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11 – A Geração da Orpheu Há apenas duas coisas interessantes em Portugal - a paisagem e o Orpheu. (Álvaro de Campos) 11.1 - Os primeiros anos do século XX foram marcados pelo entrechoque de correntes literárias que vinham agitando os espíritos desde há algum tempo: Decadentismo, Simbolismo, Impressionismo, etc. Eram, em suma, denominações de uma mesma tendência geral: o domínio da Metafísica e do Ministério no terreno em que as ciências se julgavam exclusivas e todo-poderosas. O ideal republicano, engrossado por sucessivas manifestações de instabilidade, foi-se concretizando em 1910, com a proclamação da República, depois dos sangrentos acontecimentos de 1908, quando o rei D. Carlos perdeu a vida às mãos de um homem do povo, alucinadamente antimonárquico. Entretanto, Lisboa centralizou a captação das idéias modernas, numa efervescência intelectual que procurava assimilar os movimentos de vanguarda provenientes do contexto mais amplo do Modernismo europeu: o Futurismo (Marinetti), Expressionismo, Cubismo (Pablo Picasso), Dadaísmo (Tristan Tzara) ou Surrealismo (André Breton, Artaud, Aragon).

A Geração Da Orpheu

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11 – A Geração da Orpheu

Há apenas duas coisas interessantes em Portugal - a paisagem e o Orpheu.

(Álvaro de Campos)

11.1 -

Os primeiros anos do século XX foram marcados pelo entrechoque de correntes

literárias que vinham agitando os espíritos desde há algum tempo: Decadentismo,

Simbolismo, Impressionismo, etc. Eram, em suma, denominações de uma mesma

tendência geral: o domínio da Metafísica e do Ministério no terreno em que as ciências

se julgavam exclusivas e todo-poderosas.

O ideal republicano, engrossado por sucessivas manifestações de instabilidade, foi-se

concretizando em 1910, com a proclamação da República, depois dos sangrentos

acontecimentos de 1908, quando o rei D. Carlos perdeu a vida às mãos de um homem

do povo, alucinadamente antimonárquico. Entretanto, Lisboa centralizou a captação das

idéias modernas, numa efervescência intelectual que procurava assimilar os movimentos

de vanguarda provenientes do contexto mais amplo do Modernismo europeu: o

Futurismo (Marinetti), Expressionismo, Cubismo (Pablo Picasso), Dadaísmo (Tristan

Tzara) ou Surrealismo (André Breton, Artaud, Aragon).

Quando a guerra de 1914-18 começou, reuniram-se os factores de um movimento

estético pós-simbolista em Lisboa. Aí se conheceram, entre outros, Fernando Pessoa,

cuja adolescência se formara na África do Sul, dentro da cultura inglesa; Mário de Sá

Carneiro, que entre 1913-16 passou grande parte do tempo em Paris; Almada Negreiros

e Santa Rita Pintor, que traziam de Paris as novidades literárias e sobretudo plásticas do

futurismo e correntes afins. A estas personalidades do grupo atribuiu a opinião pública

sinais de degenerescência, mas hoje é fácil reconhecer que as suas atitudes

correspondiam a um sentimento geral, e não apenas português, de crise latente.

Particularidades de formação e temperamento, relacionáveis com a instabilidade social,

alhearam os artistas, tanto da ideologia republicana como das reacções críticas que ela

despertara.

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É então neste panorama instável tanto a nível cultural como político que surge a

Geração da Orpheu, que foi o grupo responsável pela introdução do Modernismo nas

artes e letras portuguesas. O nome advém da revista literária Orpheu, publicada pelo

grupo em Lisboa no ano de 1915.

Seguindo, como dissemos, as vanguardas europeias do início do século XX, muito

particularmente o Futurismo (exaltação da velocidade, da eletricidade, do "homem

multiplicado pelo motor"; antipassadismo, antitradição, irreverência), os colaboradores

da revista Orpheu propuseram-se, de acordo com uma citação

de Maiakovsky que Almada Negreiros terá usado mais tarde para caracterizar o Grupo,

"dar uma bofetada no gosto público" (situação que ele próprio criou ao escrever o

Manifesto anti-Dantas, que atacava aquele que era um dos maiores nomes da literatura

portuguesa daquele momento, Júlio Dantas, autor do romance A severa). Apesar disto,

mantiveram sempre a influência de movimentos anteriores, tal como o Simbolismo.

Poetas como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, e pintores

como Amadeo de Souza-Cardoso e Santa Rita Pintor reuniram-se em torno dessa

revista de arte e literatura cuja principal função era agitar as águas, subverter,

escandalizar o burguês e pôr todas as convenções sociais em causa: o próprio nome

"Orpheu" não fôra escolhido por obra do acaso - Orpheu era o mítico músico grego que,

para salvar a sua mulher Eurídice do Hades, teria de a trazer de volta ao mundo dos

vivos sem nunca olhar para trás.

E era essa metáfora que importava aos homens da Orpheu, esse não olhar para trás, esse

esquecer, esse olvidar do passado para concentrar as atenções e as forças no caminho

para diante, no futuro, na "edificação do Portugal do séc. XX" (Almada Negreiros).

Segundo Luís de Montalvor, outro dos colaboradores, Orfeu «é um exílio de

temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento» e a pretensão

dos seus fundadores «é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações

em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático tenham em Orfeu o seu

ideal esotérico e bem nosso de nos sentirmos e conhecermos».

Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro foram os mais famosos participantes desta

primeira geração do Modernismo português, cuja atuação, entre 1915 e 1927, coincidiu

com a vigência da chamada República Jovem, a Primeira República portuguesa.

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A revista  Orpheu  teve dois números. O primeiro foi um projeto luso-brasileiro, com a

direção de Luis Montalvor e do barasilero Ronald de Carvalho; o segundo número, mais

expressivo, teve a direção de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

Depois de extinta a Orpheu, ao fim de apenas dois números, surgiram outras revistas

que aglutinaram as novas tendências: Exílio e Centauro (1916), Portugal

Futurista (1917), Contemporânea (1922/23) e Athena (1924/25). Todas elas tiveram,

também, duração efémera.

11.2 - Características gerais

Hermetismo. Poesia "difícil"; rupturas sintáticas; ruptura do encadeamento lógico;

poesia elíptica e alusiva, sem limitações normativas; ritmo psicológico, criado a cada

momento, como descargas de vivências profundas, delírios emocionais; metáforas

insólitas, aproximações imprevistas.

Integração poética da civilização material e do quotidiano. "Eia! eia! eia! / Eia

electricidade, nervos doentes da Matéria!", "O binômio de Newton é tão belo como a

Vênus de Milo. O que há é pouca gente para dar por isso." (Álvaro de Campos).

Verso livre. A unidade de medida do ritmo deixa de ser a sílaba para basear-se na

combinação das entonações e das pausas. Ruptura com a métrica tradicional: versos de

duas a doze sílabas, com acentos regularmente distribuídos. O versolibrismo tem como

precursores Rimbaud e Walt Whitmann.

Abolição da distinção entre temas poéticos, antipoéticos e

apoéticos. Antiacademicismo, antitradicionalismo. Dessacralização da obra de arte,

com predomínio da concepção lúdica sobre a concepção mágica. Presença do humor,

através do poema-piada e do poema-paródia.

Na prosa, a ação e o enredo perdem a importância, em favor das reações e estados

mentais das personagens, construídos por acumulação, em rápidos instantes

significativos, ou através da apresentação da própria consciência em operação. O

romance “Nome de guerra”, de Almada Negreiros é disto um exemplo.

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11.3 - Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa foi um dos mais importantes escritores e poetas do

modernismo em Portugal. Nasceu em 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa e

morreu, na mesma cidade, em 30 de novembro de 1935.

Fernando Pessoa foi morar, ainda na infância, na cidade de Durban (África do Sul).

Neste país teve contato com a língua e literatura inglesa, que foi, aliás, a primeira língua

na qual se expressou de forma literária.

Adulto, Fernando Pessoa trabalhou como tradutor técnico, publicando os seus

primeiro poemas em inglês. 

Em 1905, regressou sozinho para Lisboa e, no ano seguinte, matriculou-se no Curso

Superior de Letras. Porém, abandou o curso um ano depois. 

Pessoa passou a ter contato mais efetivo com a literatura portuguesa, principalmente

com o Padre António Vieira e com Cesário Verde. Foi também influenciado pelos

estudos filosóficos de Nietzsche e Schopenhauer. Recebeu também influências

do simbolismo francês.

Em 1912, começou a sua atividade como ensaísta e crítico literário, na revista “Águia”. 

A saúde do poeta português começou a apresentar complicações em 1935. Neste ano foi

hospitalizado com cólica hepática, provavelmente causada pelo consumo excessivo de

bebidas alcoólicas. Sua morte prematura, aos 47 anos, provavelmente aconteceu em

função destes problemas.

O ortónimo e os heterónimos de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa usou nas suas obras diversas autorias. Usou seu próprio nome

(ortónimo) para assinar várias obras e heterónimos (ou seja, outras “identidades”) para

assinar outras. Os heterónimos de Fernando Pessoa tinham personalidade própria e

características literárias diferenciadas. De entre os vários que criou, os mais importantes

são:

Page 5: A Geração Da Orpheu

Álvaro de Campos

Era um engenheiro português de educação inglesa. Influenciado pelo simbolismo

e futurismo, apresentava um certo niilismo nas suas obras. 

Ricardo Reis

Era um médico que escrevia as suas obras com simetria e harmonia. O bucolismo estava

presente na sua poesia. Era um defensor da monarquia e demonstrava grande interesse

pela cultura latina.

Alberto Caeiro

Com uma formação educacional simples (apenas o ensino primário), este heterónimo

fazia poesias de forma aparentemente simples, direta e concreta. Apesar disso, era o

“mestre” dos outros heterónimos e do próprio Fernando Pessoa.

Bernardo Soares

Apresentado no Livro do desassossego, do qual é o autor, como “ajudante de guarda-

livros na cidade de Lisboa”. Considerado por Fernando Pessoa como um semi-

heterónimo, pelo facto de ter um estilo de escrever igual ao seu (situação que não ocorre

com os restantes heterónimos), apesar de ser uma outra pessoa.

A obra de Fernando Pessoa é vasta e multiforme. A maior parte dela (principalmente

dos heterónimos) apenas foi conhecida depois da sua morte. Pessoa deixou os seus

manuscritos de forma relativamente ordenada na famosa “arca” que ainda continua a ser

Page 6: A Geração Da Orpheu

investigada, pelo que é provável que venham ainda a surgir, nos próximos anos, obras

inéditas que ainda ninguém conhece.

Seguem algumas das suas obras mais importantes:

Algumas obras de Fernando Pessoa:

· Ficções do interlúdio

· O Banqueiro Anarquista

· O Marinheiro (teatro)

· Quadras ao gosto popular

Alguns poemas de Fernando Pessoa:

· Autopsicografia

· Isto

· Liberdade

· Mar português

· O Menino da Sua Mãe

· Presságio

· Solenemente

Alguma prosa de Fernando Pessoa:

· Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação

· Páginas de Estética e de Teoria e de Crítica Literárias

Alguns poemas do heterónimo Alberto Caeiro:

· A Espantosa Realidade das Cousas

· Um Dia de Chuva

· Todos os Dias

· Quando Eu não tinha

· Vai Alta no Céu a lua da Primavera

· O Amor é uma Companhia

· Eu Nunca Guardei Rebanhos

· O Meu Olhar

Page 7: A Geração Da Orpheu

· Ao Entardecer

· Esta Tarde a Trovoada Caiu

· Há Metafísica Bastante em Não Pensar em Nada

· Pensar em Deus

· Da Minha Aldeia

· Num Meio-Dia de Fim de Primavera

· Sou um Guardador de Rebanhos

· Olá, Guardador de Rebanhos

· Não me Importo com as Rimas

· As Quatro Canções

Alguns poemas do heterónimo Álvaro de Campos:

· Acaso

· Ah, Um Soneto

· Aniversário

· Ao volante de um chevrolet pela estrada de Sintra

· Barrow-on-Furness

· Bicarbonato de Soda

· O Binómio de Newton

· A Casa Branca Nau Preta

· Clearly Non-Campos!

· Começo a conhecer-me. Não existo

· Conclusão a sucata !... Fiz o cálculo

· Demogorgon

· Depus a Máscara

· Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

· O Descalabro

· Dobrada à morda do Porto

· Dois Excertos de Odes

· Estou Cansado

· Lisbon Revisited - l923

· Lisbon Revisited - 1926

· Magnificat

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· Marinetti Académico

· Soneto já antigo

Obras do heterónimo Ricardo Reis

· Do Ritual do Grau de Mestre do átrio na Ordem Templária de Portugal

· Feliz Aquele

· Inglória

· Já Sobre a Fronte

· Lenta, Descansa

· Lídia

· Melhor Destino

· Mestre

· Meu Gesto

· Nada Fica

· Não a Ti, Cristo, odeio ou te não quero

· Cristo Não a Ti, Cristo, odeio ou menosprezo

· Não Canto

· Não Consentem

· Não queiras

· Não quero, Cloe, teu amor, que oprime

· Não quero recordar nem conhecer-me

· Não Só Vinho

· Não só quem nos odeia ou nos inveja

· Não sei de quem recordo meu passado

· Não Tenhas

· Nem da Erva

· Negue-me

· Ponho na Altiva

· Pois que nada que dure, ou que, durando

· Prazer

· Prefiro Rosas

· Quanta Tristeza

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· Quando, Lídia

· Quanto faças, supremamente faze

· Uma Após Uma

· Uns

· Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

· Vivem em nós inúmeros

· Vive sem Horas

· Vossa Formosa 

Um poema escrito no tempo da Orpheu:

Pauis que roçarem ânsias pela minha alma em ouro. . .

Dobre longínquo d’Outros Sinos. . . Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente. . . Corre um frio carnal por minha por minha alma. . .

Tão sempre a mesma, a Hora!. . . Balouçar de cimos de palma!. . .

Silêncio da parte inferior das folhas, outono delgado

D’um canto de vaga ave. . . Azul esquecidos em estagnado. . .

Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!. . .

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora?. . .

Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo. . .

Címbalos de imperfeição. . . Ó tão antiguidade

A hora expulsa de si-Tempo!. . . Onda de recuo que invade

O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer

E recordar tanto o eu presente que me sinto esquecer. . .

Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se. . .

O mistério sabe-me a eu ser outro. . . Luar sobre o não conter-se. . .

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A sentinela é hirta, a lança que finca no chão

É mais alta que ela. . . P’ra que é tudo isto. . . Dia chão. . .

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os aléns!

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!

Fanfarras de ópios de silêncios futuros!. . . Longes trens!. . .

Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!. . .

Este poema é um perfeito exemplo do casamento das duas tendências base da geração

da Orpheu: a influência do simbolismo aliada à influência das novas correntes estéticas

da Europa do início do século XX.

11.4 – Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)

Nasceu no seio de uma abastada família alto-burguesa, sendo filho e neto de militares.

Órfão de mãe com apenas dois anos (1892), ficou entregue ao cuidado dos avós.

Inicia-se na poesia com doze anos, sendo que aos quinze já traduzia Victor Hugo, e com

dezesseis, Goethe e Schiller.

Em 1911, com vinte e um anos, vai para Coimbra, onde se matricula na Faculdade de

Direito, mas não conclui sequer o primeiro ano. Em 1912 veio a conhecer aquele que

foi, sem dúvida, o seu melhor amigo – Fernando Pessoa.

Segue então para Paris a fim de prosseguir os estudos superiores, com o auxílio

financeiro do pai. Cedo, porém, deixou de frequentar as aulas na Sorbonne, dedicando-

se a uma vida boémia, deambulando pelos cafés e salas de espectáculo, chegando a

passar fome e debatendo-se com os seus desesperos.

Page 11: A Geração Da Orpheu

Na capital francesa viria a conhecer Guilherme de Santa-Rita (Santa-Rita Pintor).

Inadaptado socialmente e psicologicamente instável, foi neste ambiente que compôs

grande parte da sua obra poética e a correspondência com o seu confidente Pessoa; é,

pois, entre 1912 e 1916 (o ano da sua morte), que se inscreve a sua fugaz – e no entanto

assaz profícua – carreira literária.

Integrou o primeiro grupo modernista português, sendo responsável pela edição da

revista Orpheu. Também teve colaboração noutras publicações periódicas,

nomeadamente nas revistas Alma nova (1914-1930) e Contemporânea (1915-1926), e

pode-se encontrar colaboração da sua autoria, publicada postumamente, na Pirâmide

(1959-1960) e Sudoeste (1935).

Em Julho de 1915, ainda em Paris, escreve a Pessoa cartas de uma crescente angústia,

das quais ressalta não apenas a imagem lancinante de um homem perdido no « labirinto

de si próprio», mas também a evolução e maturidade do seu processo de escrita.

Uma vez que a vida que tinha não lhe agradava, e aquela que idealizava tardava em se

concretizar, Sá-Carneiro entrou numa cada vez maior angústia, que viria a conduzi-lo ao

seu suicídio prematuro, perpetrado no Hôtel de Nice, no bairro de Montmartre em Paris,

com o recurso a cinco frascos de arseniato de estricnina. Contava tão-só vinte e cinco

anos. E apesar de o grupo modernista português ter perdido um dos seus mais

significativos colaboradores, nem por isso o entusiasmo dos restantes membros

esmoreceu – no segundo número da revista Athena, Pessoa dedicou-lhe um belo texto,

apelidando-o de «génio não só da arte como da inovação dela», e dizendo dele,

retomando um aforismo das Báquides (IV, 7, 18), de Plauto, que «Morre jovem o que os

Deuses amam» (tradução literal de Quem di diligunt adulescens moritur).

Verdadeiro insatisfeito e inconformista (nunca se conseguiu entender com a maior parte

dos que o rodeavam, nem tão pouco ajustar-se à vida prática, devido às suas

dificuldades emocionais), mas também incompreendido (pelo modo com os

contemporâneos olhavam o seu jeito poético), profetizou acertadamente que no futuro

se faria jus à sua obra, no que não falhou.

Com efeito, reconhecido no seu tempo apenas por uma fina élite, à medida que a sua

obra e correspondência foi publicada, ao longo dos anos, tornou-se acessível ao grande

público, sendo atualmente considerado um dos maiores expoentes da literatura moderna

em língua portuguesa.

Page 12: A Geração Da Orpheu

As suas influências literárias são: Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, Charles

Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Fiódor Dostoievski, Cesário Verde e António

Nobre. Influenciou vários autores, entre eles Eugénio de Andrade.

A obra

Na fase inicial, Mário de Sá-Carneiro revela influências de várias correntes literárias,

como o decadentismo, o simbolismo, ou o saudosismo, então em franco declínio;

posteriormente, por influência de Pessoa, viria a aderir a correntes de vanguarda, como

o futurismo.

Nessas pôde exprimir com vontade a sua personalidade, sendo notórias a confusão dos

sentidos, o delírio, quase a raiar a alucinação; ao mesmo tempo, revela um certo

narcisismo e egolatria, ao procurar exprimir o seu inconsciente e a dispersão que sentia

do seu «eu» no mundo – revelando a mais profunda incapacidade de se assumir como

adulto consistente.

O narcisismo, motivado certamente pelas carências emocionais (era órfão de mãe desde

a mais terna puerícia), levou-o ao sentimento da solidão, do abandono e da frustração,

traduzível numa poesia onde surge o retrato de um inútil e inapto. A crise de

personalidade levá-lo-ia, mais tarde, a abraçar uma poesia onde se nota o frenesi de

experiências sensórias, pervertendo e subvertendo a ordem lógica das coisas,

demonstrando a sua incapacidade de viver aquilo que sonhava – sonhando por isso cada

vez mais com a aniquilação do eu, o que acabaria por o conduzir, em última análise, ao

seu suicídio.

Embora não se afaste da métrica tradicional (redondilhas, decassílabos, alexandrinos),

torna-se singular a sua escrita pelos seus ataques à gramática, e pelos jogos de palavras.

Se numa primeira fase se nota ainda esse estilo clássico, numa segunda, claramente

niilista, a sua poesia fica impregnada de uma humanidade autêntica, triste e trágica.

Por fim, as cartas que trocou com Pessoa, entre 1912 e o seu suicídio, são como que um

autêntico diário onde se nota paralelamente o crescimento das suas frustrações

interiores.

Page 13: A Geração Da Orpheu

Princípio (1912)

Conjunto de novelas.

A Confissão de Lúcio (1914)

Inaugurando um estilo até então em si desconhecido, o romance, Mário de Sá-Carneiro

publica, em 1914 , A Confissão de Lúcio. A temática desta obra gira em torno do

fantástico e é um óptimo espelho da época de vanguarda que foi o modernismo

português.

Dispersão (1914)

Esta obra é composta por doze poemas e a sua primeira edição foi revista quer pelo

autor quer pelo seu amigo Fernando Pessoa.

Céu em Fogo (1915)

Em 1915, volta a reunir novelas, mais precisamente oito, num volume a que dá o título

de Céu em Fogo. Estas novelas revelam igualmente as mesmas perturbações e

obsessões que já a sua poesia expressava.

Nem tudo aquilo que Sá-Carneiro produziu em vida viu ser publicado. Algumas das

suas obras póstumas são:

Indícios de Oiro (1937)

Publicada em 1937 pela revista Presença, é o seu conjunto de trabalhos mais

significativo.

Correspondência

A sua correspondência com outros membros do Orpheu foi também reunida em

volumes póstumos: Cartas a Fernando Pessoa (2 vols., 1958-1959), Cartas de Mário

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de Sá-Carneiro a Luís de Montalvor, Cândia Ramos, Alfredo Guisado e José

Pacheco (1977), Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando

Pessoa (1980).

Poemas

Quási

Um pouco mais de sol - eu era brasa, 

Um pouco mais de azul - eu era além. 

Para atingir, faltou-me um golpe d'asa... 

Se ao menos eu permanecesse àquem... 

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído 

Num baixo mar enganador de espuma; 

E o grande sonho despertado em bruma, 

O grande sonho - ó dôr! - quási vivido... 

Quási o amor, quási o triunfo e a chama, 

Quási o princípio e o fim - quási a expansão... 

Mas na minh'alma tudo se derrama... 

Entanto nada foi só ilusão! 

De tudo houve um começo... e tudo errou... 

- Ai a dôr de ser-quási, dor sem fim... - 

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, 

Asa que se elançou mas não voou... 

Momentos d'alma que desbaratei... 

Templos aonde nunca pus um altar... 

Rios que perdi sem os levar ao mar... 

Ansias que foram mas que não fixei... 

Page 15: A Geração Da Orpheu

Se me vagueio, encontro só indicios... 

Ogivas para o sol - vejo-as cerradas; 

E mãos de herói, sem fé, acobardadas, 

Puseram grades sôbre os precipícios... 

Num impeto difuso de quebranto, 

Tudo encetei e nada possuí... 

Hoje, de mim, só resta o desencanto 

Das coisas que beijei mas não vivi... 

. . . . . . . . . . . . . . . 

. . . . . . . . . . . . . . . 

Um pouco mais de sol - e fôra brasa, 

Um pouco mais de azul - e fôra além. 

Para atingir, faltou-me um golpe de aza... 

Se ao menos eu permanecesse àquem... 

Salomé

Insónia rôxa. A luz a virgular-se em mêdo, 

Luz morta de luar, mais Alma do que a lua... 

Ela dança, ela range. A carne, alcool de nua, 

Alastra-se pra mim num espasmo de segrêdo... 

Tudo é capricho ao seu redór, em sombras fátuas... 

O arôma endoideceu, upou-se em côr, quebrou... 

Tenho frio... Alabastro!... A minh'Alma parou... 

E o seu corpo resvala a projectar estátuas... 

Ela chama-me em Iris. Nimba-se a perder-me, 

Golfa-me os seios nus, ecôa-me em quebranto... 

Page 16: A Geração Da Orpheu

Timbres, elmos, punhais... A doida quer morrer-me: 

Mordoura-se a chorar--ha sexos no seu pranto... 

Ergo-me em som, oscilo, e parto, e vou arder-me 

Na bôca imperial que humanisou um Santo... 

Taciturno

Há Ouro marchetado em mim, a pedras raras, 

Ouro sinistro em sons de bronzes medievais - 

Joia profunda a minha Alma a luzes caras, 

Cibório triangular de ritos infernais. 

No meu mundo interior cerraram-se armaduras, 

Capacetes de ferro esmagaram Princesas. 

Toda uma estirpe rial de herois d'Outras bravuras 

Em mim se despojou dos seus brazões e presas. 

Heraldicas-luar sobre ímpetos de rubro, 

Humilhações a liz, desforços de brocado; 

Bazilicas de tédio, arnezes de crispado, 

Insignias de Ilusão, troféus de jaspe e Outubro... 

A ponte levadiça e baça de Eu-ter-sido 

Enferrujou - embalde a tentarão descer... 

Sobre fossos de Vago, ameias de inda-querer - 

Manhãs de armas ainda em arraiais de olvido... 

Percorro-me em salões sem janelas nem portas, 

Longas salas de trôno a espessas densidades, 

Onde os pânos de Arrás são esgarçadas saudades, 

E os divans, em redór, ansias lassas, absortas... 

Page 17: A Geração Da Orpheu

Ha rôxos fins de Imperio em meu renunciar - 

Caprichos de setim do meu desdem Astral... 

Ha exéquias de herois na minha dôr feudal - 

E os meus remorsos são terraços sobre o Mar...