar uma relação mais próxima entre a comunidade e governo. Ao contrário, caracteriza-se como um espaço de resistência ao diálogo em função da não aceitação da diversidade de idéias, de pensamentos, ideologia etc. Na atualidade, percebemos com mais clareza que a diferença não deve ser apenas respeitada, ela é a riqueza da humanidade, base para a existência do diálogo mediado pela ética do respeito.

Contudo, ao nosso ver é a partir dos espaços locais que começam a se forjar redes de resistências às configurações sociais impostas pelo processo de globalização na direção da construção de um novo espaço público, que poderá contribuir para a efetivação da multiculturalidade, ainda que isso possa implicar posicionamentos distintos e conflituosos.

Nessa mesma direção, Paulo Freire (apud SOUZA, 2002) salienta que “seu desejo de uma relação dialógica entre culturas, seu sonho de interculturalidade e a possível construção da multiculturalidade não eliminam as tensões permanentes que atravessam essas relações, assim como suas ambigüidades, conflitos, contradições e múltiplas possibilidades, tanto positivas

11 O referido documento consiste num conjunto de normas que regula a relação funcional dos servidores com a administração pública e prescreve sobre os direitos, responsabilidades, vantagens, exercício etc. Mais adiante, trataremos novamente sobre os referidos documentos. 12 Documento que define e regula as condições e o processo de movimentação dos integrantes numa determinada carreira, estabelece a progressão funcional e a remuneração dos professores. Vale mencionar que o citado Plano é uma das exigências da Lei Federal 9.424/96, que instituiu o FUNDEF.

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quanto negativas” (p.141).

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SANDER, Benno. Gestão da educação na América Latina: construção e reconstrução do conhecimento. Campinas, SP: Autores Associados, 1995.

______ Educação, Trabalho e Cidadania: eixos de uma política social relevante na América Latina. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v.16, n.2, p.137-155, jul./dez., 2000.

SOUZA, João Francisco de Souza. Atualidade de Paulo Freire.São Paulo: Cortez, 2002.

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_____ A Teoria Geral da Administração é uma Ideologia? Revista de Administração, Rio de Janeiro, n. 3-4, v.11, p.7-2, out./dez.1971.

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PEDAGOGIA DO INÉDITO-VIÁVEL: CONTRIBUIÇÕES DE PAULO FREIRE PARA FORTALECER O POTENCIAL EMANCIPATÓRIO

DAS RELAÇÕES ENSINAR-APRENDER-PESQUISAR

Ana Lúcia Souza de Freitas1

RESUMO

A perspectiva metodológica do inédito-viável orientou o diálogo de saberes que permitiu perceber as contribuições da pesquisa para o fortalecimento do potencial emancipatório dos processos educativos. Fazer pão coletivamente é a metáfora viva que expressa tal compreensão, utilizando-se da imagem para sumariar as relações entre fazer pão e fazer educação através de quatro quadros que codificam as palavras geradoras trabalho coletivo, improviso, registro e crescimento no intuito de problematizar as relações ensinar-aprender-pesquisar. Resulta desta investigação a proposição da Pedagogia do inédito-viável, sendo esta uma importante contribuição para sugerir o conhecimento-emancipação como diferencial das práticas e concepções político-pedagógicas multiculturais “freireanamente grávidas de alternatividade”.

Palavras-chave: Inédito-viável – conhecimento emancipação – processos educativos emancipatórios.

INTRODUÇÃO

O trabalho refere-se à tese defendida em dezembro/2004, cuja investigação tem origem na experiência da Política Educacional da Administração Popular em Porto Alegre. A perspectiva metodológica do inédito-viável delineou a reciprocidade das ações de pesquisar o ensino desde a universidade e ensinar a pesquisa desde a sala de aula através do diálogo entre os saberes de referência – o diálogo de Paulo Freire com outros teóricos: Maurice Tardif, Boaventura de Sousa Santos e Edgar Morin - e os saberes da experiência oriundos de três trabalhos de campo: (1) a pesquisa com a Escola Fundamental La Salle- Sapucaia do Sul, (2) as oficinas de pesquisa em trabalhos de formação de natureza diversa e (3) a pesquisa-ensino na experiência docente em um semestre letivo.

Mediante este diálogo de saberes, foi possível perceber as contribuições da pesquisa para o fortalecimento do potencial emancipatório dos processos educativos e vislumbrar a (trans)formação do paradigma dominante na direção do fortalecimento do conhecimento-emancipação enquanto horizonte de expectativa a ser realizado. Fazer pão coletivamente é a metáfora viva que permitiu sistematizar esta compreensão, sendo a imagem o recurso utilizado para sumariar as relações entre fazer pão e fazer educação através de quatro quadros que codificam as palavras geradoras trabalho coletivo, improviso, registro e crescimento para problematizar olhares possíveis sobre o potencial emancipatório dos processos educativos de ensinar-aprender-pesquisar. Resulta desta investigação a proposição da Pedagogia do inédito-viável em treze teses com o intuito de disseminar práticas pessoais/institucionais emancipatórias e corroborar com a compreensão acerca da necessária reinvenção da escola e da universidade, bem como de sua reciprocidade na formulação de políticas públicas e inclusivas de formação com educadores e educadoras.

No contexto deste V Colóquio, a reflexão sobre a Pedagogia do inédito-viável tem o intuito de 1 Doutora em Educação pela PUCRS; professora da PUCRS e da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre. ([email protected]).

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trazer para o diálogo a ênfase no conhecimento-emancipação enquanto diferencial das práticas e concepções político-pedagógicas multiculturais “freireanamente grávidas de alternatividade”2. Nesse sentido, é fecundo o diálogo de Paulo Freire com Boaventura de Sousa Santos (1996) para compreender o conflito entre o imperialismo cultural e o multiculturalismo como um dos elementos que integram a proposição de uma Pedagogia do conflito, orientadora dos processos educativos emancipatórios. Segundo o autor, uma educação para o inconformismo requer a aprendizagem de conhecimentos conflitantes e se caracteriza por três conflitos de conhecimentos: (1) a aplicação técnica e a aplicação edificante da ciência; (2) conhecimento-como-regulação e conhecimento-como-emancipação; (3) imperialismo cultural e multiculturalismo. É, pois, na amplitude desta compreensão que a Pedagogia do inédito-viável se apresenta freireanamente grávida de alternatividade ao propor a experiência do diálogo de saberes como modo de problematizar a hegemonia do conhecimento científico para que se realizem as intencionalidades emancipatórias dos processos educativos.

PAULO REGLUS NEVES FREIRE: O TESTEMUNHO DO POTENCIAL EMANCIPATÓRIO DAS RELAÇÕES ENSINAR-APRENDER-PESQUISAR

A referência a Paulo Freire por extenso - Paulo Reglus Neves Freire – tem o intuito de chamar atenção para o fato de que, tal como seu nome próprio, há muitos aspectos pouco conhecidos e/ou reconhecidos de sua produção teórica. Especialmente, no âmbito da formação de professores, no que se refere a sua contribuição para o fortalecimento do potencial emancipatório que reside nas relações ensinar-aprender-pesquisar. Trata-se de considerar o testemunho de sua própria experiência em teorizar a prática e destacar o modo como propõe que a pesquisa associe-se ao ensino para realizá-lo como ação transformadora.

Inicialmente, importa destacar sua compreensão acerca da reciprocidade das relações ensinar-aprender, ao considerar que “ensinar inexiste sem aprender e vice-versa”(FREIRE, 1996, p.26). Tal reciprocidade refere-se ao reconhecimento de que “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (opus cit., p.25). Partindo desta compreensão, merece aprofundamento a indissociabilidade da relação ensino-pesquisa enquanto complementaridade de tais relações. Na obra Pedagogia da Autonomia, é possível observar a explicitação do pensamento de Paulo Freire a respeito das relações ensino-pesquisa. Em nota de rodapé, sugere ser esta quase uma obviedade a ser considerada:

Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca a pesquisa. O de que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador (opus cit., p.32).

A relação docência-pesquisa, concebida enquanto ato indicotomizável, vincula-se à compreensão de que “as relações entre educadores e educandos são complexas, fundamentais, difíceis, sobre que devemos pensar constantemente” (FREIRE, 1993, p.82). Como decorrência desta compreensão, Paulo Freire preocupa-se com a criação e o desenvolvimento de atitudes de formação que contribuam para que educadores e educadoras possam assumir

2 Conforme ementa do terceiro eixo temático: inédito-viável, esperança e pedagogia das grandes convergências.

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criticamente o “movimento dinâmico entre pensamento, linguagem e realidade do qual, se bem assumido, resulta uma crescente capacidade criadora” (opus cit., p.8).

Nessa perspectiva, merece destaque o significado atribuído ao ato de registrar como parte do compromisso da prática educativa criticamente exercida. A partir de sua experiência pessoal de relação com a escrita, o registro é compreendido como um instrumento de apoio à reflexão/estudo/ investigação sobre a própria prática. Para ele, o ato de registrar é uma forma de exercitar a capacidade de observar, desafiando as certezas da própria observação:

Precisamos exercitar nossa capacidade de observar registrando o que observamos. Mas registrar não se esgota no puro ato de fixar com pormenores o observado tal qual para nós se deu. Significa também arriscar-nos a fazer observações críticas e avaliativas a que não devemos, contudo, emprestar ares de certeza (opus cit., p. 68).

Freire propõe que criemos o hábito de registrar a prática e a reflexão sobre a prática a partir do que ele mesmo vivenciou na sua relação com a escrita, expressão de seu compromisso com a teorização a partir das experiências cotidianas. A leitura de sua obra permite perceber as relações exercidas entre a experiência da reflexão a partir da prática e o ato de registrar esta reflexão – de modo sistemático e sistematizado – enquanto importante contribuição para o desenvolvimento da cultura da pesquisa associada à prática educativa.

De modo especial, na obra Pedagogia da Esperança, Paulo Freire relata o processo de reflexão e escrita que deu origem à obra Pedagogia do Oprimido. Revela com detalhes o modo como escreveu, em quinze dias, os três primeiros capítulos, argumentando seu entendimento sobre como “o momento de escrever é sempre precedido pelo de falar das idéias que serão fixadas no papel [...] escrever é tão re-fazer o que esteve sendo pensado em diferentes momentos de nossa prática” (FREIRE, 1992, p.54). Segundo ele, escrever sobre o vivido é uma forma de organizar as aprendizagens gestadas na prática e na reflexão crítica e sistemática sobre ela. Freire é bastante didático ao narrar sua própria experiência de produção intelectual:

[...] Comecei a escrever fichas a que ia dando, em função do conteúdo de cada uma, um certo título ao mesmo tempo em que as numerava. Andava sempre com pedaços de papel nos bolsos, quando não com um pequeno bloco de notas. Se uma idéia me ocorria, não importava onde estivesse, no ônibus, na rua, num restaurante, sozinho, acompanhado, registrava a idéia. Às vezes, era uma pura frase. À noite, em casa, depois do jantar, trabalhava a ou as idéias que havia registrado, escrevendo duas, três ou mais páginas. Em seguida, dava o título para a ficha e o número em ordem crescente (opus cit., p.58).

É possível perceber a contribuição da experiência de Paulo Freire na peculiaridade de seu testemunho acerca da fertilidade do registro da reflexão que ocorre durante a ação para o desenvolvimento da autoria do próprio pensamento. Precedida da oralidade partilhada no processo de ação-reflexão-ação, a sistematização da escrita se faz geradora da reflexão sobre a ação, movendo o processo de criticização da consciência acerca do “parentesco entre os tempos vividos que nem sempre percebemos, deixando assim de desvelar a razão de ser fundamental do modo como nos experimentamos em cada momento” (opus cit., p.28).

Freire também faz referência ao valor da experiência da partilha da reflexão no processo de teorizar a partir da prática ao comentar que, ao hábito de escrever textos associou “o de

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discuti-los, toda vez que possível, com dois grandes amigos com quem trabalhava [...] discutindo achados e não apenas meus textos, debatendo dúvidas, interrogando-nos, desafiando-nos, sugerindo-nos leituras, surpreendendo-nos” (opus cit., p.52). Sobretudo, Freire revela-nos o prazer vivido nesse processo:

O gosto com que me entregava àquele exercício, à tarefa de ir como que me gastando no escrever e no pensar, inseparáveis na criação ou na produção do texto, me compensava o déficit de sono com que voltava das viagens. Já não tenho na memória os nomes dos hotéis onde escrevi pedaços do quarto capítulo da Pedagogia, mas guardo em mim a sensação de prazer com que relia, antes de dormir, as últimas páginas escritas (opus cit., p.61).

A escrita de Paulo Freire evidencia, pois, o intenso processo de produção teórico-crítica a partir da permanente reflexão sobre suas vivências, tendo no registro um ponto de apoio fundamental. Alerta-nos, entretanto, que essa produção intelectual não tem um fim em si mesma. A riqueza do processo vivido encontra-se justamente na relação dialética que estabelece entre registro e oralidade, entre teoria e prática, na qual a interação assume a função de realimentar o próprio processo de escrita, orientando-a no sentido de novas necessidades. Freire destaca ainda o valor do registro para recuperar, a posteriori, a compreensão de um momento anterior, sendo esta uma forma de elevar a reflexão a outros patamares, num processo de superação permanente.

Deste modo, Paulo Freire se faz testemunho da fertilidade do ato de pesquisar a partir da prática e da importância do registro enquanto uma possibilidade de o/a professor/a distanciar-se epistemologicamente de sua reflexão para melhor compreender e transformar a sua prática. Em virtude da própria experiência, argumenta a favor da necessidade da constituição de espaços coletivos de formação, a fim de que se desenvolvam práticas de observação, registro, reflexão e discussão permanentes. Sugere, aos educadores e educadoras que, em seu trabalho com educação popular, tenham a preocupação de ir “registrando estórias, retalhos de conversas, frases, expressões, que pudessem proporcionar análises semânticas, sintáticas, prosódicas do seu discurso” (opus cit., p.72).

Teorizar a partir da prática é, pois, um dos saberes vislumbrados na leitura de Paulo Freire, tanto pelo modo como escreve, ao narrar as situações vividas e refletir a partir do impacto das emoções por elas geradas, quanto pelo modo como explicita, didaticamente, o seu próprio processo de gestação de idéias. A peculiaridade de sua escrita se faz mobilizadora da autoria de educadores e educadoras que, ao perceberam a fertilidade da reflexão teórica gestada a partir da prática contextualizada, assumem sua própria atuação como espaço de investigação e tensionam as possibilidades institucionais de desenvolvimento profissional a fim de que possam atuar e serem reconhecidos como professores pesquisadores.

Essa perspectiva crítica expressa na compreensão freireana de professor pesquisador, se faz relevante, sobretudo, ao concebermos o compromisso com o registro e a reflexão permanente da prática educativa enquanto parte do compromisso político mais amplo:

Escrever, para mim, vem sendo tanto um prazer profundamente experimentado quanto um dever irrecusável, uma tarefa política a ser cumprida. [...] escrever não é uma questão apenas de satisfação pessoal. Não escrevo somente porque me dá prazer escrever, mas também porque me sinto politicamente comprometido, porque gostaria de convencer outras pessoas, sem a elas mentir, de que o sonho ou os

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sonhos de que falo, sobre que escrevo e porque luto, valem a pena ser tentados (FREIRE, 1994, p.15-16).

Enfim, tomando como referência a potencialidade evidenciada pelo testemunho de Paulo Freire, gostaria de enfatizar a compreensão acerca das possibilidades de o registro, na perspectiva por ele proposta, constituir-se em elemento organizador do processo de teorização da experiência cotidianamente vivida tendo em vista o desenvolvimento da cultura da pesquisa como dimensão do ensino.

Trata-se de reiterar a densidade do compromisso político a que se vincula a concepção freireana de professor pesquisador e o necessário fortalecimento das práticas docentes como espaços de produção de conhecimento. Eis o que justifica a proposição inicial acerca do reconhecimento da contribuição de Paulo Freire para fortalecer o potencial emancipatório das relações ensinar-aprender-pesquisar.

A PERSPECTIVA METODOLÓGICA DO INÉDITO-VIÁVEL A categoria do inédito-viável, presente desde os primeiros escritos de Freire, tem sido pouco comentada e estudada3. Essa categoria está relacionada à compreensão da história como possibilidade, da qual decorre uma posição utópica que opõe-se à visão fatalista da realidade. Relaciona-se ao entendimento de que a realidade não é, mas está sendo e, portanto, pode ser transformada. Tal perspectiva é própria da consciência crítica que compreende a historicidade construindo-se a partir do enfrentamento das situações-limites que se apresentam na vida social e pessoal. Assim:

Os homens e as mulheres têm várias atitudes diante dessas situações-limites: ou as percebem como um obstáculo que não podem transpor, ou como algo que não querem transpor ou ainda como algo que sabem que existe e que precisa ser rompido e então 1se empenham na sua superação (FREIRE, ANA MARIA, 1992, p.205).

No entanto, o desenvolvimento da consciência crítica implica necessariamente a ação transformadora; a consciência crítica complementa-se no ato crítico e criativo do sujeito que assume sua responsabilidade histórica. Por isso, a consciência crítica não apenas predispõe-se à mudança, mas age de forma autônoma em relação às situações-limites; não apenas acredita na possibilidade da transformação, mas assume a luta pela construção do inédito-viável.

Esse “inédito-viável” é, pois, em última instância, algo que o sonho utópico sabe que existe mas que só será conseguido pela práxis libertadora [...] é na realidade uma coisa inédita, ainda não claramente conhecida e vivida, mas sonhada e quando se torna um “percebido destacado” pelos que pensam utopicamente, esses sabem, então, que o problema não é mais um sonho, que ele pode se tornar realidade (opus cit., p.206).

Logo, o inédito-viável é a materialização historicamente possível do sonho almejado. É uma proposta prática de superação, pelo menos em parte, dos aspectos opressores percebidos no processo de conhecimento que toma como ponto de partida a análise crítica da realidade. O risco de assumir a luta pelo inédito-viável é, pois, uma decorrência da natureza utópica, 3 Essa afirmação, bem como as idéias centrais que explicam essa categoria, é feita por Ana Maria Araújo Freire, em longa e explicativa nota da obra Pedagogia da Esperança (nota nº1, p.205-207); este é o referencial [...]que deu suporte à compreensão que aqui se apresenta. Uma versão ampliada da mesma encontra-se em FREITAS (2004).

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própria da consciência crítica, e encerra em si uma perspectiva metodológica, visto que faz do ato de sonhar coletivamente um movimento transformador.

A capacidade de sonhar coletivamente, quando assumida na opção pela vivência da radicalidade de um sonho comum, constitui-se numa atitude de formação que orienta-se não apenas por acreditar que as situações-limites podem ser modificadas, mas, fundamentalmente, por acreditar que essa mudança se constrói constante e coletivamente no exercício crítico de desvelamento dos temas-problemas sociais que as condicionam. Portanto, opõe-se ao entendimento de tais situações-limites como determinantes históricos a que não reste outra alternativa senão adaptar-se aos mesmos, para, ao contrário, assumir politicamente a historicidade da existência frente a sua superação.

Tal concepção fundamenta a compreensão acerca do desenvolvimento da capacidade de sonhar coletivamente constituir-se numa atitude de formação “produto-produtora do inédito-viável, pois quando os seres conscientes querem, refletem e agem para derrubar as situações-limites [...] o inédito-viável4 não é mais ele mesmo, mas a concretização dele no que ele tinha antes de inviável” (opus cit., p.207). Nesses três movimentos - querer, refletir e agir - é possível perceber uma proposição metodológica em que se encontram-se articuladas, numa perspectiva de complexidade, as três dimensões do conhecimento necessárias à construção do inédito-viável, quais sejam: a dimensão política, a dimensão epistemológica e a dimensão estética.

O “plano do querer” encerra em si a dimensão política em função da qual se fazem as opções que orientam a direção do sonho a ser construído; opções que não se eximem da necessária clareza teórica, nem mesmo de sua inteligência estética. O “plano do refletir” encerra em si a dimensão epistemológica a partir da qual se ampliam: a compreensão da razão de ser das situações-limites e os motivos que tornam imprescindível a luta pelo sonho; a clareza em torno das possibilidades teóricas de construí-lo, bem como das condições sociais necessárias à sua materialização. Esse processo não dispensa a sensibilidade e a natureza política que lhe imprimem significado e exigem sua rigorosidade metódica. O “plano do agir” encerra em si a dimensão estética que envolve a qualidade da participação nesse processo; considerando, numa perspectiva de sensibilidade e complexidade, a inteireza do sujeito que conhece e constrói-se construindo a história. Por isso, o agir não se constitui unicamente por aspectos subjetivos, mas também pela natureza política e epistemológica que o explicam:

A reflexão em torno desses três movimentos auxilia a vislumbrar a possibilidade de construir o inédito-viável como um modo de superação dos condicionamentos históricos que o tornam momentaneamente inviável. Acreditar na potencialidade do ato de sonhar coletivamente, nessa perspectiva, significa compreender a importância da rigorosidade metódica para, ao perceber os temas contidos nas situações-limites, tomá-los como objeto de estudo e reflexão, podendo perceber também que “além dessas situações e em contradição com elas encontra-se algo não experimentado” (FREIRE, 1979, p.30).

A luta pelo sonho é, pois, uma decorrência do processo de construção da criticidade, ou seja, a conscientização, que “está evidentemente ligada à utopia” (opus cit., p.28) constituída na dialeticidade da denúncia e do anúncio. Sonhar coletivamente implica, portanto, exercer simultaneamente um duplo compromisso: a denúncia das situações-limites e o anúncio de 4 Grifos da autora.

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possibilidades ineditamente-viáveis. Nesta tensão entre denúncia e anúncio gesta-se a luta pelas condições sociais necessárias para realização dos sonhos possíveis, já que o critério “da possibilidade ou impossibilidade de nossos sonhos é um critério histórico-social e não-individual” (FREIRE, 1983, p.99). Por isso o inédito-viável não ocorre ao acaso nem se constrói individualmente, mas diz respeito às alternativas construídas coletivamente a partir da vivência crítica do sonho almejado, tendo em vista a superação das situações-limites que impedem sua concretização.

Assim, ao orientar-se pelo entendimento da história como possibilidade e comprometer-se com o desenvolvimento da capacidade de sonhar coletivamente, a prática formadora que assume a perspectiva do inédito-viável constituir-se-á na dialeticidade da pedagogia da indignação e da esperança, a que se coaduna a necessidade de um projeto político-pedagógico emancipatório adequado ao tempo presente; o qual, segundo Sousa Santos (1996), é aquele que:

[...[ trata-se de um projeto educativo orientado para combater a trivialização do sofrimento [...[ consiste em recuperar a capacidade de espanto e indignação e orientá-la para a formação de subjetividades inconformistas e rebeldes [...] a conflitualidade do passado, enquanto um campo de possibilidades e decisões humanas, é assumida no projeto educativo como conflitualidade de conhecimentos [...] todo conhecimento é uma prática social de conhecimento, ou seja, só existe na medida em que é protagonizado e mobilizado por um grupo social [...] é um projeto de aprendizagem de conhecimentos conflituantes com o objetivo de, através dele, produzir imagens radicais e desestabilizadoras [...] educação, pois, para o inconformismo [...] que recusa a trivialização do sofrimento e da opressão e veja neles o resultado de indesculpáveis opções (p.17-18). Compreendido desse modo, o ato de sonhar coletivamente constitui-se em atitude crítica de formação que concebe a distância entre o sonhado e o realizado como um espaço a ser ocupado pelo ato criador. Assumi-lo coletivamente abre possibilidades para que se consolidem propostas transformadoras e ineditamente-viáveis.Trata-se portanto de considerar que sonhar coletivamente é uma atitude de formação produto-produtora do inédito-viável.

FAZER PÃO E FAZER EDUCAÇÃO: VIVÊNCIAS DE UMA PEDAGOGIA INÉDITA E VIÁVEL

A vivência de “pôr a mão na massa”, assumida como oficina de pesquisa, integra o percurso de construção da metáfora viva como uma proposta metodológica que problematiza a relação ensinar-aprender-pesquisar ao mobilizar a dimensão vivencial do conhecimento. Enquanto perspectiva metodológica, a vivência da metáfora de fazer pão coletivamente configura-se como uma proposta inédito-viável que sugere a assunção da pesquisa como atitude investigativa sobre a própria prática, fortalecendo o movimento de ação-reflexão-ação diante da problematização da consciência acerca de dois outros elementos constituintes do movimento de (trans)formação permanente: a emoção e o registro.

Apesar da diversidade e singularidade da experiência em diferentes contextos de realização da proposta, foi possível vislumbrar alguns aspectos fundamentais que caracterizam uma possível “receita básica” – não do pão, mas do processo – que configuram a vivência da metáfora como oficina de pesquisa a partir de quatro movimentos complementares, a saber: (1) proposição do inédito - trata-se do convite à reflexão através da vivência de “pôr a mão na massa”, bem como dos movimentos que precedem sua realização - é o momento do acolhimento e da problematização iniciais; (2) mão na massa –caracteriza-se pela vivência da

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feitura do pão em si, constituída por quatro movimentos mobilizadores da reflexão na ação – as primeiras reações, preparar a massa, sovar e modelar; (3) sistematização da reflexão - refere-se à proposição de potencializar os momentos de espera e cuidado – crescer e assar a massa até o pão ficar pronto – mediante a elaboração da reflexão sobre a ação através de relatórios em grupos, e (4) hora da partilha consiste no momento coletivo de partilha da reflexão sobre a reflexão na ação - gerada na vivência e a partir dela – mediante a apresentação dos relatórios dos grupos. A hora da partilha é também o momento de celebração dos resultados da feitura do pão, com a sua degustação.

Na totalidade dos quatro movimentos que a constituem, a metáfora viva apresenta-se como provocação à vivência e sistematização da experiência em processo e configura-se como proposição mobilizadora da auto-consciência em torno das relações constitutivas entre saber, experiência e interação. A ausência da receita consiste na problematização implícita que se revela nos questionamentos acerca de como fazer, instigando o fazer coletivo como possibilidade de partilha e ampliação de saberes. A peculiaridade de cada contexto e a provável inexistência das condições ideais para a feitura do pão, tensionam a vivência da metáfora ao diálogo com as condições concretas para sua viabilização. Assim, entre a expectativa e a desconfiança, a tarefa vai sendo realizada desde as primeiras reações à proposta, mobilizando a auto-organização do grupo. Na diversidade das interações possíveis, evidenciam-se quatro momentos distintos que integram o processo de feitura do pão em si, ou seja, o ato de “pôr a mão na massa”.

PRIMEIRAS REAÇÕES (1) - Diante da tarefa, os movimentos iniciais são diversos e provocam proposições que se vão complementando ou até se opondo ao sugerir formas de organização. Entre a idealização e o improviso, a constatação da ausência da receita, como decorrência quase “óbvia”, impele à pergunta sobre “quem sabe fazer pão?”. O saber da experiência é um dos primeiros elementos a configurar o cenário de possibilidades para a realização da tarefa. À medida que vão-se constituindo grupos de trabalho, a interação vai-se complexificando em dois sentidos: a interação no próprio grupo e a interação entre os grupos, tendo em vista a necessidade de operar a feitura do pão.

PREPARAR A MASSA (2) - Não basta ter os ingredientes fundamentais; para “dar a liga” na massa é preciso saber a medida certa de cada um e também como misturá-los. Todavia, os questionamentos em torno da receita não impedem que cada grupo vá constituindo seu próprio jeito de fazer. Reunindo ingredientes e partilhando saberes, vão-se constituindo os movimentos de preparo da massa. SOVAR (3) – Há sempre alguém que lembra o fato de que “O segredo de um bom pão é uma boa sova!”. Alguns, mais criativos, explicitam o que estariam imaginando ao sovar a massa e justificam: “Para sovar melhor, é preciso ter um bom motivo!”. Explicitando ou não seus motivos, este é um dos momentos privilegiados da vivência, em que as pessoas vão, a seu modo, inserindo-se no ato de “pôr a mão na massa”. Em tempos e jeitos diversos, vão encontrando sua forma e atribuindo sentidos à própria participação. Sentir-se necessário e querer aprender são dois ingredientes que se destacam entre as justificativas atribuídas ao que mobiliza participar. Esse é, sobretudo, um momento de alegria, de brincadeira, de lembranças, de encontros e desencontros, em que a consciência da responsabilidade não obstrui a alegria da interação.

MODELAR (4) - Preparar o pão para assar inclui dar forma à massa. O tempo de modelar é também um tempo/espaço de exercício da criatividade. A estética do pão se expressa tanto na

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diversidade dos formatos moldados, quanto nos detalhes de sua ornamentação. Entre outros, é o caso de passar uma gema de ovo sobre a massa antes de ir ao forno, interferindo assim em sua coloração final.

É interessante chamar atenção às situações-limite que se vão configurando na seqüência dos momentos que integram o movimento de “pôr a mão na massa” – reação inicial, preparar a massa, sovar, modelar – e que impelem o grupo – ou alguém dele – a tomar decisões durante o processo, a fim de obter sucesso na realização da tarefa. O que deve ser colocado primeiro? Qual a quantidade de cada ingrediente? Onde aquecer a água? Como distribuir os pães nas formas disponíveis? Como dividir o espaço/tempo do forno para assar todos os pães? Mediante essas e outras questões, a feitura do pão vai viabilizando-se tanto em função da existência dos ingredientes, quanto da qualidade das interações exercidas. Elementos objetivos e subjetivos repercutem diretamente nos resultados da vivência, os quais, são produto-produtores da disposição do grupo em assumir o trabalho e construir alternativas às impossibilidades que se apresentam no decorrer do processo.

Aos poucos, a movimentação inicial dá lugar a um tempo de espera, sendo este um momento privilegiado para a sistematização da reflexão em processo. Tal intencionalidade se operacionaliza através da proposição de que se elabore - em pequenos grupos - um relatório sobre o processo vivido a partir das anotações de cada um/a, tendo em vista uma sistematização preliminar a ser posteriormente partilhada no coletivo. Muito mais do que o relatório em si, as discussões geradas no próprio grupo, bem como as conversas e as interações que ocorrem neste espaço de tempo, são reveladoras do potencial reflexivo da vivência da metáfora.

Contudo, o tempo de espera é também um tempo de cuidado. Primeiramente, é preciso perceber o ponto da massa para ir ao forno; depois, é preciso acompanhar o tempo de cozimento para que o pão não fique cru, nem passe do ponto. Sobretudo, mediante a necessidade de que todos os pães possam ser assados num determinado período de tempo e dentro das condições objetivas dadas, este momento requer um mínimo de organização coletiva, embora nem todos precisem estar diretamente envolvidos com a tarefa. A combinação do horário da partilha – momento para o qual cada grupo deve aprontar o pão e o relatório - serve de parâmetro à auto-organização de cada grupo.

A vivência da tensão gerada pelo movimento de, simultaneamente, exercer a escrita coletiva e observar o pão que está assando, desafia, literalmente, o exercício de distanciamento do objeto – o pão – problematizando a qualidade deste distanciamento. É preciso distanciar-se estando perto; envolver-se na reflexão sem deixar de estar atento para perceber o momento certo de tirar o pão do forno. Assim, este tempo de espera, compreendido como tempo de cuidado, não se reduz à pura espera, mas requer atenção e sensibilidade para perceber – e interferir se necessário - no processo do pão que está assando, cuja observação vai definir quando ele estará pronto.

O risco do pão poder queimar opera como um certo “antídoto” para que a possibilidade/necessidade de distanciamento não se transforme em quase abandono/esquecimento, problematizando a noção de cuidado. Como nos lembra Caetano Veloso, “quando a gente gosta é claro que a gente cuida”. Nesse ínterim, ainda que cada grupo elabore seu relatório, configura-se também um tempo que permite interações livres, cujo potencial formativo também se faz revelador. Convém lembrar que o envolvimento do

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grupo - tanto na sistematização da reflexão quanto nas interações livres - não pode descuidar do pão que está assando.

De modo especial, durante a observação do cozimento do pão, as mostras que antecipam o resultado do trabalho vão animando o grupo e fazendo com que a desconfiança inicial và cedendo lugar à surpresa. O entusiasmo dos participantes se evidencia e se expressa de diversas formas. Merecem destaque falas manifestadas espontaneamente neste momento, tais como: “Estou gostando de ver o pão que está crescendo!”; “Vou te dizer, quem amassou esse pão aí fui eu!”; “Vai fazer sucesso esse pãozinho!”. Aos poucos, o cheiro do pão ficando pronto anuncia a hora da partilha que se aproxima.

À medida que o ambiente vai-se impregnando do aroma do pão sendo assado, e que os pães vão, pouco a pouco, saindo do forno, o resultado do trabalho não passa despercebido – inclusive nos arredores, para além do grupo diretamente envolvido – e aguça a curiosidade da degustação. Os pães assados, dispostos no centro da sala, são alvo da observação, admiração e reflexão coletivas. É interessante destacar o elemento surpresa que se revela neste momento, considerando que, ao assar, a massa cresce e assume forma própria.

Assim, mediante o impacto dos resultados gerados no trabalho coletivo, sem desconsiderar a expectativa que anuncia os possíveis sabores a serem desfrutados, instaura-se um momento privilegiado de reflexão. A partilha da reflexão configura-se como possibilidade de aprofundamento da mesma, para além da vivência. Assim, a partilha da reflexão precede a partilha do pão! O momento da partilha se organiza em função da apresentação do trabalho de cada grupo, tanto em seus resultados – os pães – quanto em suas análises do processo – os relatórios. A leitura dos relatórios dos grupos dá início à partilha da reflexão gerada no processo, abrindo possibilidades de estabelecer relações com o tema em estudo. Na partilha emocionada, busca-se elaborar conjuntamente a sistematização possível, tendo em vista a provocação da continuidade da reflexão-ação-investigação em momentos posteriores.

A partir da apresentação dos relatórios, o prosseguimento da discussão fica condicionado ao tempo e à disponibilidade do grupo, podendo avançar no próprio momento ou indicar proposições para a continuidade em momentos posteriores. Por fim, a degustação encerra a vivência da metáfora com o prazer da partilha dos sabores – em que se inscrevem saberes - dos pães produzidos, celebrando as aprendizagens geradas desde o trabalho coletivo. Junto ao prazer da degustação, o vivido neste momento também traduz a necessidade da tomada de decisões no decorrer da vivência da metáfora. Tanto a partilha do pão quanto o destino dos ingredientes restantes e a limpeza do local requerem decisões e iniciativas para o encerramento da oficina de pesquisa, trazendo novos elementos a serem tematizados no processo de reflexão.

Enfim, eis a proposição da vivência da metáfora como oficina de pesquisa, cuja compreensão sugere as similaridades entre a vivência de fazer pão coletivamente e a configuração dos processos educativos emancipatórios. Vale reiterar, ainda que a proposta em si seja a mesma, seu desdobramento é bastante singular em cada nova edição, tanto em função do contexto em que a proposta se apresenta, quanto dos sujeitos que dela participam. Contudo, respeitando a diversidade das experiências, é importante ressaltar a noção de complementaridade entre os quatro movimentos que integram a vivência de fazer pão coletivamente como oficina de pesquisa – proposição do inédito, mão na massa, sistematização da reflexão, hora da partilha. É importante fortalecer a compreensão acerca da recursividade do processo educativo

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implícito na complementaridade dos quatro movimentos que caracterizam a vivência da metáfora como oficina de pesquisa a fim de que tal potencialidade possa ser intencionalmente recriada em outros contextos.

Nesse sentido, é importante considerar a gestão do processo como um aspecto que requer especial atenção a fim de que a vivência da metáfora de fazer pão coletivamente, para além de um momento prazeroso de integração de grupo, possa configurar-se como uma oficina de pesquisa, porque mobilizadora da reflexão conceitual. Trata-se, pois, de tematizar a gestão da vivência da metáfora, no operar de sua intencionalidade, desde a tensão vivenciada entre as necessidades e as possibilidades de, simultaneamente: acolher e problematizar; deixar fluir e intervir; sistematizar e desafiar a continuidade da reflexão-ação-investigação. A gestão da metáfora, assim como a gestão dos processos educativos, é elemento fundamental para a realização de seu potencial (trans)formador.

PARA SEGUIR A AÇÃO-REFLEXÃO-INVESTIGAÇÃO

A compreensão sobre as relações entre fazer pão e fazer educação emerge na trama dos saberes gestados no percurso da ação-reflexão-investigação. Transformar o pão-alimento em alimento da reflexão é, pois, o inédito que se anuncia e nos desafia a problematizar a concepção instrumental/bancária do processo educativo mediante as intencionalidades emancipatórias realizadas na complementaridade das relações de ensinar-aprender-pesquisar. Importa considerar as contribuições da vivência da metáfora para significar uma nova compreensão acerca dos processos educativos, como revela a reflexão sistematizada por um dos grupos de trabalho:

[...] toda aula, no fundo, é como amassar o pão e equilibrar os ingredientes (...) não só em sentido literal mas também metafórico, por considerarmos que toda aula constrói-se como na culinária:

1º: apresentam-se os ingredientes;

2º: questiona-se o que fazer com os ingredientes;

3º: iniciar as misturas;

4º: amassar bem a massa;

5º: deixá-la crescer;

6º: cozê-la;

7º: degustá-la.

Assim também acontece na educação: deparamo-nos com o conteúdo e os alunos, perguntamo-nos o jeito melhor para se trabalhar, iniciamos o trabalho, modelamos a construção dos conceitos, deixamos os conceitos ganhar forma nas mentes dos educandos, abrimos espaço para que eles expressem as suas idéias, apreciamos junto com toda a turma o que foi feito5.

Na escrita da reflexão sobre a metáfora, é possível perceber os significados atribuídos à 5 Excerto de um relatório elaborado por um grupo de trabalho da disciplina de Didática no Curso de Filosofia da PUCRS.

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relação entre fazer pão e fazer educação, bem como evidenciar o valor da dimensão vivencial do conhecimento para o posterior aprofundamento conceitual. É possível considerar, diante das similaridades entre fazer pão e fazer educação, a ampliação do sentido de fazer educação mediante as evidências de que a racionalidade técnica – expressa na receita - não é suficiente para explicar a complexidade do processo educativo, principalmente para realizar suas intencionalidades emancipatórias.

A sistematização desta compreensão se expressa através dos quadros da vivência codificada. Os quadros da vivência codificada organizam-se a partir de palavras geradoras que revelam as situações-limite deflagradas na vivência da metáfora e orientam os diálogos descodificadores no intuito de vislumbrar os pontos de entrada para a realização da intencionalidade pedagógica de superar a cegueira paradigmática que limita a configuração de processos educativos emancipatórios.

O primeiro quadro organiza-se em função do trabalho coletivo como palavra geradora para problematizar as manifestações cotidianas, em função da perspectiva de complexidade do olhar que associa o trabalho coletivo ao conceito de articulabilidade. A problematização se dá em torno das relações parte/todo – a divisão ou não da massa no grupo de trabalho; pedir ou não auxílio aos outros grupos – para referir a complexidade do trabalho coletivo em suas relações entre os processos individuais e grupais que também o constituem. Busca-se superar a visão reducionista de trabalho coletivo como aquele em que, necessariamente, todos fazem a mesma coisa ao mesmo tempo pela visão de processo que considera a necessidade de ações simultâneas e diferenciadas, bem como dá visibilidade a ações marginalizadas e reconhece o valor da alternância, do revezamento e da interação com outras experiências.

O segundo quadro organiza-se em função do improviso como palavra geradora para suscitar a reflexão em torno das atuações cotidianas diante das condições ideais para a execução das receitas previamente estabelecidas. Busca-se associar a noção de improviso ao conceito de intencionalidade partilhada ampliando a perspectiva do olhar sobre as situações em que o improviso se faz necessário. A problematização se dá em torno das relações teoria/prática – a criação de condições para a realização do trabalho, tanto em relação ao como fazer quanto em relação às proposições alternativas para viabilizar sua execução a contento – para referir a complexidade das relações entre a intencionalidade inicial e a repercussão da ação. Busca-se superar a visão de improviso associada unicamente ao amadorismo e compreendê-la enquanto necessidade para, diante das circunstâncias encontradas, dispor-se à mudança estratégica sem abrir mão da intencionalidade da intervenção.

O terceiro quadro organiza-se em função do registro como palavra geradora para problematizar a qualidade das relações cotidianamente vividas em função da perspectiva de complexidade do olhar que o associa o registro ao conceito de rigorosidade metódica. A problematização se dá em torno das relações sujeito/objeto – a convicção sobre as possibilidades de partilhar a degustação ao final do trabalho – para referir a complexidade da autoria exercida entre a experiência e os saberes nela e a partir dela gestados. Busca-se superar a visão de registro associada ao controle e compreendê-lo como apoio à memória reflexiva e como organizador do próprio pensamento.

O quarto quadro organiza-se em função do crescimento como palavra geradora para problematizar as finalidades das relações cotidianas, bem como as relações entre intencionalidades e resultados obtidos. A problematização se realizada em função da

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perspectiva de complexidade do olhar que associa o crescimento ao conceito de autoria solidária. A problematização se dá em torno das relações homem/natureza – no pão e nas relações coletivas, os limites éticos da intervenção a ser exercida - para referir a complexidade da autoria que emerge como fecundidade das interações exercidas. Busca-se superar a visão de crescimento associada ao individualismo e à competitividade, em que o ser mais se nutre da exclusão do outro, em função de uma perspectiva de inclusão em que o ser mais está associado à perspectiva de ser mais com o outro e, portanto, o crescimento associa-se à opção ética por um desenvolvimento socialmente justo, economicamente viável e ambientalmente sustentável.

Os quadros da vivência codificada são, portanto, referência para problematizar a compreensão da complexidade dos processos educativos emancipatórios. Através dos diálogos descodificadores mobilizam-se a percepção e a análise dos aspectos reveladores da cegueira paradigmática que restringe a atuação docente à racionalidade técnica, no intuito de problematizar novos olhares sobre as relações ensinar-aprender-pesquisar.

Para além da reflexão imediata, os quadros da vivência codificada constituem instrumentos metodológicos na gestão da metáfora viva como processo de investigação temática ao orientar o movimento de problematização-descodificação das relações entre fazer pão e fazer educação. No movimento de problematização-descodificação dos quadros da vivência codificada, as expressões manifestas revelam a natureza das relações estabelecidas entre fazer pão e fazer educação, permitindo vislumbrar os limites explicativos das compreensões conceituais e paradigmáticas que sustentam a análise de tais processos.

Os quadros da vivência codificada são, pois, fermento para muitas – e mútuas – outras aprendizagens e representam uma importante contribuição para maximizar o potencial emancipatório evidenciado na vivência da metáfora a partir de sua recriação em outros contextos. Todavia, a percepção destas relações é, em si mesma, uma aprendizagem a ser construída, pois requer tanto a (trans)formação do olhar sobre o cotidianamente vivido quanto a assunção de uma postura de humildade que conceba a natureza de incompletude dos processos educativos também como um desafio à autoformação.

Transformar o pão-alimento em alimento da reflexão é, pois, um desafio que hoje se anuncia para nutrir a continuidade das partilhas em que, pondo a mão na massa – metafórica e literalmente – possamos maximizar a configuração de processos educativos emancipatórios ao apostar nas possibilidades de superação da cegueira paradigmática através do desenvolvimento da cultura da pesquisa como dimensão do ensino e outras práticas educativas. Sem dúvida, a obra de Paulo Freire constitui referência indispensável para que possamos avançar teórica e praticamente nesta perspectiva.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

______À Sombra desta Mangueira. São Paulo: Olho D’Agua, 1995.

______Cartas à Cristina . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

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______Professora, sim; tia, não.: cartas a quem ousa ensinar. São Paulo, Olho D’Agua, 1993.

______Pedagogia da Esperança: Um reencontro com a Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

______ A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

______ Educação: O sonho possível. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). O Educador: Vida e Morte. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. 3 ed.

______ Conscientização: Teoria e prática da libertação - uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

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SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma pedagogia do conflito. In: SILVA, Luis Heron da. Reestruturação Curricular: novos mapas culturais, novas perspectivas educacionais. Porto Alegre: Sulina, 1996.

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A PEDAGOGIA DIALÓGICA NA PRÁTICA DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA

Ana Maria Braga de Oliveira1

Aline Barreto de Almeida Juciany Medeiros Araújo

Maíra Nunes Viñas Marísia Oliveira da Silva

Pedro José Santos Carneiro Cruz Tâmara Albuquerque Leite Guedes

RESUMO

Este trabalho discute a pedagogia dialógica, na perspectiva defendida por Paulo Freire, na prática da extensão universitária. Nesta pedagogia, a educação é uma atividade em que professores e estudantes são mediatizados pela realidade que apreendem e da qual extraem o conteúdo da aprendizagem, atingem um nível de consciência dessa realidade, a fim de nela atuarem, possibilitando a transformação social. Para tanto, decidimos então analisar a contribuição desta pedagogia no contexto da extensão através do projeto “Educação Popular e Atenção a Saúde da Família” da Universidade Federal da Paraíba.

Palavra chave: Pedagogia dialógica - educação popular – extensão universitária.

INTRODUÇÃO

Ao refletir sobre a pedagogia dialógica na prática da extensão universitária, primeiro temos que nos fundamentar sobre esta prática defendida por Paulo Freire. Esse processo educativo, chamado também de problematizador, remete-nos a organização dos movimentos sociais que utilizam essa pedagogia para formação política de seus representantes.

A organização dos movimentos populares e grupos comunitários orienta a busca de educadores por uma educação de caráter fundamentalmente crítico, quando os mesmos passam a contar com uma participação ativa e transformadora nos espaços políticos do país. Segundo Freire & Nogueira (1989), o contexto sócio-político permitiu à emergência de novas propostas políticas nesses espaços populares, formando então intelectuais capazes de fomentar uma concepção “orientada” de educação. O crescente processo de migração urbana, decorrente do êxodo rural, também se apresentou fundamental para incentivar as pessoas a pensarem o porquê desse fenômeno e formas de enfrentamento dessa situação, acabando por avaliar a necessidade de educação como passo fundamental para esse problema; educação enquanto prática do diálogo.

1 Estudante de graduação do Curso de Fisioterapia da UFPB ([email protected]). Estudante de graduação do Curso de Fisioterapia da UFPB ([email protected]). Nutricionista (UFPB) estudante de graduação do Curso Engenharia de Alimentos (UFP) ([email protected]). Estudante do Curso de Comunicação Social em Publicidade e Propaganda da Associação Paraibana de Ensino Renovado. ([email protected]). Mestre em Educação Popular, docente do Departamento de Psicologia da UFPB, coordenadora do Projeto Educação Popular e Atenção à Saúde da Família. Estudante de graduação do Curso de Nutrição da UFPB ([email protected]). Estudante de graduação do Curso de Fisioterapia da UFPB ([email protected]).

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Os militantes dessa perspectiva crítica de educar defendiam uma relação educador-educando onde ao último fosse permitido o crescer de um espírito de liberdade e autonomia; características potencialmente formadoras e transformadoras e, porém, distintas entre si, conforme enfatiza Molgika (1999):

[...]o termo liberdade significa irrestrição, o estado no qual o agente encontra espaço para agir, pensar e desejar sem contenção ou impedimento, realizando aquilo que lhe é necessário ou aquilo que ele quer. O termo autonomia, derivado dos vocábulos gregos auto (próprio) e nomos (lei ou regra), significa a capacidade de definir as suas próprias regras e limites, sem que estes precisem ser impostos por outro: significa que aquele agente é capaz de se auto-regular. Logo, na palavra autonomia estão implícitos, simultaneamente, a liberdade relativa do agente, que pode prescindir de um poder externo que o regule, e a limitação, derivada necessariamente da relação com o mundo natural e social.

Desse modo, essa educação problematizadora significa mais do que transferir conhecimento, cria as possibilidades para a produção ou construção do saber; é um esforço de mobilização, organização e capacitação das classes populares, capacitação científica e técnica, é um processo fundamentalmente formativo e potencialmente transformador. Não há nessa pedagogia um programa preestabelecido de conteúdos a serem ensinados, mas educador e educando se conhecem um ao outro, estabelecendo uma formação própria de suas realidades, interesses e saberes (FREIRE, 1996; FREIRE & NOGUEIRA, 1989).

A relação educador-educando aqui proposta estabelece que “quem forma se re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado” (FREIRE, 1996). Assim, quando nos remetemos novamente à assunção dos movimentos e práticas populares como conhecimento sistematizado e orientado, os entendemos enquanto movimentos e práticas de educação popular.

Essa educação não visa criar sujeitos subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados e bebendo água fervida. Visa participar do esforço que já fazem hoje as categorias de sujeitos subalternos – do índio ao operário do ABC paulista - para a organização do trabalho político que, passo a passo abre caminho para a conquista de sua liberdade e de seus direitos. A Educação Popular é um modo de participação de agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais, profissionais de saúde e outros) neste trabalho político. Ela busca trabalhar pedagogicamente o homem e os grupos envolvidos no processo de participação popular, fomentando formas coletivas de aprendizado e investigação de modo que promova um crescimento da capacidade de análise crítica sobre a realidade e o aperfeiçoamento das estratégias de luta e enfrentamento (BRANDÃO, 1982 apud VASCONCELOS, 2001).

Um elemento fundamental do seu método é o fato de tomar como ponto de partida do processo pedagógico o saber anterior das classes populares. No trabalho, na vida social e na luta pela sobrevivência e pela transformação da realidade, as pessoas vão adquirindo um entendimento sobre a sua inserção na sociedade e na natureza. Este conhecimento fragmentado e pouco elaborado é a matéria prima da educação popular. A valorização do saber popular permite que o educando se sinta “em casa” e mantenha sua iniciativa. Nesse sentido, não se reproduz a passividade usual dos processos pedagógicos tradicionais, não basta que o conteúdo discutido seja revolucionário, se o processo de discussão se mantém vertical (VASCONCELOS, 2001).

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Segundo Freire (1999) esse caminho educativo deve servir como força de mudança e de libertação, qualquer aprendizado obtido está intrinsecamente ligado à tomada de consciência da situação real vivenciado pelo educando, em que o processo de conscientização pela Educação Popular levaria o educando a descobrir as relações entre os fatos, perceber as causas que os interligam e lutar para mudá-los.

Acreditamos então que a pedagogia dialógica orienta a educação como uma atividade em que educadores e educandos são mediatizados pela realidade que apreendem e da qual extraem o conteúdo da aprendizagem, atingem um nível de consciência dessa realidade, a fim de nela atuarem, contribuindo com a transformação social (PEREIRA, 2003). Segundo Freire (1999), o homem não está apenas no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser o ente de relações que é.

É deste modo uma relação horizontalizada de A com B, é uma relação eu-tu, sendo assim, é uma relação de dois sujeitos não havendo dominação; há entre esses dois pólos uma relação baseada no amor, na humildade, na confiança, no respeito, que os tornam críticos na busca de algo (FREIRE, 1999). A dialogação acarreta responsabilidade social e política do homem e uma das maiores inquietações de Paulo Freire foi exatamente uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política.

A partir do momento em que defendemos a pedagogia do diálogo, entendemos o antidiálogo como uma relação verticalizada de A sobre B, que se nutre de desamor, desesperança, arrogância. Não gera criticidade e é acrítico. O diálogo tem o poder de comunicar, há comunicação, enquanto o antidiálogo não comunica, faz apenas comunicados. O antidiálogo está presente no assistencialismo, que não permite ao homem desenvolver-se criticamente ficando esse mudo e passivo. Na verdade o que deve ser feito é ajudar o homem a ajudar-se. Com o assistencialismo é retirado do homem a responsabilidade (FREIRE, 1999).

O campo da educação tem vivenciado várias experiências que propõe a educação popular, enquanto prática dialógica, como seu centro orientador, a exemplo de algumas práticas de projetos de extensão universitária.

Neste contexto, diferentes metodologias de aplicação de projetos extensionistas têm tido destaque desde o início do século passado chegando às Américas através de abordagens em extensão. No Brasil, vão destacar-se com a criação das universidades livres no Amazonas e em vários Estados. Nesse modelo de universidade, a mais importante foi a de São Paulo que funcionou de 1891 a 1917. Em todas essas experiências, é marcante a sua vinculação ao conjunto educativo que se chamou de educação de adultos (IRELAND, 2002 apud NETO, 2004).

Ao estudarmos esse contexto numa perspectiva histórico-social, podemos constatar o fortalecimento da sociedade civil, principalmente nos setores comprometidos com as classes populares, em oposição ao enfraquecimento da sociedade política ocorrido na década de 80, em especial nos seus últimos anos, o que possibilitou pensar a elaboração de uma nova concepção de universidade, baseada na redefinição das práticas de ensino, pesquisa e extensão até então vigentes (BRASIL/MEC, Plano Nacional de Extensão Universitária, 2000).

A partir de então, do assistencialismo passou-se ao questionamento das ações desenvolvidas

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pela extensão; de função inerente à universidade, a extensão começou a ser percebida como um processo que articula o ensino e a pesquisa, organizando e assessorando os movimentos sociais que estavam surgindo. A institucionalização passava a ser perseguida, só que em sua dimensão processual, envolvendo toda a universidade. Pelo ensino se encontrariam formas de atender à maioria da população, através de um processo de educação superior crítica, com o uso de meios de educação de massa que preparassem para a cidadania, com competência técnica e política. A pesquisa deveria ser sistematicamente direcionada ao estudo dos grandes problemas, podendo fazer uso de metodologias que propiciassem a participação das populações na condição de sujeitos (BRASIL/MEC, Plano Nacional de Extensão Universitária, 2000).

Segundo Neto (2004), existem várias concepções de extensão universitária. São conceitos que foram se estabelecendo a partir de discursos gerais oriundos do interior de si mesma, presentes no discurso de professores e de órgãos públicos que atuam no caminho da extensão. Uma dessas concepções afirma ser a extensão algo enriquecedor para os objetivos da universidade. O autor observou, nesta compreensão, que não são colocados os objetivos da universidade. Além de não se esclarecer o tipo de enriquecimento se é monetário, teórico, prático ou outro.

A extensão também é vista como atividade promotora do conhecimento. A esse respeito, o autor supracitado sugere as seguintes indagações:

Que tipo de conhecimento está sendo promovido? Quem está sendo beneficiado com essa promoção? A extensão é mostrada como expressão do retorno à sociedade daquilo que esta investe na universidade. Embute-se uma compreensão de troca entre a universidade e a sociedade, em que aquela precisa devolver a esta tudo que está sendo investido. Há ainda a definição que mostra extensão como um meio que liga o ensino e a pesquisa. Imagina-se que um ente concreto liga os dois outros constituintes: ensino e pesquisa (NETO, 2004).

Ainda nessa reflexão, a extensão também pode ser apresentada como uma forma de corrigir a ausência da universidade nas problemáticas da sociedade. Essa forma considera a universidade ausente dos problemas da sociedade. É verdade que ela está ausente de vários problemas, mas está presente em outros. Contudo, a universidade está presente naquelas temáticas definidas pelos setores dominantes para que sejam submetidas aos projetos de extensão, às atividades de ensino e à pesquisa. Em grande medida a extensão vai sendo vinculada à prestação de serviços, ora como estágio, ora como forma de captar recursos (NETO, 2004). Contudo, alguns educadores entenderam o papel verdadeiramente social da Universidade, enquanto agente marcadamente transformador da sociedade, prestando-se de modo contínuo ao diálogo com a mesma. O pensar da práxis extensionista universitária passou a contemplar a idéia dialógica como pedagogia de enfrentamento dos problemas da sociedade com a sociedade, na busca da construção de uma realidade diferente.

Assim, entendemos que a extensão não é assistencialismo; permeia, sim, a educação popular, da problematização, dialogal e crítica. Passa pelo reconhecimento e encantamento com a riqueza dos valores e saberes das comunidades que, para os estudantes universitários em sua maioria, são diferentes dos seus. É entendida como uma dimensão política da Universidade quando pratica a valorização do diálogo com os oprimidos da sociedade; é, enfim, a contribuição teórica da Universidade para o povo e a contribuição de fé, afetividade e saber do povo para a Universidade. Segundo Freire (1996), toda prática educativa de autonomia

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demanda a existência de sujeitos, um que, ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina.

OBJETIVOS GERAIS

Analisar a contribuição da pedagogia dialógica na prática da extensão universitária.

ESPECÍFICOS

• Verificar a relação dos extensionistas com as representações individuais e coletivas no contexto comunitário;

• Observar como a prática dialógica influencia na resolução dos problemas e enfrentamentos vivenciados pela comunidade;

• Identificar como o conhecimento, debate e aprofundamento teórico, referentes às demandas comunitárias e acadêmicas, contribuem para a autonomia do estudante em sua formação;

• Conhecer a relação interdisciplinar entre os extensionistas, e destes com os orientadores;

• Analisar como a experiência proporcionada pela extensão desperta o senso crítico do estudante.

METODOLOGIA

Este é um trabalho de caráter qualitativo que está orientado na observação da práxis do Projeto de Extensão “Educação Popular e Atenção da Saúde da Família” da Universidade Federal da Paraíba que atua na Comunidade Maria de Nazaré, periferia da capital João Pessoa.

A observação de fatos, comportamentos e cenários é extremamente valorizado pelas pesquisas qualitativas. Sendo assim, se caracteriza pela utilização de múltiplas formas de coletas de dados; ao contrário de pesquisas unicamente baseadas em aplicação coletiva de questionários ou testes, que pode ser feita em um único dia, essa pesquisa vem da necessidade de apreender os significados de eventos e comportamentos (ALVES-MAZZOTTI & GEWANDSZNAJDER, 1999). A observação foi realizada por seis estudantes e uma professora orientadora, todos com mais de um ano de vivencia neste projeto. Segundo Alves-Mazzotti & Gewandsznajder (1999), a permanência prolongada do pesquisador no campo faz com que os sujeitos da pesquisa se acostumem com sua presença e a possível interferência do observador fica minimizada.

O tipo de observação utilizado é a não-estruturada, características dos estudos qualitativos. Segundo Alves-Mazzotti & Gewandsznajder (1999), na observação não-estruturada os comportamentos a serem observados não são pré-determinados, eles são observados e relatados da forma como ocorrem, visando descrever e compreender o que está ocorrendo numa dada situação. O pesquisador se torna parte da situação observada, interagindo por longos períodos com sujeitos, buscando partilhar o seu cotidiano para sentir o que significa

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estar naquela situação.

A metodologia baseia-se assim, na observação das práticas trabalhadas no projeto de extensão supracitado. Este se caracteriza por ser dialógico e compromissado, apresentando quatro frentes de atuação ou interação: as famílias; as organizações da comunidade; serviço público de saúde e a universidade.

Neste projeto participam estudantes de onze cursos de diferentes áreas da universidade com um olhar voltado ao cuidado da saúde, em seu contexto biopsicossocial (Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Nutrição, Odontologia, Farmácia, Educação Física, Serviço Social, Comunicação Social, Psicologia e Pedagogia). Atuam como orientadores, professores da área da medicina, odontologia, fisioterapia e psicologia.

Os estudantes, organizados em duplas interdisciplinares, visitam em média três famílias, aos sábados pela manhã, desenvolvendo atividades integradas de Promoção da Saúde e prevenção de enfermidades que comumente se estabelecem na comunidade. Nesse trabalho são criados vínculos com a família, valorizando-se seu discurso, transcendendo, assim, a visão puramente técnica do profissional e observando, além das dimensões biológicas, as dimensões sociais, culturais e psicológicas que apresentam, permitindo um retrato da realidade local.

A abordagem dos estudantes é o grande agente motivador do Projeto. Cada família visitada é um mundo, com peculiaridades e desafios a serem enfrentados. Nessa relação, os estudantes relacionam seus conhecimentos com os diferentes saberes trazidos pela comunidade, construindo uma relação estreita e de confiança, contribuindo para a cidadania e respeitando a diversidade cultural da população local.

No processo educativo praticado junto à comunidade existem práticas como a Rádio Comunitária onde o Projeto realiza programas com os membros da comunidade, abordando e discutindo questões desta. A partir de demandas da comunidade são realizadas peças teatrais preparadas para as crianças, abordando temas como a problemática do lixo, os ratos, entre outras. A resposta da comunidade aos temas abordados é bastante positiva, tanto que inspirou a criação de um grupo de teatro infantil da comunidade.

A interação com a comunidade acontece, ainda, através de reuniões com a Associação Comunitária Maria de Nazaré (ACOMAN), onde se discutem algumas demandas em comum, como a formação da rádio comunitária, o problema do lixo e a implantação do Programa de Saúde da Família - esta ocorrida com ativa participação dos acadêmicos junto a órgãos públicos de saúde.

Os estudantes participam de três frentes metodológicas de reuniões distribuídas a cada semana: reuniões teóricas, onde são discutidos temas do conhecimento sistematizado, provindos de reflexões a partir de vivência com a comunidade, incentivando a práxis interdisciplinar; reuniões organizativas, onde a administração e o planejamento das atividades futuras são construídos e avaliados; e reuniões “grupão”, que constituem um espaço onde o sentimento, experiências, dificuldades nas relações com as famílias são compartilhadas com o grupo.

Na perspectiva de avaliação, gestão e integração, são realizadas oficinas, onde é propiciado o

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ambiente necessário para discutir problemas não apresentados na rotina, bem como propor estratégias de solução.

No período de férias estudantis, são promovidos estágios de vivência em cidades do interior da Paraíba e de outros estados, visando conhecer as diferenças do trabalho de saúde urbano e rural, a história de mobilização da comunidade local e as relações próprias da comunidade.

Enquanto Projeto de Extensão que se entende dialógico, pretende construir, com os estudantes, o sentimento de compromisso com a sociedade e entende sua prática como uma constante reflexão. Segundo Freire (1979), se a possibilidade de seu estar no mundo, não existe no ser, seu estar no mundo se reduz a um não poder transpor os limites que lhes são impostos pelo próprio mundo.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da observação podemos verificar que a relação dos extensionistas com as representações individuais e coletivas da Comunidade Maria de Nazaré ocorre em espaços como visitas semanais às casas das famílias das comunidades; reuniões com a Associação Comunitária; articulações com líderes e grupos comunitários; articulações com movimentos sociais que interagem com a comunidade e com os serviços de saúde.

As visitas semanais proporcionam aos estudantes uma maior interação entre eles e as famílias, pois o fato de ocorrerem aos sábados, que é um momento no qual geralmente a família se encontra reunida, aproxima o estudante com as relações envolvidas na dinâmica familiar. Assim os estudantes passam a compartilhar com os demais seu processo de constituição num educador popular; não no “doutor” ao qual a população tem aversão, mas o “doutor” que tem uma contribuição preciosa para a comunidade, que só vive, no entanto, perante a afirmação popular do chamado saber comum. Ao visitar as casas das famílias semanalmente, os estudantes quebram sua rotina de desumanização frente à possibilidade de ser, no sentido literal do verbo, humano; de emocionar-se, de entender o processo saúde-doença não como um compilado de livros, apostilas e enciclopédias, mas como um conjunto de representações engendradas historicamente nas culturas humanas e por cada uma delas influenciadas.

As reuniões com a Associação Comunitária e as articulações com líderes, grupos comunitários e movimentos sociais são tentativas de aproximação com a realidade local. Há, dessa maneira, a procura constante de trabalhar não para a comunidade, mas com ela, dando significação ao saber de enfrentar as dificuldades; fazendo valer o diálogo, respeitando a diferença de significados simbólicos que palavras, gestos, sentimentos, emoções e opiniões têm em cada um. No entanto, essa realidade passa por dificuldades relacionadas à participação dos estudantes nesses espaços, pois um dos fatores é a disponibilidade dos horários de encontros com as organizações comunitárias que são pouco compatíveis com a realidade estudantil, mas que são respeitados pelos estudantes e líderes comunitários. Conforme enfatiza Freire (1996), o respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros.

As relações com o serviço de saúde iniciaram-se com a participação do projeto junto à comunidade para a implantação do Programa Saúde da Família. Este fato foi importante pois permitiu uma maior aproximação dos estudantes e da comunidade, pois existia um sentimento

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conjunto de luta por um direito a uma política pública que estava sendo implementada. A partir de então, houve uma interação dos extensionistas com a equipe de saúde, ajudando na dinâmica de trabalho da equipe na comunidade. Atualmente esta relação está bastante desgastada e distanciada, devido à mudança constante dos profissionais da equipe, implicando numa dificuldade de construção de diálogo.

A partir destas experiências os estudantes podem ampliar a sua percepção dos problemas, assim como a sua capacidade de resolução, pois passam a compreender sob uma perspectiva mais ampliada a dimensão que possuem as problemáticas existentes na comunidade com suas dificuldades e desafios.

O diálogo permite um processo de aprendizagem que tem como fundamento o diálogo crítico que permite aos indivíduos o desenvolvimento do nível de sua consciência crítica. Isto vai ter como conseqüência à ampliação da sua capacidade de despreender-se do contexto imediato, distinguir entre seu ponto de vista e o do outro, discernir seus próprios interesses face aos alheios, estabelecer relações entre os mundos objetivo, social e subjetivo, testar e tematizar pretensões da validade dos discursos (BRENNAND, 2001).

Assim, na comunidade Maria de Nazaré, observa-se nesse diálogo o contemplar não só de questões inerentes à saúde no contexto biológico, mas ampliado para problemas de moradia, relacionamento, econômicos, comportamentais e coletivos; e não só problemas, mas soluções, alegrias e satisfações.

A relação entre os extensionistas e destes com os orientadores é interdisciplinar. Conforme enfatiza Vilela & Mendes (2003), uma relação de reciprocidade, mutualidade, que pressupõe uma atitude diferente a ser assumida diante do problema do conhecimento, ou seja, é a substituição de uma concepção fragmentária para unitária do ser humano. Está também associada ao desenvolvimento de certos traços da personalidade, tais como: flexibilidade, confiança, paciência, intuição, capacidade de adaptação, sensibilidade em relação às demais pessoas, aceitação de riscos, aprender a agir na diversidade, aceitar novos papéis.

O respeito nessas relações não é apenas um imperativo para com a comunidade, mas consta de uma prática vivenciada entre os extensionistas do Projeto em suas várias áreas de conhecimento e frentes de atuação. A partir daí, essas relações transcendem o respeito acadêmico às áreas específicas e passa a pôr a práxis da interdisciplinaridade como sua orientadora.

A relação de trabalho que o Projeto, enquanto prática de educação popular, mantém com o saber do povo não implica na rejeição do saber e acúmulo acadêmico trazido pelos estudantes para a Comunidade; ao contrário, a ciência sistematizada aqui significa uma contribuição preciosa para o entender da vida e seus processos, mas apenas quando vem mediatizada pelos valores que traz o saber popular. Assim, o conhecimento não deve ser um definidor de sujeitos e objetos na relação estudante-comunidade, mas compor uma interação constante entre o científico e o popular, fazendo do debate um aprofundamento teórico.

Nesse sentido, o diálogo tem seu papel na diminuição do “fosso cultural” entre os universitários e a população. É uma via de mão dupla, pois, além de compreender e explicitar o saber do interlocutor popular, o diálogo implica em facilitar a socialização e o debate do

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saber técnico que orienta as ações de saúde (ASSIS apud VASCONCELOS, 2001). O compreender dessa relação horizontalizada confere ao sentimento dos estudantes a autonomia não só dele em relação ao próprio saber teórico que aprende, fazendo-o crítico no apreender da teoria.

O sentimento, defendido por Freire (1996), de respeito aos educandos, à sua dignidade, a seu ser formando-se, à sua identidade fazendo-se, levando em consideração as condições em que eles vêm existindo, reconhecendo a importância dos “conhecimentos de experiência feitos” faz desenvolver nos indivíduos a assunção de sua identidade, confere-lhes verdadeiramente autonomia, um olhar e pensar diferente sobre sua atuação; faz os extensionistas re-significarem sua própria formação. Essa é a autonomia com a qual crescerão e se formarão novos profissionais, transformados então pela vivência com o que traz a comunidade e a academia.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O Projeto Educação Popular e Atenção à Saúde da Família apresenta a educação popular no contexto da extensão universitária, fazendo da pedagogia dialógica não só uma metodologia ou norte teórico que orienta a relação entre os extensionistas e as famílias, mas faz ambos sujeitos e entendedores de que, cada um a seu modo, deve superar as barreiras que se geram para o cumprimento da tarefa histórica humana de mudar o mundo, diante das condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que se acham.

O extensionista aqui pretende sim mudar o mundo, não sozinho, mas com a comunidade, negando as práticas espertas e assistencialistas da manutenção da ordem; ele enxerga a transformação social com os olhos de quem vê as pequenas revoluções, as lutas capilares, às pequenas pessoas de gestos pequenos que plantam pensamentos e ações capazes de gerar as grandes mudanças.

REFERÊNCIAS

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O LEGADO DE PAULO FREIRE E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A FORMAÇÃO POLÍTICO-PEDAGÓGICA DOS CURSOS DE

PEDAGOGIA

Ana Maria do Vale1

Elisama Cavalcanti2

RESUMO

Este estudo pretende apresentar a importância e atualidade da concepção de educação do educador Paulo Freire para os cursos de Pedagogia. A importância atribuída ao legado freireano justifica-se pela sua atualidade e pelas suas contribuições político-pedagógica, sobretudo em um contexto marcado pelo monoculturalismo. Acreditamos que a pedagogia crítica em muito poderá contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e mais humana; o que seguramente passa por uma educação multicultural, onde os cursos de formação dos educadores têm um peso fundamental. O suporte metodológico da pesquisa está centrado em eixos teórico-prático que se relacionam entre si. Nessa direção, está sendo realizada uma revisão bibliográfica das principais teses do legado freireano associada a uma pesquisa empírica – o curso de Pedagogia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN.

Palavras-chave: Universidade – Paulo Freire – Educação Popular.

O LEGADO DE PAULO FREIRE E OS CURSOS DE PEDAGOGIA.

Quando, ao pesquisarmos, nos colocamos em diálogo com esse tema, levamos em consideração, sobretudo, a contribuição inovadora que Paulo Freire legou à educação. Conforme afirma o educador José Eustáquio Romão, a contribuição de Freire “é mais no universo paradigmático – uma nova maneira de raciocinar e de ler a realidade” (ROMÃO, 2000, p. XIV).

O presente texto sobre o legado de Paulo Freire, a sua importância e a atualidade para a formação político-pedagógica dos cursos de Pedagogia é parte de uma discussão mais ampla que estamos desenvolvendo. Motivada pela curiosidade epistemológica advinda da experiência educacional ao freqüentar o curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UERN – campo de pesquisa do nosso estudo –; a pesquisa foi tomando corpo à medida em que, como aluna, vivenciava todas as etapas de formação centradas, sobretudo, nas disciplinas formadoras da “grade” curricular. Nascia ali, embora timidamente, o interesse em analisar, com o rigor que uma pesquisa científica exige, as diretrizes formativas desse curso com o objetivo claro de pesquisar sobre a presença (ou não) das contribuições político- educacionais do educador Paulo Freire nos diferentes espaços e esferas de formação do referido curso. O reconhecimento da importância da teoria para o enfrentamento dos desafios postos à educação pelo processo de globalização no século XXI alimentava e alimenta este estudo. Parece-nos que essa preocupação não é apenas nossa, como também não é de tudo nova. Para Moacir Gadotti, fazendo comentário em Vale (2000, p. 85):

1 Professora, Pedagoga, Mestre em Filosofia da Educação pela Pontifícia UCCA; Doutora em Educação pela USP, Docente da UERN / Campus Natal, membro do Instituto Paulo Freire - IPF e presidente do Centro de Estudos Para Ações Transformadoras – CEAT. ([email protected]). 2 Professora, pedagoga e estudante do curso de especialização em formação de professores – UERN. ([email protected]).

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Algumas Faculdades de Educação ficam constrangidas quando se trabalham teses freireanas. Não conseguem digerir sua pedagogia crítica e transformadora. Uns tentam reduzi-lo a um pedagogo da Teologia da Libertação. Outros desqualificam o conteúdo revolucionário da sua teoria do conhecimento. O que importa é que ele continua vivo nos movimentos de renovação e transformação pedagógicas onde está se gestando a educação do futuro.

Comungamos e insistimos nessa tese por acreditarmos que a concepção educacional de Paulo Freire em muito poderá contribuir, no interior dos currículos dos cursos de Pedagogia, para a formação de profissionais atuantes nos diferentes níveis de ensino, capacitando-os a exercerem sua práxis, de forma a contribuir com a melhoria do mundo cultural que estamos a construir. Vale salientar ainda, que a importância atribuída ao pensamento freireano, reside no entendimento de que, em pleno século XXI, percebemos que problemáticas sociais e históricas, existentes nas décadas de 1950 e 1960 do século passado como massificação, assistencialismo, analfabetismo, conservadorismo e tantas outras já do nosso pleno conhecimento; resistem às modificações e transformações históricas, fazendo-se presentes em nossa contemporaneidade. Para enfrentá-los, torna-se imprescindível considerar, dentre outras teorias, o pensamento de Paulo Freire, associado a outros pensamentos, dada a fecundidade e rigorosidade com que trata a função da educação frente aos desafios postos pelo mundo capitalista globalizado. Aí reside sua atualidade.

Na área educacional muitas seriam as causas (e conseqüências) que justificam nossa preocupação e o estudo da temática em questão. Dentre elas, a elevada taxa de analfabetismo de crianças, jovens e adultos da sociedade brasileira na era da “mundialização” dos avanços tecnológicos; e a predominância em nosso meio de uma educação escolar de caráter tecnicista e conteudista, alimentando, por conseguinte, um tipo de educação conservadora e desconectada da realidade social concreta em que vivem os povos oprimidos. Sabemos que a manutenção dessa realidade educacional deve-se a fatores externos à educação, mas que com ela estabelecem uma relação estreita de dependência e manutenção da “ordem” política e social estabelecida.

Na verdade não se trata de uma constatação centrada em estudos e pesquisas apenas. A esses campos de saberes, extremamente fecundos, soma-se nossa experiência na docência e na discência há um significativo período de tempo, o que nos permite testemunhar ideais conservadores presentes no cotidiano dos espaços escolares e acadêmicos. Embora tenhamos consciência das diferentes causas que inibem toda e qualquer ação crítica dos educadores, apresentando-se como limites à prática sócio-progressista3; é importante registrar a existência, em muitos lugares do Brasil, de práticas educacionais voltadas aos interesses e às necessidades dos segmentos menos favorecidos da sociedade. Respeitando a diversidade cultural e a capacidade histórica desses sujeitos, as experiências existentes voltam-se para a construção de uma educação político-libertadora capaz de instrumentalizar os segmentos populares não apenas para ler criticamente a palavra, mas, acima de tudo, para pensar, intervir, mudar, transformar, participar conscientemente da realidade social e política que tenta condicioná-los historicamente. Em outras palavras, ler criticamente o mundo.

Na direção do exposto, é inquestionável a importância que a formação universitária de

3 Sobre a relação dialética entre limites e possibilidades na prática educativa ver Ana Maria do Vale, “Educação Popular na Escola Pública, 4 ed., 2001.

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educadores e educadoras adquire no que se refere a sua função político-pedagógico-social. Não podemos perder de vista que hoje, mais do que antes, cresce o número de professores graduados no curso de Pedagogia, estando, a grande maioria, vinculada à rede de ensino nos seus diferentes níveis. Daí porque ser fundamental que esses cursos oportunizem aos seus educandos/educadores a opção de poder trabalhar, nos diferentes espaços em que atuam, uma educação que se posicione contra a conservação da exploração de pessoas humanas, da alienação e da despolitização da educação em favor das forças produtivas. Para isso, é preciso conhecer teorias educacionais que apontem a educação como um ato político capaz de elevar a consciência crítica dos que nela estão envolvidos, uma educação capaz de libertar ao invés de alienar.

Como “ninguém muda o que não se conhece”, segundo bem afirmara Paulo Freire em seus escritos, não podemos desconsiderar que a ideologia dominante, sutilmente e eficientemente, insiste em mostrar que o papel da escola é dotar os sujeitos de “conhecimentos” para enfrentar o competitivo mundo globalizado (lugar de formação do capital humano). A ideologia fatalista insiste em ensinar que a realidade é assim mesmo, imutável. É o fatalismo “desproblematizador” do futuro e despolitizador da educação. Não podemos esquecer que:

Do ponto de vista, porém, dos interesses dominantes, é fundamental defender uma prática educativa neutra, que se contente com o puro ensino, se é que isto existe, ou com a pura transmissão asséptica de conteúdos, como se fosse possível, por exemplo, falar da “inchação” dos centros urbanos brasileiros sem discutir a reforma agrária e a oposição a ela feita pelas forças retrógradas do país (FREIRE, 2001, p.102).

Para a educação do século XXI, como antes, estão postos os interesses das elites dirigentes, no que se refere às questões educacionais. Para eles, não importa um perfil de educação desveladora dos interesses predominantes na sociedade, o que, de resto, seria um ato de extrema contradição que fere interesses que lhes são caros. Por assim pensar e proceder, atribuem à escola e igualmente à Universidade, a função mercadológica ou, melhor dizendo, a função adaptacionista. Ora, o discurso da Universidade como agência prestadora de serviços, tenta esvaziar o que é principal na função da Universidade:

[...] destinar aos estudantes uma educação de graduação que signifique não apenas uma etapa na formação profissional de cada um, mas também educação para o modo científico-crítico de pensar, com o que se espera que os estudantes adquiram as condições de fazer a crítica da alienação nas formas em que esta é fixada na vida de todos, ajudando-os a superar a visão anterior adquirida sobre a vida, a sociedade, a história. (SOUSA FILHO, 2000, p. 135).

O mesmo autor ainda nos fala que o discurso adaptacionista não existe apenas fora dos espaços acadêmicos, mas também, o que é mais grave, existe e é reproduzido no interior das próprias Universidades por professores e estudantes que acreditam que a Universidade deve mudar em função do que se cobra dela. Como se não bastasse, é possível afirmar que muitos cursos de graduação são criados tomando como critério a demanda vinda do próprio mercado.

Estamos vivendo uma verdadeira crise de identidade da Universidade em que a sociedade vem se apresentando como obstáculo ao pensamento científico-crítico. Essa constatação pode ser uma das causas da ausência do pensamento crítico em muitos espaços acadêmicos, entre eles, do pensamento do educador Paulo Freire. O fato de reiterarmos a necessidade do estudo

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dessa contribuição teórica é fortalecido no momento em que a prática educativa, exercida notadamente na escola pública onde lidamos com a educação e formação das classes populares, exige uma fundamentação teórica capaz de sustentar os desafios postos ao ato educativo. Sem dúvida, o curso de Pedagogia, enquanto formador de educadores, é também responsável pela qualidade de ensino que hoje marca a rede pública de ensino.

Respeitamos o direito de professores e professoras da Faculdade de Educação moverem-se iluminados pelo seu referencial teórico e sua concepção política, porém, isso não os isenta de oportunizar aos educandos conhecer, sistematicamente, as principais correntes de pensamento educacional existentes; onde, seguramente, a concepção de educação de Paulo Freire tem muito a contribuir. Não sem razão, a teoria do educador Paulo Freire é conhecida e trabalhada em grande parte do mundo. Conhecer sua história e a expansão da sua obra pelo mundo já é, em si, uma forma de nos chamar a atenção para a necessidade de conhecê-la antes mesmo de condená-la. Aliás, essa tem sido a prática de muitos, o que significa, no mínimo, irresponsabilidade intelectual e ética. A ausência do estudo sistemático na graduação sobre a teoria freireana contribui intensamente para um vazio político crítico em nossa formação. Respeitando as diferentes concepções teóricas defendidas dentro do espaço acadêmico, acreditamos que o legado de Paulo Freire pode contribuir muito para a formação profissional e política de todos que ali estão, mas, para isso, é imprescindível que se tenha acesso ao legado deixado por esse grande mestre criando assim oportunidades de opções.

POLÍTICA E EDUCAÇÃO: UMA RELAÇÃO INDISSOCIÁVEL

Ao abordarmos a questão em estudo enfocando o legado freireano como fundamental à formação universitária, em especial para os cursos de Pedagogia, priorizamos destacar um dos aspectos presentes na vasta obra de Paulo Freire alimentando, por assim dizer, a sua “teoria educacional”. Trata-se do entendimento da educação como ato político, uma das contribuições inovadoras de Paulo Freire no campo da educação. Os limites desse texto nos impedem de maiores estudos sobre essa e demais teses do legado freireano, contudo, acreditamos ser impossível tratar do seu pensar sem se ater a essa que vem a ser uma das suas principais teses.

Ao nos determos nessa análise, fica posta a necessidade de compreendemos e de considerarmos a relação da educação com a sociedade – palco das manifestações educacionais. Considerada essa relação, e na busca do “desvelamento da realidade”, para usarmos uma expressão freireana, espera-se a intervenção dos profissionais da educação, comprometidos/as com o processo de desocultação do contexto político-social local que os e nos envolve. Com Paulo Freire consideramos que:

Se a reprodução da ideologia dominante implica, fundamentalmente, a ocultação de verdades, a distorção da razão de ser de fatos que, explicados, revelados ou desvelados trabalhariam contra os interesses dominantes, a tarefa das educadoras e dos educadores progressistas é desocultar verdades, jamais mentir. A desocultação não é de fato tarefa para os educadores a serviço do sistema (FREIRE, 2001, p. 98).

O reconhecimento da necessidade de desocultar política e socialmente a realidade, fato que a prática pedagógica pode perfeitamente propiciar no espaço acadêmico ou escolar, implica ler a realidade hoje reconhecendo seus limites e possibilidades; o que não pode ser feito sem se considerar, historicamente, a formação da sociedade brasileira. Sem dúvida, nossa história é responsável por muitos dos limites das nossas ações no momento atual. Assim, é possível

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entendermos, por exemplo, que nossa experiência de submissão naturalizou-se por termos construído a sociedade brasileira imersa sob o poderio do colonialismo e, com isso, alimentado, até nossa contemporaneidade, comportamentos originários de uma sociedade escravocrata, amaciada, por assim dizer, para não subverter aos grupos poderosos. “Em verdade, o que caracterizou, desde o início, a nossa colonização, foi, sem dúvida, o poder exacerbado” (FREIRE, 2002, p. 68). Um poder que, fundado na história, contraditoriamente, nos permite entender que a história não é tempo de determinismo, mas de possibilidades, de mudanças. Nessa linha de pensamento muitos poderiam ser os exemplos de resistência à ordem estabelecida. Embora esse não seja o espaço apropriado para essa discussão, é importante considerarmos fatos que a história insiste em nos lembrar. Entre eles, a organização política dos educadores brasileiros, para ficarmos apenas nessa esfera, merece destaque pela capacidade de organização e de mobilização política demonstrada no decorrer da sua trajetória, quer seja enquanto entidade nacional nos idos dos anos de 1960, quer seja no cenário do “novo sindicalismo” do Brasil. Momentos em que os educadores se identificaram como sujeitos sociais ou, ainda mais recentemente, quando o movimento dos educadores passa de uma fase puramente crítica para uma outra mais orgânica e propositiva. Sem dúvida, uma evolução política que merece ser conhecida e considerada. Nesse caminhar evolutivo, o pensamento de Paulo Freire foi tomado como uma matriz formativa do movimento sindical docente4.

Certamente a organização política dos educadores é apenas um dos segmentos sociais que lutam e resistem em meio a outros espaços e movimentos que igualmente resistem pela ampliação dos espaços democráticos em nosso país. A esfera educacional, não importa em que nível de ensino ela se situe, é um desses espaços. A essência político-filosófica presente na concepção de educação de Paulo Freire, ao estabelecer uma relação estreita entre o ato de educar e o ato político, possibilita-nos acreditar ser possível forjar uma pedagogia, cuja ação política e social, combata os dogmas da ideologia dominante, disseminados através de diferentes práticas e instâncias sociais. Concordamos com Freire quando diz que:

Os nossos futuros mestres [...] deveriam estar sendo formados com alto senso de responsabilidade profissional [...] cônscios de seu papel altamente formador. Esta convicção, porém, como aquela consciência, dificilmente se forma em quem assume postura passiva. Em quem não é inserido num processo dialogal (FREIRE, 2002, p. 101-2).

A educação formal não escapa do poder da ideologia, uma vez que os conteúdos podem reforçar e perpetuar a hegemonia da classe economicamente dominante, voltada para a formação do capital humano. Por isso, não podemos desconsiderar que a escola é uma das instâncias sociais visadas pelo sistema político-econômico para alcançar interesses e objetivos favoráveis a uma minoria já privilegiada pela exploração e desumanização que exerce domínio sobre uma maioria social excluída do seu direito de “ser mais”, conforme expressa Paulo Freire. No que pese reconhecer os avanços que existem na direção de uma pedagogia sócio-progressista, é preciso considerar essas intencionalidades; uma vez que, os “conteúdos programáticos escolares, por exemplo, revelam (ou escondem) escolhas, opções e preferências sociais, culturais, ideológicas” (SCOCUGLIA, 2000, p. 34).

Do exposto, (embora brevemente), acreditamos que o estudo do pensamento de Paulo Freire 4 Maior aprofundamento a cerca dessa questão e da influência do pensamento de Paulo Freire na formação do sindicalismo docente no Brasil ver Ana Maria do Vale, Diálogo e Conflito: a presença do pensamento de Paulo Freire na formação do sindicalismo docente, 2002.

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na formação de graduação nos cursos de Pedagogia poderá possibilitar aos educadores um maior instrumental teórico capaz de subsidiar, teórico e praticamente, o combate ao processo de despolitização da educação e submissão aos ditames do mundo econômico. Vale afirmar que a possibilidade de travarmos uma educação voltada para o processo de libertação encontra-se na função político-social que assumimos ao trabalharmos nos diferentes espaços e níveis educacionais. O ponto de partida deve centrar-se nos saberes de experiência feitos pelos educadores e educandos, objetivando sua superação, afinal, “não há docência sem discência” (FREIRE, 1996, p. 23). Cabe à educação, ao lidar dialogicamente com os sujeitos envolvidos no ato de aprender e ensinar, considerar:

[...] que a realidade social é transformável; que feita pelos homens, pelos homens pode ser mudada; que não é algo intocável, um fado, uma sina, diante de que só houvesse um caminho: a acomodação a ela (FREIRE, 2001, p. 46).

A concepção da educação freireana defende essa utopia aqui entendida como possibilidade, como algo que não é ainda, mas que poderá ser. A construção do viável histórico, ao perceber a realidade social muitas vezes coberta por ideologias que lhe pintam um formato espectral, faz-nos sentir e acreditar na inexorabilidade da história, tornando-nos responsáveis pela realidade social, tal como se apresenta. Assumir essa responsabilidade é tomar ciência dela, condição essencial para nossa atuação como sujeitos e cidadãos ativos.

O campo educacional, seguramente, vem a ser um espaço importante e necessário quando se pensa em mudanças e transformações sociais. Desse entendimento, e na busca da realização dos nossos sonhos, a concepção freireana da educação precisa ser revista, analisada e estudada com seriedade; não para ser concebida como dogma, mas para ser analisada e recriada em favor de um projeto de educação coerente, significativo e, politicamente, sistematizado a serviço da camada social menos favorecida da sociedade. Nossa formação acadêmica, distanciada muitas vezes de uma reflexão dialética da própria história, oferece-nos uma eficiente formação técnica que percebe as atrocidades políticas, econômicas, históricas e culturais que viabilizam o sistema econômico vigente, porém, nos impossibilita de agir diante da “inexorabilidade da história”; e nos força a adaptarmo-nos a tais condições adversas. Há, nessa concepção, um determinismo exacerbado da história, condicionando, inclusive e sobretudo, nossas ações. Nesse cenário real que objetiva induzir nossas vidas, muitas instâncias acadêmicas formadoras de profissionais da educação, expressam-se:

[...] Sem nenhuma sensibilidade pelos problemas concretos de seu meio imediato, de sua região, de seu país. Formam-se pelo contrário, desenvolvendo o gosto da palavra vazia. Daí, mais tarde, a desconexão perigosa entre o que se aprende e o que se faz (FREIRE, 2002, p. 100).

Acreditamos, com Freire, que a educação não é a única responsável pelo processo de transformação social, mas, sem ela, a transformação não acontece. Não é demais reforçar que a educação possui condições de contribuir com possíveis transformações, combatendo os processos de despolitização dos sujeitos envolvidos e impulsionando-os à tomada de consciência da função político-pedagógica que a encerra. Certamente, não estamos a falar de toda educação que, por sinal, são muitas. Estamos a falar de uma educação onde a política se faz presente com sua especificidade, mas que estabelece, com o ato de educar, uma relação indissociável.

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Reivindicamos, portanto, nos cursos de formação dos educadores, um perfil de profissional da educação politizado contra-hegemonicamente capaz de exercer uma prática educativa a serviço da humanização da sociedade. Certamente, a concepção de educação em Paulo Freire, associada à outras formas de saberes educacionais, muito tem a contribuir nessa direção. É necessário que nós, educadores e educadoras, sintamos a realidade social contraditória e façamos uma prática educativa cuja política levante-se a favor dos menos favorecidos da sociedade. Longe de paternalismos e assistencialismos, é preciso projetar a sociedade que desejamos construir. A sociedade brasileira, ainda marcada pela mancha do analfabetismo, espera dos educadores que se formam nos cursos superiores, notadamente nos cursos públicos, a devolução dos investimentos ali realizados – e são muitos. Para isso, precisamos colocar o saber adquirido a serviço da grande maioria que está à margem dos benefícios sociais aos quais têm direito, envolvendo-os na construção de uma sociedade mais participativa da vida política social. Afinal, não se trata de trabalharmos para os segmentos menos favorecidos, mas, com eles.

O CURSO DE PEDAGOGIA DA UERN: UM OLHAR INDAGADOR5

Considerando que toda educação está inserida num determinado contexto histórico e social, é importante contextualizar, embora brevemente, a Faculdade de Educação – cenário dos nossos estudos e inquietações. Reconhecemos de pronto não ser essa uma tarefa fácil, dada a aproximação das autoras com o campo de pesquisa em foco, embora exista um significativo esforço de se manter certo distanciamento da realidade que está sendo estudada em função, sobretudo, da seriedade e do rigor científico exigido ao pesquisar.

Acrescentamos ainda, não ser objeto desse estudo desconsiderar o sério e importante trabalho pedagógico desenvolvido historicamente em nossa Faculdade de Educação, o que seria uma atitude pouco ética e, sobretudo, de negação da própria história dessa Unidade de ensino Superior. Esforços de docentes e discentes da comunidade universitária, empenhados em conquistar e fazer funcionar bem a Faculdade de Educação, merecem ser ressaltados pela sua importância e empenho. Daí porque a presente pesquisa objetiva desenvolver um estudo capaz de suscitar críticas construtivas que possam produzir discussões precípuas sobre a importância e atualidade do pensamento de Paulo Freire para formação político-pedagógica do curso de Pedagogia.

Embora a pesquisa não esteja concluída, ao tomar distanciamento da experiência vivida na Faculdade de Educação da UERN, considerou-se, como ponto de partida para reflexões e análises, a experiência como discente6 no curso de Pedagogia no período de 2000-2004. A formação inicial ofertada pelo referido curso associada às experiências deixadas pelas disciplinas – cada uma delas com seus ementários e objetivos bem definidos – apresentaram-se, gradativamente, como ferramentas para análises e reflexões do processo de formação. Por

5 É importante afirmar que tomamos o curso de Pedagogia da UERN, como campo de pesquisa pela aproximação que as autoras têm com essa Unidade de Ensino Superior. A docência e a discência exercidas na referida Faculdade, em tempos diferentes, oportunizaram conhecimentos e geraram inquietações em torno das quais surgiu a presente pesquisa. No que pese o respeito à autonomia e às diferenças expressas nessa Unidade de Ensino Superior, reivindicamos nosso direito de conhecer melhor esse espaço acadêmico no que se refere aos referenciais teóricos que sustentam o dito curso, notadamente no que diz respeito ao seu Projeto Político-Pedagógico, e, assim, poder apresentar, para análise, novas propostas de reflexões teórico-prática. 6 A experiência como discente aqui relatada e refletida nesse tópico do presente texto, foi vivenciada pela autora Elisama Cavalcanti, então aluna de graduação do curso de pedagogia e hoje aluna da pós-graduação (Especialização) da Faculdade de Educação da UERN.

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fim, quando da elaboração do trabalho de conclusão do curso de graduação e, por necessidade da própria pesquisa, apresentou-se a oportunidade de se estabelecer um contato mais estreito com o curso dessa feita voltado para o estudo e análise dos documentos que o balizam. Desse contato e conhecimento, aprofundou-se a preocupação que move a continuidade do presente estudo, mas que teve ali sua origem.

Seguramente, a conclusão do curso de graduação em Pedagogia, oportunizou testar, com mais segurança teórica e ousadia, os conhecimentos apreendidos até então, ao mesmo tempo em que suscitou a necessidade de aprofundarmos os estudos realizados anteriormente, sobretudo, no que se refere ao conhecimento da obra do educador Paulo Freire e às suas contribuições no campo educacional. Esse percurso, ainda cheios de lacunas, à medida que avançava no campo teórico, era desafiado a ser posto em prática nos espaços da escola pública onde atuamos. A relação da teoria com a prática foi-se estabelecendo suscitando novos estudos e reflexões. Na verdade, a relação dialética entre a teoria e a prática foi testada constantemente ao mesmo tempo em que demandava mais estudos capazes de apresentarem respostas às diversidades culturais e sociais que aguardava-nos nos espaços escolares.

Da trajetória acima exposta, é possível hoje desencadearmos discussões mais consistentes sobre a essência político-educacional da nossa formação inicial. Voltando o olhar sobre o curso em si, é possível perceber um certo vazio causado pela ausência de um estudo mais sistemático e amplo na estrutura curricular sobre a Pedagogia deixada por Paulo Freire. O fato de não existir uma educação neutra nos permite afirmar ser esse vazio político na sua essência. Reforçamos não a apologia do pensar freireano, mas o direito que os educandos possuem de conhecer suas contribuições e, a partir delas, poder avançar.

Cônscios de que a politicidade do ato educativo denota uma tomada de posição a favor ou contra o conservadorismo da sociedade, ressaltamos nossa defesa em função de uma formação de graduação que funcione contra esse conservadorismo e se posicione, politicamente, a favor de uma educação coerente e funcional com os segmentos populares, notadamente os presentes nas escolas públicas. Essa postura deve-se ao fato de que, em meio às contribuições estudadas e analisadas na Faculdade de Educação durante a graduação, visando nosso aprimoramento e crescimento profissional, percebemos fortemente a ausência da discussão da dimensão política que a prática pedagógica exerce, pelo menos na intensidade e com a rigorosidade que essa questão exige. Esse fato evidencia a necessidade de tornar claro, no aporte teórico expresso no currículo do curso, a preocupação com a dimensão política da prática pedagógica; o que, pela análise realizada, não foi possível detectar. Seguramente, nesse aporte, o pensamento de Paulo Freire, associado à outras contribuições formativas, deverá está presente como produto existencial e humano. A inclusão dessa discussão e sua abordagem não apenas explicita os compromissos políticos, ideológicos e educacionais do curso de Pedagogia, como também poderá subsidiar teórica e praticamente nos espaços em que os professores/educandos atuam (ou poderão atuar). Certamente, a ausência dessa discussão em muito prejudica o avançar das mudanças educacionais e, conseqüentemente, sociais. Não se concebe que, o homem que projetou nosso Estado, nossa região, nosso país para o mundo, com suas contribuições no campo educacional, seja silenciado ou mesmo desconhecido. O que dizer, portanto das 40 horas de Angicos? Que temos a falar das experiências da campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler? – para ficarmos apenas nessas experiências circunscritas nos espaços locais, mas que foram abraçadas por milhares de pessoas. O que têm a dizer nossos educandos sobre essas questões que têm na política a expressão das suas atividades educacionais? É preciso acrescentar, até por uma questão de fidelidade aos fatos, que a

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importância político-pedagógica do pensamento de Paulo Freire ocupa limitado espaço no âmbito acadêmico, resumindo-se, quando acontece, a indicações bibliografias indicadas por escasso número de disciplinas. Embora importante, essa estratégia não responde à dimensão revolucionária da pedagogia da luta teorizada por Paulo Freire e, sobretudo, não atende às necessidades e a sede de saber dos educandos.

Essa preocupação aumenta quando somos alertados para o fato de que, em “vários e diversificados contextos históricos, centenas de cientistas de diferentes ciências sociais tomam a obra de Paulo Freire como critério fundamental de compreensão nos seus campos específicos” (SOUZA FILHO, 2002, p. 45). Indagamos: Por que a política oficial que dita as diretrizes para formação docente não toma também esse pensamento como critério fundamental para estruturar, dar corpo a essas políticas oficiais de formação docente? O perfil docente defendido pela política do discurso oficial desde a promulgação da lei 9394/96 – LDB harmoniza-se com o perfil de formação defendido por Paulo Freire? Não seriam essas questões relevantes para discussão nos espaços acadêmicos entre tantas outras? O entendimento do relevante peso da educação e sua função social nos leva a tentar entender com mais rigor as diretrizes que movem a Faculdade de Educação – condição essencial à compreensão e à análise do viés político-pedagógico que embasa suas ações.

Hoje, tomada as devidas distâncias do vivido e, sobretudo, com honestidade acadêmica, é possível afirmar que a política oficial do viés mercadológico, presente em grande medida nos cursos de graduação, respinga sobre a Faculdade de Educação; fato que, até certo ponto, possui suas explicações, algumas delas, já apontadas anteriormente. Diante da constatação dessa realidade e como conseqüência, os limites da nossa prática docente na escola distendem-se pela ausência de fundamentações capazes de iluminar uma prática educativa mais preocupada com os processos de conscientização e de humanização da sociedade. Para isso, é preciso exercitarmos a autonomia universitária e buscarmos construir e solidificar o perfil do profissional com melhor potencial político-educativo, mais coerente com nossos sonhos e utopias. Acredito que tentarmos responder claramente algumas questões já é uma forma de avançar e de se posicionar. Por que opacisar em nosso olhar a importância e atualidade que o pensamento de Paulo Freire poderá estar facultando na formação da graduação no curso de Pedagogia? Gadotti (2005) afirma que:

A pedagogia de Paulo Freire está presente em movimentos sociais e educadores populares, mais do que em centros de ensino acadêmicos, pois é um pensamento revolucionário, transformador e lutador. As instituições, principalmente as universitárias, procuram esconder qualquer aspecto pedagógico mais comprometido com a mudança do mundo.

Lembramos não ser nossa intenção mitificar Paulo Freire, nem tão pouco pregar a formação de “discípulos freireanos” nos espaços acadêmicos, afinal, nada menos freireano do que os reprodutores da sua obra. Trata-se de fazer justiça a um educador que revolucionou a pedagogia da sua época, tornando-se um clássico da pedagogia em sua própria contemporaneidade:

Seu pensamento torna-se uma das propostas pedagógicas mais analisada, debatida, acatada, atacada e rejeitada na própria época histórica em que viveu seu elaborador/propositor, como uma expressão desse mesmo momento histórico-cultural. Consegue, nesse processo, fazer-se clássica em sua contemporaneidade. [...]

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Por outro lado, como qualquer pensamento clássico, origina muitas interpretações, deformações, alcances, aplicações diversas, paixões e iras (SOUZA FILHO, 2002, p. 44).

Paulo Freire sistematiza uma filosofia da educação, impossível de ser compreendida, e, sobretudo, apreendida por meio apenas de algumas bibliografias sugeridas na ementa de poucas disciplinas que embasam o curso de formação de educadores, apesar de reconhecermos sua importância.

Analisando o perfil do/a profissional que a Faculdade deseja formar, não resta dúvidas sobre a importância das qualidades objetivadas durante a formação profissional. Contudo, acreditamos ser necessário deixar claro também, dentre esses, o preparo político-pedagógico de profissionais da educação para travar uma “contra-pedagogia” social com profissionais que não apenas ensinem os conteúdos, mas que, aliado a esses, façam a relação com a realidade social concreta, realidade implícita ideologicamente em tais conteúdos. “De qualquer modo, para ser autêntico, é necessário ao processo educativo que se ponha em relação de organicidade com a contextura da sociedade a que se aplica.” (FREIRE, 2002, p.10). Explicitar essa relação é imprescindível ao perfil profissional dos educadores. Além do que, como bem aborda o professor João Francisco, nossa contemporaneidade transcultural na busca da multiculturalidade crítica na pós-modernidade requer aos cursos de Pedagogia que objetivem também a formação de profissionais conhecedores da dimensão política da educação, podendo estar contra ou a favor da ordem social vigente, posta pelo sistema econômico globalizado; acalentado pelo discurso oficial expresso nas políticas sociais e educacionais que interessam ao Estado. Que busque também, preparar profissionais sensivelmente politizados para atuar com as classes populares, objetivando instrumentalizá-las para a conquista de possíveis melhorias em suas ínfimas condições de vida, tanto no aspecto econômico quanto social, cultural, pessoal, político e coletivo. Do exposto:

Parece indispensável, para qualquer universitário brasileiro de hoje, estudo, não só teórico, mas acompanhado da observação direta, de nossa realidade política em elaboração. de nossa realidade econômica. O debate de nossos problemas agudos (FREIRE, 2002, p. 111).

Necessitamos pois de uma Faculdade de Pedagogia que objetive formar profissionais da educação capazes de sistematizar uma educação democrática em consonância com a realidade sociopolítica e econômico-cultural da clientela marginalizada com a qual trabalhamos cotidianamente no contexto escolar. Encharcados pela utopia freireana na busca da formação de uma sociedade multicultural e da efetivação do inédito viável pelo qual lutamos, é imprescindível, nos cursos de formação dos educadores, o estudo crítico dos conteúdos ali ministrados associados à leitura crítica da realidade que os envolve. Afinal, “o que importa é que a escola de nossa atualidade eduque seu aluno e suas famílias no sentido da responsabilidade que só se ganha vivendo.” (FREIRE, 2002, p. 96). Diga-se o mesmo dos cursos de formação dos educadores.

Muitas inquietações permanecem latentes à espera de respostas, de fundamentos que venham subsidiar a prática docente. Embora exista a clareza do compromisso político com a educação e com os segmentos menos favorecidos da sociedade, que, não sem motivos, estão nas escolas públicas; se faz necessário uma formação sólida, rigorosa e de conjunto-exigência de um saber científico, que venha subsidiar e sustentar nossa prática. Certamente essa é, também, a função dos cursos de Pedagogia, embora não sejam esses os únicos espaços de formação do

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educador, apesar de legítimos e formais.

De resto, como poderemos travar uma educação que promova a elevação da consciência crítica das camadas menos favorecidas da sociedade se a formação pedagógica não propicia discussões sobre a educação como ato político? Da mesma forma é possível questionar: “Como, porém, aprender a discutir e a debater numa escola que não nos habitua a discutir, porque impõe? Ditamos idéias. Não trocamos idéias. Discursamos aulas. Não debatemos ou discutimos” (FREIRE, 2002, p. 90). Para atingirmos mudanças possíveis e necessárias, no espaço acadêmico e escolar, precisaremos agir; não somente ficar no nível das reflexões, mas fazer o que pode ser feito em nosso espaço de estudo e de trabalho. “Nós, que lidamos com a reflexão, acostumamo-nos a pensar muito, às vezes em demasia. O tempo da realidade, da política e das ações públicas é um tempo de urgências, emergências e conveniências” (VALE, 2002, p. 39).

O cenário social entre povos privilegiados e subalternizados precisa de práticas pedagógicas formais ou informais que estejam em consonância com as ínfimas condições históricas de vida dos setores mais sofridos da sociedade que, em virtude dessas condições, sofrem preconceitos de classe, gênero, étnico, religioso e tantos outros. Necessitamos de uma formação profissional que possibilite uma reflexão teórica sobre os interesses conservadores da sociedade de classes, sobretudo, para nos instrumentalizar cientificamente. Do contrário, a prática de uma ação educativa contra-hegemônica a favor e com os sujeitos “desfiliados” socialmente torna-se cada vez mais distante.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tratar-se de um estudo ainda em processo de construção e, certamente, aberto a novas descobertas e indagações, temos clareza que as considerações gerais aqui expressas não nos permitem conclusões fechadas; uma vez que se faz necessário esgotar, com rigor e responsabilidade, os campos de pesquisa que se apresentam ao estudo. Contudo, é possível afirmar que a hipótese substantiva que enfatizamos e que move a discussão neste momento aponta que a Faculdade de Educação da UERN apresenta sinais visíveis da ausência de uma discussão aprofundada à cerca das contribuições teóricas de uma pedagogia sócio-progressista, tendo no educador Paulo Freire sua referência de análise.

Não é demais justificar que a preocupação com este estudo deve-se ao fato de, ao lermos a realidade que nos cerca, percebermos claramente que a sociedade brasileira apresenta dados alarmantes e preocupantes no que diz respeito a sua realidade educacional, conforme já enunciados. Sem dúvida, a educação possui uma enorme responsabilidade no enfrentamento das questões que são educacionais, mas, sobretudo, são questões intrinsecamente relacionadas com as precárias condições de vida de milhares de brasileiros. Ou seja, antes, são questões políticas e sociais. O analfabetismo, por exemplo, não nasce sozinho e não por acaso aflige a população economicamente e socialmente mais sofrida. Por sua vez, a escola pública, único espaço “aberto” aos segmentos populares, traz dentro de si e naturalmente toda essa realidade, dado que as crianças e os jovens que lá estão, em sua grande maioria, sofrem das mazelas promovidas pelas desigualdades sociais próprias de uma sociedade dividida. Entendendo a educação como um dos canais possíveis de atuação, capaz de possibilitar a elevação da consciência ingênua dos que lá estão em consciência crítica, cabe-nos uma indagação: Quem educa o educador que enfrenta (ou enfrentará) tamanhos desafios? Responder a essa questão é remetê-la aos espaços de formação dos educadores e, neles, os cursos de Pedagogia

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seguramente têm um peso fundamental, sobretudo, nos últimos anos, cuja meta do Estado é “formar” professores num maior número possível e num espaço de tempo reduzido. A maioria deles atuantes na rede de ensino.

Infelizmente, em meio a essa dinâmica social injusta que ocorre em nossa contemporaneidade, ganha corpo uma formação profissional universalizada e “neutra” frente às contradições sociais e possíveis contribuições que educadores e educadoras podem estar oferecendo ao atuarem. Considerado os limites da pesquisa e as exceções próprias do tecido social, tudo leva a crer que a formação acadêmica prioriza, na maioria das vezes, a formação técnica em detrimento da formação política; o que é, no mínimo, lastimável. Contudo, não podemos desconsiderar que o aspecto político é uma dimensão indicotomizável da educação e que esse tipo de formação em nível universitário também esconde seus interesses igualmente políticos.

Sem dúvida não é intenção deste estudo fazer generalizações; o que foge totalmente aos nossos propósitos, sobretudo, pelos limites dos espaços pesquisados. Que fique claro: nossa intenção é estudar, com a seriedade que a questão exige, voltando nosso olhar para o curso de Pedagogia da UERN – local de experiências educacionais vividas – tendo a clareza que muitos outros cursos de formação acadêmica de professores poderiam, igualmente, terem sido escolhidos como campo empírico desta pesquisa. Nosso objetivo, portanto, ao analisar a favor de quem, como e por que a Faculdade de Educação formaliza a estrutura curricular do seu curso no formar seus profissionais, é conhecer mais claramente o compromisso político dessa Unidade de Ensino Superior no que se refere às suas funções, objetivos, diretrizes curriculares, Projeto Político-Pedagógico, entre outros instrumentos de pesquisa. Na verdade, ainda estamos a buscar respostas a muitas indagações. Por exemplo: Será que, ao formar os profissionais da educação, estamos levando em consideração a dimensão político-crítica de um perfil de educação sócio-progressista voltada para os segmentos populares? A formação que o curso de Pedagogia está oferecendo, contribui para trabalharmos nas escolas os conteúdos programáticos de modo a associá-los com a realidade social dos educandos? A questão da politicidade do ato educativo está sendo trabalhada rigorosamente de modo a instrumentalizar os educandos/educadores na sua função político-social em sala de aula? O legado deixado pelo educador Paulo Freire faz parte das teorias formativas do curso?

Reconhecendo que nosso estudo/pesquisa ainda está em processo de aprofundamento, em busca de resultados que venham comprovar ou negar a hipótese que nos move; objetivamos suscitar, já neste momento, discussões sobre a importância e a atualidade do legado do educador Paulo Freire para os cursos de Pedagogia na esperança de, assim, está contribuindo para a formação dos educadores e das educadoras, oportunizando-os ampliar conhecimentos que venham subsidiar os desafios postos no cotidiano da prática escolar notadamente nas escolas públicas.

REFERÊNCIAS

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______ Pedagogia da indignação. Cartas pedagógicas e outros escritos. 4. ed. São Paulo: UNESP, 2000.

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______ Ação cultural para a liberdade e outros inscritos. 9 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

______ Educação como prática da liberdade. 25 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

______ Educação e atualidade brasileira. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2002.

______ Política e educação. 5 ed. São Paulo: Cortez; 2001.

______ À sombra desta mangueira. 5 ed. São Paulo: Olho d’água, 2003.

GADOTTI, Moacir. Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/nacional/96freire%20 representa.htm. Acessado em: 20 mar. 2005.

ROMÃO, José Eustáquio. Paulo Freire e o pacto populista. In: FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 25 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

SOUSA FILHO, Alípio. Responsabilidade intelectual e ensino universitário. Natal: EDUFRN, 2000.

SOUZA, João Francisco de. Atualidade de Paulo Freire. São Paulo: Cortez, 2002.

SHIROMA, Eneida Oto; MORAES, Maria Célia Marcondes de; OLINDA, Evangelista. Política educacional. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

SCOCUGLIA, Afonso Celso. Educação popular. Do Sistema Paulo Freire aos IPMs da ditadura. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, Cortez, 2000.

UERN/ Faculdade de Educação. Projeto Político Pedagógico. Mossoró/RN, 2004.

VALE, Ana Maria do. Diálogo e conflito: A presença do pensamento de Paulo Freire na formação do sindicalismo docente. São Paulo: Cortez, 2002.

______ Educação Popular na Escola Pública. São Paulo: Cortez, 2001, 4 ed.

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AOS DESAFIOS DA SOCIEDADE MULTICULTURAL “A ARTE COMPARECE PARA AJUDAR”

Ana Maria Netto Nogueira1

RESUMO

As relações de gênero, nas Artes Visuais, objeto desta pesquisa, partiram do conceito do eterno feminino. Explicitado nas obras da arte brasileira do século XIX, essa idéia ainda permanece com seu ranço nos anos 90. Esse conceito, que coloca o masculino como uma presença hegemônica na arte, poderá ser revertido? Com essa questão básica foram levantados os seguintes questionamentos: Quais os alicerces para um novo entendimento? A arte está isenta da diferença? Qual a dimensão do trabalho no mundo da Arte? Tendo como fundamento o pensamento pós-moderno, a autora, escolheu a obra de três mulheres artistas: Fayga Ostrower, Iole di Natale e Renina Katz que entendem esse ofício de uma forma ampliada, como uma energia em expansão.

Palavras chave: Obra de Artes Visuais; relações de gênero; energia em expansão.

Frente aos desafios apresentados pela sociedade multicultural, Paulo Freire considerava que, entre outras áreas do conhecimento, a Arte deve comparecer para ajudar. Na atualidade, as relações de gênero, têm aparecido como importante área de estudos, na medida em que as discussões sobre as condições de vida, os valores da identidade feminina e o trabalho da mulher, têm-se colocado na sociedade em comparação com os do homem. Nas Artes Visuais, esses estudos, embora vistos com certo estranhamento, deram origem à dissertação de mestrado, O Feminino na Criação Poética das Aquarelas de Fayga, Iole, Renina e Ana, defendida pela autora no IA-UNESP, em São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Percival Tirapeli. Neste colóquio, elementos dessa pesquisa pretendem mostrar a atividade criadora de três mulheres artistas que além de atender suas necessidades pessoais de produção da boniteza, manifestam-se comprometidas com a pregação dos valores éticos da moralidade e decência. Como diria Paulo Freire não se trata de puritanismo, mas de pureza.

COMO ENFRENTAR AS PROVOCAÇÕES DE UM PRÉ-CONCEITO?

Simone de Beauvoir, quando escreveu o livro O Segundo Sexo, em 1949, comentou que ainda na sociedade da época, a mulher, em grande parte, era invenção do homem. A autora manifestava que a mulher ainda era referida como um agrupamento de indivíduos, apresentando certo número de características, constituindo-se num gênero que tem se perpetuado como o eterno feminino.

Em 1991, houve a oportunidade de visitar na Pinacoteca do Estado, aqui em São Paulo, a exposição O Eterno Feminino. Foi muito interessante porque foi possível visualizar na arte aspectos das idéias que esses termos informam. Segundo Maria Alice Milliet, então diretora do Museu e responsável pela realização da mostra, um grande número de obras existentes no acervo instigava a reflexão sobre a condição da mulher no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. “Os objetivos da exposição concentraram-se em examinar os valores morais que regeram a produção dessas imagens, e que tipo de contraponto poderia ser feito

1 Ana Maria Netto Nogueira, Mestre em Artes Visuais, Doutora em Poéticas Visuais, Artista Plástica, Professora da Universidade Anhembi Morumbi e da Faculdade Associada de Cotia.

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com a situação atual, verificando o que daquilo que era vigente persistiu e o que mudou?”.2

Por meio das pinturas, desenhos e esculturas, produzidos na sua maior parte por artistas homens, (exceções feitas apenas a Georgina de Albuquerque, Beatriz Pompeu de Camargo, Berta Warms e Anita Malfatti) foram apresentadas para nossa apreciação e reflexão crítica, os perfis da mulher idealizada, sonhada e desejada, através de imagens “impregnadas de ambigüidades pela moral vigente, onde a austeridade da mãe e da esposa convivia com o erotismo dos nus num contexto exótico”.3 Nos retratos de família que deveriam figurar nas paredes das salas por diversas gerações, as sinhazinhas e as senhoras mostravam-se sóbrias enquadradas num fundo neutro, vestidas e arrumadas de acordo com sua posição social: com a vaidade recatada e séria, sem traços de sedução.

Nas cenas do cotidiano, além da exposição dos costumes e indumentárias femininas, as pinturas mostravam as relações familiares. No quadro da família de Adolfo Augusto Pinto, o pai aparece lendo um conto, isolado do resto da família, e no eixo central e principal da tela está a figura da mãe, rodeada e envolvendo os filhos. Na obra Maternidade, de Eliseu Visconti, a mulher está sentada no Parque, totalmente voltada para os cuidados com o bebê que tem no seu colo. Por perto uma menina, talvez sua filhinha, brinca com a boneca, o seu bebê, parecendo imitar o gesto materno. Estas cenas, enaltecendo o feminino como um movimento de dedicação e carinho que devem ser devotados aos filhos, expressam o desejo da reprodução desses valores.

Em contraposição, o nu da mulher fatal, da estrangeira, da sedutora, da exótica ou o de tantas outras mulheres fáceis, projeta na outra a responsabilidade pelo sensualismo exacerbado do homem provinciano de arraigado moralismo. Esses valores conflitantes e antagônicos têm cindido a mulher, apresentado-a como um ser não para si, mas ser para o outro, resumindo tudo o que há de bom e de ruim para o homem: felicidade / sofrimento, virtude / vício, fascínio / danação, triunfo / queda...

A mulher como ser que só se afirma pelo outro e para o outro, que vive ora a serva, ora a companheira, ora a musa, ora a perdição, ora o público, ora o juiz, passa a constituir a si mesma como um ser secundário, inferior, sem essência, uma coisa, um objeto.

Apesar das mudanças fomentadas pelo firme movimento de liberação, encaminhado pelas mulheres a partir dos anos 60 do século passado, ecos desse eterno feminino continuam a identificar a presença tanto da artista como da mulher no campo das artes visuais.

Estranhamente nos dados da pesquisa, desenvolvida nos anos 90, sobre o Universo da Aquarela (NOGUEIRA, s.d.) puderam ser confirmadas essas ressonâncias. A análise demonstra que ainda muitas artistas reforçam, por meio de suas obras, a idéia de assuntos femininos como flores, paisagens, passeios, pássaros, matas etc. E ainda corroboram com a visão de que o espaço feminino é o espaço doméstico, pois revelam que as imagens apresentadas são geralmente construídas em função daquilo que está presente na casa ou no jardim (flores) ou pode ser observado por meio de fotos ou mesmo vistas das janelas. Somente os homens artistas é que mencionaram na pesquisa, a construção das paisagens sobre 2 Apud do áudio da fita VHS sobre a Exposição, gravada para o curso: A representação da sensualidade feminina na Arte, da Pós-Graduação ECA-USP, 1991. 3 Ibid. nota 1.

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as notas de viagens.

Colocaram-se então os seguintes problemas: O masculino é uma presença hegemônica na arte? E, tal como Freire, como transformar esse modo único de pensar?

Em relação à primeira questão, a artista Regina Silveira, em entrevista a Tadeu Chiarelli e Carlos Silvério, falando sobre o início da sua carreira, no final dos anos 50, revelou: “Sou daquele tempo em que o bom e o bacana era ser uma mulher de quem diziam: ela é melhor do que um homem, ou ela é tão boa quanto um homem” (CHIARELLI e SILÉRIO, 1988). Dessa forma ela vem confirmar que na nossa cultura o parâmetro masculino é tão forte que chega a ser hegemônico em muitas áreas do conhecimento inclusive nas Artes Visuais.

Com essas questões básicas foram levantados os seguintes questionamentos: Quais os alicerces para um novo entendimento? A arte está isenta da diferença? Qual a dimensão do trabalho no mundo da Arte?

QUAIS OS ALICERCES PARA UM NOVO ENTENDIMENTO?

No pensamento pós-moderno foram encontrados princípios e idéias que tinham o potencial de instrumento para encaminhar as discussões para um novo entendimento. Era a Metodologia da Desconstrução, a Filosofia da Diferença e do Acontecimento, baseadas em Deleuze, Gattari e Derrida.

Derrida e seus parceiros da Universidade de Yale, nos anos 70, inventaram o processo da desconstrução. No lugar dos significados transcendentais e últimos, a desconstrução passou a descrever apenas as diferenças como uma condição relativa dos significados entre si. Arthur Nestrovski, situa a desconstrução como um “método filosófico que postula a não-violência e reconhece o outro enquanto tal” (NESTROVSKI, 1995). Com essa postura ética de reconhecimento do outro, a desconstrução tem o potencial de conduzir a definição de uma utopia política que poderia ser “chamada de democracia à qual, perpetuamente, compete a todos inventar”. Talvez a utopia, referida por Paulo Freire, baseada na “dialética entre o ato de denúncia do mundo que se desumaniza e o anúncio do mundo que se humaniza," (FREIRE, s.d.) manifestasse esse esforço de criação.

“Desconstruir deve ser entendido também, como um processo de análise, que ao operar com qualquer oposição binária é possível invertê-la e deslocá-la, na sua construção hierárquica, em vez de aceitá-la como real, óbvia ou como estando presente na natureza das coisas”(PIZA,1993). Essa metodologia favorece “o aparecimento de múltiplas identidades e de uma heterogeneidade ilimitada do social”. Desta forma viabiliza-se uma alternativa à hegemonia do pensamento único, permitindo a implantação da prática dialógica freireana. Assim, teoricamente, ficava banida da sociedade humana, a oposição binária feminino / masculino. E, o gênero não poderá ser visto como uma categoria universal e o masculino e o feminino não serão considerados formas fixas e únicas de manifestação do gênero.

A repercussão dessa forma de pensar tem propiciado ao gênero feminino uma dinâmica em expansão, cujo fundamento comum é a afirmação de inúmeras singularidades.

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No campo da Arte, a partir de meados dos anos 60, essa perspectiva foi tomando corpo e organizando uma ampla reação à dominação “tirânica do artista na cultura moderna e a quase deificação masculina, composta de ego e poder”(BROUDE e GARRAD, 1992). O esforço inicial vindo com o primitivo feminismo, foi sustentado, absorvido e concretizado pelo projeto pós-moderno, que tem se caracterizado, tal como Paulo Freire diria, como um rompimento com a tradição unificada e monolítica da Arte Moderna.

A crítica desconstrucionista tem mostrado certo refinamento: aguçando o senso crítico, aprimorando os instrumentos de leitura (re-leitura, re-descrição etc.) e estimulando a criatividade na produção. Ela também tem incorporado a essa visão, a teoria do acontecimento de Deleuze, realizando um movimento de valorizar ainda mais a criação, mesmo aquela expressa nos pequenos acontecimentos, na materialização, mínima que seja. O processo criador tem sido apontado como a única forma de resistir às condições do (tempo) presente. Félix Guattari nos fala que “a única resistência digna ao presente é a criação”. E segundo o pensamento de Deleuze, “o acontecimento” (criação) “não está enganchado na cadeia contínua dos presentes com uma única direção” (a boa, a sensata direção) “o acontecimento sugere o tempo paradoxal, não localizado, incorporal, sempre pessoal e sempre por vir, em que presente, passado e futuro podem ser subvertidos”(PELBART, 1995).

No Brasil, a Prof. Dra. Ana Mae Barbosa, comenta que, antes de 1922, o trabalho das mulheres ligados à arte recebia o título genérico de trabalhos manuais. Também apresenta o fato de que a atividade artística tem sido considerada como algo diletante e meio sem compromisso, e ainda as mulheres representarem mais de 90% da população dos Cursos de Arte, são dados que podem explicar a arte como uma característica do espaço de mulheres. Mas, com o evento do Modernismo, Anita Malfatti e Tarsila do Amaral produzindo obras de vanguarda, participaram ativamente desse movimento artístico e proporcionaram naquele momento a formação, ainda que embrionária, de uma classe artística feminina. “Hoje, porém as mulheres artistas conquistaram o seu espaço em aparente pé de igualdade com os homens artistas”. No entanto, a obsoleta posição do artista como ser superior da cultura moderna ainda está atuante entre nós, havendo certa recusa em “trabalhar a consciência da diferença”. Somente com “a chegada do pós-modernismo é que se começa a estabelecer um diálogo entre igualdade e divergência e se coloca a possibilidade do como lidar com essa confusa organização das emoções” (CANTON, 1993).

A Diferença proposta por Deleuze “é um jogo que permite a abertura de um caminho para a elaboração de uma ética da singularidade. É uma tomada de posição que não acolhe apenas as diferenças constituídas individual e coletivamente, mas assume produzir novas diferenciações fazendo do homem e da mulher grandes experimentadores de modos de existir singulares” (PELBART). A ARTE ESTÁ ISENTA DA DIFERENÇA?

Uma idéia antiga é de que na Arte a criação está isenta da diferença. As “Guerrilla Girls”, um grupo de artistas anônimas que se autodenominava “consciência da arte mundial”, em 1987, produziram em Nova York, um pôster no qual com ironia, relacionavam “as vantagens de ser uma mulher artista”. Num dos itens reafirmavam que “qualquer tipo de arte feito por uma artista será sempre rotulado de feminino”(CHADWICK, s.d.). Desta forma revelaram a vigência de uma concepção estereotipada quanto a pensar e sentir o mundo, visualizando as produções das mulheres como passatempo, uma distração ou lazer, marginalizando essas atividades do estatuto do trabalho que elas realmente possuem. Nessa perspectiva é retirado

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da vivência artística a visão de aprendizagem permanente, mobilizadora da totalidade humana do ser: da sensualidade, afetividade, criatividade e as conseqüentes atitudes de transformação e libertação que a vivência de tal processo pode detonar.

A atividade poética, pelo contrário é instigadora dos mútiplos aspectos constituintes do ser. Ela apresenta-se como uma abertura ao acontecimento, ao aqui e agora proposto por Freire, e pode ser capturada nas obras das três artistas: Fayga Ostrower, Iole di Natale e Renina Katz. Tendo em comum a concretização da qualidade técnica, estética e ética, tal como estabelecia o termo grego poietika, essas artistas entenderam que a obra instala-se como fonte permanente de re-alimentação pessoal e possibilidade de transcendência, tornando o ofício da arte uma energia em expansão.

Na apreciação do processo criador dessas artistas Fayga Ostrower, Renina Katz e Iole di Natale “pode-se constatar a apresentação do silêncio ao qual a mulher, considerada no seu coletivo, estava condenada. Junto, ficava também caracterizada a sua pobreza, sua condição de mão de obra barata, seu isolamento e solidão” (LEMMI, 1988).

Fayga, na série de gravuras “Lavadeiras”, realizadas em 1948, trabalhadas em água-forte e ponta seca e impressas em preto, nos mostra as lavadeiras dobradas sobre si mesmas, esfregando roupas nas tinas, as mães à janela com seus filhos no colo, olhando para dentro de delas mesmas, faz uma denúncia da submissão, do anonimato e da aceitação passiva da injustiça social. “É uma denúncia feminista” arremata a pesquisadora Maria Helena Lemmi (LEMMI, 1988).

Renina, simpatizante do projeto estético do expressionismo, fez diversas séries de xilogravuras sobre temas como favela, trabalhadores rurais etc. Nos anos 50. “com o compromisso de lutar pela liberdade e direitos humanos, achava que o seu papel social estava sendo cumprido através de um determinado trabalho de denúncia, de um trabalho de alerta sobre um problema que a afligia do ponto de vista social, moral e político” (TRIGO, s.d.). Iole com seus Sonhos Negros também vê o isolamento da mulher na cidade.

No entanto, numa visão mais ampla sobre o conjunto da obra dessas artistas e a relação com o feminino, elas se manifestaram da seguinte forma:

Fayga, destacava que em todo artista, assim como provavelmente em todo o ser humano, existem as qualidades chamadas de feminino: a sensibilidade, a delicadeza, até mesmo a ternura, as qualidades mais perceptivas, mais envolventes da pessoa, existem tanto no homem como na mulher. Também o oposto identificado como masculino: as qualidades mais agressivas, mais poderosas, mais fortes e menos introvertidas, existem tanto em um como no outro”.4 Ela considerava que é uma questão de personalidade de cada um:

Mas, falando sobre minha pessoa, como artista, eu me identifico como artista mulher. Esse é um processo que tem perdurado por toda minha vida. Pela vida inteira tenho procurado saber quem sou eu, como sou eu. Somente agora, com mais de setenta anos(ela faleceu em setembro de 2001) é que eu sei de mim e do meu trabalho, nesse período de mais de 40 anos de construção de uma obra. Então posso ver que houve uma certa transformação ou uma mudança estilística.Talvez fosse

4 Depoimento de Fayga, 08.06.95.

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melhor falar de mudança na definição estilística, da presença de um esclarecimento estilístico, que de forma alguma pode ser programado. Não se trata de um ato voluntário decidido previamente como por exemplo, amanhã eu vou ser mais dramática. Se ontem eu fui menos dramática trata-se de um sentimento de vida, um sentimento de como você encara as coisas.

Então, se eu olhar desde o início a minha trajetória estilística até hoje e, sobretudo na própria abstração, eu posso dizer que houve uma lenta transformação para um estilo mais e mais lírico. Meu estilo era muito mais dramático mesmo dentro da abstração, era mais expressionista. O expressionismo é sempre mais dramático pela presença dos contrastes formais, etc. Mas, mesmo que hoje eu tenha uns trabalhos mais dramáticos do que outros, minha abordagem como um todo, se tornou muito mais lírica, muito mais voltada para os problemas de harmonia, os problemas de beleza que talvez no início de minha carreira. Os temas que eu utilizei no começo, como lavadeiras, crianças pobres, maternidade, querendo ou não, começaram a emergir quando eu tive os meus filhos. Mesmo na abordagem desses temas eu era mais dramática do que hoje. Hoje tudo o que faço aparece mais lírico. No trabalho com a aquarela, devido ao material tão transparente e delicado, é difícil fazer uma aquarela agressiva. Mesmo que se use cores fortes, vai ser difícil sair algo agressivo. Não sei se essa delicadeza da aquarela tem a ver com o feminino, ou seja, com a feminilidade que existe dentro de cada um.5

Finalizando, Fayga considera que é procedente estudar essas qualidades nas obras das artistas mas, com uma preocupação constante de evitar generalizações.

A artista Renina Katz, também entrevistada sobre este tópico, fez menção à existência do “yin” e do “yang” na reflexão sobre gêneros. Esses termos que significam literalmente “a encosta sombria e a encosta ensolarada de um vale” CHEVALIER e GHEERBRANT, s.d.) apresentam uma relação entre um e o outro que, por analogia, passou a designar o desejo de harmonia entre os aspectos obscuros e os aspectos luminosos do mundo, entre o feminino e o masculino, manifestando ao mesmo tempo a dinâmica do dualismo e do complementarismo universal. É interessante essa abordagem da questão da luz na obra de Renina, pois ela se coloca como uma metáfora do seu trabalho poético que encontra na luz sua manifestação essencial. Nessas reflexões tem-se observado que quando esses dois aspectos são trabalhados juntos, há uma busca de balanceamento entre esses dois elementos, de modo a não priorizar um em detrimento do outro, rumo à convivência em harmonia dinâmica e em permanente devir. Mas, muitas vezes no desenvolvimento pessoal, esses princípios ficam misturados com as características biológicas do indivíduo e a sociedade ocidental tem identificado a intuição, a sensibilidade, a delicadeza, a fraqueza e a timidez, como algumas das qualidades próprias do útero. Por isso, segundo Renina, as mulheres têm estado atentas a tudo o que acontece, fazendo até um esforço de participação em quase tudo e em especial no mundo das artes. Ela considera que uma atitude profissional implica numa vigilância, num ficar alerta sempre, até bem desagradável e desabafa:

[...] e assim temos feito um pouco a nossa briga com base no crédito que a gente se dá. Pois, não podemos aceitar a discriminação. Queremos ser consideradas, não pelo fato de sermos mulheres mas, pela qualidade dos nossos trabalhos que precisam ser percebidos como produções tão boas como as de qualquer bom artista! 6

Há nessa proposta da briga um momento de grande afinidade entre Renina e Freire. Considera-se na Pedagogia do Oprimido a briga pela libertação, como a liberdade de se estar sendo com os outros, de mudar o mundo, recriar e refazer tudo aqui e agora. 5 Depoimento de Fayga colhido em 8.6.95. 6 Entrevista de Renina a autora em 1995 e 1996.

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Tanto a arte como a personalidade de Iole Di Natale foram orientadas pelos princípios da Psicologia Analítica, de Jung. Ao se pronunciar sobre as questões de gênero ele imediatamente nos encaminhou para a visão dos princípios da anima e do animus. A “anima”, com a função de tornar familiar para a pessoa a existência da psique realiza um processo de auto-convencimento, que Jung chamou de reflexão: o ato por meio do qual paramos, trazemos algo à mente, formamos um quadro, criamos uma relação e chegamos a um acordo sobre aquilo que vislumbramos. Trata-se pois, de um ato espiritual que contraria o processo natural porque interrompe o fluxo irracional da vida, para em seguida prosseguir num outro nível de consciência. Desta maneira a reflexão deve ser entendida como um ato de tornar-se consciente. A “anima” tem a função de mensageira entre o consciente e o inconsciente e seu principal atributo é a receptividade, isto é, estar aberta e vazia para o irracional.

O “animus” refere-se ao espírito. É o princípio masculino, que busca compreender as coisas com as quais lida e verifica como elas funcionam. É a razão, o logos, que se concretiza por palavras, idéias, intelecto, abstração. É como uma ordem da atividade intelectual ou mental. Segundo Emma Jung, o “animus”, como uma voz que comenta, apresenta-se criticando ou elogiando e trazendo justificativas as suas assertivas. Atuando dessa maneira, o animus, pode levar tanto à consciência do valor de si mesmo quanto à visão de uma completa nulidade. Tal procedimento pode provocar sentimentos de inferioridade, sufocar iniciativas e desejos embrionários. Seu funcionamento é dirigido para discriminar, julgar, abstrair, estabelecer leis gerais, enfim, tudo que diz respeito ao raciocínio. A expressão mais importante do “animus” é o julgamento.

Nas pinturas e gravuras da série mitológica, Iole faz praticamente, rituais de entendimento e celebração desses princípios. O princípio feminino, a “anima”, continua apresentado pela mulher, enquanto o masculino agora está apresentado pelo homem.

Nas Mitologias I e II que apresenta a natureza exuberante, mostra em movimentos rituais circulares, o feminino sendo levantado pelo masculino.

Na Mitologia III, a mulher antes dormente, sem forças, carregada, agora está de pé, confusa, exalando uma sensualidade latente. Na Mitologia IV há uma inversão do feminino que está apoiado triunfante nas costas do masculino. Bruno Talpo, artista italiano, compreendeu essa inversão, escrevendo em carta a Iole que “a mulher possui o homem não de forma fisiológica, obviamente impossível, mas alquímica. Seus cabelos parecem línguas de fogo e a vegetação nos leva a pensar num cadinho, onde figuras se fundem, auxiliadas pelas tramas de finíssimos sinais, agudos como a inteligência” (TALPO, 1987).

Na Mitologia V, a imagem construída em gravura de excelente qualidade, mostra o masculino e feminino, de pé, juntos, contemplando serenamente o novo caminho que se apresenta a esse feminino que renasceu.

Lembro-me também, com muita clareza, que nos anos 60, quando terminei a escola de arte, os padrões da estética vigente não acolhiam as produções artísticas das mulheres que expressassem qualidades formais e expressivas percebidas como femininas. Exaltava-se a agressividade e não a delicadeza, a força e não a sensibilidade, portanto diante dessas oposições binárias as qualidades masculinas eram sempre favorecidas em detrimento das femininas.

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Tais princípios foram tão bem assimilados por mim que quando preparei a minha primeira exposição individual (1979), a maior ansiedade em relação à crítica, era saber se esses padrões de avaliação estavam incorporados nos meus desenhos. De fato eu queria saber se meus trabalhos eram fortes.

Nesta pesquisa, ao mesmo tempo em que parecem confirmados esses critérios vividos na juventude, também se percebe uma mudança nas artes plásticas, buscando considerar de valor obras que não só abordem questões ligadas ao feminino mas, também criem um movimento de desvelar na História da Arte Brasileira as contribuições das artistas mulheres.

Portanto, só se pode considerar um mito o pensamento que coloca a arte isenta das questões da diferença, pois como Fayga, Iole e Renina, pondero que o masculino e o feminino são qualidades determinadas na personalidade de cada um, sendo possível encontrar mulheres mais masculinas e homens mais femininos e vice-versa, e que esses modos de ser podem transbordar em obra, em configurações também detentora dessas qualidades.

QUAL A DIMENSÃO DO TRABALHO NO MUNDO DA ARTE?

As artistas eleitas como referencial para nossas reflexões, têm desenvolvido paralelamente à produção artística, ligada à gravura, aquarela e pintura, ações concretas de cidadania e que, equivocadamente, podem ser vistas como alternativas para a sobrevivência material. De fato, trata-se de uma consciência profissional ampliada, que entende a atividade artística como um trabalho e que reúne à criação poética, outras atuações nos campos do ensino, da política, da literatura etc, como parte de um mesmo ofício.

Fayga, Iole e Renina têm desenvolvido um intenso e ativo trabalho junto às pessoas que atuam ou que de um modo, ou de outro, estão ligadas às Artes Visuais. O sentido dessas ações é de conscientizá-las sobre si mesmas, sobre a realidade próxima e o papel da arte na construção do mundo global.

DEPOIMENTO DE FAYGA: UMA BANDEIRA A FAVOR DA SENSIBILIDADE

Fayga viveu na infância e adolescência, junto com seus pais e irmãos, condições de imensas dificuldades. Aos dez anos ela já sabia o que era sentir no próprio corpo a tensão da tragédia que significava perder umas poucas moedas que levava para comprar pães. Aos doze anos já tinha experimentado o medo de uma família em fuga (do nazismo) e as incertezas de permissão de permanência pelos países por onde passava.

Quando a família conseguiu o visto para o Brasil e se instalou em Nilópolis teve que encarar a pobreza frente a frente. Essa região da Baixada Fluminense até hoje tem chamado a atenção das pessoas preocupadas com o social. Ultimamente Nilópolis têm se destacado pelo trabalho de promoção social que carnavalescos da Escola Beija-Flor e cujo valor humano e estético foi resgatado pela professora doutora Maria Lúcia Montes, em exposição realizada no MAC-USP, em 1993-94.

Fayga confessa:

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[...] a pobreza me afetou positiva e negativamente. Essa vivência ajudou-me a me colocar com mais objetividade frente às pessoas. Acredito que a pobreza em si seja um mal social e não pessoal. É um problema muito difícil que realmente tem que ser solucionado mas não só com relação à comida, à habitação. O ser humano não é como um cachorro que você dá um ração de comida e ele fica satisfeito. Não, você tem que considerar os seus valores espirituais. É isso que faz o ser humano.

No meu caso particular eu tinha alguma coisa a meu favor que era minha inteligência. Desde cedo adorei ler, estudar e esse trabalho intelectual me ajudou a sair do marasmo que é a pobreza. Que é uma coisa terrível, que reduz a pessoa realmente. O conhecimento intelectual, me fascina até hoje. Acho uma maravilha como tudo isso me ajudou a sair dessa ‘coisa’.

A pobreza é uma desgraça, mas independente dela a pessoa é mais sensível ou menos sensível. É uma questão de personalidade.

Quando eu falo para as pessoas sobre Arte, me dirijo à sensibilidade delas. Eu não sei quem são essas pessoas, mas elas se descobrem. Eu tenho visto isto tanto nas aulas que tenho dado para grupos de operários como para grupos de executivos ou mesmo professores universitários. Não há diferença alguma. Tanto num grupo como no outro existem pessoas mais ou menos sensíveis. E realmente esta é a base para nos entendermos sobre Arte. Nem com relação às questões do conhecimento, da informação, eu posso subestimar um grupo em relação a outro.

Quem sabe que existiu um século XV? Olha nem entre os executivos isso pode ser considerado como um conhecimento prévio!

Quando fui convidada a dar o curso para operários7 encarei a pobreza como um fato e isso me preocupou muito tempo antes de aceitar esse convite. Não imaginava como é que eu podia me colocar diante de um grupo de pessoas que nem sabia se eventualmente tinha o dinheiro para comprar o pão do dia seguinte! No entanto, deveria falar sobre valores espirituais! Pois, se você não falar sobre valores espirituais, você não estará falando sobre Arte. Estará falando sobre técnicas sobre crítica, sociedade mas não sobre Arte. Como é que então eu poderia equacionar essa questão? Decidi pular na água gelada. Não havia outro jeito para aprender a nadar e saí nadando.

Mas deu certo porque entendi que essa situação era uma situação real. Queria ajudá-los mas sem qualquer sentimento de culpa que em geral os intelectuais têm quando se confrontam com as classes mais carentes.

Tratei os operários de igual para igual, sem qualquer tom condescendente ou patrocinador e muito menos achando que tudo é lindo, que é só o operário abrir a boca e ele é capaz de dizer as maiores sabedorias. Eu estava lá para dar informações, não era a professora que tinha de ensinar a vida para eles. Eles não sabiam nada de mim e a gente se tornou amigo. Talvez porque eu não era fraternal com eles. Procurava me expressar de modo simples e claro, dando as informações históricas e culturais que achava necessárias. Não os subestimei e nem simplifiquei o meu recado sobre Arte. Então deu certo! Mesmo que a nossa sociedade não dê a mínima para a sensibilidade ela faz parte do ser humano. 8

DEPOIMENTO DE IOLE: O NÚCLEO DE AQUARELISTAS MOBILIZANDO FORÇAS

Iole Di Natale é uma artista carismática que sabe como poucos reunir as pessoas, sentir as suas necessidades e encaminhá-las, deixando emergir no grupo as atitudes de cooperação 7 Trabalho relatado no livro Universos da Arte. Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1983. 8 Entrevista realizada em 9.6.95 em S.Paulo.

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democrática, envolvendo a todos em ações de cunho profissional altamente dignas. O saldo mais significativo da sua atuação é sem dúvida o Núcleo de Aquarelistas da FASM que agora em 2005 completa dezoito anos de existência:

O termo ‘Núcleo’ começou a ser usado em 1987 para identificar o grupo de artistas aquarelistas que foi se formando em torno de Iole Di Natale. O encontro desses artistas foi acontecendo naturalmente, desde 1973, nas aulas de aquarela que Iole ministrava no curso oficial de Artes Plásticas da FASM.

A partir de 1985 novos elementos foram se integrando ao grupo, vindos de um outro curso paralelo de aquarela que a própria faculdade passou a desenvolver.

Nesse mesmo ano, de 1987, esse agrupamento de artistas além de se autodenominar Núcleo resolveu, juntamente com Iole, organizar o 1º Salão Nacional de Aquarela da FASM, evento que se concretizou em 1988 com muito sucesso.

Algumas preocupações nortearam essa plêiade de artistas, tais como, a aquarela como linguagem pictórica, a pesquisa sobre a história da aquarela, o desenvolvimento da poética individual bem como a orientação da expressão artística da mulher. Tais preocupações constituem, aliás, as principais metas de trabalho de Iole e do Núcleo desde o início.

A prática desses objetivos tem atraído artistas aquarelistas não só de vários pontos da cidade de São Paulo, como também, do interior do estado, abrindo novas oportunidades a todos aqueles que têm o desejo de trabalhar com a organização de eventos moldados nos critérios de assumir e dividir as responsabilidades que a realização de projetos coletivos implica.

Em outras palavras, no Núcleo, além da trajetória individual, cada aquarelista vive a intrincada rede puzzeleriana da colaboração e apoio mútuos entre grupos e subgrupos na concretização de projetos, por meio da montagem de mostras, realização de pesquisas, reflexões, viagens culturais, ‘workshops’ e exposições no Brasil e exterior.

A intensa atuação dos componentes do Núcleo se traduz num histórico denso e consistente que vem movimentando a comunidade artística de São Paulo. Já durante os preparativos do 1º Salão Nacional de Aquarelas foi idealizado um Levantamento de Dados sobre o Universo da Aquarela. Esse levantamento foi realizado e contou entre os pesquisadores e os pesquisados com os próprios artistas participantes. Esse tipo de iniciativa se desdobrou nos anos posteriores, em realizações que ora aprofundaram questões históricas, ora questões de linguagem, ora questões temáticas, todas pertinentes ao universo da aquarela. Gerou também a Sala dos Mestres no 1º Salão Paulista de Aquarelas da FASM, em 1993.

Os aquarelistas do Núcleo se reúnem mensalmente, na Rua Emílio Ribas, 89, numa das salas da FASM, entidade que lhes devota tal crédito de trabalho a ponto de vir cedendo-lhes espaço físico para funcionar.

O ‘dossier’ do Núcleo reflete um agrupamento de pessoas inquietas, prontas a enfrentar obstáculos, atentas ao momento artístico e conscientes de seu papel histórico na cultura brasileira (NATALE, 1995).

Sobre o trabalho como professora Iole considera que sem os seus alunos não poderia ter produzido tudo o que produziu, nem se apropriado da bagagem de conhecimentos que tem hoje.

Ela faz uma analogia entre trabalhar com aquarela e trabalhar com o humano, entre lidar com

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uma coisa aquosa e canalizá-la de modo expressivo e lidar com as pessoas, oferecendo a elas condições de perceber cada momento da própria vida e permitir que o processo criativo caminhe e flua, até a conquista de uma produção pessoal que deixe aflorar a personalidade íntegra de cada um. Em ambos os processos, tanto a artista como seus orientandos têm-se conscientizado da alquimia que se opera, da transformação e da qualificação tanto da coisa produzida como de si mesmo.

Para Iole, o ensino da aquarela está norteado por dois pensamentos analógicos básicos. O primeiro é o processo da água sobre o papel, como um movimento de identidade do feminino. Ao longo do percurso de concretização da obra, a presença do fluxo de água que caminha, penetra nos micro-vales e fecunda o papel poroso nos faz mergulhar na intimidade do ritmo vital cíclico do feminino. O segundo é o processo da cor transparente, iluminada como um movimento de resgate espiritual. A cor transportada pela água, permitindo a passagem da luz, daquela luz filtrada pelos vitrais do interior das igrejas e reveladora da espiritualidade do humano.

DEPOIMENTO DE RENINA: A MILITÂNCIA POLÍTICA

Renina tem sido inquerida continuadamente sobre as relações de sua obra e a política. Nesta pesquisa ela resolveu apresentar, de próprio punho, o texto que segue afim de que fossem esclarecidas as dúvidas ainda existentes:

Renina fez parte da geração pós-guerra, geração cheia de idéias, voltada para a luta pela liberdade, pelos direitos humanos e justiça social. Encontrou no expressionismo a intensidade que correspondia à vibração dos seus ideais como jovem cidadã. Renina incorporou a gravura como um meio de expressão que correspondia naquele momento às suas intenções, de natureza artística e ideológica. A multiplicação da imagem proporcionada pela gravura, a possibilidade de expressão e divulgação do seu ideário tinham na gravura o seu veículo ideal. A série dos ‘Camponeses sem Terra’, da ‘Favela’, dos ‘Trabalhadores’ foram desenvolvidas em xilogravuras de topo. A gravura em madeira e em preto e branco, fornecia a dramaticidade desejada que caracterizou uma etapa do seu percurso artístico conhecido como o período do realismo social ou realismo socialista como queriam alguns críticos.

Por volta de 1953/54, numa mostra coletiva no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, Renina se deparou com um fato até então pouco claro para ela. A exposição foi um fracasso. O público para o qual a mostra foi dedicada não se identificava com os trabalhos. Parecia que as gravuras, refinadamente elaboradas, não tinham nada a ver com as questões cruciais da existência desse público. Ou então a visão dramática, contundente, não tivesse obtido o reconhecimento porque talvez não rebatessem às suas aspirações. Foi um choque.

Era preciso compreender o fato. Teria havido um conflito entre as intenções e a linguagem? Era possível. Porém, talvez fosse necessário ir mais longe ou mais fundo. Será que a jovem artista de formação burguesa embora honesta e profundamente convencida de que estava no lado certo nas suas lutas não estaria apenas tentando resgatar o que chamamos de má consciência burguesa? Ou seja, pôr o seu trabalho artístico à serviço de uma idéia como se fosse um tributo?

Era preciso refletir sobre algumas questões. Qual o papel social da artista? Qual o sentido do seu trabalho de denúncia?

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O projeto artístico, o projeto estético vinculado apenas à denúncia, ao protesto não seria redutor, ficando apenas no âmbito da ilustração dos ideais?

Haveria outra forma de expressar esses ideais?

E como isto tudo tomaria a forma de arte?

Tantas questões!

O amadurecimento pessoal e artístico foram indicando novos caminhos e mostrando que ampliar a temática não significaria abdicar de ideais sociais, políticos e existenciais. Poderia ser aberto um leque de possibilidades artísticas onde não só o trágico ou o dramático tivessem lugar, afinal a vida não marcha em uma só direção”.9

Michel Guérin, no seu livro O que é uma obra? (GUÉRIN, s.d.) aponta o trabalho desenvolvido para a realização de uma obra como um prodigioso gasto de energia do seu criador. Porém, existe uma dinâmica tal entre o criador e a obra que, provavelmente por irradiação toda a energia consumida pela obra é devolvida ao criador na forma de força, incentivo, recompensa, prazer, alegria suscitando enfim a necessária ousadia para a renovação e realização de outros fatos memoráveis.

O trabalho concretizado em obra instala-se como fonte permanente de re-alimentação pessoal, possibilidade de transcendência e imortalidade do criador.

Parece então que, enquanto o significado do trabalho se organiza a partir do consumo de energia, o sentido da obra é aquele da ampliação e do aumento dela. Talvez, com base nesse argumento, pudéssemos justificar o desdobramento das atividades das artistas Fayga, Iole e Renina, como energia em expansão. Um inédito viável, a possibilidade de solução para certos problemas localizados num futuro a ser construído, um projeto a ser criado, uma realização a ser implementada.

Elas compromentem-se explicitamente em provocar outras pessoas, outros artistas, influenciá-los e estimulá-los à realização de gestos comparáveis aos seus, com o intuito de que também eles possam usufruir da generosidade da obra. E assim, assumindo a abertura ao diálogo, à tarefa de comunicação imposta pela obra, será possível viver ao abrigo da generosidade dela.

REFERÊNCIAS

APUD. do áudio da fita VHS sobre a exposição, gravada para o curso: A representação da sensualidade feminina na arte. Pós-graduação ECA-USP, 1991.

ibid. nota 1.

NOGUEIRA, A. M. Levantamento de dados do universo da aquarela, mimeografado.

CHIARELLI , T. e SILVÉRIO, C., Entrevista com Regina Silveira, in: ar’ te n. 5. São Paulo: Polis, 1988. p. 11.

NESTROVSKI, A. Os sentidos da diferença. In: Caderno Mais. São Paulo: Folha de São Paulo, 03-12-1995, p. 7.

9 Depoimento da artista escrito especialmente para este trabalho, abril de 1996.

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FREIRE, Paulo. Glossário sobre a obra de Paulo Freire. Internet.

PIZA, E. Compreensão do gênero e sujeito do gênero. São Paulo, 1993 p. 12.

BROUDE, N. E. Garrard, M. The expanding discourse. New York, icon,1992, p.17

PELBART, P. P. Um mundo no qual acreditar. In: Caderno Mais. São Paulo, Folha de São Paulo, 3.12.95.

CANTON, K. Arte feminina na A.l. é discutida no MOMA, 20.7.93.

PELBART, P. P. Um mundo no qual acreditar, 3.12.95.

CHADWICK, W. Women, art and society, p. 351.

LEMMI, M. H., FAYGA, Ostrower. Obra e pensamento, 1988.

LUIZ TRIGO. Renina Katz por ela mesma. In: ar’te n 12.Depoimento de Fayga, 08.06.95.

CHEVALIER, J. E Gheerbrant, A. Dicionário de símbolos.

TALPO, B. Carta para Iole, 26.05.87.

NATALE, I. D. História do núcleo de aquarelistas da FASM, - Copydesk de godoy, M. C. R., 1995.

GUÉRIN, M. O que é uma obra, p. 33.

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O PENSAMENTO DE PAULO FREIRE SOBRE A TECNOLOGIA: TRAÇANDO NOVAS PERSPECTIVAS

Anderson Fernandes de Alencar1

RESUMO

Este artigo é resultado da investigação inicial da dissertação de mestrado intitulada “Um projeto de inclusão digital na perspectiva freireana”. Essa primeira etapa da pesquisa consistiu na identificação dos livros de Paulo Freire que fazem referência à tecnologia. Selecionadas as obras, passamos a sua análise qualitativa, buscando extrair trechos onde Freire refere-se ao assunto, para, em seguida, aprofundarmos a reflexão sobre eles. Os primeiros resultados do trabalho revelam a preocupação do educador com relação ao uso das tecnologias, que, não as negando, incentivava seu uso, mas discutindo sempre em benefício de quê e de quem. Constatamos a importância que a tecnologia possuía para o educador, o quanto apostava nela servindo aos seres humanos, e enfim, apreendemos recortes de seu pensamento sobre uma concepção de “inclusão digital”.

Palavras chave: Tecnologia - Paulo Freire - Inclusão Digital.

INICIANDO O DIÁLOGO...

A tecnologia, e mais especificamente, as tecnologias da informação e da comunicação, permeiam o trabalho e grande parte das atividades humanas contemporâneas. Essas criações humanas estão nos telefones, nos caixas eletrônicos, nas lâmpadas de nossas casas, nas geladeiras. São microprocessadores, microchips, microcomputadores, sistemas mecânicos, nanotecnologia2. Mas a tecnologia não é só isso.

A tecnologia compreendida como “teoria geral e/ou estudo sistemático sobre técnicas, processos, métodos, meios e instrumentos de um ou mais ofícios ou domínios da atividade humana” (Dicionário Houaiss) se constitui não somente de supercomputadores ou das telecomunicações, mas é também a criação do fogo, a invenção da roda, a criação das armas baseadas em metais do neolítico, bem como Palmtops, computadores que cabem na palma de sua mão, ou Ipods, tocadores de mp33 que chegam a armazenar cerca de 15 a 20 mil músicas num HD (Hard Disk) de 60 GB (gigabytes).

Para analisarmos esse evento tão complexo e multifacetado que é a tecnologia em suas mais diversas expressões, queremos nos apoiar num dos principais pensadores da pedagogia progressista, o educador Paulo Freire.

Neste texto, objetivamos explicitar de forma concatenada, mesmo que de forma incipiente ainda, o pensamento do educador Paulo Freire sobre a Tecnologia. Para tanto, foram estudados seus livros, e vídeos sobre as implicações das tecnologias na vida e na existência da

1 Aluno da Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP. 2 A nanotecnologia está associada a diversas áreas (como a medicina, eletrônica) de pesquisa e produção na escala nano ( escala atômica). O princípio básico da nanotecnologia é a construção de estruturas e novos materiais a partir dos átomos (como se fossem tijolos). É uma área promissora, mas que dá apenas seus primeiros passos, mostrando, contudo, resultados surpreendentes (na produção de semicondutores, por exemplo). Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Nanotecnologia. 3 O MP3 (MPEG-1/2 Audio Layer 3) foi um dos primeiros tipos de arquivos a comprimir áudio com eficiência sem perda substancial de qualidade. Esta é medida em KB/s (kilobytes por segundo), sendo 128 KB/s a qualidade padrão, na qual a redução do tamanho do arquivo é de cerca de 90%.

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escola, entre outros autores que fazem menção a algum aspecto da vida/obra de Freire no que se refere à tecnologia.

Além dos livros de Freire pesquisados e utilizados neste artigo (vide referências) foram registradas conversas com estudiosos do educador, como o professor Moacir Gadotti, o professor José Eustáquio Romão e com Lutgardes Freire, filho de Paulo Freire. E por fim, foi estudado um artigo escrito por Freire para a Revista BITS, em 1984, tratando exclusivamente da tecnologia, intitulado “A máquina está a serviço de quem?”.

Pretendemos aqui tão somente explicitar de forma organizada as idéias e fatos da vida/obra de Freire devido à quantidade de suas contribuições para a filosofia da tecnologia, deixando para um outro momento as possíveis pontes que podemos fazer entre seu pensamento e o de outros autores contemporâneos da tecnologia. Mesmo correndo o risco de tornar enfadonha a leitura, optamos por reproduzir as citações, pois não encontramos forma melhor de explicitar seu pensamento sobre o uso da tecnologia, senão disponibilizando o que ele disse e o que escreveu de próprio punho.

Este trabalho será dividido em seis partes. A primeira trata da concepção de tecnologia advogada por Freire. A segunda, sua defesa por uma “práxis tecnológica”. A terceira, os riscos propiciados pelo uso da tecnologia. Na quarta, uma penetração na razão de ser da tecnologia, uma visão ética. Numa quinta parte, os seus benefícios. E por fim, a apresentação de alguns elementos que podem vir a caracterizar a defesa de um projeto de inclusão digital.

CONCEPÇÃO DE TECNOLOGIA

Paulo Freire, mesmo não se considerando contemporâneo, não ficou atado ao passado, mas caminhou com seu tempo. Ele mesmo disse em artigo inédito publicado na revista BITS em 1984: “Faço questão enorme de ser um homem de meu tempo e não um homem exilado dele” (FREIRE, 1984a, p.1).

Freire entendia a tecnologia como uma das “grandes expressões da criatividade humana” (FREIRE, 1968a, p. 98) e como “a expressão natural do processo criador em que os seres humanos se engajam no momento em que forjam o seu primeiro instrumento com que melhor transformam o mundo” (FREIRE, 1968a, p.98). A tecnologia faz “parte do natural desenvolvimento dos seres humanos” (FREIRE, 1968a, p.98), e é elemento para a afirmação de uma sociedade (FREIRE, 1993a, p.53). No artigo citado, ele ainda afirma: “o avanço da ciência e da tecnologia não é tarefa de demônios, mas sim a expressão da criatividade humana” (FREIRE, 1984a, p.1), reiterando o afirmado no seu livro Ação Cultural para a Liberdade.

O educador acredita que a tecnologia não surge da superposição do novo sobre o velho, mas o novo nasce do velho (FREIRE, 1969, p.57), desse modo, o novo traz em si elementos do velho; parte-se de uma estrutura inferior para se alcançar uma superior e assim por diante.

Um outro elemento importante de sua concepção de tecnologia é a politicidade. A tecnologia, como prática humana, é política, é permeada pela ideologia. Ela tem um fim bem determinado, serve a um grupo de pessoas e aos mais diversos interesses: a tecnologia não é neutra, é intencional e não se produz nem se usa sem uma visão de mundo, de homem e de

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sociedade que a fundamente. Freire chega a afirmar que o problema não é tecnológico, mas político, “e se acha visceralmente ligado à concepção mesma que se tenha de produção” (FREIRE, 1968a, p. 99).

O educador, reconhecendo as exigências do seu tempo e as potencialidades dos recursos tecnológicos, sempre foi favorável ao uso de certas tecnologias com rigor metodológico para o seu uso. Ele chegou a usar o projetor de slides4, o rádio, a televisão, gravadores, videocassete e contemplou curiosamente o computador, entre outros recursos tecnológicos.

Paulo Freire previu usos agregados dessas tecnologias para a educação, e especialmente, para a alfabetização. Chegava até a vibrar, nas palavras de Balduíno A. Andreola (2000a, p. 63), no livro “Pedagogia da Indignação” com a marcha dos sem-terra que assistia pela televisão. Moacir Gadotti ratificando, afirma que:

Foi com esse espírito que, em 1963, importou da Polônia os mais modernos projetores de slides, para utilizar na aplicação prática de seu famoso método. Embora Paulo Freire não tivesse usado nem mesmo uma máquina de escrever, preferindo escrever seus textos à mão, utilizou-se tanto do áudio, do vídeo, do rádio, da televisão e de outros meios eletrônicos para difundir suas idéias e utopias (GADOTTI, 2000b, p. 263).

POR UMA PRÁXIS TECNOLÓGICA

O uso da tecnologia, para Paulo Freire, não devia ser realizado de qualquer modo ou sem a devida preparação. Podemos até dizer que ele delineou uma metodologia de uso e análise para todo tipo de tecnologia que venha a ser incorporada.

O primeiro elemento para uma práxis tecnológica trata do uso intencional, político da tecnologia. O uso da tecnologia está imbuído de ideologia, não se pode negligenciar isto. Como aparato ideológico, deve ser desconstruído e revisado nas suas “entranhas”. É preciso identificar o que fundamenta práticas e usos tecnológicos, para combatê-las ou mesmo reverter seu uso para as causas a que se defende. E isso é extremamente importante porque até a construção de softwares, páginas da web ou aplicativos são baseados em uma certa concepção de mundo, de homem ou de ensino e aprendizagem.

Um segundo elemento refere-se à necessidade de se compreender, controlar e dominar a tecnologia. Freire (1977, p.129), parafraseando Harry Braverman em Labor and Monopoly Capital – The degradation of work in the twentieth century, defendia que, para se usar os aparatos tecnológicos, era preciso compreender a sua razão de ser. Os trabalhadores não podem ser alienados quanto ao uso, como se fossem máquinas irracionais. Não podem ser máquinas que somente realizam movimentos repetitivos, sem a mínima noção do que fazem ou do que produzem, trabalhadores hiper-especialistas. Entender o processo é de fundamental importância para Freire, porque conduziria os homens à humanização, a deslocar-se de uma concepção de meio como suporte, para a idéia de mundo, passível de transformação, evitando assim, a “maquinização” ou animalização instintiva dos seres humanos. Ele afirma:

4 Maiores informações no livro “Sobre Educação (Diálogos), Vol .2”, p. 88-89.

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Quando se diz ao educador como fazer tecnicamente uma mesa e não se discute as dimensões estéticas de como fazê-la, castra-se a capacidade de ele conhecer a curiosidade epistemológica (FREIRE; PASSETI, 1994-1995, p. 87).

Um terceiro elemento apontado por Freire é a necessária “redução sociológica”. Freire teme e acredita que, em diversas circunstâncias, as inovações tecnológicas têm sido impostas de cima para baixo ou de fora para dentro, caracterizando uma verdadeira invasão cultural (FREIRE, 1976, p. 24). Para ele, a tecnologia além de ser compreendida, dominada, deve ser contextualizada - contextualizar a tecnologia em si própria, sua gênese e utilização, desvelando os interesses e a ideologia implícita, os benefícios e as limitações do uso -, em seguida, identificá-la com o contexto local, discutindo suas implicações na vida dos usuários ativos e a melhor forma de incorporá-la para o bem daquele grupo naquele contexto.

Um último elemento, para uma possível práxis tecnológica, é a atitude que se deve assumir diante da tecnologia. Freire defende que nossa atitude deve ser “criticamente curiosa, indagadora, crítica, vigilante”, e que devemos sempre refletí-la:

O que me parece fundamental para nós, hoje, mecânicos ou físicos, pedagogos ou pedreiros, marceneiros ou biólogos é a assunção de uma posição crítica, vigilante, indagadora, em face da tecnologia. Nem, de um lado, demonologizá-la, nem, de outro, divinizá-la. (FREIRE, 1992, p. 133).

Usar a tecnologia e não ser usados ou manipulados docilmente como objetos por ela – não que a tecnologia tenha vida por si própria, mas ela pode ser usada para manipular e estar a serviço de uma concepção de mundo que não é emancipadora -, daí não podermos ser objetos de comunicados ou consumidores ávidos de pacotes tecnológicos. O educador, referindo-se à televisão, insiste que “devemos usá-la, sobretudo, discuti-la” (FREIRE, 1996a, p. 51-52).

Para aclarar mais essa discussão, e facilitar o processo reflexivo, é possível apropriar-se de algumas questões propostas por Freire no conjunto de sua obra, e de modo mais organizado na Pedagogia da Indignação e no artigo “A máquina está a serviço de quem?” já citado acima:

[...] o exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios do nosso tempo (FREIRE, 2000a, p. 102). [...] para mim, a questão que se coloca é: a serviço de quem as máquinas e a tecnologia avançada estão? Quero saber a favor de quem, ou contra quem as máquinas estão sendo postas em uso [...] Para mim os computadores são um negócio extraordinário. O problema é saber a serviço de quem eles entram na escola (FREIRE, 1984a, p. 1).

Alder Júlio destaca a preocupação de Freire sobre a necessidade de um olhar sempre curioso e crítico sobre a tecnologia:

[...] ao acolher positivamente os avanços tecnológicos, [Freire] nunca abdicou de fazê-lo, de modo crítico, a exemplo de como se posiciona frente à utilização de novas tecnologias, no caso específico da penetração da informática nas escolas: ‘Já disse que faço questão de ser um homem do meu tempo. O problema é saber a

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serviço de quem, e de quê, a informática estará agora maciçamente na educação brasileira’ (CALADO, 2001, p. 27).

RISCOS PROPORCIONADOS PELO USO DA TECNOLOGIA

A tecnologia possibilita diversos benefícios que estão à disposição do homem como também diversos perigos. Paulo Freire (1968a, p. 98; 1992, p. 133; 1993a, p. 115; 1996a, p. 37) critica enfaticamente, e em diversas passagens de seus livros5, o dualismo entre divinização e “demonologização” da tecnologia. Não se pode entender a tecnologia como salvadora dos homens, nem como a promotora de todos os males. É preciso sim, evitar o que ele chamava de “desvios míticos” gerados pela tecnologia.

A tecnologia não é boa nem má em si própria. Ela adquire adjetivações à medida em que serve aos mais diversos interesses. Nessa perspectiva, a tecnologia muitas vezes tem servido à geração de culturas e “pessoas massificadas”, bem dispostas ao consumismo imposto pelo mercado na ótica capitalista, e à criação de uma sociedade ou ciência mitificada, isto é, “endeusada”, inacessível, inatingível, imutável. É preciso desmitificá-la, colocá-la no seu devido lugar, e não encarar o cientista, instituição ou qualquer pessoa como “um enviado do céu ou privilegiado”. Freire afirma:

Tenho a impressão de que uma correta perspectiva pedagógica seria aquela que, jamais negando a necessidade da ciência e da tecnologia, nunca, porém, resvalasse para uma posição de mitificação da ciência. Uma correta prática educativa desmitifica a ciência já na pré-escola (FREIRE; GUIMARÃES, 1984b, p. 59).

Um outro risco, apontado pelo educador, trata da questão da geração de irracionalismos a partir do uso da tecnologia. O mundo foi testemunha de diversos desses irracionalismos, como as guerras mundiais ou a destruição, quase total, das cidades de Hiroshima e Nagasaki, por bombas desenvolvidas com a mais avançada tecnologia da época, as bombas atômicas. Reafirma o educador que:

[...] seria simplismo atribuir a responsabilidade por esses desvios à tecnologia em si mesma. Seria uma outra espécie de irracionalismo, o de conceber a tecnologia como uma entidade demoníaca, acima dos seres humanos. Vista criticamente, a tecnologia não é senão a expressão natural do processo criador em que os seres humanos se engajam no momento em que forjam o seu primeiro instrumento com que melhor transformam o mundo (FREIRE, 1968a, p. 98).

Podemos acrescentar, na mesma linha de perigos do uso das tecnologias, um alerta atual do educador contido no livro “Professora sim, Tia não”, à possibilidade de controle, por meio do uso câmeras de vídeo, da prática de professores (as) no exercício de sua profissão. A diretora tem o poder de saber o que elas (eles) estão falando na “intimidade do seu mundo”, tornando-se “corpos interditados, proibidos de ser” (FREIRE, 1993b, p. 17). Recentemente, pudemos presenciar em ação esse sistema no programa “Fantástico” da TV Globo, que apresentou uma matéria mostrando uma escola que possui esse sistema para vigiar os alunos, e com certeza, analisar a prática de professores, criando níveis de excelência e gerando uma verdadeira 5 Freire, curiosamente, concentra praticamente todos os seus receios quanto a tecnologia no livro Ação Cultural para a Liberdade escrito em 1968. O professor Moacir Gadotti justifica esse fato (informação verbal) lembrando que esse era o tempo que Freire teve contato com a sociedade americana e pode contemplar e vivenciar diversos eventos relacionados com a nossa temática.

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corrida para “mostrar serviço” àqueles que a(o) observam e garantir, ou melhor, sustentar seu emprego. Sacrifica-se a liberdade com o controle, a autonomia com a repressão. Entramos em uma nova ditadura, a ditadura da sobrevivência, da necessidade, que usa como arma não mais fuzíveis ou revólveres, mas as mais modernas tecnologias...

Por fim, uma última crítica de Freire à tecnologia encontrada nos livros estudados encontra-se na necessidade de superação de um ultrapassado dualismo: tecnologia x humanismo. O educador reporta-se a esse dualismo com maior ênfase em dois livros: “Educação e Mudança” e “Sobre Educação (Diálogos) vol. 2” (SED). Defende Freire (1984b, p. 58) que, “um humanismo sério não contradiz a ciência nem o avanço da tecnologia”, e continua:

Ora, os meios de comunicação, os instrumentos tecnológicos – como, por exemplo, a máquina de ensinar – são criaturas nossas, são, invenções do ser humano, através do progresso científico, da historia da ciência. O risco aí seria o de promovê-los, então, a quase fazedores de nós mesmos (FREIRE, 1984b, p. 58).

Em “Educação e Mudança”, livro anterior ao SED, Freire (1976, p. 22) critica a posição de supostos humanistas que acreditam que a tecnologia é “a razão de todos os males do homem moderno” e critica aqueles que optam pela técnica e os que crêem que a “perspectiva humanista é uma forma de retardar as soluções mais urgentes”. O “humanismo e a tecnologia não se excluem” defende o educador.

ADENTRANDO NA RAZÃO DE SER DA TECNOLOGIA: A ÉTICA

Um outro veio, pelo qual segue o pensamento de Freire, refere-se a responder uma pergunta que, desde as suas primeiras análises, ainda persiste: a serviço de quê? “Para mim, a questão que se coloca é: a serviço de quem as máquinas e a tecnologia avançada estão?” E continua:

O problema é saber a serviço de quem eles (computadores) entram na escola. Será que vai se continuar dizendo aos educandos que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil? Que a revolução de 64 salvou o país? Salvou de que, contra que, contra quem? Estas coisas é que acho que são fundamentais (FREIRE, 1984a, p. 1).

Freire aponta algumas respostas para suas perguntas, que estão nas suas obras, e nos dão a idéia de continuidade do seu pensamento. O educador preocupa-se com uma tecnologia que, por vezes, tem estado tão somente a serviço da produção capitalista, para gerar sociedades consumistas e conseguir atender sempre com maior excelência aos ávidos compradores. Afirma que é imperativo e urgente assumir o controle sobre a tecnologia e pô-la a serviço do ser humano e não de “causas de morte” como armas químicas ou de causas destrutivas como armamentos e equipamentos para guerras como a do Afeganistão.

Nunca, talvez, a frase quase feita – exercer o controle sobre a tecnologia e pô-la a serviço dos seres humanos – teve tanta urgência de virar fato quanto hoje, em defesa da liberdade mesma, sem a qual o sonho da democracia se esvai (FREIRE, 1992, p. 133).

Uma outra preocupação com a tecnologia em sua relação com a ética encontra-se nas finalidades prioritariamente comerciais e lucrativas de muitas empresas que produzem ou geram novas tecnologias. Hoje, são remédios fabricados com alta tecnologia, são TVs a cabo,

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comerciais de televisão que querem vender, a todo custo, as suas inovações tecnológicas; na própria TV a cabo, existem programas específicos para a propaganda de tais inovações, desde fazedores de suco a câmeras três em um (filma, tira fotos e ainda é uma câmera para internet). São pessoas e empresas que têm enriquecido com um patrimônio que pertence à humanidade, e que deveria servir para maximizar a qualidade da vida de todos. Freire defende que:

A compreensão crítica da tecnologia, da qual a educação de que precisamos deve estar infundida, e a que vê nela uma intervenção crescentemente sofisticada no mundo a ser necessariamente submetida a crivo político e ético. Quanto maior vem sendo a importância da tecnologia hoje tanto mais se afirma a necessidade de rigorosa vigilância ética sobre ela. De uma ética a serviço das gentes, de sua vocação ontológica, a do ser mais e não de uma ética estreita e malvada, como a do lucro, a do mercado (FREIRE, 2000, p. 101-102).

O educador (1968b, p. 47) afirma que os opressores têm se utilizado das tecnologias “como força indiscutível de manutenção da 'ordem' opressora, com a qual manipulam e esmagam”, massificam e inculcam informações que sirvam aos seus interesses para reificá-los. Freire advoga que “o desenvolvimento tecnológico deve ser uma das preocupações do projeto revolucionário”, e que:

[...] se no uso da ciência e da tecnologia para “reificar”, o sine qua desta ação é fazer dos oprimidos sua pura incidência, já, não é o mesmo o que se impõe no uso da ciência e da tecnologia para a humanização. Aqui, os oprimidos ou se tornam sujeitos, também, do processo, ou continuam “reificados” (FREIRE, 1968b, p. 130-131).

A tecnologia, ao contrário, deveria servir aos interesses dos oprimidos em sua luta, usando-se do mais avançado para promover mudança social, política, promover cidadania. Freire conclui, expondo e reiterando, com a vivacidade que lhe é própria, tudo aquilo que discutimos até agora sobre a razão de ser da tecnologia:

O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação [...] Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços, mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro (FREIRE, 1996a, p. 147-148).

OS BENEFÍCIOS E POTENCIALIDADES DA TECNOLOGIA

Paulo Freire, como um homem do seu tempo, soube reconhecer não só os perigos no uso das diversas tecnologias como reconheceu em várias passagens de seus livros, sua importância e as potencialidades para a conscientização e humanização dos “esfarrapados do mundo”.

O educador, para retratar uma das potencialidades da tecnologia, utiliza o exemplo de seus netos e afirma: “ninguém melhor do que meus netos e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem” (FREIRE, 1996a, p. 98). Freire também classifica o computador, o rádio, a televisão como meios para conhecer o mundo, para refletí-lo, repensá-lo, e que servem como fonte de pesquisa, também.

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Outras potencialidades do uso da tecnologia encontram-se descritas no livro “Pedagogia da Esperança”, onde Freire fala de seu computador pessoal e da sua saudade:

Ao recordar agora todo este trabalho tão artesanal, até com saudade, reconheço o que teria poupado de tempo e de energia e crescido em eficácia se tivesse contado, na oportunidade, com um computador, mesmo humilde como o de que dispomos hoje minha mulher e eu (FREIRE, 1992, p. 59).

O educador reconhece que a tecnologia possibilita a maximização do tempo do ser humano. Um exemplo claro disto é a utilização das atuais máquinas de lavar. Já percebeu o tempo que é gasto lavando uma trouxa de roupas? Esse processo dura 30 min em uma máquina de lavar, coisa que seria realizada em aproximadamente 1h e 30 min “na mão”. O tempo que resta pode ser utilizado para um grande número de atividades como o trabalho, o estudo, o lazer, dentre outros.

Podemos até nos perguntar, por analogia: por que Paulo Freire não usou a máquina de escrever ou o computador? Uma hipótese que emerge da nossa reflexão é que o salto qualitativo da migração da escrita manual para a máquina de escrever não era tão significativo. Ainda se perdiam as folhas, em caso de erro nas batidas, e a possibilidade de alterar trechos do texto exigiam uma nova datilografação de toda página, com exceção das raras máquinas de escrever elétricas que permitiam a alteração com maior facilidade. Os computadores sim, eram o salto qualitativo. Nos computadores é possível digitar-se um texto, alterá-lo em qualquer parte, reorganizá-lo, transferí-lo com facilidade para meios de armazenamento, imprimí-lo inúmeras vezes, alterar tipo de letra, tamanhos, realizar itálicos, negritos e sublinhados, com facilidade. Esse era um real salto qualitativo, e Freire não pôde negligenciá-lo.

Com relação à eficácia é importante explicitar o quanto alguns dos atuais editores de texto como o Openoffice (http://www.openoffice.org.br, Software Livre) e o Microsoft Word (http://www.microsoft.com, Software Proprietário) têm contribuído para a melhora qualitativa da produção e da escrita textual de toda a humanidade. Com os programas para computador atuais temos a liberdade de, além de fazer as alterações acima citadas, gerarmos pontes, conexões entre textos, imagens, fotos, áudios e vídeos via hiperlinks, sermos auxiliados por uma correção ortográfica e até gramatical, ampliarmos a visualização de um parágrafo ou de uma página, capitular, e outras possibilidades de conexão com a web. Hoje, com o advento de hipertexto, ou melhor, de um texto “unimidiático multimodal” usando a terminologia do Pierre Lévy (1999, p. 63-66), é possível agregar em um mesmo texto, ainda mantendo o formato de texto, áudio, vídeo e imagem com muita facilidade. Um bom exemplo disso são as apresentações criadas para a exposição de palestras ou trabalhos que atingem, integradamente, uma série de modalidades sensoriais.

Por fim, Freire também defende o uso do rádio no processo de alfabetização (FREIRE, 1994, p. 143), o uso de meios agregados - televisão e rádio (FREIRE, 1994, p. 83) e vislumbra diversas potencialidades para a causa que defendia. Um dos vários eventos práticos do uso da tecnologia a serviço do discurso humanista, vivenciado por Freire, ocorre no 1º Seminário de Educação Brasileira, em novembro de 1978, ano que Freire ainda se encontrava no exílio, e não recebendo o passaporte, não pôde atender ao convite de vir ao seminário. O próprio Gadotti explica: “como ele não poderia vir pessoalmente, de certa forma enganamos a censura e gravamos por telefone a sua mensagem aos participantes do 1º Seminário de Educação

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Brasileira” (FREIRE et al, 1987b, p. 20). Segue um trecho da fala de Freire enfatizando o que estamos afirmando:

É uma alegria enorme me servir da possibilidade que a tecnologia me coloca à disposição, hoje, de gravar, de tão longe de vocês, essa palavra que não pode ser outra senão uma palavra afetiva, uma palavra de amor, uma palavra de carinho, uma palavra de confiança, de esperança e de saudades também, saudade imensa, grandona, saudades do Brasil, desse Brasil gostoso, desse Brasil de nós todos, desse Brasil cheiroso, distante do qual estamos há catorze anos, mas, distante do qual nunca estivemos também (FREIRE et al , 1987b, p. 20).

Um outro evento, que atesta a percepção de Freire quanto aos benefícios da tecnologia, deu-se quando o educador não pôde, devido a uma doença, realizar uma palestra para jovens americanos. Para realizar sua comunicação, gravou sua fala em um vídeo que foi enviado ao encontro, onde os jovens puderam ouvir sua fala e ver sua imagem. Trata-se hoje do vídeo intitulado “Paulo Freire’s Message”.

EM DEFESA DE UMA CONCEPÇÃO DE INCLUSÃO DIGITAL

Freire, apesar de nunca ter utilizado o termo “inclusão digital”, destacou a necessidade de ampliar o acesso aos computadores e aos recursos tecnológicos.

O primeiro desses momentos está explicitado no seu livro “Política e Educação”, onde ele faz uma crítica às sociedades altamente tecnologizadas, que priorizam a inserção de terminais de informação ao saneamento de problemas, como miséria, a violência ou o desemprego:

O ideal (grifo nosso) está em quando os problemas populares – a miséria das favelas, dos cortiços, o desemprego, a violência, os déficits da educação, a mortalidade infantil estejam de tal maneira equacionados que, então, uma administração se possa dar ao luxo de fazer “jardins andarilhos” que mudem semanalmente de bairro a bairro, sem esquecer os populares, fontes luminosas, parques de diversão, computadores em cada ponto estratégico da cidade programados para atender à curiosidade das gentes em torno de onde fica esta ou aquela rua, este ou aquele escritório público, como alcançá-lo etc. Tudo isso é fundamental e importante mas é preciso que as maiorias trabalhem, comam, durmam sob um teto, tenham saúde e se eduquem. É preciso que as maiorias tenham o direito à esperança para que, operando o presente, tenham futuro (FREIRE, 1993a, p. 107).

Numa primeira leitura, Paulo Freire aparenta estar contra a inclusão digital. Mas, não é verdade. Ele está, na verdade, contra certo tipo de inclusão digital, aquela que só serve a interesses menores. Freire não é contra esses terminais, mas contra a priorização desses terminais a despeito da publicização de uma educação de qualidade, do saciamento de necessidades básicas.

Podemos ir mais longe, e afirmar que Freire não conseguiu – e nem teve tempo para isso – vislumbrar as possibilidades atuais que a web, a internet, os meios de comunicação, os ambientes e objetos de aprendizagem, animações, mundos virtuais e as simulações trazem para o mundo contemporâneo e para a Educação. Isso tudo é extremamente inusitado... E se Freire já achava os computadores de sua época extraordinários, o que ele diria dos atuais...

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Hoje, certas concepções de inclusão digital, muitas pautadas até em seu pensamento, defendem que é possível promover inclusão social por meio de um projeto/programa de inclusão digital. É possível incitar a curiosidade, e, a partir de seu saciamento, novas curiosidades. É possível ampliar o espaço dialógico e de trocas, superando as limitações culturais e as diferenças. É possível abrir-se aos mais diversos discursos num horizonte que agora é global. Isso faz uma grande diferença...

Um segundo momento está no livro “Pedagogia da Autonomia”, onde o educador, quando Secretário de Educação da cidade de São Paulo, decide democratizar o acesso aos computadores a todos os alunos da escola pública da cidade. Freire afirma:

Não tenho dúvida nenhuma do enorme potencial de estímulos e desafios à curiosidade que a tecnologia põe a serviço das crianças e dos adolescentes das classes sociais chamadas favorecidas. Não foi por outra razão que, enquanto secretário de educação da cidade de São Paulo, fiz chegar à rede das escolas municipais o computador (grifo nosso). Ninguém melhor do que meus netos e minhas netas para me falar de sua curiosidade instigada pelos computadores com os quais convivem (FREIRE, 1996a, p. 97-98).

Gadotti em seu livro “Perspectivas atuais da Educação” testemunha o instante em que Freire tem o contato com o site do Instituto Paulo Freire, e deslumbrado, reafirma a necessidade de promoção do acesso a essa tecnologia:

Em 1996, quando foi mostrada a Paulo Freire a página www.paulofreire.org, ele ficou maravilhado com as possibilidades da Internet. O site foi construído para o IPF (Instituto Paulo Freire) pelo seu neto Alexandre Dowbor, filho de Fátima Freire. Maravilhado e preocupado ao ver o Alex navegar com tanta facilidade pela rede, observou logo que as enormes vantagens oferecidas pela Internet estavam restritas a poucos e que as novas tecnologias acabavam criando um fosso ainda maior entre os mais ricos e os mais pobres. E concluiu: “é preciso pensar como elas podem chegar aos excluídos”. Dizia que esse deveria ser o compromisso do instituto (GADOTTI, 2000, p. 263).

Um outro indicativo que aponta para linhas mais sociais de projetos/programas de inclusão digital é a idéia, defendida por Freire, de entranhar-se na geração, assumindo-a para assim poder transformá-la. E qual é a nossa geração? É certamente a da velocidade, das telecomunicações, da informática, da informação, uma sociedade aprendente... Entranhar-se na geração é, nesse aspecto, incorporar essas tecnologias, apoderar-se delas, tornando-as um instrumento de luta, a favor da causa democrática. Apresentamos, desse modo, duas referências em que Paulo Freire aponta a questão do empoderamento tecnológico e da necessidade de “entranhamento”:

[...] se o meu compromisso é realmente com o homem concreto, com a causa de sua humanização, de sua libertação, não posso por isso mesmo prescindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais me vou instrumentando para melhor lutar por esta causa (FREIRE, 1976, p. 22-23). [...] o problema que a geração tem diante de si, sua tarefa, não é a de esperar, pensando que o futuro esteja esperando ser descoberto pela geração mais astuta. A questão que se coloca é como a gente cria o amanhã através da transformação do hoje. E para mim só há um jeito de transformar esse hoje ou a cultura, é você entranhar-se nela, para depois tê-la com objeto de sua transformação. Para que

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superemos isso, temos que assumi-la e assumir para mim é um estado que negando a negatividade eu a reconheço para poder criar outra coisa (FREIRE; PASSETI, 1994-1995, p. 42).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo este trabalho, podemos de afirmar com toda a segurança que há muito mais a ser desvelado na obra de Freire. Esse trabalho foi somente a ponta de um iceberg de possibilidades e questões, discutidas pelo educador, referentes à tecnologia.

Durante a conclusão desse artigo, muitas outras referências e idéias de Freire foram encontradas em outros livros, não incluídos nesse artigo, e mesmo que quiséssemos incluí-los, esbarraríamos no limite de páginas determinado pelo encontro. Há muito mais a ser explorado, muito mais a ser descoberto, insistimos.

Acredito que este trabalho poderá servir para àqueles(as) que nunca encontraram passagens, na obra de Freire, sobre a tecnologia e para ampliar o espaço dialógico sobre essas diversas temáticas, e incitar novos debates acerca dos usos da tecnologia numa perspectiva progressista, democrática e ética.

Gostaria de justificar que devido à vastidão de dados, não pudemos, ainda, fazer inferências quanto ao contexto tecnológico atual, nem traçar um diálogo entre Freire e outros grandes pensadores da tecnologia como o Pierre Lévy. Esperamos, nos próximos passos da pesquisa, continuar o árduo trabalho de pesquisa, estudo e organização das idéias do educador acerca da tecnologia presentes nos livros, artigos, vídeos, ainda não estudados, e na seqüência, realizar as possíveis correlações com esses estudiosos atuais, para enfim, refletirmos sobre as contribuições que Paulo Freire tem a dar ao estado da arte, não só da tecnologia, mas também a projetos/programas de inclusão digital e ao Software Livre.

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