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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DA LEITURA E DA ESCRITA: SABERES E PRÁTICAS Este painel apresenta estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa Fórum de Ensino da Escrita, que tem reunido professores da educação básica e do ensino superior, e estudantes de graduação, na discussão dos saberes teórico-práticos do ensino da escrita e da formação inicial de professores. O trabalho Um contexto para a valorização dos saberes docentes na formação inicial de professores apresenta uma discussão que, tendo como cenário a formação de professores no Brasil nos anos 1990 e 2000, relaciona as políticas de governo e as proposições teóricas emanadas da academia, com destaque para aquelas que valorizam os saberes e a atuação crítica dos professores. As conclusões apontam limites do alcance da formação continuada de professores empreendida nas duas últimas décadas e reforçam a necessidade de fortalecer os investimentos na sua formação inicial. Aprender e ensinar: formação de professores e saberes para o ensino da leitura e escrita discute as bases das concepções de alfabetização dos estudantes da Pedagogia, a partir dos sentidos e significados que revelam em seus relatos de experiências de alfabetização na infância. Dentre as ponderações da pesquisa, destacam-se: a) experiências marcadas por uma alfabetização mecanizada, pouco significativa e desconectada da realidade social; b) experiências de alfabetização marcadas por uma concepção bancária; c) práticas que favoreceram a criação e a relação com o uso da leitura e escrita na sociedade. A pesquisa A literatura de jovens escritores na escola: leituras e escritas em diálogos propõe discussões sobre a inserção de textos literários de jovens escritores nas aulas de literatura, sendo o trabalho com os respectivos textos retomados, em diálogo, nas de produção textual. Parte-se do pressuposto teórico de que através da prática da leitura e da escrita de textos literários se desvelam as arbitrariedades dos discursos padronizados e a apropriação da linguagem. Palavras-Chave: Ensino de Leitura E Escrita, Formação de Professores, Práticas de Ensino. XVIII ENDIPE Didática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira 147 ISSN 2177-336X

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A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PARA O ENSINO DA LEITURA E DA

ESCRITA: SABERES E PRÁTICAS

Este painel apresenta estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa Fórum de

Ensino da Escrita, que tem reunido professores da educação básica e do ensino superior,

e estudantes de graduação, na discussão dos saberes teórico-práticos do ensino da

escrita e da formação inicial de professores. O trabalho Um contexto para a valorização

dos saberes docentes na formação inicial de professores apresenta uma discussão que,

tendo como cenário a formação de professores no Brasil nos anos 1990 e 2000,

relaciona as políticas de governo e as proposições teóricas emanadas da academia, com

destaque para aquelas que valorizam os saberes e a atuação crítica dos professores. As

conclusões apontam limites do alcance da formação continuada de professores

empreendida nas duas últimas décadas e reforçam a necessidade de fortalecer os

investimentos na sua formação inicial. Aprender e ensinar: formação de professores e

saberes para o ensino da leitura e escrita discute as bases das concepções de

alfabetização dos estudantes da Pedagogia, a partir dos sentidos e significados que

revelam em seus relatos de experiências de alfabetização na infância. Dentre as

ponderações da pesquisa, destacam-se: a) experiências marcadas por uma alfabetização

mecanizada, pouco significativa e desconectada da realidade social; b) experiências de

alfabetização marcadas por uma concepção bancária; c) práticas que favoreceram a

criação e a relação com o uso da leitura e escrita na sociedade. A pesquisa A literatura

de jovens escritores na escola: leituras e escritas em diálogos propõe discussões sobre a

inserção de textos literários de jovens escritores nas aulas de literatura, sendo o trabalho

com os respectivos textos retomados, em diálogo, nas de produção textual. Parte-se do

pressuposto teórico de que através da prática da leitura e da escrita de textos literários se

desvelam as arbitrariedades dos discursos padronizados e a apropriação da linguagem.

Palavras-Chave: Ensino de Leitura E Escrita, Formação de Professores, Práticas de

Ensino.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

147ISSN 2177-336X

APRENDER E ENSINAR: FORMAÇÃO DE PROFESSORES E SABERES

PARA O ENSINO DA LEITURA E ESCRITA

Luciene Cerdas -UFRJ

Rejane Maria de Almeida Amorim - UFRJ

Resumo

O objetivo deste artigo é discutir em que bases estão ancoradas as concepções de

alfabetização dos estudantes do curso de Pedagogia, a partir dos sentidos e significados

que revelam em seus relatos de experiências vivenciadas em seus processos de

alfabetização, considerando que serão os primeiros professores de leitura e da escrita na

escola. O estudo é parte de uma pesquisa que tem reunido professores da educação

básica e do ensino superior, assim como estudantes de graduação, com vistas à

discussão dos saberes teórico-práticos do ensino da escrita na educação básica e na

formação dos seus professores. O estudo apresentado aqui, de cunho qualitativo, foi

realizado com 94 estudantes da disciplina de Alfabetização e Letramento I, no ano

letivo de 2015. O instrumento de pesquisa utilizado foi a escrita de relatos de

experiência na alfabetização, a partir de suas lembranças de infância. A análise desses

relatos foi realizada através dos Núcleos de Significação (AGUIAR e OZELLA, 2006),

com forte inspiração na psicologia sócio-histórica, cujo precursor é Vygotski (1998). Os

referenciais teóricos que orientam as discussões sobre alfabetização partem dos estudos

de Freire (1982, 1997. 2001), Kramer (2000), Soares (1998), Smolka (2008), que

consideram, no ensino da leitura e da escrita, a necessidade de que a aprendizagem do

Sistema de Escrita Alfabética (SEA) se dê no contexto de práticas sociais de seu uso, e

possibilite o acesso efetivo ao mundo da escrita. Em relação às discussões sobre saberes

docentes, Tardif, Lessard, Lahaye, (1991 a-b) e Gauthier et al (1998) orientam nosso

estudo. Dentre as ponderações da pesquisa, destacam-se: a) experiências marcadas por

uma alfabetização mecanizada, pouco significativa e desconectada da realidade social;

b) experiência em classes de alfabetização marcadas pela concepção bancária de

educação; c) práticas que favoreceram a criação e a relação com o uso da leitura e

escrita na sociedade.

Palavras-chave: Saberes Docentes. Alfabetização. Ensino da leitura e escrita

Introdução

Entre os estudos que tratam da docência - saberes docentes e formação de

professores - há uma perspectiva bastante aceita de que esses profissionais mobilizam

no exercício de sua função conhecimentos de diferentes naturezas, que se constroem ao

longo de suas trajetórias pessoais, de formação e de trabalho, de suas histórias de vida e

de suas experiências de escolarização anteriores à preparação para a docência. Como

ofício feito de saberes (GAUTHIER et al, 1998), as experiências pessoais prévias à

formação profissional vão influenciar a visão que os futuros professores têm sobre o que

é "ser professor", e se impõem à construção de sua identidade docente.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

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Partindo desses pressupostos, o objetivo deste artigo é discutir em que bases

estão ancoradas as concepções de alfabetização dos estudantes do curso de Licenciatura

em Pedagogia, a partir dos sentidos e significados que revelam em seus relatos de

experiências vivenciadas em seus processos de alfabetização. Como docentes do curso,

questionamos o que as memórias dos licenciandos sobre suas vivências escolares

revelam acerca de suas concepções de alfabetização, do ensino da leitura e da escrita, e

do “ser alfabetizador”.

Propusemos, assim, aos alunos matriculados na disciplina de Alfabetização e

Letramento I, no ano de 2015, que escrevessem sobre as suas vivências de

alfabetização, a partir de suas lembranças de infância, com destaque para o ambiente da

sala de aula, suas reminiscências sobre a relação com o(a) professor(a) alfabetizador(a),

e as práticas de ensino (materiais didáticos e atividades propostas pelo professor(a)). A

pesquisa é de cunho qualitativo e utiliza como metodologia de análise os Núcleos de

Significação, de Aguiar e Ozella (2006). Foi realizada com 94 estudantes discutindo-se

quais os sentidos e significados que suas memórias revelam em seus relatos sobre o que

é e sobre o como alfabetizar? Quais saberes construíram sobre o que é ser um professor

alfabetizador?

Os referenciais teóricos que orientam as discussões sobre alfabetização, aqui

propostas, partem dos estudos de Freire (1982, 1997, 2001) Kramer (2000), Soares

(1998), Smolka (2008), que consideram, no ensino da leitura e da escrita, a necessidade

de que a aprendizagem do Sistema de Escrita Alfabética (SEA) se dê no contexto de

práticas sociais de seu uso, e possibilite o acesso efetivo ao mundo da escrita. Em

relação às discussões sobre saberes docentes, Tardif, Lessard, Lahaye, (1991) e

Gauthier et al (1998) orientam nosso estudo.

1. O que revelam os estudantes sobre suas memórias da alfabetização: sentidos e

significados

Tardif (2000, 2002), destaca que os saberes docentes caracterizam-se por sua

temporalidade, uma vez que são adquiridos no contexto de uma história de vida e de

uma carreira profissional. Ressalta ainda a origem infantil da escolha da profissão,

marcada pela influência de antigos professores, constituindo-se como saberes pré-

profissionais. As nossas experiências como alunos imprimem em nós as marcas do que

é ser professor. É a única profissão com a qual convivemos muito tempo antes de

exercê-la. Essa é uma característica da própria profissão docência, pois como aponta

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Tardif (2000), somos imersos na docência desde muito cedo, criando uma bagagem de

conhecimentos, de crenças e certezas sobre a prática docente, que se constitui como

“legado da socialização escolar” que se mantém estável ao longo do tempo. “[…] uma

boa parte do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do professor e

sobre como ensinar provém de sua própria história de vida, principalmente de sua

socialização enquanto alunos.” (TARDIF, 2000, p.216-217).

No início da docência, os professores recorrem entre outras fontes aos modelos

de professor com os quais tiveram contato ao longo de sua vida. A preferência por

certos procedimentos didáticos em detrimento de outros, as decisões sobre conteúdo, os

modos de interação e o relacionamento com os alunos, carregam as marcas dessas

experiências que, por vezes, têm servido como justificativa para práticas pedagógicas

atuais.

A análise dos relatos deixa entrever nas vivências desses alunos o papel

marcante da família e responsáveis no processo de alfabetização; as lembranças do

professor, características pessoais e do relacionamento estabelecido; os recursos e

materiais didáticos utilizados, entre eles a cartilha e as folhas xerocadas; a ausência de

práticas de leitura na sala de aula seja pelo professor ou pelos alunos, e de materiais de

leitura na escola; as práticas de ensino da leitura e escrita como atividades repetitivas e

pouco significativas para os alunos; valorização pelos estudantes de práticas que

favoreceram a criação e a relação com o uso da leitura e escrita na sociedade.

Conhecer as ideias a priori de nossos alunos sobre alfabetização é um caminho

de avaliação da disciplina, e de suas contribuições na problematização e reconstrução

desses saberes iniciais sobre alfabetização.

É importante demarcar que a produção dos relatos sobre a alfabetização escritos

pelos estudantes aconteceu em sala na primeira aula da disciplina de Alfabetização e

Letramento I. Em geral são textos de no máximo duas páginas e se constituem como

espaço de reflexão sobre suas experiências e sobre as marcas deixadas pelo processo. O

relato não possui uma orientação metodológica, os estudantes são convidados a relatar

suas memórias, boas ou más, da maneira que desejarem.

A partir desse material escrito, que guarda muito do que já havia sido apreendido

durante o diálogo em sala e discussões preliminares sobre o que esperavam da

disciplina, investimos esforços na tentativa de desvelar os sentidos e significados que os

estudantes atribuem ao seu processo de aquisição da leitura e da escrita, bem como em

que bases estão ancoradas suas concepções de alfabetização.

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A análise das informações seguiu o caminho metodológico dos Núcleos de

Significação, inspirados em Aguiar e Ozella (2006), que busca revelar o modo de

pensar, agir e sentir dos estudantes envolvidos no estudo, partindo de um movimento

dialético advindo de seus relatos das memórias sobre o processo de alfabetização que

experimentaram.

Cabe ressaltar que os signos que utilizamos para nos comunicar são produzidos

historicamente e referem-se a algo que está fora deles. Na medida em que o homem vai

simbolizando e construindo uma realidade humanizada no mundo material, esses signos

vão ganhando novos sentidos.

Para Vygotski (1998), as palavras desempenham um papel central não só no

desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência

como um todo. Toda linguagem humana é significada, uma mesma palavra dita em

diferentes contextos pressupõe muitas interpretações, e estas podem estar carregadas de

muitas lembranças e emoções vividas pelo sujeito. Vygotski afirma que, “uma palavra é

um microcosmo da consciência humana” (1998, p. 132) e, portanto, nessa pesquisa é

pela palavra escrita que os estudantes revelam seus sentidos e significados sobre a

alfabetização.

Sentido e significado, embora diferentes, correspondem a duas categorias que

formam um par dialético, e não podem ser compreendidas separadas.

A compreensão da categoria sentido, utilizada neste estudo, tem como referência

a definição dada por Vygotski (1998, p. 181), ou seja, o sentido é visto como “a soma

dos eventos psicológicos que a palavra evoca na consciência”. Conforme

complementam Aguiar e Ozella (2006, p. 105) “[…] o sentido se constitui a partir do

confronto entre as significações sociais constituídas na relação dialética entre sentidos e

significados vigentes e a vivência pessoal”.

Na tentativa de compreender os sentidos podemos afirmar que o homem, imerso

na sociedade, medeia suas relações através de múltiplas significações, vistas aqui como

a articulação dos sentidos e significados.

Após leituras flutuantes, recorrentes e sistemáticas foi possível elencar vários

indicadores de falas que se complementavam ou eram contraditórias. Dentre mais de 20

indicadores foi possível desdobrá-los em quatro núcleos de significação, que

correspondem à maneira que o processo de alfabetização vem sendo significado até o

presente momento, marcado pelo início da disciplina Alfabetização e Letramento I.

Estes núcleos se significação apresentados a seguir, foram nominados com falas

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significativas de estudantes, orientação do próprio método de análise que pretende desde

sua nomenclatura ser fiel à fala dos sujeitos. Identificados os sujeitos com E de

estudantes e a numeração organizada na ordem em que foram entregando seus relatos.

Os núcleos de significação que emergiram são os seguintes: 1) Lembro pouco, mas sei

que ficava muitas horas copiando o cabeçalho e era cansativo (E7); 2) Já cheguei nesta

série sabendo parcialmente a ler e escrever porque minha mãe me alfabetizava em casa

(E6); 3) Acredito que fui alfabetizada de forma correta, porque foi incentivado a minha

liberdade de pensamento e criação (E12); 4) Eu a (professora) adorava, pois ela não

sentava, ficava no meio dos alunos para ver como estavam indo (E25).

Adiante analisaremos cada uma desses quatro núcleos separadamente,

lembrando que dentro de cada um também iremos trazer elementos contraditórios que

revelam, dentro dessa temática, sentidos e significados divergentes.

2. Análise dos Núcleos de Significação

2.1 Lembro pouco, mas sei que ficava muitas horas copiando o cabeçalho e era

cansativo (E7)

Nesse núcleo de significação é interessante observar que os relatos dos alunos

não trazem, de um modo geral, muitos detalhes sobre as práticas de alfabetização ou

recursos didáticos utilizados, no entanto, permitem apontar a presença de procedimentos

considerados tradicionais, sem significado para esses alunos, em uma perspectiva de

educação bancária (FREIRE, 1982), tais como cópias de textos e palavras, ditado,

recorte de palavras e letras de jornais e revistas; com menor incidência aparece a

cartilha, o que pode ser explicado pela idade dos alunos, visto que a maioria foi

alfabetizada após os anos de 1980 quando há fortes críticas a esses materiais; e uso de

folhas xerocadas com atividades para completar também aparecem entre os relatos dos

alunos, como se pode notar abaixo. Poucos são os depoimentos que relatam a presença

de textos no processo de alfabetização.

[...] lembro que ela passava muitos ditados e atividades com as sílabas em

pontinhos para passar por cima com lápis. (E20). [...] a professora fazia trabalhos com recortes de jornais. Eram feitos através

de desenhos, assim, pedia que cortasse palavras com iniciais dos mesmos

[...]. (E21). .[...] quando iniciou o processo de alfabetização comigo e com a turma foi

uma repetição de vogais e do alfabeto e após isso começou a trabalhar com as

famílias de cada letra [...]. (E22).

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Como foi dito anteriormente, a cartilha apareceu em alguns poucos relatos, nos

quais se identifica o uso desse material para ensinar a ler, mesmo que associado a

outros, como no relato a seguir:

Tínhamos uma cartilha que ela nos ensinava a ler, formar e separar as sílabas,

dava também exercícios em folha impressa, além claro de livrinhos que tinha

em sala de aula. (E23). Uma frase marcou todo esse ano letivo ‘A macaca bota o coco na mata’ [...].

A cartilha utilizada chamava-se O Sonho de Talita. (E24).

Constatamos ainda que as atividades de leitura, fundamentais no processo de

alfabetização, parecem ficar a cargo muito mais da família do que da escola. Os

depoimentos sobre a presença dos materiais de leitura, rodas de histórias, idas a

bibliotecas, ou momentos de leitura na sala de aula - pelo professor ou pelos alunos -

mostraram-se escassos.

É neste sentido, que Soares (2004, p.75) alega que “[…] na escola, trabalhando

desta forma a escrita não faz sentido para a criança, pois a mesma só escreve o que a

escola deseja e propõe, sendo a alfabetização algo alheio à realidade social e cultural a

que pertence o sujeito”.

Essa situação, vivenciada no início da escolarização impacta a relação que os

alunos têm com a leitura e escrita como práticas sociais e no hábito e gosto pela leitura?

Certamente. Os depoimentos abaixo vem reforçar a importância de se discutir com os

licenciandos a influência significativa da escola e do professor na constituição do sujeito

leitor. Afinal, como incentivar o gosto pela leitura e não se é um leitor.

Tenho uma questão que contraria meu seguimento acadêmico e profissional e

até hoje não sei se minha alfabetização tradicional influenciou nisso, é o fato

de não gostar de ler, não sinto prazer em leitura e me canso e desconcentro

com facilidade. (E2). Aprendi a copiar muito na escola. Aprendi? Creio que sim! MAs precisa ser

assim? (E4). Quando penso nessa época não me vem à cabeça nenhuma experiência de

autonomia, tudo era dirigido. (E6). Fiquei triste ao recordar que a escola não teve grande representação com

contação de histórias e eu não me lembro da professora contando se quer

uma. Agora a minha mãe lembro dela contando muitas, incentivando a

leitura. (E11).

Os sentidos e significados construídos por nossos alunos ao longo de suas

vivências escolares, explicitados em seus relatos escritos, mas também nas conversas

realizadas em sala de aula, dão conta de um modelo de alfabetização em que não são

protagonistas de suas aprendizagens na leitura e produção de textos. Esta última

inclusive não aparece em nenhum dos relatos analisados, o que evidencia a ideia

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recorrente de que é preciso primeiro aprender ler e escrever para que então se possa

efetivamente participar de atividades de leitura e escrita de textos. A escola parece agir

com modelos, que implicam uma homogeneidade, Smolka (1991, p.112) afirma: “[…]

não convém que elas digam o que pensam que elas escrevam o que dizem que elas

escrevam como dizem, (porque o “como dizem” revela as diferenças)”.

2.2 Já cheguei nesta série sabendo parcialmente a ler e escrever porque minha mãe

me alfabetizava em casa (E6)

Entre as narrativas feitas pelos estudantes é marcante a presença da família na

alfabetização, o que lhes possibilitou um caminho de sucesso nos anos iniciais no

aprendizado da leitura e escrita. Destaca-se principalmente a vivência em casa de

práticas de uso dessas habilidades nas atividades cotidianas realizadas pelos pais, a

existência de materiais de leitura em casa, nas brincadeiras com irmãos, na realização

das tarefas de casa, nos momentos de descontração e lazer. Os depoimentos abaixo são

emblemáticos ao deixar entrever o significado da importância da família na

alfabetização, sobretudo como incentivadora na descoberta das letras e da leitura.

[…] a presença da minha família e especificamente da minha mãe foi muito

importante. Já cheguei nesta série sabendo parcialmente a ler e escrever

porque minha mãe me alfabetizava em casa, me colocando para ler pequenas

palavras, frases, me ensinando o abecedário e a formar palavras. Minha mãe

me auxiliava nos deveres e nos exercícios que fazia extra escola. (E6). Embora tivessem muito pouca escolaridade, estavam sempre lendo alguma

coisa, principalmente da igreja católica que frequentávamos, participavam de

atividades e movimentos de lá, como o círculo bíblico, que era uma reunião

semanal (que eu me lembre) onde líamos um trecho da bíblia e depois

discutíamos sobre o que cada um havia entendido. (E2). […] em casa, meus pais sempre foram leitores assíduos, bem como

escritores, tanto de notas, listas de compras, agenda telefônica, quanto de

textos mais complexos e até mesmo livros. (E4). Desde as minhas memórias mais antigas da primeira infância, eu estive

cercado de livros infantis. Fui criado pela minha mãe e pela minha avó, que

eram ávidas leitoras, e por isso sempre me contaram histórias, e estimularam

o meu contato com livros, com os quais eu conseguia me divertir mesmo sem

compreender as letras. (E9).

Reconhecer a importância do papel da família na alfabetização não deve servir

de justificativa para discursos sobre o fracasso escolar, muito presentes no contexto

social e educacional, que o relacionam à falta de apoio dos pais. Pelo contrário, nossa

perspectiva é de que, ao reconhecer a importância da presença da família na

alfabetização, a escola realize ações no sentido de envolver os responsáveis pelas

crianças nesse processo. Como professores do curso de Pedagogia, a evidência dos

sentidos e significados da família na alfabetização entre os futuros professores se impõe

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como tema de discussões em sala de aula, e de problematizações. Sabemos dos

problemas enfrentados por muitas das famílias em acompanhar seus filhos, seja por

ausência de formação escolar seja pela falta de tempo, por conta das atividades de

trabalho, como revelam os depoimentos de alguns estudantes:

Minha mãe não tinha tempo para me ensinar, ela trabalhava muito e passava

o dia todo fora. Minha avó tomava conta de mim, ela era uma senhora de

idade e analfabeta. Mas minha mãe sempre me incentivou a estudar, sempre

que podia, ela ia me buscar na escola ou me ajudava com o dever de casa.

(E16). […] era uma criança com pais semianalfabetos e, portanto, só tinha a

professora como indivíduo mediador […] Meus pais me ajudaram um pouco,

reconhecia poucas palavras e eles também? (E19).

Lahire (1997), pesquisando o sucesso escolar nas camadas populares na França,

alerta que “a escola retém apenas um traço da vida familiar do aluno e quem nem

sempre é verdadeiro”. Mesmo que a família seja analfabeta, será que não pode

contribuir incentivando, melhorando as condições dessa nova geração? O fato é que

esse aluno chegou à Universidade pública e avançou muito mais que seus pais.

Charlot (2005) comenta que em nenhum estudo se fala do papel do irmão, do

tio, do vizinho, o autor destaca que essas pessoas contribuem não só com as tarefas, mas

para potencializar o sentido da escola na vida de quem está a sua volta.

Qual o papel da escola ao reconhecer essas dificuldades? Como pode trabalhar

no sentido de potencializar a participação da família? São questões que se impõem a

todos e ganham especial significado na formação inicial de professores, no sentido

político da constituição de seus saberes.

2.3 Acredito que fui alfabetizada de forma correta, porque foi incentivado a minha

liberdade de pensamento e criação (E12)

Nesse núcleo de significação incorporamos indicadores que se referem às boas

experiências notadamente marcadas por uma autonomia dada aos alunos - infelizmente,

poucos relatos - e também indicadores que apontam para a tomada de consciência do

quanto seu processo foi marcado por práticas, nas quais não há espaço para a

participação do aluno no planejamento, e por atitudes autoritárias em que os

conhecimentos são impostos pelo professor numa perspectiva de educação bancária

(FREIRE, 1982), sem espaço para efetiva criação e expressão.

Quando refletimos e escrevemos sobre nossas experiências, ressignificamos as

ações passadas. Para esses estudantes foi um primeiro relato sistemático sobre a

alfabetização, um primeiro olhar no passado que possibilitou atribuir sentidos e

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significados ao seu processo de alfabetização, que pode ir se alterando na medida em

que esses sujeitos vão ampliando seus conhecimentos sobre o tema, e mais ainda

quando mais tarde forem professores. Nossos sentidos e significados devem ser

interpretados no movimento constante do que a “palavra evoca na consciência humana”

(VYGOTSKI, 1998, p.264), que está o tempo todo sendo ressignificado por novas

experiências e análise.

Nesse primeiro dia de aula da disciplina descortinou lembranças agora

analisadas, e E33 relatou:

Verifiquei o quão rígido foi meu processo de alfabetização. Não havia

participação do aluno na construção da aula, pelo contrário, estava tudo

previamente planejado e os alunos não podiam contribuir. (E33).

Por esse relato podemos compreender a trama que compõe a análise dos sentidos

e significados que atribuem hoje ao processo. É fácil compreender que na época em que

foi exposta a essa realidade castradora, essa relação não poderia se dar. A estudante

tinha seis anos e pela primeira vez pisava na escola, só hoje, estudando para ser

professora ela pode refletir e ressignificar os fatos, ponderando que talvez seja possível

uma alfabetização mais partilhada e autônoma. A concepção discursiva (SMOLKA,

2008), em cujo bojo estão perguntas quanto à função social da escrita, à elaboração

cognitiva no sentido de construção conceitual, à dialogicidade, isto é, aprender a ler e a

escrever lendo e escrevendo, tendo em vista o ‘como?’, o ‘por quê?’ e o ‘para quê?’

ficaram longe de seu processo, mas são retomadas em sua análise da experiência vivida.

Nesse sentido consideramos significativos também o depoimento abaixo:

Por isso detesto esse modo de alfabetizar usando a família de qualquer letra,

além de ser chato me causou muito choro às escondidas, afinal, sempre

achava que a culpa por não saber juntar as sílabas [...] era sempre minha.

(E54). Além disso, a professora [...] fazia prova de leitura. Quê fardo: eu lia devagar,

muito devagar e, quando ficava ansiosa pela próxima palavra, acabava por

pressupô-la ao invés de lê-la e, por isso, falava uma palavra que não estava no

texto e só percebia depois. [...] Eu me sentia verdadeiramente constrangida.

(E3). Acredito que fui alfabetizada corretamente, não porque utilizei a ). Em

toda a minha vida, a ênfase era na alfabetização por silabação. Funcionou

comigo, cartilha certa, mas porque foi incentivado a minha liberdade

de pensamento e criação. (E12).

O movimento de olhar o que passou e encontrar um sentido e significado

apontou para um bom exemplo de professor alfabetizador, que partilha, dá liberdade,

incentiva a criação.

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Nessa tentativa de elencar o que deu certo, E 11, E 21 demarcam atitudes e

práticas que marcaram positivamente sua alfabetização:

O desejo da leitura crescia e recebíamos várias tarefas diferentes (...).

Tínhamos um pouco de autonomia, mas também realizávamos as tarefas que

a professora passava. (E11) Certa vez, fizemos um trabalho em grupo que juntávamos [sic] variadas

histórias, cada integrante falava daquilo que tinha lido e no final tínhamos

que inventar um personagem com um pouquinho de cada coisa que tivemos

contato com a leitura. (E21).

Esses estudantes partilham uma importante imagem desse professor, que sabe

dosar a autonomia, que prepara a aula e dá liberdade de escolhas.

2.4 Eu a adorava, pois ela não sentava, ficava no meio dos alunos para ver como

estavam indo (E25)

Partindo de teorizações de que o ensino é um ofício universal, portador de uma

longa história e com origem que remonta à Grécia antiga, Gauthier et al (1998)

sustentam que este ofício ainda mantém em nossos dias, um papel fundamental para as

sociedades humanas. Entretanto, apesar desta longevidade do ofício de ensinar, “mal

conseguimos identificar os atos do professor que, na sala de aula, têm influência

concreta sobre a aprendizagem dos alunos, e estamos apenas começando a compreender

como se dá a interação entre educador e educandos” (GAUTHIER et al, 1998, p. 17).

Gauthier et al (1998, p. 20) usam a sentença “conhece-te a ti mesmo”, do oráculo

de Delfos, para dizer que ainda se sabe muito pouco a respeito dos fenômenos que são

inerentes ao ensino. Boas pistas podem nos dar esses relatos sobre a alfabetização, por

meio dos quais os estudantes - na construção da sua identidade docente - refletem sobre

seu processo, as relações com seus professores, lançando luzes sobre o que valeu a pena

e o que precisa ser revisto.

Entre os aspectos presentes nos relatos dos alunos, entendemos importante

evidenciar a visão de professor alfabetizador que foi significada em suas experiências.

Assim, nos questionamos ao olhar para seus relatos: as lembranças de infância

permitem identificar características e elementos que, para além do método, se

constituem como significativos da atuação docente? Os excertos abaixo apontam para a

construção de uma ideia de alfabetizador como afetuoso, carinhoso, paciente, entre

outras características pessoais, de personalidade, que se referem à figura “maternal”.

Afeto e rigor como características valorizadas pelos alunos em suas lembranças:

Lembro que era bastante carinhosa, além de sempre colocar elogios carinhosos

nos trabalhos feitos. (E26).

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[…] as professoras eram extremamente carinhosas; pessoas que até hoje eu

possuo o contato e que lembram de mim. (E14). [...] ao mesmo tempo em que era doce, ela era exigente [...]ela não sentava,

ficava no meio dos alunos para ver como estavam indo [...] isso fazia com que

nossa atenção ficasse toda voltada para ela. (E25). [...] ela pegava na minha mão para eu poder contornar as letrinhas [...]. (E31).

Em alguns casos o professor é lembrado, não só por suas características

pessoais, mas por indícios de sua competência pedagógica associada ao sucesso escolar,

em geral relacionada às práticas leitura, o que reforça a importância do professor na

mediação do processo de alfabetização, como incentivador do gosto pela leitura.

No processo de alfabetização não tive muitas dificuldades, acredito que pelo

fato da professora [...] nos incentivar a leitura, ela sempre lia um livro nas

aulas, cada dia um livro diferente (E27) [...] a professora para me incentivar minha leitura (sic) me chamava para ler

na mesa junto a ela. (E28) Com essa professora [...] aprendi a ter gosto por ler livros, entender e entrar

dentro [sic] da história. Ela deixava a gente escolher os livros, isso era bem

legal! (E29)

Embora não possamos mensurar o quanto tais características impactam as

aprendizagens das crianças, os próprios depoimentos acima permitam entrever essa

relação positiva, podemos verificar que significaram experiências importantes do ser

professor e do sentido da docência. Aprender a ler e escrever não pode se reduzir a um

exercício técnico, ensinar, segundo Freire (1997), também não pode ser um inocente

processo de transferência de conhecimento do professor para o aluno. “Pelo contrário,

enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo de alfabetização tem, no

alfabetizando, o seu sujeito” (FREIRE, 2001, p.19). O processo de alfabetização

compreende a leitura do mundo e a leitura da palavra, abrindo possibilidade para a

reflexão, a libertação e a criação.

Considerações Finais

Conforme aponta Kramer (2000, p. 116), “[…] a escrita traz a possibilidade de

pensar o que se fez e viveu, ampliando o raio de ação e reflexão”, portanto, o relato de

uma experiência educacional que teve o peso de ser a porta da entrada na escola para

maioria, contribui sobremaneira para que o futuro professor construa sua formação a

partir do vivido e vá relacionando sua trajetória educacional com as teorizações e

práticas as quais está exposto na universidade.

Para nós, como docentes do curso de Pedagogia, ampliam-se nossos

conhecimentos sobre quem são esses alunos, as concepções, sentidos e significados que

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158ISSN 2177-336X

construíram em suas vivências e que os constituem como sujeitos aprendentes,

indicando caminhos e possibilidades de uma conexão significativa entre a nossa prática

e as expectativas quanto à formação dos estudantes. Entre esses caminhos estão a

proposição de momentos de discussão desses depoimentos em sala, em contraponto às

expectativas atuais de alfabetização, bem como o planejamento de oficinas e de

atividades elaboradas com a participação dos alunos que apontem novos caminhos de

atuação docente. Professores e estudantes elaboram assim suas aprendizagens como

protagonistas na construção de seus saberes.

Pesquisar sentidos e significados tentando entender as bases em que se constitui

a referencia de alfabetização para estudantes do curso de Pedagogia, requer

sensibilidade para escuta da história dos sujeitos. Conforme observa Vygotski (1998,

p.41), “[…] ao transformar-se em linguagem o pensamento se reestrutura e se

modifica”. Portanto, os sentidos e significados aqui analisados não podem ser

compreendidos como estáticos ou imutáveis, ao contrário disso, estão em constante

desenvolvimento.

Referências Bibliográficas

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Metodológica. Psicologia – Ciência e Profissão, número 26, 2006.

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Paulo: Paz e Terra, 2001.

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VYGOTSKY, L.S. Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

159ISSN 2177-336X

A LITERATURA DE JOVENS ESCRITORES NA ESCOLA:

LEITURAS E ESCRITAS EM DIÁLOGO

Isa Ferreira Martins (SEEDUC/RJ)

As discussões sobre a literatura na escola têm avançado (COLOMER, 2007).

Entretanto, ainda predominam aulas tradicionais. Nesse debate, estão envolvidas questões

curriculares e políticas, como exames e avaliações externas.

No setor particular, são perseguidos os primeiros lugares no ranking para o

marketing da escola. Na rede pública, a elevação das notas resulta em mais verbas para

Secretarias de Educação e esporádicos bônus salariais para professores de uma rede que

caminha para a meritocracia. Assim, impera a aula tradicional como um caminho seguro

para o “bom” desempenho dos alunos nas avaliações dentro e, principalmente, fora da

escola.

Como agregar a exigência institucional a um trabalho que traga para a aula novas

experiências e diálogos?

Na tentativa de contribuir para tal, partimos do pressuposto de Cosson (2012) de

que através da prática tanto da leitura quanto da escrita de textos literários se tem um

desvelar das arbitrariedades dos discursos mais que padronizados e uma apropriação da

linguagem.

Nesse sentido, propomos discussões sobre a inserção de textos literários de jovens

escritores nas aulas de literatura, sendo o trabalho com os respectivos textos retomados,

em diálogo, nas de produção textual. Para tal, são alguns discursos sobre o ato de escrever

nosso ponto de partida, uma vez que

a palavra é expressiva, mas essa expressão, reiteramos, não pertence à própria

palavra: ela nasce no ponto de contato da palavra com a realidade concreta e

nas condições de uma situação real, contato esse que é realizado pelo

enunciado individual. Nesse caso, a palavra atua como expressão de certa

posição valorativa do homem individual (de alguém dotado de autoridade, do

escritor, cientista, pai, mãe, amigo, mestre, etc.) como abreviatura do

enunciado. (BAKHTIN, 2011, p.294).

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Essa percepção da escrita como “contato da palavra com a realidade concreta” não

é facilmente percebida ou trabalhada durante o processo de ensino da escrita. Assim,

diversas barreiras não só linguísticas, mas também sociais, que permeiam o ato de

escrever (ou produzir algo), ganham, muitas vezes, um único argumento ou explicação:

“não tenho ‘inspiração’”, que por vezes ouvimos traduzido também como “não sou capaz

de escrever um texto bom”. Diante dessa questão, recorrerei às ideias bakhtinianas para

refletir sobre uma das frases mais presentes no momento das atividades de produção

textual, independente do grau de maturidade ou classe social dos escritores. Aproveito a

seguir para usá-la (a frase) duplamente: citá-la e apresentá-la como subtítulo das reflexões

a seguir.

“Estou sem ‘inspiração’ para escrever.”

A frase citada reflete um pouco do imaginário que envolve o processo de produção

artística e também perpassa o da escrita, mesmo aquela que tem uma função escolar, vista

pelo aluno/escritor como algo “só para o professor ler”. Assim, foquemos agora nela: a

“inspiração”.

Quantos de nós, ao nos depararmos com o desafio de produzir um texto, já não

nos pegamos pensando que para tal pessoa ou reconhecido escritor foi ou é mais fácil

escrever? Afinal, “este parece ter mais ou muita inspiração”.

Para essa cena, trago a própria definição de Bakhtin (2011) de “inspiração”

poética, presente em Arte e responsabilidade. Esse norte teórico nos ajudará a

compreender o ato de escrever e suas tão desejadas “inspirações”, muitas vezes vista

como se fossem um tipo de dádiva divina, que faz daqueles que através da escrita nos

encantam ou “transformam”, de alguma forma, seres especiais, dotados de um “dom”,

alguém com um intelecto e sensibilidade mais aguçados, mais inteligentes?, que a maioria

dos mortais.

A ideia de “inspiração” está ainda tão presente em nosso imaginário que “Estou

sem inspiração.” passa a ser uma justificativa em diversas situações em que um autor

tenta explicar o fato de não estar conseguindo iniciar, dar andamento ou finalizar

satisfatoriamente sua produção, embora tal argumento apareça mais constantemente no

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início. Porém, aqui, não me atenho àquele “silêncio” perturbador dos momentos iniciais

da escrita, sobre o qual Orlandi (2011) e Barreto (2002) nos ajudam a compreender, já

que “falar em linguagem implica falar do silêncio”, pois ele está presente na “[...]

dificuldade de se começar um texto: enfrentar o universo dos sentidos [...]” (BARRETO,

2002, p.27).

“Curioso” ainda é que a ideia da “falta de inspiração” não se aplica somente a

situações de produção artística. Em momentos de escritas acadêmicas ou puramente

cotidianas, como uma carta de solicitação, de reclamação ou uma mensagem de parabéns

para um amigo especial, o “invocar” a inspiração é por vezes parte do processo. Vejamos

o que Bakhtin nos deixou de definição sobre “inspiração”, essa direcionada tanto ao poeta

quanto ao homem da vida:

O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da

vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta

de seriedade de suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. O

indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os momentos devem

não só estar lado a lado na série temporal de sua vida, mas também penetrar

uns nos outros na unidade da culpa e da responsabilidade.

E nada de citar a ‘inspiração’ para justificar a irresponsabilidade. A inspiração

que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é inspiração, mas

obsessão. [...] Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo

singular em mim. Na minha unidade da minha responsabilidade (BAKHTIN,

2011, p.XXXIV). (Grifos meus)

Falando tanto sobre a responsabilidade do artista quanto a do homem nos seus

processos de “produção” da vida comum, “real”, Bakhtin nos ajuda a desmistificar a

figura do artista e sua “inspiração” ao relacionar vida e arte como diferentes, mas

entrelaçadas pela responsabilidade sobre aquilo que se produz.

Dessa forma, podemos perceber melhor também o escritor engajado, ou o em

processo de formação, como alguém que tem na vida sua “inspiração” e não em um

“poder quase sobrenatural” que é possuído somente por alguns.

“Inspiração” essa, presente no imaginário social, que “por ser um pouco divina”

respalda, de certa forma, o pensamento de que não consigo escrever porque não sou

dotado de “inspiração”. E, dessa forma, muito se acalenta a frustração ou se justifica a

dificuldade que engloba todos os “diálogos”, “discursos” e “práticas sociais” que também

estão no processo da escrita.

Essa questão da “inspiração”, pautada na concepção de Bakhtin, nos ajuda, mesmo

que embrionariamente, a entender o que venha ser “texto dos alunos”, pois, já tendo

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tentado desmistificar a relação “escrita e dom”, é possível avançar para a tentativa de

mostrar a relação que há também entre escrita, realidade e responsabilidades.

“Inspirada” nessa discussão bakhtiniana, objetivo situar problemáticas e desafios

que envolvem as questões aqui propostas e enfrentadas pela maioria dos professores de

escolas públicas, já que, na prática discursiva, cotidiano e ideologias nunca se separam

(BAKHTIN, 1992).

Nesse sentido, precisamos deixar para trás a ideia “ingênua”, adjetivo usado por

Bakhtin e retomado por João Wanderley Geraldi (2003) em Portos de Passagem, quando

ambos tratam da temática da escrita e seu processo, sobre o que consideramos “texto do

aluno” e relacioná-lo também às questões que envolvem relações sociais, de ideologias,

do discurso verbal, da comunicabilidade e da criação e, inclusive, da própria visão de

mundo do aluno.

Sob tal ponto de vista, observamos que ao fazer a relação do “discurso verbal”

com a “criatividade”, Bakhtin nos aponta para o fato de que “o discurso verbal é o

esqueleto que só toma forma viva no processo da percepção criativa, consequentemente,

só no processo da comunicação social viva” (BAKHTIN, s/d, p.12). Dessa forma, não

podemos entender os “textos dos alunos” como algo “descolado” das questões e contextos

sociais nos quais estão mergulhados.

Outra necessidade de relacionar o que chamo de “texto dos alunos” também às

estruturas sociais ocorre pelo fato desse objeto de pesquisa ser, por vezes, usado para

culpabilizar pelos “fracassos escolares” ou “textuais” “aqueles que fazem no seu dia a dia

da sala de aula a educação linguística possível no interior de um sistema escolar falido

numa nação de explorados em benefício de uma minoria” (GERALDI, 2003, p. XXIX).

Assim, ler ou analisar um “texto produzido por um aluno”, em uma aula de produção

textual, é iniciarmos mais um diálogo com as diversas concepções ideológicas existentes

na sociedade na qual estamos temporal e espacialmente inseridos, já que “o emprego das

palavras na comunicação discursiva viva sempre é de índole individual-contextual”

(BAKHTIN, 2011, p.294).

Se situar o contexto faz-se obrigatório para que entendamos os muitos porquês de

um texto e sua forma ou resultado de “criação”, os “textos dos alunos” do Ensino Médio

da Escola Pública do Rio de Janeiro têm muito a revelar. Porém, mais do que apresentá-

los como sendo de classes populares, e com isso correr o risco de ficar nos prendendo a

expectativas “presumidas”, termo bakhtiniano, como, por exemplo, aqueles que não

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conseguiram se superar ou aprender, mesmo tendo acesso à escola (SOARES, 1988), é

necessário entender o universo discursivo dos mesmos.

A partir desse ponto da discussão, chamo de “texto do aluno” todo emaranhado

de palavras, frases, parágrafos, ideologias e contextos no qual aquele sujeito-escritor está

imerso até o momento daquela escrita, sendo toda a sociedade e sua estrutura de culturas,

conflitos e poderes também vozes presentes na produção discursiva daquele aluno, aqui

tendo como recorte a leitura e produção escrita. Assim, tiramos dele a responsabilidade

única por aquilo que escreve, como acontece em todo o processo de “criação verbal”.

Não ter um olhar ingênuo sobre essas questões que entrelaçam as estruturas sociais

e de poder, a semântica e as ideologias e textos permite uma discussão sobre a produção

textual no contexto escolar, mas também social, já que fazendo minhas algumas palavras

de João Wanderley Geraldi:

Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de partida (e

ponto de chegada) de todo o processo de ensino aprendizagem da língua. E isto

não apenas por inspiração ideológica de devolução do direito à palavra às

classes desprivilegiadas, para delas ouvirmos a história, contida e não contada,

da grande maioria que hoje ocupa os bancos escolares (GERALDI, 2003,

p.135).

Embora quem trabalhe com o ensino de Línguas, de Literatura e de Produção

Textual entenda que os textos que recebe de seus alunos não são resultado unicamente da

criatividade, não é raro leituras desses pautada em juízos de valor, que beiram, muitas

vezes, o preconceito de classe. Ação essa que revela que o leitor faz parte do “auditório

social” definido por Bakhtin, e, como tal, mergulha na dimensão social dos textos que

chegam até suas mãos. Nesse caso, escritor e leitor estarão imersos “no dito”, no “não

dito”, no cotidiano da escola, na sociedade.

Entretanto, proponho que sigamos pelas entrelinhas não só linguísticas, mas

também ideológicas e hegemônicas dos textos produzidos pelos alunos, uma vez que “a

palavra é o fenômeno ideológico por excelência” (BAKHTIN, 1992, p.36).

Nesse sentido, a ideia de que estamos criando “nosso”, e só nosso, “texto” na aula

de produção textual leva a afirmações ideológicas, a ponto de influenciar também a forma

como são elaboradas provas de processos seletivos de escolas, universidades e até exames

como o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), que descartam qualquer

diferenciação nos critérios de correção, o que reconhecemos que seria muito complicado.

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Entretanto, no processo de formação do estudante, tal postura tem desconsiderado

questões importantes para a melhoria do ensino no dia a dia.

As avaliações institucionais interferem direta e indiretamente nas aulas, já que

grande parte das escolas enquadra o ensino da escrita e leituras realizadas nos modelos

exigidos nesses exames, bem como são diversos os professores que trabalham guiados

essencialmente por tal perspectiva.

Tal contexto ocorre porque o ENEM, por exemplo, é uma das grandes portas de

acesso ao ensino superior, já que várias universidades, públicas e particulares, aderiram

ao exame como processo seletivo. Assim, tanto alunos quanto professores, desde muito

cedo, incorporam as regras e critérios da “Redação do ENEM”, por exemplo, como

objetivo a ser aprendido e ensinado o quanto antes.

Não estamos aqui defendendo que tal trabalho não seja desenvolvido, mas ele

pode ser realizado não só em paralelo como priorizando o efetivo desenvolvimento da

formação discursiva do estudante. Entretanto, como já abordado, essas práticas didático-

pedagógicas motivam a repetição desenfreada de modelos de escritas e,

consequentemente, leituras que são pautadas na paráfrase ou na historiografia literária,

muitas vezes, relacionadas, também, ao IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação

Básica) e PISA (Programme for International Student Assessment – Programa

Internacional de Avaliação de Estudantes), por exemplo, uma vez que tais avaliações

possuem a leitura e o domínio gramatical como expoente fundamental de medição de

notas e rankings, tão disputados pelo cenário político de investimentos, verbas e discursos

democráticos que fomentam e assumem importância central nas formulações de

estratégias didáticas e de seus modelos de aferimento.

Outro argumento para discutir o “texto dos alunos” no contexto do ensino da

produção textual na escola pauta-se nas afirmações de que o escritor-aluno “não dá conta

do recado” ou “não escreve satisfatoriamente” para determinado contexto ou faixa etária.

Nesse momento, é sobre os ombros do professor de Língua, Literatura e Produção de

Textual que muitos colocam a culpa.

Tendo apresentado não uma definição específica sob o viés da escrita dos alunos,

até para não correr o risco de ser simplista, em função da complexidade das questões que

envolvem a produção verbal, objetivamos trazer a ideia de que, conforme escreve Geraldi:

Na produção dos discursos, o sujeito articula, aqui e agora, um ponto de vista

sobre o mundo que, vinculado a uma certa formação discursiva dela não é

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decorrência mecânica, seu trabalho sendo mais do que mera reprodução: se

fosse apenas isso, os discursos seriam sempre idênticos, independentemente

de quem e para quem resultam. Minha aposta não significa que o sujeito, para

se constituir como tal, deva criar o novo. A novidade, que pode estar no

reaparecimento de velhas formas e de velhos conteúdos, é precisamente o fato

de sua articulação individual com a formação discursiva de que faz parte,

mesmo quando dela não está consciente (GERALDI, 2003, p.136).

É nesse “auditório social” (Bakhtin), na interação, na “circularidade” dos

“discursos interior e exterior”, na “articulação” das vozes sociais, das políticas, da

educação brasileira que os “textos dos alunos”, a leitura canônica e a literatura de jovens

escritores, já que “todos os produtos da criatividade humana nascem na e para a sociedade

humana” (BAKHTIN, s/d, p.02), não deveria estar descolada das práticas escolares.

Para tal condução, sigamos por algumas das linhas de Por encomenda: contos e

outras histórias (BRASIL, 2012), livro escrito, na época, por sete alunos do Ensino

Médio, de 15 a 17 anos, orientados pela professora e organizadora Janaina Brasil, fruto

de oficinas de criação, pautadas em leituras e debates de textos teóricos e literários.

A obra é um convite à reflexão sobre a literatura e as escritas de estudantes, como,

por exemplo, as da jovem autora que assim se apresenta: “Até hoje aprendi três coisas: a

falar sem rodeios e desamparos, aos gritos e sussurros; a ler, para desfolhar todos os

acordes do mundo; e a escrever, existindo num espetáculo por vezes solitário e que

encontra redenção nos leitores” (p.17). E completa: “protagonizar a literatura é essa

existência incoerente, prazerosa, desmedida. Cá estou, uma Ananda que estuda Ciências

Sociais, piauiense e cheia de histórias travadas em contos” (idem).

Nesse sentido, falar em escrita é, inevitavelmente, ter em mente a imagem de um

autor. Porém, o que é um autor?

Essa pergunta foi usada para dar título a um dos livros de Foucault (1992), que

nos convida a reflexões sobre o tema através dos caminhos da história, das ciências, de

questões sociais, dos discursos e da literatura.

Com uma proposta de entendimento e debate sobre as funções do autor,

características e expectativas relacionadas a essa figura, que muitas vezes tem sua imagem

confundida com alguém dotado de um poder, para muitos, quase sobrenatural, Foucault

nos permite descortinar a ordem discursiva (2000) que envolve o universo da escrita e os

discursos sobre ela, o que pode ser conferido no seguinte trecho:

[...] a função autor está ligada ao sistema jurídico e institucional que encerra,

determina, articula o universo dos discursos; não se exerce uniformemente e

da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas em todas as

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formas da civilização; não se define pela atribuição espontânea de um discurso

ao seu produtor, mas através de uma série de operações específicas e

complexas; não reenvia pura e simplesmente para um indivíduo real, podendo

dar lugar a vários “eus”, em simultâneo, a várias posições-sujeitos que classes

diferentes de indivíduos podem ocupar (FOUCAULT, 1992, p.56-57).

Essa complexidade relacionada ao assunto, que Foucault atribui aos sujeitos, suas

posições, seus “eus” e a relação escrita/instituição, transforma-se em uma grande

problemática e desafio quando pensada no universo escolar. Isso ocorre porque mesmo

estando tal debate tão presente em aulas das Faculdades de Letras, o tema autoria e seus

desdobramentos raramente são abordados nas salas de aula da educação básica,

reproduzindo a mesma ausência das discussões nos ensinamentos propostos pelos livros

didáticos, programas, currículos e discursos pedagógicos sobre a produção textual

escolar.

É necessário destacar, no presente momento, que não estamos aqui atribuindo à

escola o papel de formar escritores. Entretanto, tal como Orlandi (2012), defendemos a

ideia de que:

Quanto ao escritor, o que gostaríamos de dizer é o seguinte: não é a relação

com a escola que define o escritor. Ela poderá ser útil, mas não é nem

necessária, nem suficiente. Não é sua tarefa específica formar escritores.

Ao contrário, para ser escritor, sim: a escola é necessária. Embora não

suficiente, uma vez que a relação com o fora da escola também constitui a

experiência da autoria. De toda forma, a escola, enquanto lugar de reflexão, é

um lugar fundamental para a elaboração dessa experiência, a da autoria, na

relação com a linguagem (ORLANDI, 2012, p.109-110).

Dito isso, voltemos, então, nossa atenção para esse espaço que ocupa muitas vezes

um lugar de destaque no imaginário sobre o “ensino” da escrita e da leitura: a escola. Para

tal, trarei também experiências e sujeitos produtores de textos escolares e literários,

objetivando reflexões teóricas sobre essas práticas escolares.

Para Orlandi (2012), a ideia de autor está relacionada ao papel social da escrita,

na relação com a linguagem, podendo dar-se diante da instituição-escola ou fora dela.

Nessa linha de pensamento, para a autora, é “uma importante atividade pedagógica na

escola, em relação ao universo da escrita: responder a essa questão – o que é ser autor –

é atuar no que se define a passagem da função de sujeito-enunciador para sujeito-autor”

(ORLANDI, 2012, p. 106). Nesse sentido, trago como caminho condutor de reflexões a

leitura do texto a seguir, cujo objetivo é apresentar algumas noções sobre autor que

circulam na escola.

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O diferencial desse texto se dá pelo fato de ter sido escrito por um jovem escritor.

Fernando Ananias possuía 17 anos na época em que escreveu A sede, e outros três contos

do mesmo livro, e era, então, ainda aluno do Ensino Médio.

A sede

Eu salvo vida. De segunda a sábado observo criancinhas desfilarem suas

cândidas figuras aos descerem a pequena escada que leva à piscina. [...]

É um trabalho tranquilo. Muito tranquilo. Raramente o professor se distrai e

alguma criança se afoga. [...]

Hoje é o dia mais cheio da semana. [...] É uma quarta-feira de sol escaldante

[...] É melhor deixar calada a intenção.

[...] Até que o ouvir do último sino anunciou que já era hora. Os pequeninos

saíram da piscina, levando as cores que me despertavam. O professor, aliviado

pelo fim de mais um dia daquele trabalho insosso, partiu atrás distraído pela

própria exaustão, se esquecendo de fazer a checagem rotineira.

Seria agora. No meio da multidão uma menina voltava, com a expressão de

alguém que procura um objeto perdido. Sentou na borda, com os olhos atentos

a investigar a água. O vermelho do maiô refletia, tremulando como a chama da

vela diante do sopro do vento. Meu instinto sorria, era a minha cor preferida.

Aproximei-me e perguntei se precisava de algo, fez um gesto afirmativo e me

deu a mão para que eu levantasse. Seus olhos infantis me penetraram, dizendo

quão plenamente ela confiava em mim. Era melhor que fosse assim.

Sem deixar tempo para gestos desastrados ou fugas, pus minhas mãos sobre a

sua boca, com um braço envolvi seu pescoço e arremessei-a na água.

Contemplei por um momento sua figura vibrando por baixo do azul. Cada

mínima partícula do meu corpo sacolejava, e uma febre corria, me encerrando

em um incêndio.

Pulei, a água me acolhia. Uni as duas mãos em volta do frágil pescoço,

pressionei os dedos de sua carne fria, os olhos orbitavam, nariz expelindo

sangue, boca esbranquiçada, eu sentindo um sabor, mais sabor, agora, já.

O sangue era dois raios rubros rasgando a densidade. Delícia, morte, delícia.

O sabor do finalmente me embebedava. Estava sentindo, enfim, o gosto que

mataria, naquele dia, a minha sede (BRASIL, 2012, p.43-44).

Nos debates sobre esse texto, foram inevitáveis as críticas ao autor como sendo

alguém que “era um doente”, já que “deveria ser um psicopata”. A partir desse momento,

um universo de leituras não canônicas surgiu como exemplo. As sagas ganhavam

destaques, assim como o desdenhar a leitura do colega. Estava claro que boa parte

daqueles estudantes se encontrava envolvida com a leitura, mas não aquelas indicadas nas

escolas. Questões sobre a estética literária surgiram permeadas às análises do texto em

questão e às leituras pessoais. O estranhamento provocado pela referida narrativa foi

debatido e reconhecido como efeito motivador para leituras futuras, bem como o impacto

em produções textuais que fossem solicitados posteriormente.

E quanto ao autor de A sede? Das respostas surgiu, para a grande maioria deles, o

imaginário de um autor “velho” ou “um senhor não muito velho”, “de cabelos de lado e

brancos”, “um homem com experiência de vida”, “baixo, gordo, cabelo grisalho”,

predominou o “em torno dos 50 anos”, mesmo com alguns respondendo “uns 35 anos”,

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mas acrescentando a ideia de “ser alguém de idade”, ou, ainda, “um senhor de

aproximadamente 40 anos, que seja formado em Letras e já tem alguns livros publicados

e meio psicopata”, um autor maduro.

A parte do psicopata foi quase unânime, revelando a necessidade de se construir

com a maioria a noção de processo de escrita, a noção de autoria, intertextualidade,

leituras, sentidos e criatividade, ou seja, o processo de construção literária e sentidos da

leitura. Vale ressaltar que nenhum dos alunos apresentou a possibilidade do autor ser um

jovem da idade deles (tratava-se de uma turma de 1º ano do Ensino Médio, de uma escola

pública).

Quando revelada a real idade do autor de A sede, houve um grande impacto. A tal

ponto de questionarem se era verdade ou não. Quando confirmado ser de alguém de 17

anos a autoria daquele conto, o espanto e admiração ficaram explícitos. Adjetivos dos

mais variados tipos foram atribuídos ao jovem autor, que virou ponto de referência da

turma sobre quebra de expectativa do leitor.

As experiências que se seguiram a partir da proposta de trabalho iniciada com o

texto A sede estão problematizadas à luz dos conceitos e referenciais teórico-

metodológicos assumidos, já que para que seja possível construir autores a partir dos

bancos escolares é preciso também entender e discutir o que se entende por autoria, as

autoridades literárias e escolares e seus autoritarismos travestidos de “objetivos em

formar o bom aluno”. Nesse sentido, um conceito que precisa ser problematizado é o da

“autoria”.

Assumimos, então, como entendimento de autoria, no contexto escolar, os

pressupostos de Castro (2008), que nos ajuda a deixar clara a diferença também entre

autor e produtor de texto (escolar), bem como um olhar para as diferenças entre “autor”

e “sujeito”, pois tais ideias refletem de maneira direta na forma como a escola estrutura

seu currículo e dita práticas docentes.

O autor (reconhecido socialmente como tal) tem em si um glamour social, um

olhar atento para seus textos e adesão do pacto do leitor mais facilmente. Ele é a

autoridade, e não o seu leitor. Já na escola, o sujeito que fará uma produção textual, além

de fazê-lo sob condições inadequadas, tem sua figura relacionada à do autor

essencialmente no último dos 3 traços que Castro (2008) considera para definir “autoria”

(p. 03) como uma condição de produção de textos.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

169ISSN 2177-336X

A primeira delas é a motivação para escrever, seja espontânea ou motivada; a

segunda refere-se à liberdade sobre as decisões dos caminhos do texto, ainda que diante

de orientações; e a terceira faz referência ao fato do autor assumir publicamente seu texto

e, ainda, responsabilizar-se por ele diante da sociedade.

Em quase todas as entrevistas feitas com escritores consagrados, temos a pergunta

do entrevistador sobre “como se tornar escritor?”. A resposta, na grande maioria das

vezes, se inicia da mesma forma: “Lendo muito...”

É inegável o papel da leitura na vida e na construção do processo criativo de um

escritor. Porém, o senso comum alimenta a ideia de que quem lê muito automaticamente

escreve “bem”. Entretanto, quando a escola promove a prática de leitura é pela via da

imposição (cobrando resumos dos livros) ou do estímulo? Há diálogos com os alunos

sobre as suas histórias de leituras e preferências ou dá-se como única opção os cânones,

que, por sinal, são os mesmos que compõem as provas das escolas e as de avaliações

externas?

Diante dessas questões, experimentar novas práticas de ensino é mais que um

desafio, é, também, um compromisso com uma escola plural.

Sabemos que a inserção do trabalho com a literatura produzida por jovens

escritores no cotidiano da escola não é a grande salvação para resolvermos as inúmeras

problemáticas que envolvem o tema da leitura e da escrita nesse contexto.

Entretanto, tais práticas podem revelar-se como espaço de diálogo entre o cânone,

jovens autores, teorias literárias, outros sentidos, desvelar dos processos de escrita, de

novos olhares e leituras que nos convidam a ir além da historiografia literária.

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XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

171ISSN 2177-336X

UM CONTEXTO PARA A VALORIZAÇÃO DOS SABERES DOCENTES NA

FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES

Marcelo Macedo Corrêa e Castro - UFRJ

Resumo

O presente artigo apresenta resultados obtidos com o desenvolvimento do projeto de

pesquisa Saberes docentes e formação de professores para o ensino da escrita, voltado

para três objetivos: (1) identificar perfil de formação básica dos estudantes matriculados

nos cursos de Letras e de Pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro; (2)

analisar os currículos dos referidos cursos no que se refere mais diretamente à formação

para o ensino da escrita; e (3) propor ações que ajudem estudantes e professores a

enfrentar as questões postas para a formação inicial de professores de escrita. Baseado

em autores como Castro (2010 e 2012), Ghedin e Pimenta (2008), Pereira (2006),

Perrenoud (2002) e Lessard e Tardif (2008), apresenta-se uma discussão na qual se

busca relacionar, no cenário da formação de professores no Brasil nas décadas de 1990

e 2000 principalmente, as políticas de governo e as proposições teóricas emanadas da

academia, com destaque para aquelas que valorizam os saberes docentes e a atuação

crítica dos professores. As principais conclusões da discussão apontam para os limites

do alcance das ações de formação continuada de professores da educação empreendidas

nas duas últimas décadas e, principalmente, para a necessidade de fortalecer os

investimentos das universidades na formação inicial de docentes. No que tange ao

aspecto formal, o texto está organizado em três partes: a primeira demarca

historicamente a leitura do panorama apresentado; a segunda destaca traços definidores

das políticas de governo para a educação nas últimas décadas e discute balanços acerca

das ações voltadas para a valorização dos saberes docentes; a terceira apresenta

conclusões e considerações finais.

Palavras-chave: Formação de Professores. Ensino da Escrita. Saberes Docentes

I Delimitação histórica: o contexto pós-ditadura civil-militar

Embora o objetivo maior do nosso estudo esteja voltado para a formação de

professores para o ensino da escrita, o limite aqui adotado foi o do panorama maior das

questões que envolvem a formação dos professores, a fim de proporcionar uma inserção

mais segura e contextualizada nos desafios específicos de formar profissionais que irão

ensinar a escrever.

Ressalvado esse aspecto, adota-se para a discussão o pressuposto de que a

profissionalização do magistério constitui um dos principais desafios ao

desenvolvimento da educação no Brasil, porque, sem o enfrentamento de questões que

vão da estruturação de uma carreira às condições para o seu exercício, passando pela

formação de profissionais, em todos os seus níveis, pouco se alcançará das metas postas

para a sociedade brasileira em termos educacionais.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

172ISSN 2177-336X

Esse desafio demanda debates e movimentos em muitas frentes e instâncias, das

quais destacaremos o esforço conjunto das universidades, das escolas e dos

profissionais de educação, especialmente dos docentes, com ênfase nas instituições

públicas, em prol da valorização dos professores e dos seus saberes. O ponto de partida

está demarcado pelo contexto dos anos 1980, quando tal esforço ganhou intensidade e

qualidade, por motivos diversos, elencados a seguir.

A referida década marcou a retomada da plena institucionalização da sociedade,

após uma ditadura que durou mais de 20 anos e impôs severas restrições ao exercício da

cidadania. O contexto de tal retomada caracterizou-se pelo restabelecimento da

liberdade de pensamento e de expressão, trazendo de volta à cena projetos abortados ou

interrompidos ao longo dos anos de silenciamento. Dentre aquilo que se retomou, lá

estava o desafio de se oferecer um ensino público de qualidade a todos, o que levava

necessariamente à questão da preparação e das condições de exercício dos profissionais

de educação.

Quanto a esse desafio, vale lembrar que a universalização da oferta de vagas na

escola pública, já em fase adiantada nos anos 1980, no que diz respeito ao hoje

denominado ensino fundamental, ampliou muito o espectro de perfis socioeconômico-

culturais de estudantes e professores nas escolas públicas, deixando evidente a

inadequação, para esses novos sujeitos, dos currículos e das práticas adotadas até então.

Também esse fator, por conseguinte, punha em destaque a necessidade de se repensar a

escola, suas práticas e a formação de seus profissionais.

Por fim, sem que se esgote a lista, um terceiro fator: a revitalização, por parte da

academia, das discussões acerca dos saberes docentes. Segundo Ghedin e Pimenta

(2008), a questão já fora objeto de preocupação de estudiosos em momentos anteriores

da nossa história, havendo, na referida década e, principalmente, a partir dos anos 1990,

um ressurgimento do interesse pelo tema, em grande parte motivado por estudos

oriundos da América do Norte (Shuman, Tardif e Lessard) e da Europa (Nóvoa,

Sacristán, Perrenoud), voltados para a discussão e o estabelecimento dos saberes

docentes.

Impulsionados por esses e outros fatores, os movimentos direcionados para uma

política de formação de professores buscavam a construção de processos de formação

inicial e contínua que lograssem colocar em prática os conhecimentos relacionados ao

papel dos saberes diversos de que se compõe a docência. Nesse caso, havia um destaque

para a valorização da prática, não só como elemento a figurar mais vigorosamente nos

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

173ISSN 2177-336X

currículos dos cursos de formação de professores, como também na condição de

conjunto de saberes construídos pelos docentes em sua atuação profissional, aqueles a

que Tardif (2007) chama de saberes experienciais.

Esse cenário procurava recolocar o docente em uma espécie de protagonismo

consciente de suas práticas, como uma resposta ao que Geraldi, em obra publicada em

1991 apresentou, ao tratar da evolução histórica da identidade dos professores no

mundo ocidental.

Para o referido autor, há três identidades que os professores assumem desde os

séculos III e IV até a contemporaneidade. A primeira os caracteriza como produtores de

conhecimentos. A segunda, resultado direto da influência do mercantilismo crescente,

situa-os como transmissores de conhecimentos. A terceira, fruto do “desenvolvimento

tecnologizado”, reduz os professores à condição de profissionais que escolhem

materiais e supervisionam o cumprimento de tarefas. Para descrever esta última

identidade, Geraldi afirma que “Uma boa metáfora é compará-lo [o professor] a um

capataz de fábrica” (GERALDI, 1997, p. 94).

Já Pereira (2006), tomando como escopo a evolução da identidade docente no

cenário do Brasil a partir dos anos 1970, entende que a formação de professores parte,

naquela década, de um “treinamento do técnico em educação”, atravessa a década

seguinte com a perspectiva da formação do educador, com o privilégio da dimensão

política e do compromisso com a educação pública, até chegar aos anos 1990, nos quais

ganham destaque as concepções de professor pesquisador e de professor reflexivo, com

a valorização dos saberes docentes.

Seja qual for o entendimento adotado sobre o que comentam Geraldi e Pereira, o

fato é que todo esse conjunto de novas discussões impulsionou fortemente a produção

acadêmica e deu origem a diversas ações de aproximação das universidades em relação

às escolas e aos docentes da educação básica. Quase sempre abrigadas sob propostas de

formação continuada, a maioria dessas ações buscava, por um lado, incorporar a escola

e seus professores à produção acadêmica e, de outro, alimentar as práticas pedagógicas

da educação básica com conhecimentos científicos de ponta.

Essa aproximação representou um importante avanço, notadamente por parte da

academia, no sentido de se superar o vazio de interlocução historicamente construído no

Brasil entre as diversas instâncias educacionais. Não obstante esse avanço, já ao longo

dos anos 1990 surgiam sinais de que o ritmo e o alcance das conquistas esbarravam em

alguns aspectos de diferentes ordens, que discutiremos mais adiante.

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

174ISSN 2177-336X

Concomitantemente, o discurso predominante nas políticas públicas, com

destaque para as conduzidas pelo governo federal, passou a se configurar como um

misto de traços de uma recontextualização da produção acadêmica acumulada e de uma

clara retomada de perspectivas instrumentalizadoras para a formação de professores.

Como indicadores claros da tendência neotecnicista detectável nas políticas

públicas, ressaltam-se duas afirmações de Barreto (2009). A primeira diz respeito à

análise geral que a autora propõe acerca do Parecer CNE/CP 009/2001, que fornece

base para as “Diretrizes Nacionais para a formação de professores da educação básica,

em nível superior, curso de licenciatura, de graduação plena”. Sustenta Barreto que:

Vale lembrar que as Diretrizes promovem mudanças substanciais na

formação de professores, para além da organização curricular. A principal

delas diz respeito à criação de Institutos Superiores de Educação, instituições

inteiramente dedicadas ao ensino, no deslocamento da formação do campo da

educação para uma espécie de campo exclusivo da prática. É uma perspectiva

mimética, materializada no princípio da ‘simetria invertida’ (p.30), como um

jogo de espelhos que torna possível o elogio da pesquisa como ‘elemento

essencial na formação profissional do professor’ (p.34), no mesmo discurso

que reduz a pesquisa ao desenvolvimento das ‘práticas investigativas’

diagnosticadas como uma das faltas a serem preenchidas com competência(s)

(BARRETO, 2009, p.104).

Logo a seguir, a autora sustenta que o texto das Diretrizes aproxima e articula

elementos de ordens distintas, configurando-se a partir de marcas:

(1) do discurso dos organismos internacionais acerca da educação,

notadamente no que tange aos países periféricos; (2) da apropriação desse

discurso produzida pelo MEC e materializada nas políticas educacionais, em

especial nas referidas à formação de professores; (3) das posições assumidas

por organizações científicas e sindicais, em termos dessa mesma formação.

(BARRETO, 2009, p.104)

A segunda afirmativa de Barreto (2009) que se traz à baila faz menção

especificamente aos subitens do Parecer que remetem às competências esperadas dos

professores. Para a autora, enquanto o discurso do Parecer como um todo “é um

discurso híbrido, marcado por contradições” (p.105), a proposição de competências e a

sua consequente justificativa têm uma direção clara:

De fato, as competências constituem o centro da reforma proposta, ainda que

em um discurso marcado pela circularidade e desprovido de abordagem

conceitual substantiva. É a retomada, envolvendo uma cadeia de

ressignificações, da formação baseada em competências, hegemônica nos

Estados Unidos da América do Norte, nos anos 1970. (BARRETO, 2009,

p.195)

O hibridismo pode ser aceito, por um lado, como resultante de avanços efetivos

da produção acadêmica e da atuação de movimentos sociais favoráveis a políticas de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

175ISSN 2177-336X

valorização dos professores e, por outro lado, como estratégia de negociação que

consiste em operar algumas concessões discursivas aos críticos em potencial, a fim de

cooptar bandeiras que eventualmente pudessem se levantar contra as ações propostas

pelos órgãos de governo.

Oliveira (2007), por exemplo, identifica no texto da Lei de Diretrizes e Bases da

Educação Nacional (LDBEN 9394/96), marcas discursivas reveladoras. Para a autora,

quando se trata de leituras do texto da LDBEN 9394/96, é possível “encontrar desde

interpretações que o consideram polissêmico, resultado de muitas vozes, até as que o

tomam como uma costura de partes de diferentes corpos, recuperando a noção

organicista, ou como um mosaico” (OLIVEIRA, 2007, p.99).

Por outro lado, durante esse mesmo período, se é fato que os discursos apontam

para essa valorização da docência, o mesmo não se pode afirmar sobre as ações,

desenvolvidas quase exclusivamente no sentido da regulamentação da formação inicial

e da oferta aos professores de programas de qualificação. Como aponta Pimenta (2007),

“[...] a valorização profissional, incluindo salários e condições de trabalho, foi

totalmente abolida dos discursos, das propostas e das políticas do governo subsequentei,

que passou a normatizar exaustivamente a formação inicial de professores e a financiar

amplos programas de formação continuada” (PIMENTA, 2007, p.34).

As análises produzidas no âmbito acadêmico permitiram detectar tais limitações,

embora elas estejam apagadas dos documentos oficiais, como se os professores

detivessem plenas condições de realizar todos os movimentos de aperfeiçoamento

profissional que deles se tem esperado. Esse apagamento vai mais além, na medida em

que atinge também a existência de uma política de desvalorização, material e simbólica,

dos professores e do seu exercício profissional, que se sustenta e mesmo avança na

história recente, a esbarrar sempre no mesmo obstáculo, como ressalta Nunes (2007):

A lei, o decreto ou qualquer imposição externa não mudam a escola, o

professor ou o aluno, o que muda é uma atuação simultânea em vários níveis

que assegure remuneração digna aos docentes, estrutura de apoio ao seu

trabalho, recursos para melhorar as condições de trabalho e a qualidade

cultural dos professores, uma gestão cotidiana respeitosa, dinâmica e

consequente dentro das escolas formadoras (NUNES, 2007, p.130).

O cenário, portanto, que tem se apresentado é este:

(...) salários e condições de trabalho pouco atraentes; exigências crescentes

de capacitação e aperfeiçoamento, inclusive para tornar-se um operador de

interações e práticas multimodais; cursos de formação delimitados e dirigidos

por documentos regulatórios; práticas profissionais constrangidas por

orientações, diretrizes, índices e exames oficiais. Trata-se de uma política de

controle e centralização que se manteve na transição dos oito anos de

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

176ISSN 2177-336X

Fernando Henrique Cardoso para os também oito anos de Luiz Inácio Lula da

Silva e cresceu, de forma constante, na segunda metade deste período

(CASTRO, 2012, p.4).

Independentemente de categorizações, trata-se de um panorama que afeta

diretamente todo o cenário da formação de professores, na medida em que representa

potencialmente uma grande ameaça a todo o esforço dos anos 1980 e 1990 rumo a uma

retomada do protagonismo do professor na educação básica.

II Saberes docentes e ações de formação: uma primeira leitura crítica

A academia, no exercício do seu papel crítico e de pesquisa, vem procurando

acompanhar esse percurso cuidadosamente. Assim, a partir da primeira metade dos anos

2000, diversos estudos procuraram realizar balanços dos movimentos em prol de uma

nova formação de professores.

Em obra publicada em 1991, aqui já citada, Geraldi apresenta um conjunto de

conclusões acerca da experiência de se tentar estabelecer pontes entre a teoria e a

prática, por meio da ação conjunta de profissionais acadêmicos e docentes da educação

básica. A principal conclusão a que o autor chega, baseado nas constatações de que “não

há ponte entre teoria e prática” e de que a “práxis exige construção permanente”, é a de

que é “preciso eleger o movimento como ponto de partida e como ponto de chegada,

que é partida” (GERALDI, 1997, p.xviii).

Perrenoud, por seu turno, destaca a perspectiva predominante nas ações de

formação continuada, em seus diferentes matizes, apontando que a mesma “assumiu

características de um ensino quase interativo, o qual pretendia transmitir novos saberes

a professores que não os tinham recebido no período da formação inicial”

(PERRENOUD, 2002, p.21).

Assim como no Brasil, em que recebeu as denominações de reciclagem e

capacitação antes de se fixar a expressão formação continuada, na Europa, segundo

Perrenoud, essa formação recebeu as denominações de aggiornamento, em italiano, e

recyclage, em francês, e visava sempre a “atenuar a defasagem entre o que os

professores aprenderam durante sua formação inicial e o que foi acrescentado a isso a

partir da evolução dos saberes acadêmicos e dos programas de pesquisa didática”

(PERRENOUD, 2002, p.21).

XVIII ENDIPEDidática e Prática de Ensino no contexto político contemporâneo: cenas da Educação Brasileira

177ISSN 2177-336X

Ainda no início da década de 2000, a revista Educação & Sociedade (ano XXII,

nº 74, Abril/2001) publicou um dossiê sobre o tema Saberes Docentes, promovendo

discussões que traçam um desenho do estado da arte das pesquisas sobre o tema e de

sua relação com conhecimento escolar, currículo, cultura e formação de professores,

dentre outros aspectos. A leitura dos artigos que integram o dossiê deixa evidente não só

a existência de um acúmulo de reflexões sobre o tema central, como também a

preocupação dos diversos autores-pesquisadores com questões teóricas e práticas que já

se colocavam como desafios à continuação de ações de valorização dos saberes

docentes.

O artigo de Lelis, que propõe a discussão sobre possíveis mudanças nos

“idiomas pedagógicos” (denominação da autora) empregados na produção intelectual

dos vinte anos anteriores direcionada para a formação de professores, apresenta, ao seu

final, uma série de questões desafiadoras:

Que cuidados precisamos tomar para não resvalarmos para um praticismo em

migalhas, na relativização quanto ao lugar ocupado pela teoria? Sob que

critérios operaremos com a prática profissional, de modo a torná-la um

espaço de construção de saberes rigorosos sem serem rígidos? Como o saber

do mundo da experiência sensível pode ser transposto para uma razão que se

quer dialógica e processual? (LELIS, 2001, p.54)

Lüdke, por sua vez, em estudo que trata das relações entre saber docente e

pesquisa docente: “Focaliza especialmente a ideia do professor-pesquisador e o tipo de

pesquisa “próprio” do professor, assim como os problemas levantados pela sua

comparação com a pesquisa acadêmica em educação” (LÜDKE, 2001, p.78).

Após relato de pesquisa realizada em escolas de educação básica, a autora

reconhece que: (1) “convivem nas escolas estudadas vários tipos e até várias concepções

de pesquisa”; (2) há “falta de uma política governamental de valorização do

magistério”; (3) “há condições para a realização de pesquisas, dentro dos

estabelecimentos escolares pesquisados”; e (4) existe uma “falta de clareza sobre que

pesquisa poderia ser considerada indicada para responder às necessidades sentidas pelos

professores e assim contribuir para o crescimento do seu saber” (LÜDKE, 2001, p.92).

Outro exemplo de dossiê sobre o tema geral da formação dos professores à luz

das tendências surgidas nos anos 1980/1980 se encontra em coletânea de textos

publicada por Ghedin e Pimenta em 2002, na qual diversos pesquisadores discutem o

conceito de professor reflexivo, um dos que se destacaram no cenário das propostas de

valorização da profissão docente.

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Na reflexão proposta por Sacristán, por exemplo, pode-se identificar um dos

aspectos frequentemente destacados no que se refere à dificuldade de associar a ação e a

reflexão no trabalho docente: as condições de trabalho dos professores. Essas condições

recebem de Sacristán o seguinte comentário: “(...) o professor que trabalha não é o que

reflete, o professor que trabalha não pode refletir sobre sua própria prática, porque não

tem tempo, não tem recursos, até porque, para sua saúde mental, é melhor que não

reflita muito” (Sacristán, 2002, p.82).

Já para Charlot, a relação entre professores e pesquisadores muitas vezes se faz

marcar pela percepção de que estes avaliam aqueles, como se houvesse uma espécie de

hierarquia segundo a qual as universidades e seus saberes estivessem acima das escolas

e de seus profissionais. Ainda segundo o autor, “o professor acha que o pesquisador está

dentro da escola para tomar, para receber sem dar – o que muitas vezes é o que

acontece” (CHARLOT, 2002, p.92).

Para encerrar este apanhado, destaque-se o artigo de Libâneo, em que o autor

identifica dois “tipos básicos de reflexividade” (LIBÂNEO, 2002, p.62): a de caráter

crítico, a ser buscada na formação de professores, e a de cunho neoliberal, que se apoia

em um “paradigma racional-tecnológico”, e opera em uma perspectiva “linear,

dicotômica e paradigmática” (IDEM, p.63).

Em uma primeira tentativa de realçar pontos de convergência identificados no estudo da

literatura relativa aos saberes docentes, em artigo publicado em 2010, Castro apresenta cinco

itens:

1.A formação de professores envolve saberes de naturezas diversas e obtidos

por meio de processos variados.

2. Parte desses saberes se constrói por meio da experiência fora das agências

de formação, parte vem dessas agências e parte vem da prática profissional,

sendo possível subcategorizá-los de muitas formas e com inúmeros critérios.

3.A hierarquização e, mais do que isso, a articulação desses grupos de

saberes em termos de sua importância para a formação dos professores

constitui um desafio que ainda estamos longe de ter vencido.

4.A necessária articulação entre saberes e, sobretudo, entre teoria e pratica

ocorre de forma fluida, em uma dinâmica razoavelmente imprevisível e,

portanto, incontrolável, e não de maneira linear e racional.

5.Ainda que lançando mão de diferentes denominações, a maioria dos

pesquisadores destaca o papel primordial que saberes identificáveis como

habitus, tal e qual definido por Bourdieu (1972, p.178-179, apud Perrenoud,

2002, p.147), desempenham na formação e, particularmente, na ação dos

professores. (CASTRO (2010, p.41-42)

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179ISSN 2177-336X

Em um movimento de atualização dessas sínteses, pelo menos duas novas

percepções merecem ser acrescentadas à lista anterior.

6. A relação entre os saberes envolve necessariamente a relação entre os

respectivos poderes e valores, simbólicos e materiais, das instâncias e dos sujeitos em

questão, o que interpela as articulações entre teorias e práticas, especialmente nas ações

desenvolvidas entre universidades/pesquisadores e escolas de educação

básica/professores.

7. As condições de trabalho dos sujeitos afetam diretamente suas possibilidades

reais de participar de ações de formação e de transformação, não se podendo ignorar –

quer no planejamento, quer no desenvolvimento, quer na avaliação dos projetos – que

há uma disparidade entre as condições disponíveis aos diferentes sujeitos, com nítida

inferioridade das condições dos professores da educação básica.

III Considerações finais

Como agir diante do que parece constituir um retrocesso em relação às

concepções de formação de professores dirigidas para promover o desenvolvimento de

uma atitude crítico-reflexiva por parte dos docentes, associada a uma extrema

sectarização da escola pública e ao esvaziamento dos principais projetos sociais ligados

ao seu fortalecimento?

Para Nóvoa (2008), há três dilemas que se apresentam, para os quais o autor

aponta como saída o desenvolvimento de saberes docentes (grifos acrescidos):

O dilema da autonomia: redefinir o sentido social do trabalho docente no

novo espaço público da educação ou da importância de saber relacionar e

de saber relacionar-se (NÓVOA, 2008, p.228).

O dilema da autonomia: repensar o trabalho docente dentro de uma lógica de

projeto e de colegialidade ou da importância de saber organizar e saber

organizar-se (NÓVOA, 2008, p.230)

O dilema do conhecimento: reconstruir o conhecimento profissional a partir

de uma reflexão prática e deliberativa ou da importância de saber analisar e

saber analisar-se (NÓVOA, 2008, p.231)

Pimenta (2008), por sua vez, em estudo no qual avalia a questão do professor

reflexivo, defende alguns deslocamentos: (a) da perspectiva do professor reflexivo para

a do intelectual crítico reflexivo; (b) da epistemologia da prática à práxis; (c) do

professor-pesquisador para a integração da pesquisa na escola às atividades regulares

dos professores; (d) dos programas de formação inicial e continuada descolados da

escola ao desenvolvimento profissional.

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180ISSN 2177-336X

Já Lessard e Tardif (2008) ressaltam que há dois polos distintos de onde se

originam as tendências das atuais políticas educativas: um que “se inspira numa corrente

neoliberal” e outro, que “pode ser qualificado de humanista/cidadão” (LESSARD e

TARDIF, 2008, p.261).

Enquanto o segundo polo mantém perspectivas semelhantes às defendidas nas

ações e teorias que visam à valorização do professor na construção de seus sabres e de

suas práticas, o primeiro tem como meta a “eficiência”, em uma linha que busca a

“gestão máxima do potencial humano, atribuindo assim aos serviços educativos um

caráter instrumental” (IDEM, p.261).

Em suma, os autores aqui mencionados, bem como diversos outros que não

foram citados, apontam para uma realidade inegável: a profissão de professor vive

desafios importantes em seu processo de afirmação e reposicionamento social. A

universidade precisa compreender sua importância na construção desse processo, para

que possa cumprir a contento seu papel não só de produtora de conhecimentos, mas

também de formadora de sujeitos.

Há, portanto, uma série de “precariedades” conceituais e estruturais no contexto

em que se inicia esta investigação que apontam para uma universidade desafiada a

cumprir sua missão de formar professores a partir de novas bases e perspectivas. Esses

novos caminhos e propostas terão obrigatoriamente de realinhar elementos do percurso

de formação e, sobretudo, reposicionar saberes e práticas.

Nesse contexto, qualquer esforço na direção de (re)valorizar o papel do

professor como sujeito de suas práticas significa necessariamente enfrentar a tendência

neoliberal, neotecnicista, economicista, mercantilista, ou que outro nome se prefira dar a

ela, que predomina nas políticas oficiais de formação de professores.

Sem prejuízo do valor que efetivamente possa ter o investimento em outros

campos de atuação, neste estudo, optamos por investir na formação inicial dos

professores. Tal escolha encontra sustentação basicamente em três motivos:

(1) Ao passo que a chamada formação continuada se apresenta como um

território em que as universidades podem decidir se e como querem atuar, a formação

inicial é objeto específico das ações estatutariamente previstas para as IES;

(2) Com base no pressuposto de que o habitus constitui elemento central a ser

trabalhado na formação de docentes, a etapa da formação inicial reúne condições mais

favoráveis para tentativas de intervenção, principalmente porque, em sua maioria, os

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estudantes são mais jovens e ainda não estão “irremediavelmente” comprometidos com

práticas profissionais.

(3) A experiência de atuação das universidades públicas em programas de

formação continuada - além de representar nos últimos tempos um perigoso desvio de

seu papel, na medida em as IES estão sendo recrutadas cada vez menos por conta do seu

acúmulo teórico-prático, e sim como força de trabalho que irá desenvolver programas

concebidos e avaliados pelas instâncias técnicas governamentais – mostra que seus

limites dificilmente conseguem ultrapassar as barreiras aqui mencionadas.

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