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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A GINOCRÍTICA COMO EXERCÍCIO DE METACRÍTICA EM NOVAS CARTAS
PORTUGUESAS
Natália Salomé de Souza1
Vinícius Carvalho Pereira2
Resumo: Os estudos feministas vêm ganhando espaço dentro da produção de conhecimento
social e acadêmico. Contudo, é possível observar que, na academia, o cânone da crítica é
composto majoritariamente por críticos homens, logo a construção cultural e intelectual baseia-se
numa tradição falogocêntrica. Neste trabalho, propomos traçar um caminho diverso do da crítica
canônica e observar como as mulheres constroem um conhecimento que enseja uma nova
perspectiva sociocultural e literária. Nesse sentido, compreendemos a crítica literária feminina
segundo o conceito de ginocrítica (SHOWALTER, 1981), o qual prevê uma tradição feminina de
crítica que se afasta do falogocentrismo e redefine, por exemplo, o que é o feminino. Para tanto,
tomaremos por base os estudos do feminismo da diferença, seguindo o conceito de escrita
feminina, de Cixous (2007), e a metáfora dos lábios, de Irigaray (1985). Nesse exercício de
crítica feminina, leremos a obra Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta, Maria Velho
da Costa e Maria Isabel Barreno, como um texto ginocrítico da obra Cartas Portuguesas, de
Mariana Alcoforado. Ao atribuir a um texto literário a dimensão de crítica literária, traçamos o
caminho da ginocrítica, buscando uma nova base teórica e poética que não seja pautada numa
herança da crítica dominante. É a crítica como poesia, a poesia como crítica, ou a poesia da
crítica.
Palavras-Chave: ginocrítica, crítica literária feminista, Novas Cartas Portuguesas.
Os estudos feministas vêm ganhando espaço dentro da produção de conhecimento social
e acadêmico. Contudo, é possível observar que, na academia, o cânone da crítica é composto
majoritariamente por críticos homens, logo a construção cultural e intelectual baseia-se numa
tradição falogocêntrica. Por isso, a necessidade de traçar um caminho paralelo ao da crítica
canônica e observar como as mulheres constroem um conhecimento que enseja uma nova
perspectiva sociocultural e literária. Nesse sentido, Showalter (1981) propõe o conceito de
ginocrítica, o qual prevê uma tradição feminina de crítica que se afasta do falogocentrismo e
redefine, por exemplo, o que é o feminino. O termo ginocrítica agrupa os estudos literários sobre
as mulheres que propõem uma mudança nas bases teóricas da academia. A ginocrítica é,
1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso –
Cuiabá, Brasil
2 Professor Doutor do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso e do Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso – Cuiabá, Brasil
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portanto, fundamentada numa base feminina ao não se pautar na dominância do falogocentrismo,
de forma a criar essa nova tradição feminina nos estudos literários.
O que se propõe com a ginocrítica é exatamente, a partir da diferença sexual, se voltar
para a escrita feminina e produção literária de mulheres, a fim de traçar uma crítica que tenha por
objetivo estudar as produções literárias femininas, incorporando as diferentes facetas da
construção da mulher – cultural, social, econômica etc. Esses estudos ginocríticos se afastam da
crítica literária tradicional e dão vazão a uma nova possibilidade de crítica, em que a mulher e
sua produção sejam o seu foco. Para Macedo e Amaral (2005), a ginocrítica
força-nos a uma viragem conceptual, na medida em que, ao consideramos
a existência de uma tradição literária feminina separada da tradição
(masculina) existente, deixamos de contar com modelos masculinos
preestabelecidos para nos centrarmos sobre a questão essencial da
diferença (MACEDO; AMARAL, 2005, p.88).
Para Showalter (1981), enquanto a crítica científica lutava para manter-se afastada de
toda e qualquer subjetividade, a ginocrítica “reafirmava a autoridade da experiência”
(SHOWALTER, 1981, p. 181, tradução nossa). É dessa experiência do corpo e de todo o ser
mulher que falamos quando nos ligamos a uma tradição de escrita feminina.
O conceito de escrita feminina fornece uma forma de falar sobre a escrita
das mulheres que reafirma o valor do feminino e identifica o projeto
teórico da crítica feminista como uma análise da diferença.
(SHOWALTER, 1981, p.186, tradução nossa).
Dessa forma, quando Cixous (2007) postula uma escrita feminina que conclama as
mulheres para que escrevam com seus corpos, sem se pautar na definição ordenada pelo
falogocentrismo, ela dá vazão e espaço para que a matéria da ginocrítica se funde. Cixous
metaforicamente introduz a ideia de que a tinta da qual as mulheres se utilizam para escrever é o
leite materno, que se liga ao ápice do estado corpóreo de criação de uma mulher (CIXOUS,
2007).
Para Showalter (1981), a ginocrítica abarca quatro diferentes facetas do feminismo
(biológica, cultural, linguística e psicanalítica), sem deixar que uma se sobreponha a outra.
Quando a ginocrítica se refere a uma base biológica, está falando que “a escrita das mulheres
provém dos nossos corpos, que a nossa diferença sexual é também a nossa fonte” (BURKE,
1978, p.851, tradução nossa); ou seja, é muito mais um local onde procurar uma imanência do
que um destino pré-estabelecido, não deixando de fora outras performatividades que se
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identifiquem com o gênero feminino. Showalter ainda afirma que a “crítica feminista baseada
numa perspectiva biológica geralmente ressalta a importância do corpo como uma fonte
imagética” (SHOWALTER, 1981, p.188, tradução nossa). E é exatamente esta perspectiva da
escrita feminina que norteia o presente estudo, o qual toma o corpo feminino como imagem e
não como essência. Tanto na metáfora dos lábios de Irigaray (2005) quanto na ressignificação da
metáfora do útero a partir dos estudos feministas (PRICE, 1999), temos imagens que propõem o
corpo feminino como fonte de uma feminilidade. No entanto, não se desconsidera aí a carga
cultural, emocional, simbólica e econômica que se relaciona com essas imagens e com os corpos;
o que se propõe é a relação de positividade do corpo feminino.
O estudo das imagens biológicas na escrita feminina é útil e importante
na medida em que nós entendemos que fatores outros que não só da
anatomia estão envolvidos nelas. Ideias do corpo são fundamentais para
entender como mulheres conceituam sua situação na sociedade, mas não
pode existir expressão do corpo que não seja intermediada pelas
estruturas linguística, social e literária. A diferença na prática literária da
mulher, portanto, deve ser buscada (nas palavras de Miller) no ‘corpo de
sua escrita e não na escrita de seu corpo’. (SHOWALTER, 1981, p.189-
190, tradução nossa)
Recuperar nessas imagens do corpo feminino uma escrita do corpo ou um corpo da
escrita procede como ruptura no sistema falogocêntrico da escrita que relegava a mulher – por
não possuir o falo – a um lugar subalterno na sociedade. Uma das limitações do patriarcado é não
compreender que as mulheres possuem outros órgãos, fontes de poder, que podem ter o mesmo
peso simbólico, sem com isso excluir a importância do falo. Mas também sem deixar que o falo
seja borracha que apague a importância dos lábios/útero. É como se, ao propor novas metáforas
do corpo, inserindo o corpo feminino nessas metáforas, deixássemos de nos importar tanto com
se o que teremos é um pênis ou uma vagina, focando-nos no corpo da escrita e na sua
potencialidade de dominar e ultrapassar os binarismos a ponto de se desfazer deles.
Nessa perspectiva, lemos aqui a obra Novas Cartas Portuguesas como exercício
ginocrítico a respeito do clássico Cartas Portuguesas; ou seja, lemos a crítica literária feminista
que essa releitura enseja através de uma textualidade literária híbrida – que mescla em si
diferentes gêneros literários – escrita por mulheres. Ao atribuir a um texto a dimensão de crítica
literária, proponho o traçado do caminho da ginocrítica – buscamos uma nova base teórica e
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poética que não seja pautada numa herança da crítica dominante. É a crítica como poesia, a
poesia como crítica, ou a poesia da crítica.
Nesse exercício de ginocrítica, a obra Novas Cartas Portuguesas, de Maria Teresa Horta,
Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, lançada pela primeira vez no ano de 1972, em
Portugal, será nossa guia. A obra conta com 120 textos (cartas, poemas, ensaios, textos
narrativos, bilhetes etc.) que foram escritos pelas mãos das três autoras, mas sem que se saiba a
autoria de cada texto específico. O livro das três Marias tem como ponto de partida a obra Cartas
Portuguesas, cuja autoria é atribuída a Mariana Alcoforado – mais conhecida como Sóror
Mariana Alcoforado3 na história da Literatura Portuguesa – e tem como data de publicação o ano
de 1669.
Segundo a história, as cinco cartas que compõem a obra teriam sido enviadas ao oficial
francês Chamilly depois da estadia deste no convento de Beja, onde serviu em Portugal durante a
guerra da Restauração. Estando no mesmo convento onde Mariana Alcoforado vivia desde os
onze anos, os dois teriam desenvolvido um relacionamento que findou com a partida do oficial
para sua terra natal. Mariana, abandonada por seu grande amor, escreve as cartas que, segundo
Massaud Moisés (2006), são dignas de nota:
por sua altitude e invulgaridade, o fato de conterem as cartas a sincera,
franca e escaldante confissão duma mulher que se desnuda interiormente
para o amante cínico, ingrato e ausente, com fúria de fêmea abandonada,
sem qualquer rebuço ou pudor (MOISÉS, 2006, p.50).
Nota-se com a discussão do autor que o que se deveria enaltecer acerca da obra é uma
suposta atitude de mulher – ou “fêmea” – que, apesar do sofrimento infligido pelo amante,
mantém-se “altiva e invulgar” apesar de seu relacionamento erótico ser considerado imoral à
época. Mas essa elevação da freira-amante é o que torna possível a exploração do corpo de
Mariana pelo cavaleiro, uma vez que o “amor é a única circunstância na qual a mulher é
(ideologicamente) perdoada pela atividade sexual” (MILLETT, 2000, p.37, tradução nossa),
3 Nota-se que a crítica literária tradicional sempre se refere à Mariana Alcoforado como sóror. Entendemos que o
fato de se referir a ela a partir de seu título religioso caminha no sentido de elaborar uma função-autor
(FOUCAULT, 2001) em que se valoriza o amor daquela que deveria negar a carne e, ainda que tenha se rendido aos
prazeres do corpo, acaba se redimindo ao exercer sua função religiosa até o final da vida. Nesse sentido, escolhemos
não tratar Mariana por seu título eclesiástico, mas nomeá-la apenas com seu nome, pois a função-autor
(FOUCAULT, 2001) que pretendemos ressaltar nessa obra é a de mulher, num movimento em que se fortaleça essa
comunidade e não a individualidade da voz-autoral como mestre, indivíduo.
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fazendo com que a invasão do cavaleiro seja conveniente para os dois e ele não precise sofrer as
consequências dessa “profanação” do corpo entregue ao santificado “Filho”. A crítica de
Massaud Moisés é machista por valorizar e confirmar um estereótipo feminino de mulher
hormonal, passional e próximo do animalesco – “fúria de fêmea abandonada” (MOISÉS, 2006,
p.51) –, ao retirar da mulher a sua capacidade de raciocínio, julgamento e poética. A ginocrítica
caminha por outro caminho que não valoriza esse estereótipo e que coloca a mulher na posição
de agente de si, ou seja, exercendo suas faculdades mentais com plenitude evidenciando,
inclusive, a sua atuação consciente da situação cultural e econômica vigente.
As cartas de Mariana Alcoforado foram publicadas primeiro em França, depois na
Alemanha e daí para todo o mundo, despertando o interesse de grandes pensadores e poetas,
como Rainer Maria Rilke, Sthendal, Camilo Castelo Branco, Sptizer, Racine e Rousseau.
Maravilhados com obra de tamanha importância literária, tais escritores mantiveram discussões
sobre a autoria desses textos, em virtude de seu conteúdo: alguns acreditavam que uma
portuguesa não teria faculdade de expressar tão brilhantemente seus sentimentos de forma
literária; outros duvidavam de que uma mulher tivesse a capacidade de escrever um texto de
tanta qualidade e verdade acerca do universo sentimental. Massaud Moisés, que atribui a autoria
das cartas a Mariana Alcoforado, ressalta que “a epistológrafa mergulha cada vez mais num jogo
dilemático, paradoxal, como pede a típica psicologia feminina e a própria essência do Barroco”
(MOISÉS, 2006, p.90). Legitima-se, assim, a autoria de Mariana Alcoforado sobre as cartas,
mas, ao mesmo tempo, mantém-se um estereótipo do que se espera de uma mulher.
Objeto recorrente da crítica literária, a obra foi analisada não apenas em relação à autoria,
mas também em relação à materialidade de seu texto, como no estudo de Dal Farra (2007), que,
entre outras, demonstra as características da epistológrafa delineando-a enquanto personagem
ficcional da obra entre as imagens de “grave pecadora – como aquela que pode ser dita idólatra
ou herege” e de “profanadora, porque Mariana comete a falta dentro dos sagrados muros do
convento” (DAL FARRA, 2007, p.27). Ainda dentro destas imagens, Dal Farra (2007) celebra a
emancipação feminina promovida pelas cartas, pois Mariana quebra a clausura do silêncio para
exercer a sua voz na manifestação do interdito, a fim de expor claramente
as suas prerrogativas de mulher, que levanta contra a ordem instituída. E
ela se mostra ainda mais ousada porque o faz justo através de um
instrumento considerado culturalmente masculino: a escrita, de que ela,
como mulher, se apropria (DAL FARRA, 2007, p.28).
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É curioso notar a ambivalência da crítica literária diante dessa obra: quando advinda de
um homem (como Massaud Moisés, 2006), a discussão se dá em torno de uma representatividade
feminina condizente com o lugar que a mulher pode ocupar na sociedade – ainda que freira
falando de seu pecado amoroso.
Escrita por uma mulher, que alcança dizer com rara precisão os transes
íntimos (via de regra mantidos ocultos ou disfarçados pelo comum das
mulheres), as Cartas ganham maior relevo ainda como documento
“humano” e literário precisamente por não visarem à publicação nem a
ser encaradas como peça literária (MOISÉS, 2006, p.90);
Mas, quando lemos uma crítica produzida por uma mulher (neste trabalho representada
por Dal Farra), temos a visão da subversão da escrita e da imposição da voz, ainda que
levantadas as questões de representação feminina dentro da sociedade patriarcal.
Por meio da redação das suas cartas, a voz de Mariana se faz ouvir, bela,
audaciosa, reclamante, irreverente, debatendo-se contra a sociedade na
qual está inserida por nascimento; voz insurrecta que se rebela contra o
que lhe foi imposto e que, não podendo fugir ao estado de cativeiro em
que se encontra no claustro, reluta produzindo a sua libertação por meio
do engendramento literário de sua dor. (DAL FARRA, 2007, p. 28)
Isto posto, gostaríamos de ressaltar que as reflexões expostas acima são apenas uma
pequena parte de uma vasta fortuna crítica em relação à obra Cartas Portuguesas, cujo
levantamento exaustivo passa ao largo dos objetivos deste artigo. A proposta de estudo que aqui
desenvolvemos é a de ler em Novas Cartas Portuguesas, das três Marias, uma metacrítica
poética de Cartas Portuguesas, ensejando procedimentos ginocríticos.
Segundo Amaral (2010), a obra se torna importante
justamente pelo peso simbólico de que se revestia a figura de Mariana e
pela imagem feminina que delas [das cartas] emergia: o estereótipo da
mulher abandonada, suplicante e submissa, alternando entre a adoração e
o ódio, e praticando um discurso de paixão avassaladora por aquele (o
cavaleiro) que se apaixonara também, mas partira depois, para não mais
regressar. É esta relação de amor e devoção, de subserviência e
autovitimização que as três autoras, três séculos depois, aproveitando-lhe
os contornos mais gerais, vão desmontar e re-montar, estilhaçando
fronteiras e limites, quer das temáticas, quer da própria linguagem.
(AMARAL, 2010, p.4)
Neste sentido, o livro das três Marias, apesar de ter como matriz a obra de Mariana, não
se limita apenas a uma reescrita, irrompendo como ato político e poético subversivo. A
publicação do livro rendeu às autoras um processo judicial e elas tiveram seus volumes
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apreendidos pelo governo salazarista de Marcelo Caetano. A ação judicial se deu em virtude de a
obra ser considerada perniciosa e, portanto, ferir as regras da moral portuguesa da época. É
importante notar que a obra polemiza o papel da mulher na sociedade e seus estereótipos, bem
como faz uma reflexão criticando as investidas da guerra colonial portuguesa ultramarina,
dialogando com um discurso feminino do cânone literário português, o que desencadeou no
processo judicial.
Nas palavras das nós-líricas (SOUZA, 2015)4, encontramos um posicionamento em
relação ao empreendimento de escrita: “Foi dita a gravidade dessa empresa, luta de vida, o que
em nosso tempo e nosso sítio não é tido por legítimo, nem por defesa.” (BARRENO, HORTA,
COSTA, 2010, p.122). Ou seja, essa redescoberta do ser mulher e de mudar a sociedade é uma
luta de vida que, naquele contexto espaciotemporal, não era legitimada.
Na crítica tradicional acerca das Novas Cartas Portuguesas, temos mais uma vez as
palavras de Massaud Moisés (2007), para quem a obra é uma
refacção, atualização e modernização das Cartas de Amor, de Sóror
Mariana Alcoforado, que deram às autoras escandalosa notoriedade,
mercê da polêmica e do processo policial desencadeados (MOISÉS,
2006, p.303).
O crítico apresenta a obra como uma “releitura” e não como uma nova obra que tem
como intertexto as Cartas Portuguesas, sem pretender realizar sua “refacção” ou
“modernização”, mantendo assim a obra dentro da lógica falogocêntrica.
Por sua vez, a edição anotada de Novas Cartas Portuguesas conta com a “Breve
Introdução”, de Ana Luisa Amaral. Nesse trecho, a autora descreve a obra e a insere nos
contextos de sua publicação e dos dias atuais, discorrendo sobre a importância que a obra teve
mundialmente. Nessa exposição, ressalta que o processo movido contra Maria Teresa Horta,
Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno fez com que houvesse um movimento global em
prol delas, e a sua repercussão mundial foi considerada a “Primeira causa feminista
internacional” (AMARAL, 2010, p.9). Podemos encontrar esta força feminina na materialidade
da própria obra, como lemos no poema Eis-nos, em Novas Cartas Portuguesas.
Diária é a escolha
o movimento insano
4 O uso do termo “nós-líricas” faz mais sentindo nessa obra devido à sua autoria difusa e coletiva que, nos
encaminhamentos desta discussão, cumpre uma função-autor (FOUCAULT, 2001) de coletividade feminina.
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o sossego manso e mais pesado
daquilo que desperta e não quebramos
daquilo que rasgamos
e dobramos
carta por carta em seu perfil exacto
Fêmeas somos
fiéis à nossa imagem
oposição sedenta que vestimos
mulheres pois sem procurar vantagem
(BARRENO; HORTA; COSTA, 2010, p.105-107)
As vozes-líricas inserem-se num novo perfil feminino que só diz respeito a elas mesmas e
que não é definido dentro de uma lógica única de significantes, pois as escolhas de mudança, as
transformações da mulher, ocorrem a cada novo momento, como nas palavras das nós-líricas:
“Diária é a escolha/ o movimento insano”, ou seja, não há definição que não possa ser
modificada, não há estaticidade no movimento de ser mulher. Redefinirem-se dentro do que faz
sentido para elas próprias é parte da forma feminina de apreender a vida.
As mulheres compartilham um mundo que as nós-líricas apresentam no poema a partir da
repetição de “daquilo que”. Essa reiteração nos faz entender que “aquilo” refere-se a alguma
coisa que é compartilhada apenas entre elas, como mulheres, e que não é necessariamente
acessível àqueles que leem o texto. Nesse excerto do livro, sem evidenciar a questão da autoria
do texto matriz, mas problematizando a sua representatividade feminina, as vozes-líricas rasgam
e dobram as cartas que tentam aprisioná-las dentro de um estereótipo de mulher. Dessa forma,
podemos inferir que a obra caminha num movimento oposto àquele definido por Massaud
Moisés (2006) – aqui tomado como representante da crítica dominante: não há refacção de
Cartas Portuguesas, pois estas são novas cartas, novas mulheres – não aquelas que
representavam a mulher portuguesa para a sociedade do falo.
Novas Cartas Portuguesas, escrita a seis mãos femininas, será entendida aqui como
ginocrítica traçando uma subversão interpretativa da crítica. A obra tem a força de encorajar e
estabelecer a ginocrítica, sem que, com isso, a delineie milimetricamente, pois o espaço da
ginocrítica é o do movimento constante (“o movimento insano”). Não tentaremos, dessa forma,
definir padrões e cânones, para não cair na lógica patriarcal do falo, uma vez que é exatamente
essa lógica que a ginocrítica não quer ter como referência. Observaremos nesse artigo como se
manifesta a questão do gênero epistolar.
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O gênero epistolar que dá nome às obras é ponto importante no exercício ginocrítico
perpetrado em Novas Cartas Portuguesas. Em princípio, esse gênero é praticado socialmente
com o objetivo principal de comunicar algo a outrem que não compartilha do mesmo tempo e
espaço que o locutor. Portanto, uma carta se reveste de uma importância momentânea que só terá
sentido para emissor e receptor, haja vista a dimensão íntima em que circulam as epístolas, com
claros nomes de remetente e destinatário a circunscrever o ato comunicativo. Mas, segundo
Rocha (1965), o formato epistolar, no que concerne à literatura, perde tais características
pragmáticas para servir apenas de pretexto para que se discorra sobre algum tema, como nas
palavras do eu-lírico de Cartas Portuguesas: “Descobri que lhe queria menos do que à minha
paixão” (ALCOFORADO, 2007, p. 66). Homem amado como pretexto para a paixão; carta,
pretexto para fazer poesia. Ou ainda: carta – pretexto para falar de literatura.
Nas cartas de Mariana Alcoforado, observa-se que o remetente, embora esteja claramente
marcado no conteúdo enquanto interlocutor, está ausente. Nas cartas das Marias (e nos outros
gêneros que nelas se inserem), o remetente é sempre uma possibilidade aberta, pois, ainda que
muitas vezes o interlocutor seja enunciado, “Considerai, irmãs minhas,” (BARRENO; HORTA;
COSTA, 2010, p.157), “Por isso, irmã, foi a ti escrita a carta” (BARRENO; HORTA; COSTA,
2010, p.241), “Irmãs, vos quero dizer da crueldade” (BARRENO; HORTA; COSTA, 2010,
p.388), não se recupera no texto quem exatamente são essas irmãs, o que nos leva a pressupor
que são todas as mulheres. Esse expediente discursivo em Novas Cartas Portuguesas está em
consonância com a elaboração de Rocha (1965) ao asseverar que, quando se trata de um gênero
epistolar literário, o autor do texto pode até ter um público em mente, mas as suas cartas serão
sempre abertas, ao contrário do autor de uma epístola real, na qual a escolha do remetente
direciona sobremaneira a escrita.
Traçam-se, dessa forma, algumas diferenças epistolares entre Mariana Alcoforado e as
Marias. Ainda que Mariana Alcoforado tenha sido usada para que as Cartas Portuguesas
ganhassem uma “realidade forjada”, o destinatário se faz presente de forma indiscutível: é o
cavaleiro de Chamilly. Este destinatário nos faz pensar que as cartas, em verdade, existiram e
que não visavam à publicação ampla. Elas tratam, afinal, de um foro íntimo.
As Marias, no movimento contrário, corresponderam-se com o intuito de tornar suas
discussões públicas, emprestando pena e tinta às mulheres que com elas se identificaram.
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Segundo Rocha (1965), há uma necessidade de haver algo em comum entre destinatário e
remetente para que o diálogo epistolar seja possível. Enquanto em Cartas Portuguesas a relação
de identidade da carta se dá pelo relacionamento amoroso entre remetente e destinatário, em
Novas Cartas Portuguesas podemos perceber uma proximidade de discussão política e revolução
social, simbólica e literária partida das Cartas Portuguesas de Mariana.
Quando lemos as cartas das Marias, percebemos que elas são, em verdade, rizomas
(DELEUZE; GUATTARI, 1990) e nessa qualidade não apresentam um endereçamento único,
pois a função de um rizoma é sempre encontrar diversas saídas para o que se coloca. Num
movimento vampiresco multidirecional (DELEUZE; GUATTARI, 1990), as autoras se
alimentam de suas próprias cartas – aquelas que trocaram entre si no processo de gestação da
obra e que fazem parte dessa ginocrítica – e das cartas de Mariana, em Cartas Portuguesas, para
terem forças para escreverem as novas: aquelas que ficcionalizam Mariana Alcoforado. Esse
movimento contínuo abre caminhos, passagens, para outras discussões que nunca têm um cerne,
uma porta central e muito menos uma origem. Cartas como rizomas que se multiplicam sem
nunca chegar a um final.
Assim, as autoras de Novas Cartas Portuguesas usam o gênero epistolar não apenas
como um gênero literário, mas também como um gênero de crítica literária. Elas abrem o leque
de possíveis remetentes e, apesar de aludirem ao gênero no título de sua obra, sabemos que,
diferentemente de Cartas Portuguesas, não é só de cartas que é feita esta crítica. No entanto,
encontramos nas cartas endereçadas “às mãos que tecem a obra” – e por extensão a todas as
mãos femininas, – a parte mais central de crítica, onde as eu-líricas (SOUZA, 2015) discorrem e
discutem sobre suas visões de mundo a partir do diálogo intertextual com as cartas de Mariana.
Segunda Carta IV
E não temos misericórdia. Nem branda a voz: jamais o fato lilás te
adoçará o rosto, ou a ti o azul da tinta nas pálpebras te adoçará os olhos.
De Mariana tiramos o mote, de nós mesmas o motivo, o mosto, a métrica
dos dias. Assim inventamos já de Mariana o gesto, a carta, o aborto; a
mãe que as três tivemos ou nunca lhe damos (...) Geralmente a mulher
que dê provas, o homem que as receba. Para isso, entre tantas outras
coisas, se nasceu macho e fêmea. Que mesmo Mariana ao dizer ter
recebido provas de amor de seu amante, era as suas próprias provas que
gabava, não as dele, valorizando-as assim, entregando-as ao cavaleiro
francês como atestado de seu deslumbrado amor, desvario, fitando dele
receber em troca o mesmo. (...) Mitos defloramos e desfloradas fomos de
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consentido. Porém de consentidas não nos tomem. Me tomem. Me tomes.
Se tome Mariana que em clausura se escrevia, adquirindo assim sua
medida de liberdade e realização através da escrita; mulher que escreve
ostentando-se de fêmea enquanto freira, desautorizando a lei, a ordem, os
usos, o hábito que vestia.
(...) 1/4/71 (BARRENO; HORTA; COSTA, 2010, p.190-197).
Nesse trecho da “Segunda Carta IV”, encontramos as discussões que perpassam Mariana
e todas as mulheres: a ferocidade da verdade feminina que não é abrandada com a beleza, ou
seja, o que é considerado belo não interfere no que é a realidade feminina; o uso do mote de
Mariana para falar da condição da mulher e não especificamente desta mulher a quem se atribui a
autoria das Cartas; as funções designadas a “macho” e “fêmea”; o amor e o sentimento amoroso
que tem fim apenas em si; e a libertação da clausura através da escrita que subverte e não se
prende às leis (impostas ao corpo pela sociedade e pela religião ). As autoras se valem da obra-
mote e do gênero para fazer uma grande crítica social e literária.
Considerações
Na leitura de Novas Cartas Portuguesas como ginocrítica, empreendemos a tentativa de
proceder a uma ruptura do sistema falogocêntrico no qual a crítica literária dominante se baseia.
O traçar de um caminho paralelo ao da crítica dominante através de uma construção de
conhecimento que enseja uma nova perspectiva sociocultural e literária é necessário para que se
possa construir uma tradição feminina dentro dos estudos literários. Dessa forma, ao atribuirmos
a um texto literário de escrita feminina a dimensão de crítica literária, traçamos o caminho da
ginocrítica, buscando uma nova base teórica e poética que não seja pautada numa herança da
crítica dominante. É a crítica como poesia, a poesia como crítica, ou a poesia da crítica.
Referências
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Gynocritics as an exercise of meta-criticism in New Portuguese Letters
Abstract: Feminist studies are gaining ground in the production of social and academic
knowledge. However, within academy the critic canon is still mainly composed by men as
critics, therefore cultural and intellectual productions are based on a phallogocentric tradition. In
this study, we propose to draw an alternative path to canonical criticism and to observe how
women build knowledge that aims at a new sociocultural and literary perspective. In this sense,
we understand feminine literary criticism according to the concept of Gynocritics
(SHOWALTER, 1981), which consists of a female critical that rejects phallogocentrism and
redefines the feminine, for example. Hence, we are grounded on studies about difference
feminism, according to the concept of feminine writing, by Cixous (2007), and the lips metaphor,
by Irigaray (1985). In this exercise of feminine criticism, we will read the book New Portuguese
Letters, by Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa and Maria Isabel Barreno, as a gynocritic
text about the book Portuguese Letters, by Mariana Alcoforado. As we assign a literary text with
Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
a literary critical dimension, we draw a gynocritic path seeking a new theoretical and poetical
foundation which is not based on the inheritance of dominant criticism. It is criticism as poetry,
poetry as criticism or the poetry of criticism.
Keywords: Gynocritics, Feminist Literary Criticism, New Portuguese Letters.