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A Globalização Foi Longe Demais

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politica internacional

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  • A globalizao foi longe demais?

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  • FUNDAO EDITORA DA UNESP

    Presidente do Conselho CuradorHerman Jacobus Cornelis Voorwald

    Diretor-PresidenteJos Castilho Marques Neto

    Editor-ExecutivoJzio Hernani Bomfim Gutierre

    Conselho Editorial AcadmicoAlberto Tsuyoshi IkedaClia Aparecida Ferreira TolentinoEda Maria GesElisabeth Criscuolo UrbinatiIldeberto Muniz de AlmeidaLuiz Gonzaga MarchezanNilson GhirardelloPaulo Csar Corra BorgesSrgio Vicente MottaVicente Pleitez

    Editores-AssistentesAnderson NobaraHenrique ZanardiJorge Pereira Filho

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  • Dani Rodrik

    A globalizaofoi longe demais?

    Traduo deMagda Lopes

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  • 1997, Institute for International Economics

    Ttulo original: Has Globalization Gone Too Far?

    2011 da traduo brasileira

    Fundao Editora da Unesp (FEU)

    Praa da S, 10801001-900 So Paulo SPTel.: (0xx11) 3242-7171Fax: (0xx11) 3242-7172www.editoraunesp.com.br [email protected]

    Editora afiliada:

    CIP Brasil. Catalogao na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    R619g

    Rodrik, Dani A globalizao foi longe demais? / Dani Rodrik; traduo de Magda Lopes. So Paulo: Editora Unesp, 2011. 192p.

    Traduo de: Has globalization gone too far? ISBN 978-85-393-0138-6

    1. Economia. 2. Integrao econmica internacional. 3. Integrao econmi-ca internacional Aspectos sociais. 4. Globalizao. 5. Relaes econmicas internacionais. 6. Comrcio exterior e emprego. 7. Mercado de trabalho. I. Ttulo.

    11-3224. CDD: 337.1CDU: 339.1

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  • VSumrio

    Prefcio edio brasileira VII

    Prefcio edio norte-americana XIX

    Agradecimentos XXIII

    1 Introduo 1 Fontes de tenso 6

    Globalizao: de tempos em tempos 11

    Implicaes 13

    2 Consequncias do comrcio para mercados de trabalho e as relaes de trabalho 15 Consequncias do comrcio com pases que tm abundante mo de obra no qualificada 18

    Consequncias de uma demanda mais elstica por trabalhadores 24

    Recapitulao 40

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  • VI

    Dani Rodrik

    3 Tenses entre o comrcio e os arranjos sociais domsticos 45 Expondo as questes: o exemplo do trabalho infantil 46 Comrcio e blocked exchanges 55 As novas questes comerciais e as demandas por um comrcio justo 57 Integrao e poltica social na Europa 60 Maastricht, as greves francesas e a dimenso social 64 As diferenas nas instituies nacionais tm efeitos sobre o comrcio? 69 Recapitulao 76

    4 O comrcio e a demanda por seguro social 79 O risco externo importante? 87 Evidncias cross-country sobre a abertura, o risco externo e a atividade do governo 91 Evidncias dos dados de painel para os pases da OCDE 96 Recapitulao 102

    5 Implicaes 107 A desintegrao social custa da integrao econmica? 108 Implicaes polticas 111 Observaes finais 133

    Apndice A 135Apndice B 143Referncias 145ndice remissivo 153

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  • VII

    Prefcio edio brasileira

    Luiz Caseiro1

    Glauco Arbix2

    Dani Rodrik hoje um dos mais prestigiados e citados econo-mistas do mundo. O rigor e a criatividade de suas anlises torna-ram-no referncia obrigatria a todos aqueles que se interessam pelos processos de desenvolvimento econmico e, em especial, pelas estratgias de insero dos pases em desenvolvimento na economia global. Parte de seu sucesso deve-se ao fato de ser um dos poucos pesquisadores sobre o tema que tm como base um quadro terico neoclssico, usualmente valendo-se de robustas anlises empricas, para chegar a concluses nada ortodoxas, com impactos diretos sobre a formulao e a implantao de polticas econmicas e industriais em diversos pases do mundo.

    1 Luiz Caseiro pesquisador do Observatrio da Inovao e Competitividade da Universidade de So Paulo (USP).

    2 Glauco Arbix professor livre-docente de Sociologia da Universidade de So Paulo (USP) e presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

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  • VIII

    Dani Rodrik

    A globalizao foi longe demais?, primeiro livro de Rodrik publi-cado em ingls quando tinha apenas 39 anos , j revela os princi-pais traos distintivos do rigor conceitual e metodolgico de seu trabalho, sempre combinado a um pensamento no convencional, em busca novas formas de analisar e propor solues a problemas da economia global. Sua traduo para o portugus, quase duas dcadas depois, de grande relevncia por ao menos trs moti-vos: pela contribuio para compreenso das origens histricas de atuais desafios da economia internacional; pela importncia do conjunto da obra, que apresenta anlises e propostas de ao polticas aperfeioadas ao longo de sua produo; e, finalmente, pela reflexo acerca do papel dos economistas no debate poltico, sublinhando a necessidade de levar em considerao as demandas e os valores dos diversos grupos sociais como variveis fundamen-tais para a proposio de estratgias de desenvolvimento. Adicio-nalmente, o estilo da argumentao de Rodrik possui tambm um carter didtico para os pesquisadores das cincias sociais de maneira geral, unindo uma prosa clara e objetiva, povoada de exemplos histricos, a anlises empricas sofisticadas de sries temporais.

    Atualidade do debate

    Embora este livro tenha sido escrito na dcada de 1990, sua questo central os efeitos da globalizao sobre as relaes de trabalho e sobre as instituies de bem-estar social dos pases de industrializao avanada voltou pauta prioritria de pes-quisadores e formuladores de poltica de todo o mundo aps a ecloso da crise econmica de 2008. As tenses sociais resultan-tes da integrao econmica internacional abordadas por Dani Rodrik nesta obra, entretanto, no se restringem a esse grupo de pases e as anlises apresentadas pelo autor tambm contribuem para o debate sobre os desafios enfrentados por muitos pases emergentes, dentre os quais o Brasil.

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  • IX

    A globalizao foi longe demais?

    Quando A globalizao foi longe demais? foi escrito, a estrutura das relaes polticas e econmicas entre os pases encontrava-se em radical transformao. Acordos regionais de livre-comrcio aprofundavam a integrao econmica intensificando os fluxos internacionais de bens, servios e investimentos. A recente criao da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) procurava harmo-nizar as normas domsticas para o comrcio exterior. Diversos pases em desenvolvimento e os chamados pases em transio implantavam reformas liberalizantes. E, por fim, mas no menos importante, o Leste e o Sudeste Asitico passavam a responder por crescentes parcelas da produo global de bens industrializados.

    Essas transformaes, que ainda se encontram em curso, traziam ento crescentes tenses sociais na maioria dos pases e provocavam um reavivamento de discursos protecionistas por parte de lideranas polticas e sindicais. Rodrik demonstrava uma dupla preocupao. Por um lado, se o imperativo da integrao econmica fosse colocado acima de consideraes acerca do bem--estar dos diversos grupos sociais no interior dos pases, a prpria legitimidade dos processos de liberalizao encontrar-se-ia em risco, propiciando terreno frtil para o retorno generalizado de prticas mercantilistas. Por outro lado, ele considerava que os economistas e formuladores de polticas no analisavam com a devida seriedade as legtimas reivindicaes dos grupos sociais mais atingidos pela globalizao, em especial os trabalhadores de baixa qualificao. Desse modo, no atuavam para desen-volver estratgias mitigadoras dos problemas sociais gerados liberalizao econmica.

    Muitos dos conflitos sociais causados pela globalizao identificados por Rodrik foram temporariamente relegados para segundo plano frente ao rpido crescimento da economia global que ocorreu aps a virada do milnio. Voltaram, entretanto, com fora ainda maior aps a crise de 2008, que arrefeceu o crescimento global e ampliou enormemente os dficits fiscais nos pases desen-volvidos, reduzindo desse modo sua capacidade para criar polticas

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  • XDani Rodrik

    sociais compensatrias. O atual cenrio global possui, portanto, grande semelhana com o quadro apresentado nesta obra.

    O combate s desigualdades sociais geradas pela globalizao continua sendo um desafio atual que aqui recebe ateno deta-lhada. Rodrik demonstra, por meio de uma rigorosa elaborao conceitual e de amplo conjunto de dados, que a maior exposio ao comrcio internacional, apesar de possibilitar acelerao do crescimento econmico, encontra-se intimamente relacionada a uma crescente desigualdade na renda entre os trabalhadores mais e menos qualificados e a presses sobre as instituies sociais domsticas. Na Europa essa desigualdade menor do que nos Estados Unidos, mas a conta dos europeus cobrada em termos de um maior desemprego. Em ambos os casos, os siste-mas nacionais de seguridade social passam a ser mais exigidos.

    Esse um dos dilemas centrais apresentados por Rodrik. Por um lado, a globalizao compreendida aqui como uma intensificao do comrcio e dos fluxos de investimento internacionais exige mais dos sistemas nacionais de proteo social para combater as desigualdades de renda e o desemprego. Por outro, confere menor poder aos governantes para atender a essas exigncias, na medida em que a livre mobilidade do capital confronta-os com a necessidade de tornar seus pases atrativos aos investidores internacionais, o que envolve reduo dos gastos pblicos e dos custos trabalhistas.

    Entretanto, o presente livro est longe de ser um libelo contra a integrao econmica internacional. Pelo contrrio, trata-se de um alerta para aquilo que o autor chamaria em seus trabalhos posteriores de hiperglobalizao. Durante boa parte dos anos 1990, foi predominante nos discursos de economistas, governos e instituies multilaterais uma ideologia que concebia a simples liberalizao dos mercados como panaceia para todos os males da economia global. Esse discurso nunca foi integralmente posto em prtica pela maioria dos pases, mas provocou intensos debates. Rodrik foi um de seus opositores e contribuiu para consolidar

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  • XI

    A globalizao foi longe demais?

    uma vertente crtica abertura econmica tomada como um fim em si mesmo. Demonstrou, por meio de um amplo conjunto de evidncias, que tal estratgia pode amplificar os conflitos sociais e aumentar as presses pelo desmantelamento de instituies nacionais, com efeitos negativos sobre a soberania dos Estados, a coeso social e sobre a prpria legitimidade do mercado global.

    A alternativa protecionista seria, todavia, um remdio pior do que a doena, gerando outros tipos de conflitos sociais e diminuindo as oportunidades de crescimento. Rodrik demons-tra como a implementao das polticas de bem-estar social do ps-guerra no Ocidente ocorreu concomitantemente a uma pro-gressiva integrao internacional. Ou seja, abertura econmica e seguridade social, longe de serem opostas, foram at determinado ponto complementares. At meados dos anos 1970, os pases mais integrados ao mercado internacional eram aqueles que mais implantavam polticas sociais abrangentes e dispendiosas. Entretanto, essa correlao positiva comeou a cessar a partir da dcada de 1980, quando a desregulamentao dos mercados foi guiada por uma rota muito mais ideolgica do que pragmtica, indo em determinados aspectos longe demais.

    Para o autor, a globalizao seria em certo sentido comparvel ao progresso tecnolgico. Ambos tm como efeito o aumento da produtividade e o crescimento econmico. Entretanto, tambm podem ocasionar efeitos no desejados sobre a distribuio de renda da populao, na medida em que alguns grupos se tornam mais capazes de se apropriar do excedente do que outros. Assim como os governos interferem de modo a oferecer incentivos para o desenvolvimento de determinadas tecnologias, devem agir em relao ao comrcio e aos investimentos internacionais, estimulando-os de forma pragmtica, ou seja, levando em conta seus benefcios e custos sociais.

    Em um contexto poltico e acadmico extremamente pola-rizado entre aqueles que se colocavam a favor e contra a globa-lizao, um dos pontos fundamentais do argumento deste livro

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  • XII

    Dani Rodrik

    a demonstrao de que as naes tm razes legtimas para se preocupar com as consequncias do processo de integrao econmica sobre as condies de vida de suas populaes. No haveria, entretanto, uma receita pronta de como esse processo deve ser conduzido. Caberia aos governos atuar de maneira cria-tiva, pragmtica e na medida do possvel coordenada frente aos desafios colocados pela globalizao.

    Com base nesse diagnstico, Rodrik procura formular suges-tes a respeito de alguns possveis caminhos para a atuao dos Estados nacionais. Suas propostas vo desde uma reorientao dos gastos sociais para proteger os grupos mais atingidos at a defesa da implementao da taxa Tobin, imposto global sobre os fluxos de capitais cuja receita seria dividida entre os pases pro-posta esta que ganhou grande fora no interior da Unio Europeia aps a recente crise. O autor sugere ainda uma ampliao nos mecanismos de salvaguardas da OMC, com o intuito de permitir aos pases a possibilidade de serem liberados temporariamente de obrigaes internacionais que geram amplos conflitos sociais ou presses no sentido de um desmantelamento das instituies nacionais. A ideia seria criar novas regras multilaterais que a um s tempo evitassem um protecionismo generalizado, mas reco-nhecessem a importncia das polticas sociais e da autonomia dos Estados para definir quais so suas prioridades.

    No cabe aqui julgar o mrito ou a viabilidade dessas pro-postas. Salientamos apenas que os problemas que elas procuram solucionar mantm-se na ordem do dia, como atestam os esforos dos mais diversos pases, emergentes e desenvolvidos, para con-trolar os fluxos de capitais, os contnuos conflitos gerados pela reduo dos gastos sociais na Europa e os interminveis impasses em torno das normas e negociaes da OMC. Uma reorientao dos gastos sociais de fato ocorreu de modo bem-sucedido em muitos pases. Um dos exemplos mais bem-sucedidos teve lugar no Brasil, na primeira dcada dos anos 2000, quando diversas polticas sociais conferiram mais dignidade vida de milhes

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    A globalizao foi longe demais?

    cidados, alm de gerar encadeamentos positivos para o conjunto da economia e para a arrecadao do governo, que superam em muito seus custos, como inmeras pesquisas revelaram.

    Entretanto, de se estranhar que as propostas oferecidas pelo autor soem apenas como paliativas em relao aos malefcios causados pela integrao econmica. Na verdade, parecem ainda pressupor que o mximo da eficincia seria obtida apenas pela liberalizao econmica, que os governos estariam destinados a diminuir seu tamanho e que toda ao possvel seria ou a de implementar polticas sociais para proteger os grupos mais atin-gidos, ou a de realizar acordos multilaterais que minimizassem os efeitos colaterais da globalizao sobre a sociedade.

    Aqueles que esto familiarizados com seus trabalhos mais recentes certamente sentiro a falta de alguma meno quilo que Rodrik chama de polticas industriais inteligentes como instrumento para uma insero mais prspera na economia internacional. O autor, como pesquisador atento, evoluiu em seus fundamentos.

    No coincidncia que em meados dos anos 1990 o conceito de inovao comea a invadir de forma crescente os programas de governo dos mais diversos pases. Para os desenvolvidos, o aumento da atividade inovadora implica a possibilidade de manter o padro de vida de sua populao e suas caras polticas sociais. Para os emergentes, o caminho para o desenvolvimento sustentvel.

    Em seus trabalhos mais recentes, o autor reconhece a impor-tncia do Estado para a formulao de polticas de inovao e de incentivo atividade industrial de modo geral. Passa a prescrever a adoo em larga escala de polticas industriais para os pases em desenvolvimento cujas economias teriam sua topografia marcada por grandiosas falhas de mercado e pela necessidade de descobrir novas vocaes produtivas. Para tanto, avana na con-ceptualizao da proposta esboada neste livro de flexibilizao das normas da OMC para permitir a implementao de polticas mais eficazes de transformao estrutural.

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    Dani Rodrik

    at certo ponto compreensvel a ausncia dessas ques-tes no contexto dos anos 1990, quando as ideias de poltica industrial e de estratgias de desenvolvimento encontravam--se fora de moda e eram at mesmo vistas como malditas pela maioria dos acadmicos e formuladores de poltica embora nunca tenham deixado de marcar presena na atuao dos mais diversos governos, talvez com excees pontuais, especialmente na Amrica Latina.

    Entretanto, as lacunas que os ltimos quinze anos evidencia-ram existir neste livro no invalidam as questes aqui levantadas com grande propriedade. A grande crise de 2008 realimentou diversos dos fantasmas que Rodrik via em 1997. O desemprego e os dficits pblicos cresceram assustadoramente na maioria dos pases desenvolvidos, que mais uma vez enfrentam presses para a reduo de seus gastos sociais. Pases latino-americanos com parques industriais diversificados, especialmente o Brasil, tambm enfrentam a intensa competio internacional e a neces-sidade de reformas estruturais socialmente controversas.

    Compreender os dilemas que a globalizao e a ascenso dos pases emergentes causam aos pases desenvolvidos funda-mental tanto para pensar o mundo contemporneo quanto para a prpria concretizao das oportunidades de desenvolvimento dos emergentes. Afinal, so nos pases desenvolvidos que ainda esto localizados os maiores mercados consumidores, as sedes das principais empresas transnacionais e grande parte da ati-vidade inovadora. Embora esse cenrio esteja mudando aos pou-cos, um assalto do protecionismo nesses pases no desejvel e acarretaria consequncias negativas para o crescimento dos emergentes, entre eles o Brasil.

    A importncia da obra

    Por meio de A globalizao foi longe demais?, possvel consta-tar que parte importante da reflexo de um dos mais influentes

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    A globalizao foi longe demais?

    economistas do incio do sculo XXI j se encontra amadurecida ao final da dcada de 1990. Uma das principais teses de seu mais recente trabalho Globalization Paradox [Paradoxo da globalizao] (2011), a existncia de um dilema entre a hiperglobalizao e a soberania nacional, j apresentada aqui com seus elementos essenciais.

    Entretanto, muita coisa mudou desde 1997. Alguns meses aps a publicao deste livro, a crise asitica revelaria ao mundo os riscos da desregulamentao financeira. Riscos estes que ressurgiriam com maior fora na crise de 2008. Rodrik no trata aqui especificamente dos efeitos danosos dessa modali-dade de globalizao, lacuna que o prprio autor viria a apontar posteriormente em trabalhos destinados ao tema. Porm, j esto presentes aqui diversos insights sobre os perigos da livre circulao de capitais especulativos. Por exemplo, quando Rodrik demonstra que o efeito negativo da exposio aos mercados externos sobre a capacidade de sustentao dos gastos sociais nos pases da OCDE duas vezes maior entre aqueles que no impem nenhuma medida de restrio a esses fluxos.

    Do mesmo modo, embora no aparea aqui de forma expl-cita uma defesa da adoo de polticas industriais, o argumento que sustenta essa defesa em seus textos mais recentes tambm est presente, a saber, a necessidade da garantia de autonomia para os pases escolherem sua prpria estratgia de insero internacional. Embora a natureza de suas prescries mude com o tempo como, alis, no poderia deixar de ser , a defesa da necessidade de reformas nas regras da OMC e da adoo de nor-mas multilaterais mais democrticas tambm uma constante nos trabalhos do autor.

    Por suas virtudes e tambm por suas limitaes , este livro fundamental para compreender a evoluo e o amadure-cimento do pensamento de Dani Rodrik. Foi com o referencial terico presente nesta obra que o autor contribuiu para tornar o debate sobre a globalizao mais sensato, ao sugerir um caminho

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    Dani Rodrik

    intermedirio entre a defesa da globalizao desenfreada e o saudosismo do protecionismo autrquico, duas posies pouco pragmticas que predominavam no debate poltico e acadmico na dcada de 1990. Para os pesquisadores brasileiros incomoda-dos por essa dualidade tirnica, os insights emitidos por Rodrik foram recebidos com sabor de esperana.

    O grande desafio que Rodrik se colocou foi o do refinamento da teoria e da pesquisa econmica em busca do conhecimento mais preciso possvel dos processos socioeconmicos causados pela integrao dos pases no mercado internacional. Para ele, somente por meio desse detalhamento dos mecanismos da globalizao seria possvel a elaborao de polticas pblicas mais equilibradas e consistentes.

    A pergunta de Rodrik frente globalizao em certa medida semelhante quela manifesta por Schumpeter em relao ao capi-talismo em 1942: poderia ela sobreviver ao seu prprio sucesso?. A resposta tambm bem parecida. O autor reconhece o vigor da globalizao e sua importncia para o crescimento econmico, mas preocupa-se com a possibilidade de ela minar as instituies sociais que a tornam possvel. Avanando no debate, demonstra com grande riqueza de detalhes que a ao estatal e a globalizao dos mercados no podem ser vistas como excludentes. Pelo con-trrio, o papel dos Estados torna-se ainda mais fundamental num mundo globalizado.

    Este livro tambm um documento histrico do debate sobre a globalizao, evidenciando que muitos dos aspectos da integrao internacional que hoje so tomados como dados como, por exemplo, a terceirizao da produo e a crescente harmonizao das normas internacionais de produo e comer-cio foram na verdade forjados recentemente e no sem o enfrentamento de forte resistncia social dentro dos prprios pases de industrializao avanada. Ao analisar a legitimidade argumentos dos grupos sociais favorveis e descontentes em relao fundao das bases institucionais do atual estgio de

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  • XVII

    A globalizao foi longe demais?

    integrao econmica internacional, Rodrik contribui para enrai-zar socialmente a globalizao. Lembra, dessa maneira, que o prprio mercado global estrutura-se no somente pela busca da eficincia, mas tambm por disputas polticas de grupos sociais com interesses divergentes.

    O estilo do autor e o papel dos economistas

    Chegamos, ento, ao terceiro motivo que torna a leitura deste livro agradvel. Toda a argumentao aqui apresentada encontra-se embasada em elaboraes conceituais rigorosas e sofisticadas anlises empricas que so traduzidas com incrvel clareza ao leitor leigo.

    A leitura do texto de Rodrik, portanto, possui tambm um forte carter didtico tanto para os iniciantes nas cincias sociais quanto para os pesquisadores j maduros. Lembra aos econo-mistas contemporneos que o estilo da escrita um elemento essencial s cincias humanas, ao mesmo tempo que no deixa os demais cientistas sociais esquecerem que a procura pelo conhecimento cientfico rigoroso dos processos sociais est na origem de seu ofcio.

    Seu grande domnio sobre os pressupostos tericos da eco-nomia clssica permite ao autor utiliz-los de forma criativa. Por exemplo, quando ele desloca a discusso dos efeitos do comrcio internacional sobre uma menor demanda pelo trabalho pouco qualificado, para uma discusso sobre as mudanas nas relaes de trabalho causadas por uma maior elasticidade dessa demanda.

    Rodrik alerta os economistas para a importncia em se consi-derar o impacto que a formulao e a implantao de estratgias de integrao econmica trazem aos diversos grupos sociais e s instituies nacionais. Apesar de ser desejvel progredir no sentido de uma maior harmonizao institucional, como, por exemplo, no estabelecimento de padres mnimos de regulao

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    Dani Rodrik

    trabalhista e de normas ambientais, no existe uma receita nica que possa ser imposta com sucesso a todos os pases. Cada pas precisa encontrar seu prprio caminho para obter um maior nvel de integrao econmica de forma a minimizar os conflitos sociais. Cabe aos economistas ajudar nessa tarefa, despindo-se de preconceitos frente s demandas sociais e analisando-as com rigor e seriedade.

    Embora este livro toque apenas marginalmente em diversas questes centrais da globalizao como, por exemplo, sua relao com o progresso tecnolgico e as oportunidades de crescimento que gerou para muitos pases , a profundidade, a complexidade e a importncia das anlises aqui presentes vai extrapola o que pode ser dito nesta breve apresentao. Sua lei-tura oferece uma exposio clara e abrangente de desafios que ainda so frequentemente negligenciados pelos economistas e que os pases enfrentam ao lidar com efeitos da globalizao. Constitui-se, portanto, uma pea-chave para a compreenso do debate sobre as estratgias de insero internacional das diversas naes.

    O leitor brasileiro de hoje, seja o pesquisador ativo ou apenas interessado, encontrar neste livro ideias e anlises de flego que estimulam a desenhar alternativas para a economia global e para o papel que desempenham nela os diversos pases, inclusive o Brasil.

    Abril de 2014.

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    Prefcio edio norte-americana

    As publicaes do Institute for International Economics tm apoiado consistentemente a globalizao econmica e a liberali-zao continuada do comrcio e do investimento internacionais. Vrios observadores tm na verdade creditado ao Instituto a proviso de parte do entendimento e das propostas polticas que vm sustentando, e at mesmo acelerando, o impulso global para os mercados abertos.

    Por isso, ns, membros do Instituto, estamos extremamente conscientes das crticas globalizao e liberalizao que con-tinuam a emergir. Algumas destas podem ser rapidamente rejei-tadas como um protecionismo ultrapassado, ainda que disfarado sob uma nova roupagem ou como simples erros de anlise. Mas outras se baseiam em questes sobre os princpios e prticas que sustentam a economia mundial contempornea e, por isso, devem ser levadas a srio. Este estudo um dos vrios que o Instituto estar lanando no futuro prximo, tentando apresentar uma reavaliao objetiva e completa das posies pr e contra a globalizao.

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    Dani Rodrik

    O autor Dani Rodrik responde claramente de forma negativa pergunta apresentada no ttulo deste livro e rejeita as polticas comerciais protecionistas. Entretanto, tambm conclui que a globalizao s pode ser bem-sucedida e sustentada se forem tomadas medidas apropriadas de poltica interna para amortecer o impacto nos grupos que forem adversamente afetados e, mais importante ainda, para equipar todos os setores da sociedade para tirarem proveito dos benefcios da globalizao, em lugar de serem destrudos por ela.

    Ns, do Instituto, imaginamos que os Estados Unidos lo go vo se engajar em um debate fundamental sobre a poltica co-mercial do pas e talvez sobre toda a sua poltica econmica internacional. A legislao do Tratado Norte-Americano de Livre--Comrcio (Nafta) desencadeou esse debate em 1993, apesar do modesto impacto econmico e escopo geogrfico da questo na poca. O debate seguinte pde ser muito mais abrangente, pois os presidentes George W. Bush e Bill Clinton comprometeram os Estados Unidos a participarem dos acordos de livre-comrcio com toda a Amrica Latina (exceto Cuba) e com toda a regio da sia--Pacfico (incluindo a China e o Japo), e porque a continuao das negociaes tambm provvel em uma escala global na Organizao Mundial do Comrcio (OMC).

    Por isso essencial que as bases intelectuais da estratgia de globalizao/liberalizao, incluindo os srios desafios a ela, sejam submetidas a uma anlise honesta e abrangente. Deci-ses sobre se a estratgia deve ser mantida ou, ento, acelerada precisam estar enraizadas em um entendimento claro de suas vantagens e desvantagens para importantes grupos da sociedade, assim como para o pas em geral. essencial confrontar a ques-to das polticas domsticas resultantes necessrias para apoiar a internacionalizao, tratando-se do impacto adverso naqueles que podem sofrer com elas.

    Quando a questo do comrcio administrado se tornou um foco de debate poltico no final da dcada de 1980 e incio

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    A globalizao foi longe demais?

    da dcada de 1990, o Instituto realizou um esforo similar para produzir uma anlise equilibrada e convincente que, ao mesmo tempo, informasse o entendimento pblico e promovesse decises governamentais criteriosas. O resultado foi o trabalho de Laura DAndrea Tyson, Whos Bashing Whom? Trade Conflict in High-Tech- nology Industries [Quem est confrontando quem? conflito comercial nas indstrias de alta tecnologia], que recebeu ampla aclamao, tanto nos crculos polticos quanto nos intelectuais, por oferecer tal anlise. Tyson, claro, veio a desempenhar um papel pessoal importante na conformao da poltica econmica dos Estados Unidos como presidente do Conselho dos Assessores Econmicos e, subsequentemente, como principal assessora eco-nmica do presidente e diretora do Conselho Econmico Nacional.

    Esperamos que este novo estudo de autoria de Dani Rodrik d uma contribuio proveitosa ao debate sobre os rumos futuros do comrcio e sobre uma poltica econmica internacional mais ampla, tanto nos Estados Unidos quanto em outros pases. Seu foco est voltado mais para as tenses que para os benefcios gerados pela globalizao. Entretanto, logo estaremos publicando mais duas contribuies que procuram enriquecer o quadro: uma anlise completa de William R. Cline do vnculo entre a expanso do comrcio e as tendncias da renda, e uma avaliao abrangente de J. David Richardson dos ganhos e tambm das perdas provenientes dos fluxos do comrcio. O Instituto espera que esse grupo de publicaes ajude a produzir uma base slida para as decises que se avizinham sobre um conjunto importante de questes polticas.

    O Institute for International Economics uma instituio privada sem fins lucrativos para o estudo e a discusso da poltica econmica internacional. Seu propsito analisar importantes questes nessa rea e desenvolver e comunicar novas abordagens prticas para lidar com elas. O instituto totalmente apartidrio.

    O instituto financiado fundamentalmente por fundaes filantrpicas. Importantes subvenes institucionais esto sendo

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    Dani Rodrik

    agora recebidas do The German Marshall Fund dos Estados Uni-dos, que criou o Instituto com uma generosa doao de recursos em 1981, e da The Ford Foundation, da Andrew W. Mellon Foundation e da C. V. Starr Foundation. Vrias outras fundaes e corporaes privadas tambm contribuem para os recursos financeiros altamente diversificados do Instituto. Cerca de 16% dos recursos do Instituto em nosso ltimo ano fiscal foram proporcionados por colaboradores de fora dos Estados Unidos, incluindo cerca de 7% do Japo.

    O Conselho de Diretores arca com a total responsabilidade pelo Instituto e proporciona a orientao geral e a aprovao do seu programa de pesquisa incluindo a identificao de tpicos com probabilidade de se tornarem importantes para os formuladores das polticas econmicas internacionais a mdio prazo (em geral, de um a trs anos) e que, por isso, devem ser tratadas pelo Instituto. O diretor, trabalhando de perto com sua equipe e com o Comit Consultivo externo, responsvel pelo desenvolvimento de projetos especficos e toma a deciso final de publicar um estudo individual.

    O Instituto espera que seus estudos e outras atividades possam contribuir para a construo de uma base mais forte da poltica econmica internacional em todo o mundo. Convidamos os leitores destas publicaes a nos darem sua opinio sobre como podemos cumprir melhor esse objetivo.

    C. Fred BergstenDiretor

    Fevereiro de 1997

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    Agradecimentos

    Sou grato a C. Fred Bergsten e ao Institute for International Economics por me proporcionarem apoio para este projeto. Os comentrios detalhados de Fred Bergsten, Jagdish Bhagwati, Avinash Dixit, Robert Lawrence e Dave Richardson ajudaram enormemente o meu modo de pensar sobre o assunto. Agradeo a todos sem implic-los nas opinies aqui expressadas.

    Tambm me beneficiei muito das discusses com ou dos comentrios de George Borjas, Barry Bosworth, Geoff Carliner, Susan Collins, Jessica Einhorn, Kim Elliott, Ron Findlay, Isaiah Frank, Richard Freeman, Jeffry Frieden, Geoff Garrett, Monty Graham, Steph Haggard, Lenny Hausman, Carla Hills, Jim Hines, Gary Hufbauer, Doug Irwin, Jules Katz, Donald Keesing, Paul Krugman, Frank Levy, Howard Lewis, Rachel McCulloch, Howard Rosen, John Ruggie, Jeffrey Schott, T. N. Srinivasan, Ray Vernon e Greg Woodhead. Sou grato a Gian Maria Milesi-Ferretti, Roberto Perotti e Andy Rose, por me disponibilizarem alguns dos dados utilizados neste estudo; a Valerie Norville por um excelente trabalho de edio do manuscrito; e a Lesly Adkins-Shellie por

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    Dani Rodrik

    amavelmente suportar vrias falhas tcnicas do computador. Matthew Maguire proporcionou-me uma excelente assistncia na pesquisa.

    Finalmente, agradeo ao Fundo Monetrio Internacional (FMI), onde (um tanto inadequadamente) partes deste livro foram escritas, por sua hospitalidade.

    lugar-comum dizer que indivduos e instituies aos quais se agradece no devem ser considerados responsveis pelas opinies expressas em um estudo. Por razes bvias, isso se aplica de maneira particularmente enftica neste caso.

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  • 11Introduo

    As greves dos trabalhadores na Frana no final de 1995, que visavam reverter os esforos do governo francs para colocar seu oramento dentro dos moldes dos critrios do Tratado de Maastricht, lanaram o pas em sua pior crise desde 1968. Mais ou menos na mesma poca, nos Estados Unidos, um destacado republicano estava conduzindo uma campanha vigorosa para a presidncia tendo como base uma plataforma poltica de nacio-nalismo econmico, prometendo erguer barreiras comerciais e restries mais rgidas imigrao. Nos pases do Leste Europeu e na Rssia, ex-comunistas venceram a maior parte das eleies parlamentares realizadas desde a queda do Muro de Berlim, e o candidato comunista Gennady Zyuganov conseguiu 40% dos votos no segundo turno da eleio presidencial russa realizado em julho de 1996.

    Esses desenvolvimentos aparentemente dspares tm um elemento comum: a integrao internacional dos mercados de bens, servios e capital est pressionando as sociedades a alterarem suas prticas tradicionais e, em represlia, amplos

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  • 2Dani Rodrik

    segmentos dessas sociedades esto se defendendo.1 As presses por mudana so tangveis e afetam todas as sociedades: no Japo, grandes corporaes comeam a desmantelar a prtica do ps--guerra do emprego vitalcio, uma das instituies sociais mais caractersticas do pas. Na Alemanha, o governo federal combate a oposio sindical para cortar os benefcios das penses visando melhorar a competitividade e equilibrar o oramento. Na Coreia do Sul, os sindicatos recorrem a greves nacionais para protestar contra a nova legislao que facilitava s empresas demitir os trabalhadores. Os pases em desenvolvimento da Amrica Latina competem entre si na abertura do comrcio, desregulando suas economias e privatizando empresas pblicas. Pergunte aos exe-cutivos das empresas ou aos altos funcionrios do governo por que essas mudanas so necessrias e voc vai ouvir repetidas vezes o mesmo mantra: Precisamos continuar (ou nos tornar) competitivos em uma economia global.

    A oposio a essas mudanas no menos tangvel e s vezes resulta em estranhos aliados. Os sindicatos que condenam a com-petio injusta de trabalhadores estrangeiros menores de idade e os ambientalistas ganham o apoio dos empresrios bilionrios Ross Perot e Sir James Goldsmith na luta contra o Tratado Norte--Americano de Livre Comrcio (Nafta) e a Organizao Mundial do Comrcio (OMC). Nos Estados Unidos, talvez a mais orientada para o livre mercado das sociedades industriais avanadas, as bases filosficas do Estado liberal clssico sofrem ataques no s por parte dos protecionistas tradicionais, mas tambm do novo movimento comunitrio, que enfatiza a virtude moral e cvica e

    1 Ver a perspicaz coluna de Thomas L. Friedman (1996). Friedman enfatiza que o recente destaque desses movimentos polticos aparentemente diversos, como aquele de Patrick Buchanan nos Estados Unidos, dos comunistas na Rssia e dos islmicos na Turquia, podem ter uma raiz comum: uma reao adversa globalizao. Agradeo a Robert Wade por chamar a minha ateno para o artigo de Friedman.

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  • 3A globalizao foi longe demais?

    nutre uma desconfiana intrnseca pela expanso dos mercados (ver, por exemplo, Etzioni, 1994; e Sandel, 1996).2

    O processo que veio a ser chamado de globalizao est expondo uma profunda linha descontnua entre grupos que tm as habilidades e a mobilidade para florescer nos mercados globais e aqueles que no tm essas vantagens ou percebem a expanso dos mercados no regulados como hostis estabilidade social e s normas profundamente enraizadas. O resultado uma severa tenso entre o mercado e os grupos sociais, como trabalhadores, pensionistas e ambientalistas, com os governos emperrados no meio deles.3

    Este livro declara que o desafio mais srio economia global nos anos vindouros tornar a globalizao compatvel com a estabilidade social e a poltica interna ou, colocando em pala-vras ainda mais diretas, garantir que a integrao econmica internacional no contribua para a desintegrao social interna.

    Preocupados com as ansiedades de seus eleitores, os polticos dos pases industriais avanados esto bem conscientes de que nem tudo vai bem com a globalizao. A reunio do Grupo dos Sete em Lyon, em junho de 1996, deu uma importncia central questo: seu comunicado foi intitulado Tornando a globalizao um sucesso para o benefcio de todos. O documento comeava com uma discusso da globalizao seus desafios e tambm seus benefcios. Os lderes reconheciam que a globalizao cria dificuldades para alguns grupos e, ento, escreveram:

    2 Aqueles que torcem pela globalizao s vezes tambm angariam estranhos aliados. Considere, por exemplo, a filosofia de uma organizao chamada Global Awareness Society International: A globalizao possibilitou o que antes era apenas uma viso: as pessoas do nosso mundo unidas sob o teto de uma Aldeia Global.

    3 Ver tambm Kapstein (1996) e Vernon (no prelo). Kapstein argumenta que uma reao negativa por parte dos trabalhadores provvel, a menos que os formuladores de polticas assumam um papel mais ativo na administrao de suas economias. Vernon declara que podemos estar no limiar de uma reao global contra o papel penetrante das empresas multinacionais.

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  • 4Dani Rodrik

    Em um mundo cada vez mais interdependente devemos todos

    reconhecer que temos um interesse em disseminar os benefcios

    do crescimento econmico o mais amplamente possvel e em dimi-

    nuir o risco de excluir indivduos ou grupos em nossas prprias

    economias ou de excluir alguns pases ou regies dos benefcios

    da globalizao.

    Mas como esses objetivos sero atingidos?Uma resposta poltica adequada requer um entendimento

    das fontes das tenses geradas pela globalizao. Sem esse entendimento, provvel que as reaes sejam de dois tipos. Um deles o tipo automtico, com propostas de cura piores que a doena. Esse certamente o caso do protecionismo abrangente ao estilo de Patrick Buchanan ou da abolio da OMC ao estilo de sir James Goldsmith. Na verdade, grande parte do que passa como anlise (seguido da condenao) do comrcio interna-cional se baseia em uma lgica defeituosa e em um empirismo equivocado.4 Parafraseando Paul Samuelson, no h melhor prova de que o princpio da vantagem comparativa a nica proposio na economia, que ao mesmo tempo verdadeira e no trivial, do que a longa histria de ms interpretaes que tm sido vinculadas s consequncias do comrcio. Os problemas, embora reais, so mais sutis do que a terminologia que passou a dominar o debate, como, por exemplo, concorrncia de baixos salrios, criar condies de igualdade ou nivelamento por baixo. Consequentemente, eles requerem solues matizadas e criativas.

    A outra resposta possvel, e a nica que talvez caracterize melhor a atitude de grande parte da comunidade econmica e poltica, minimizar o problema. A abordagem padro dos eco-

    4 Jagdish Bhagwati e Paul Krugman so dois economistas que tm sido incan-sveis na exposio das falcias comuns nas discusses sobre o comrcio internacional. Ver, em particular, Bhagwati (1988) e Krugman (1996).

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    nomistas globalizao enfatizar os benefcios do fluxo livre dos bens, do capital e das ideias, e supervisionar as tenses que deles podem resultar.5 Uma viso comum que as queixas das organizaes no governamentais ou de defesa dos trabalhado-res representam apenas o velho vinho protecionista colocado em novas garrafas. As pesquisas recentes sobre o comrcio e os salrios enfatizam essa viso: as evidncias empricas dispo-nveis sugerem que o comrcio tem desempenhado um papel um pouco menor na gerao dos males do mercado de trabalho dos pases industrializados avanados ou seja, na crescente desigualdade de renda nos Estados Unidos e do desemprego na Europa.6

    Embora eu compartilhe da ideia de que grande parte da oposio ao comrcio baseada em premissas falsas, tambm acredito que os economistas tendem a assumir uma viso exces-sivamente estreita das questes. Para entender o impacto da globalizao nos arranjos sociais domsticos temos de ir alm da questo do prmio que o comrcio concede qualificao especial. E, mesmo que nos concentremos mais estritamente nos resultados do mercado de trabalho, h canais adicionais que ainda no foram submetidos a um escrutnio emprico detalhado, por meio dos quais a integrao econmica aumentada age em detrimento da mo de obra, e particularmente da mo de obra no qualificada. Como veremos, essa perspectiva conduz a uma viso menos benigna do que aquela comumente adotada pelos economistas. Um benefcio adicional, portanto, o fato de ela servir para reduzir a imensa lacuna que separa as vises de mui-tos economistas das intuies de muitos leigos.

    5 Quando menciono economistas aqui, estou, claro, me referindo eco-nomia prevalecente, representada pelos economistas neoclssicos (entre os quais eu me coloco).

    6 Cline (1997) apresenta uma excelente reviso da literatura. Ver tambm Collins (1996).

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  • 6Dani Rodrik

    Fontes de tenso

    Eu me concentro em trs fontes de tenso entre o mercado global e a estabilidade social e apresento aqui uma breve viso geral delas.

    Em primeiro lugar, barreiras reduzidas ao comrcio e ao investimento acentuam a assimetria entre os grupos que podem cruzar as fronteiras internacionais (quer direta ou indiretamente, por exemplo, por meio da terceirizao)7 e aqueles que no podem faz-lo. Na primeira categoria esto os donos do capital, os trabalhadores altamente especializados e muitos profissionais que so livres para levar seus recursos para onde haja maior demanda. Os trabalhadores no especializados e semiespecializa-dos, assim como a maioria dos administradores medianos, ficam na segunda categoria. Colocando o mesmo ponto em termos mais tcnicos, a globalizao torna a demanda dos servios dos indivduos da segunda categoria mais elstica ou seja, os servi-os de grandes segmentos da populao trabalhadora podem ser mais facilmente substitudos pelos servios de outras pessoas fora das fronteiras nacionais. Por isso, a globalizao transforma fundamentalmente as relaes de trabalho.

    O fato de os trabalhadores poderem ser mais facilmente substitudos entre si fora das fronteiras nacionais destri o que muitos entendem como sendo uma barganha social ps-guerra entre trabalhadores e patres, sob a qual os primeiros receberiam um aumento constante nos salrios e nos benefcios em troca da paz no trabalho. Isso porque o aumento na possibilidade de substituio resulta nas seguintes consequncias concretas:

    Os trabalhadores agora tm de pagar uma parcela maior do custo das melhorias nas condies de trabalho e nos

    7 A terceirizao refere-se prtica das companhias de subcontratar parte do processo de produo tipicamente as partes de mo de obra mais intensiva e menos qualificada em firmas de outros pases com custos menores.

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    benefcios (isto , eles arcam com uma maior incidncia dos encargos no salariais).

    Eles tm de suportar maior instabilidade nos ganhos e nas horas trabalhadas em resposta aos abalos na demanda de mo de obra ou na produtividade do trabalhador (ou seja, aumenta a volatilidade e a insegurana).

    Seu poder de barganha corrodo e por isso eles recebem salrios e benefcios menores sempre que a barganha for um elemento no estabelecimento dos termos do emprego.

    Essas consideraes tm recebido ateno insuficiente na literatura acadmica recente sobre o comrcio e os salrios, que tem se concentrado mais no deslocamento descendente na demanda por trabalhadores no especializados do que no aumento da elasticidade dessa demanda.

    Em segundo lugar, a globalizao engendra conflito dentro e entre as naes com relao s normas domsticas e s instituies sociais que as incorporam. medida que a tecnologia para produ-tos manufaturados passou a se tornar padronizada e internacio-nalmente difundida, as naes com conjuntos de valores, normas, instituies e preferncias coletivas muito diferentes comearam a competir diretamente nos mercados por produtos similares. E a disseminao da globalizao cria oportunidades para o comrcio entre pases com nveis muito diferentes de desenvolvimento.

    Isso no ocorre sem consequncias sob a poltica de comrcio multilateral tradicional da OMC e do Acordo Geral de Tarifas e Comrcio (Gatt); o processo ou a tecnologia por meio da qual os produtos so produzidos imaterial, assim como as instituies sociais dos parceiros comerciais. As diferenas nas prticas nacionais so tratadas apenas como diferenas nas dota-es de fatores ou em qualquer outro determinante de vantagem comparativa. Entretanto, a introspeco e a evidncia emprica revelam que a maioria das pessoas atribui tanto valores quanto resultados aos processos. Isso est refletido nas normas que

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    moldam e restringem o ambiente domstico em que os bens e servios so produzidos por exemplo, prticas no local de trabalho, regras legais e redes de segurana social.

    O comrcio torna-se contencioso quando libera foras que destroem as normas implcitas nas prticas domsticas. Muitos residentes dos pases industriais avanados esto se sentindo des-confortveis com o enfraquecimento das instituies domsticas pelas foras do comrcio, como quando, por exemplo, o trabalho infantil em Honduras provoca a demisso de trabalhadores na Carolina do Sul, ou quando os benefcios de penses so cortados na Europa em resposta s exigncias do Tratado de Maastricht. Essa sensao de desconforto uma maneira de interpretar as demandas de comrcio justo. Grande parte da discusso em torno das novas questes na poltica comercial ou seja, nor-mas trabalhistas, meio ambiente, poltica de competio, corrup-o pode ser lanada nessa luz de justia nos procedimentos.

    No conseguiremos entender o que est acontecendo nes-sas novas reas enquanto no considerarmos seriamente as preferncias individuais pelos processos e os arranjos sociais que as incorporam. Em particular, fazendo isso poderemos comear a extrair sentido do desconforto das pessoas em relao s consequncias da integrao econmica internacional e evi-tar a armadilha de condenar automaticamente todos os grupos envolvidos como protecionistas egostas. Na verdade, como a poltica comercial quase sempre tem consequncias redistri-butivas (entre os setores, os grupos de renda e os indivduos), no se pode produzir uma defesa justa do livre-comrcio sem confrontar a questo da justia e da legitimidade das prticas que geram essas consequncias. Do mesmo modo, no se pode esperar um amplo apoio popular para o comrcio quando este envolve trocas que colidem com (e corroem) os arranjos sociais domsticos prevalecentes.

    Em terceiro lugar, a globalizao tornou excessivamente difcil para os governantes proporcionarem seguro social uma

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    de suas funes primordiais e aquela que ajudou a manter a coe -so social e o apoio poltico interno liberalizao contnua du-rante todo o perodo ps-guerra. Em essncia, os governos tm usado seus poderes fiscais para isolar os grupos internos dos riscos excessivos do mercado, particularmente daqueles que tm uma origem externa. Na verdade, h uma notvel correlao entre uma exposio da economia ao comrcio internacional e o tamanho da sua previdncia social. Foi nos pases mais abertos, como Sucia, Dinamarca e Holanda, que mais se expandiram os gastos nas transferncias de renda. Isso no significa que o governo seja o nico ou o melhor provedor de seguro social. A famlia ampliada, os grupos religiosos e as comunidades locais com frequncia desempenham papis similares. Minha opinio que um marco do perodo do ps-guerra foi a expectativa de que os governos dos pases avanados proporcionassem esse seguro.

    Atualmente, no entanto, a integrao econmica interna-cional est se colocando em contraposio ao pano de fundo de governos que se encolhem e reduo das obrigaes sociais. A previdncia social tem sido alvo de ataque h duas dcadas. Alm disso, a crescente mobilidade do capital tornou-se um segmento importante da flexibilidade tributria, deixando os governos com a opo no palatvel de impor impostos desproporcionais renda do trabalhador. Entretanto, a necessidade de seguro social para a grande maioria da populao que permanece internacio-nalmente imvel no diminuiu. Ao contrrio, essa necessidade tem se tornado cada vez maior como consequncia da integrao aumentada. Por isso, a questo como a tenso entre a globali-zao e as presses pela socializao do risco pode ser aliviada. Se a tenso no for tratada de uma maneira inteligente e criativa, o perigo que o consenso interno a favor dos mercados abertos finalmente se destrua a ponto de um ressurgimento generalizado do protecionismo se tornar uma sria possibilidade.

    Cada um desses argumentos aponta para uma importante fraqueza na maneira em que as sociedades avanadas esto

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    lidando ou esto equipadas para lidar com as consequncias da globalizao. Coletivamente, eles apontam para o que talvez seja o maior risco de todos, isto , que a consequncia cumulativa das tenses acima mencionadas seja a solidificao de um novo conjunto de divises de classe entre aquelas que prosperam na economia globalizada e aquelas que no prosperam, entre aquelas que compartilham seus valores e aquelas que no os compartilham, e entre aquelas que podem diversificar seus riscos e aquelas que no conseguem faz-lo. Essa no uma perspectiva agradvel, mesmo para os indivduos que esto no lado vencedor da diviso e que tm pouca empatia pelo outro lado. A desinte-grao social no um esporte com expectadores aqueles que esto fora das quatro linhas tambm so salpicados pela lama do campo. Finalmente, o aprofundamento das fissuras sociais pode prejudicar a todos.

    Figura 1 Japo, Estados Unidos e Europa Ocidental: exportaes de mercadorias como uma parcela do PIB, 1870-1992

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    019921870 1890 1913 1929 1938 1950 1970

    Percentagem (mdias anuais para trs anos)

    Europa Ocidental

    Japo

    Estados Unidos

    Fonte: Biroch & Kozul-Wright (1996).

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    A globalizao foi longe demais?

    Globalizao: de tempos em tempos

    Essa no a primeira vez que experimentamos um mercado realmente global. Por muitas medidas, a economia mundial esteve possivelmente at mais integrada no apogeu do padro ouro do final do sculo XIX do que est agora. A Figura 1 apresenta a proporo das exportaes em relao renda nacional para os Estados Unidos, a Europa Ocidental e o Japo desde 1870. Nos Estados Unidos e na Europa, os volumes comerciais atingi-ram seu pico antes da Primeira Guerra Mundial, e depois entraram em colapso durante o intervalo entre as duas guerras mundiais. O comrcio tornou a florescer aps 1950, mas nenhuma das trs regies est significativamente mais aberta agora para essa medida do que esteve durante o antigo padro ouro. O Japo, na verdade, tem agora uma parcela menor das exportaes no PIB do que teve durante o perodo entre as duas guerras mundiais.

    Outras medidas da integrao econmica global contam uma histria similar. Quando as ferrovias e os navios a vapor baixaram o custo do transporte e a Europa partiu para o livre-comrcio no final do sculo XIX, ocorreu uma convergncia dramtica nos preos das commodities (Williamson, 1996). Os fluxos de mo de obra eram tambm consideravelmente mais altos na poca, pois milhes de imigrantes partiram do Velho para o Novo Mundo. Nos Estados Unidos, a imigrao foi responsvel por 24% da expanso da fora de trabalho durante os 40 anos anteriores Primeira Guerra Mundial (Williamson, 1996, apndice, tabela 1). Quanto mobilidade do capital, a parcela dos fluxos de capital lquido no PIB foi muito mais elevada no Reino Unido durante o padro ouro clssico do que de l para c.

    Ser que esse perodo anterior de globalizao tem algumas lies a dar nossa situao atual? Pode muito bem ter. Por exemplo, h algumas evidncias de que o comrcio e a imigrao tiveram consequncias importantes para a distribuio de renda. Segundo Jeffrey Williamson (1996, p.19), A globalizao [...]

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    foi responsvel por mais da metade da crescente desigualdade nos pases ricos com mo de obra escassa [por exemplo, Esta-dos Unidos, Argentina e Austrlia] e por um pouco mais de um quarto da desigualdade declinante em pases pobres com mo de obra abundante [por exemplo, Sucia, Dinamarca e Irlanda] no perodo anterior Primeira Guerra Mundial. Igualmente perti-nentes so as consequncias polticas dessas mudanas:

    H uma literatura com quase um sculo de idade que declara

    que a imigrao feriu a mo de obra norte-americana e foi respon-

    svel por grande parte da desigualdade da dcada de 1890 at a

    Primeira Guerra Mundial, tanto que um Congresso simptico

    causa trabalhista aprovou cotas de imigrao. H uma literatura

    ainda mais antiga que declara que uma invaso de gros do Novo

    Mundo diminuiu de tal modo os arrendamentos de terra na Europa

    que os parlamentos continentais dominados por proprietrios de

    terras elevaram as tarifas para ajudar a proteg-los do impacto da

    globalizao. (Williamson, 1996, p.1)

    Williamson (1996, p.20) conclui que as tendncias para a desigualdade produzidas pela globalizao so pelo menos parcialmente responsveis pela fuga da globalizao entre as duas guerras mundiais [que surgiu] primeiro nos parceiros comerciais industriais ricos.

    Alm disso, h algumas diferenas fundamentais que tornam mais contenciosa a economia global atual. Em primeiro lugar, as restries imigrao no eram to comuns durante o sculo XIX e, consequentemente, a mobilidade internacional da mo de obra foi mais comparvel quela do capital. Por isso, a assimetria entre o capital mvel (fsico e humano) e a mo de obra natural, imvel, que caracteriza a situao presente, um fenmeno rela-tivamente recente. Em segundo lugar, houve pouca competio internacional direta em produtos idnticos ou similares durante o sculo XIX, e a maior parte do comrcio consistia no intercmbio

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    de produtos no concorrentes, como produtos primrios por bens manufaturados. As relaes comerciais agregadas no refletem o grande aumento na exposio de indstrias de bens comer-cializveis competio internacional que est ocorrendo agora em comparao com a situao na dcada de 1890 (Irwin, 1996, p.42). Em terceiro lugar, e talvez o mais importante, os governos ainda no foram convocados a desempenhar funes de previ-dncia social em larga escala, como assegurar nveis de emprego adequados, estabelecer redes de segurana social, proporcionar seguros mdicos e sociais e cuidar dos pobres. Essa mudana na percepo do papel do governo tambm uma transformao rela-tivamente recente, que faz a vida, em uma economia interdepen-dente, consideravelmente mais difcil para os legisladores atuais.

    Seja como for, a lio da histria parece ser que a globalizao continuada no pode ser dada como certa. Se suas consequncias no forem tratadas de maneira inteligente e criativa, um retrai-mento da abertura torna-se uma clara possibilidade.

    Implicaes

    Ento, ser que a integrao econmica internacional foi longe demais? No, se os formuladores de polticas agirem de maneira inteligente e criativa.

    Precisamos ser honestos com relao irreversibilidade de muitas mudanas que ocorreram na economia global. Avanos nas comunicaes e nos transportes significam que grandes seg-mentos das economias nacionais esto muito mais expostos ao comrcio internacional e aos fluxos de capital do que jamais esti-veram, independentemente do que os formuladores de polticas optem por fazer. H apenas um escopo limitado para a poltica governamental fazer a diferena. Alm disso, um srio recuo para o protecionismo feriria os muitos grupos que se beneficiam do comrcio e resultaria no mesmo tipo de conflitos sociais que a pr-

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    pria globalizao gera. Temos de reconhecer que erguer barreiras comerciais s ajudar em um conjunto limitado de circunstncias, e que as polticas comerciais raramente sero a melhor resposta para o problema que ser discutido aqui. Os programas de trans-ferncia e de seguro social em geral dominaro. Em resumo, o gnio no poder mais ser aprisionado na garrafa, ainda que fosse desejvel faz-lo. Vamos precisar de respostas mais criativas e mais sutis. Vou sugerir algumas diretrizes no captulo de concluso.

    Ainda assim, meu principal propsito neste livro no pres-critivo; ampliar o debate sobre as consequncias da globalizao, aprofundando-me mais em algumas das dimenses que tm recebido ateno insuficiente e fundamentalmente reformulando o debate de modo a facilitar um dilogo mais produtivo entre grupos e interesses opostos. Somente mediante um maior enten-dimento do que est em jogo poderemos esperar desenvolver polticas pblicas apropriadas.

    Uma nota introdutria final. Espero que o leitor logo com-preenda que este livro no um pronunciamento unilateral contra a globalizao. Na verdade, o principal benefcio de se esclarecer e adicionar rigor a alguns dos argumentos contra o comrcio que isso nos ajuda a fazer uma distino entre objees que so vlidas (ou pelo menos logicamente coerentes) e objees que no o so. Partindo dessa perspectiva, o que termino fazendo, pelo menos ocasionalmente, fortalecer o arsenal de argumen-tos em prol do livre-comrcio. Se esta obra for encarada como controversa, ter cumprido o seu papel; terei falhado se ela for percebida como polmica.

    Os captulos que se seguem iro desenvolver as trs fontes de tenso entre a globalizao e a sociedade acima identificadas e examinar as evidncias empricas relevantes. Os objetivos sero colocar o debate de tal modo que ambos os lados economistas e populistas possam se unir, juntar evidncias sobre a provvel significncia da tenso em questo e, onde houver evidncia de preocupao sria, abrir o debate sobre as solues possveis.

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    2Consequncias do comrcio para mercados

    de trabalho e as relaes de trabalho

    Desde a segunda metade da dcada de 1970, os mercados de trabalho dos Estados Unidos e da Europa Ocidental vm tendo um pssimo desempenho no que se refere aos grupos menos qua-lificados. Como declarou um renomado economista do trabalho, um desastre econmico se abateu sobre os norte-americanos menos qualificados. (Freeman, 1996a, p.2)

    O desastre tem dois ingredientes de reforo. Um deles o aumento salarial para o trabalho qualificado, que encontra expresso em uma eroso dos ganhos reais daqueles que aban-donaram os estudos no segundo grau: os salrios horrios reais dos rapazes com doze anos ou menos de escolaridade caram mais de 20% nas duas ltimas dcadas. O segundo ingrediente um aumento significativo na instabilidade e insegurana do mercado de trabalho, encontrando expresso em uma maior volatilidade de curto prazo nos ganhos e nas horas trabalhadas e um aumento na desigualdade dentro dos grupos de habilidades. Os trabalhadores menos qualificados carregam o fardo dessa instabilidade. Os ndices de perda de emprego tambm esto em

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    alta, mas aparentemente o aumento est menos concentrado na extremidade inferior da distribuio dos ganhos. A ansiedade e a insegurana que essas tendncias geram esto refletidas nas pesquisas de opinio.1 Enquanto isso, na Europa continental os salrios reais aumentaram na extremidade inferior da distribui-o das qualificaes, mas custa de um aumento significativo do desemprego, especialmente no que se refere aos Estados Unidos (Freeman, 1996a). Em suma, nem os Estados Unidos nem a Europa conseguiram gerar um crescimento constante de bons empregos.

    A situao conturbada dos mercados de trabalho nas econo-mias industriais avanadas conduziu muitos grupos influentes da sociedade formuladores de polticas, advogados trabalhistas e especialistas em geral a vincular esses males diretamente globalizao. Esses grupos tm alegado que a competio intensificada dos pases de baixos salrios, tanto como fontes de importaes quanto como anfitries de investidores estrangeiros, em grande parte responsvel pela deteriorao dos destinos dos trabalhadores pouco qualificados. Por outro lado, a maioria dos economistas especializados em comrcio tem declarado que, embora o comrcio com os pases de baixos salrios possa ter contribudo para as tendncias anteriormente descritas, esse comrcio ainda pequeno demais para ter um efeito significativo nos resultados do mercado de trabalho no Norte. Esses econo-mistas preferem colocar a maior parcela de culpa na mudana tecnolgica que privilegia as especializaes, o que supostamente reduziu a demanda por trabalhadores menos qualificados.

    Ironicamente, eximindo o comrcio de qualquer responsabili-dade significante pelo desconforto nos mercados de trabalho dos

    1 Levy (1966) examina algumas pesquisas recentes e avalia que os entrevis-tados so tipicamente mais positivos em relao s suas situaes pessoais do que em relao economia em geral. Tambm encontra considerveis nervosismo e pessimismo quanto ao futuro.

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    A globalizao foi longe demais?

    pases industrializados, os economistas tomaram um curso que se ajusta desconfortavelmente sua f nos benefcios do livre-co-mrcio. Um pilar da teoria comercial tradicional que o comrcio com pases de mo de obra abundante reduz os salrios reais nos pases ricos ou aumenta o desemprego se os salrios fo-rem fixados artificialmente. Na verdade, no modelo padro das dotaes de fatores, o comrcio cria ganhos para as naes pre-cisamente alterando a relativa escassez domstica de fatores de produo como a mo de obra. Por isso, dizer que o impacto da globalizao nos mercados de trabalho dos pases avanados quantitativamente menor no mundo real, e superado por outros fenmenos (como a mudana tecnolgica), no diferente de dizer que os ganhos provenientes do comrcio tm sido pequenos na prtica. Inversamente, se acreditamos que o comrcio expan-dido foi uma fonte de muitas das coisas boas que as economias industrializadas avanadas experimentaram nas ltimas dcadas, somos forados a presumir que o comrcio teve tambm muitas das consequncias negativas que seus oponentes tm alegado.

    Este captulo se concentra em dois canais por meio dos quais a globalizao afeta os mercados de trabalho no Norte. O primeiro deles, e aquele que tem sido mais extensivamente examinado na literatura, o efeito da globalizao sobre as demandas relativas por trabalhadores qualificados e no qualificados. Como os pases em desenvolvimento tendem a exportar produtos que fazem um uso relativamente intensivo de mo de obra no qualificada, o comrcio com esses pases desaloja a produo de mo de obra intensiva no qualificada nos Estados Unidos e na Europa Ocidental e, desse modo, reduz a demanda de mo de obra no qualificada nesses locais. Em termos tcnicos, o comrcio resulta em um deslocamento interno na curva da demanda por mo de obra no qualificada nesses pases avanados.

    O segundo canal tem a ver com a maior facilidade com que os trabalhadores locais, particularmente aqueles do tipo no qualificado, podem ser substitudos por outros trabalhadores

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    alm das fronteiras nacionais,, quer por meio do comrcio (terceirizao), quer por meio do investimento estrangeiro direto (foreign direct investment FDI). Usando mais uma vez os termos tcnicos, o comrcio achata a curva da demanda por mo de obra local e aumenta a elasticidade da demanda por mo de obra isto , o comrcio aumenta o grau em que os empre-gadores podem reagir s mudanas nos salrios prevalecentes terceirizando ou investindo no estrangeiro. Considerados jun-tos, um deslocamento interno e um achatamento das curvas de demanda por trabalhadores no qualificados reduzem os ganhos mdios dos trabalhadores no qualificados e aumentam tanto a disperso dos ganhos entre esses trabalhadores, quanto a vola-tilidade nos salrios e as horas trabalhadas. Isso pode explicar por que a vida se tornou mais precria, e a insegurana maior, para vastos segmentos da populao trabalhadora.

    Consequncias do comrcio com pases que tm abundante mo de obra no qualificada

    Entre os muitos possveis efeitos que a globalizao pode ter sobre os mercados de trabalho, a relao entre o comrcio com os pases em desenvolvimento e a ascenso na premiao da especializao tem sido o tema de mais extensivo escrutnio dos economistas (entre os principais estudos esto Borjas; Freeman; Katz, 1992; Lawrence; Slaughter, 1993; Wood, 1994; Sachs; Shatz, 1994; Leamer, 1996). H tambm vrias pesquisas e avaliaes teis da literatura (Wood, 1995; Richardson, 1995; Freeman, 1996a; Cline, 1997).

    O motivo de essa questo receber tanta ateno que h sli-das razes tericas para se acreditar que a exposio aumentada ao comrcio com pases de baixa renda vai ampliar a premiao da especializao nos pases avanados. Essa implicao parte diretamente da teoria predominante do comrcio internacional:

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    o modelo de dotaes de fatores de Heckscher-Ohlin-Samuelson. Considere um pas que bem provido de trabalhadores qualifica-dos, como os Estados Unidos. Suponha que de repente se torna possvel para esse pas comercializar com outro pas que seja bem provido de trabalhadores no qualificados, digamos a China, porque esta, por exemplo, liberaliza o seu regime comercial e por isso se torna um participante ativo do comrcio internacional. Naturalmente, a China vai exportar produtos intensamente produzidos por mo de obra no qualificada para o mercado norte-americano e, em troca, importar produtos intensamente produzidos por mo de obra altamente qualificada. Segundo a teoria, na medida em que as exportaes chinesas substiturem parte da produo domstica nos Estados Unidos, isso vai resul-tar em uma queda na demanda relativa por trabalhadores no qualificados nos Estados Unidos, em comparao com a demanda por trabalhadores qualificados. Isso, por sua vez, vai aumentar a premiao da especializao nos Estados Unidos (e reduzi-la na China). Todo estudante de teoria do comrcio aprendeu alguma verso dessa teoria bsica.

    Por isso os estudos empricos tm se concentrado na ques-to: quanto o comrcio reduziu a demanda por mo de obra no qualificada nos pases desenvolvidos? A concluso em geral tem sido um pouco, mas no totalmente. Como disse Krugman (1995, p.2-3):

    Provavelmente justo dizer [...] que a opinio da maioria dos

    analistas econmicos srios que o comrcio internacional teve ape-

    nas um impacto limitado sobre os salrios. O ceticismo a respeito

    dos efeitos do comrcio sobre os salrios baseia-se essencialmente

    na observao de que, apesar do seu crescimento, o comrcio ainda

    bastante pequeno em comparao com as economias dos pases

    avanados. Em particular, as importaes de produtos manufa-

    turados dos pases em desenvolvimento sero apenas cerca de

    2% do PIB combinado da OCD. A sabedoria convencional que

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    fluxos comerciais dessa magnitude limitada no podem explicar as

    mudanas muito grandes nos preos relativos dos fatores que tm

    ocorrido em particular, o aumento de cerca de 30% na premiao

    salarial associado a uma educao universitria que vem ocorrendo

    nos Estados Unidos desde a dcada de 1970.

    Por isso, uma razo de os modelos empricos produzirem poucos efeitos o fato de os fluxos relevantes do comrcio serem pequenos. Observe que o dado de 2% de Krugman se refere apenas ao comrcio com os pases em desenvolvimento. A razo de esse nmero ser relevante nesse contexto que, de acordo com o modelo de Heckscher-Ohlin, somente o comrcio com pases que diferem em suas dotaes de fatores relativas (por exemplo, mo de obra no qualificada versus mo de obra qualificada) deve se preocupar com os salrios relativos. Assim sendo, supe-se que a maior parte do comrcio que ocorre entre os pases industrializados com dotaes de fatores similares no tem efeito sobre os mercados de trabalho e, portanto, no entra na anlise emprica de qualquer maneira significativa. Como vou detalhar a seguir, essa suposio uma razo importante de as metodologias existentes terem subestimado o efeito do comrcio sobre os mercados de trabalho.

    Entretanto, at mesmo nos confins dessa abordagem limi-tada podem ser geradas estimativas muito maiores considerando o papel da imigrao de pases com mo de obra no qualificada, com o comrcio. Borjas, Freeman e Katz (1992) assim proce-dem com relao aos Estados Unidos, calculando em conjunto o contedo de fator dos fluxos do comrcio e da imigrao. Usando estimativas razoveis da elasticidade da substituio entre trabalhadores qualificados e no qualificados, esses autores concluem que cerca de 40% do diferencial salarial aumentado entre aqueles que abandonaram a escola no segundo grau e os outros trabalhadores podem ser atribudos a essas duas foras em ao.

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    Uma segunda razo pela qual muitos economistas do comr-cio tm ignorado o efeito do comrcio com resultados como aqueles de Borjas, Freeman e Katz (1992) que o mecanismo anteriormente delineado deve operar por meio dos preos do produto. No modelo cannico das dotaes de fatores, a pre-miao da especializao s pode aumentar se houver uma queda correspondente no preo relativo dos produtos produzidos por mo de obra no qualificada. Como tem sido difcil documentar mudanas significativas nesse preo relativo para a dcada de 1980, durante a qual ocorreu a maioria dos efeitos salariais, a concluso tem sido de que nem o comrcio nem a imigrao poderiam ter desempenhado um papel significante (Bhagwati, 1992; Lawrence; Slaughter, 1993).

    Saindo da teoria de Heckscher-Ohlin, possvel gerar canais adicionais mediante os quais o comrcio com os pases em desen-volvimento amplia a premiao da especializao. Wood (1994), por exemplo, defende um papel muito maior para o comrcio tendo por base duas suposies fundamentais. A primeira que a competio das importaes desativou muitas atividades que requeriam intensiva mo de obra no especializada, que do contrrio permaneceria ativa nos pases avanados. Por isso, os clculos do contedo de fator implicado no comrcio que visam s propores de fator existentes nas atividades remanescentes de competio das importaes subestimam a reduo na demanda por trabalhadores no qualificados como uma consequncia do comrcio. Em segundo lugar, ele assume que a competio das importaes do Sul induziu a mudana tecnolgica que econo-miza mo de obra no Norte. Pelo menos algumas das mudanas tecnolgicas a que muitos economistas do comrcio tm atri-budo ascenso da premiao da especializao poderiam ser causadas pelo prprio comrcio.

    Borjas e Ramey (1995) se concentram na participao da mo de obra na rentabilidade de algumas indstrias imperfeita-mente competitivas (isto , aquelas que desfrutam do poder de

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    mercado). Em sua histria, a penetrao das importaes nas indstrias de bens durveis, desacompanhada de aumento nas exportaes, resulta em uma maior premiao da especializao:

    A maioria dos trabalhadores na manufatura de bens durveis

    so indivduos que abandonaram os estudos no segundo grau ou

    com diploma de segundo grau. Esses trabalhadores tendem a partici-

    par da rentabilidade em sua indstria na forma de bonificaes sala-

    riais; os trabalhadores das indstrias com maiores rentabilidades

    ganham uma bonificao maior. Quando as empresas estrangeiras

    entram nos mercados (domstico ou estrangeiro) em que as empre-

    sas domsticas tm um poder de mercado substancial, elas captam

    a rentabilidade que, do contrrio, iria para a indstria domstica.

    Essa entrada aumenta de duas maneiras o salrio relativo dos tra-

    balhadores com diploma de segundo grau. Primeiro, porque, visto

    que a rentabilidade das empresas internas caiu, a bonificao salarial

    dos trabalhadores que permaneceram nessas indstrias diminui.

    Segundo, porque na medida em que a competio estrangeira reduz

    o emprego nas indstrias concentradas, muitos dos trabalhadores

    precisam se deslocar para os setores competitivos da economia

    com menor remunerao. Em geral, o salrio dos trabalhadores

    com menos instruo cai em relao quele dos trabalhadores com

    diploma universitrio. (Borjas e Ramey, 1995, p.1080)

    Borjas e Ramey (1995, p.1078) sugerem que o declnio no emprego nessas indstrias pode ser responsvel por at 23% da mudana na desigualdade salarial. Essa concluso foi contestada por Lawrence (1996, captulo 4), que declara no haver evidncia de um declnio no diferencial salarial entre os setores com alto salrio e baixo salrio, e que o comrcio pode na verdade ter impul-sionado os trabalhadores para os setores de alta rentabilidade (que, nos Estados Unidos, tendem a ser os produtos exportveis).

    As reviravoltas desse debate foram bem apresentadas por Cline (1997), que examina e avalia criticamente esses e outros

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    estudos empricos. Como tenho pouca coisa nova a contribuir para esse debate em particular, satisfao-me em citar a prpria concluso de Cline (1997, p.177): Minha prpria estimativa que as influncias internacionais contriburam em cerca de 20% para o aumento da desigualdade salarial na dcada de 1980. Como ele observa, isso est na extremidade superior da faixa de 10% a 20% com a qual a maioria dos economistas do comrcio se contentaria.

    Entretanto, independente de se tomar 10% ou 20% como o nmero mais realista, alguns pontos de elaborao se fazem necessrios. Como j declarei, esse nmero foi gerado conside-rando-se uma reduo muito limitada nas questes, um ponto que ser ampliado na prxima seo. Em segundo lugar, em certo sentido, nem 10% nem 20% so realmente um nmero pequeno. A economia notoriamente ruim em quantificar foras que a maioria das pessoas acredita serem muito importantes. Por exem-plo, nenhum modelo amplamente aceito atribui liberalizao do comrcio no ps-guerra mais que uma frao muito minscula da prosperidade aumentada dos pases industrializados avanados. Entretanto, a maioria dos economistas acredita que a expanso do comrcio foi muito importante nesse progresso.

    A evidncia emprica para o que o principal antagonista de uma causa alternativa da crescente desigualdade salarial a mudana tecnolgica em favor de uma mo de obra qualificada est longe de ser esmagadora.2 Observe, alm disso, que difcil tratar a mudana tecnolgica como sendo totalmente indepen-dente do comrcio. O comrcio pode atuar como um canal para a tecnologia e criar presses para a mudana tecnolgica. Quando Rubert Murdoch segue um impulso de compra global e substitui os trabalhadores por mquinas em todos os jornais que adquire, no est de modo algum claro que as presses resultantes no

    2 Talvez o trabalho mais convincente sobre esse registro seja o de Berman; Machin; Bound (1996).

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    mercado de trabalho devam ser atribudas mais mudana tecnolgica do que globalizao.3 Ento, quando os economistas dizem que o efeito do comrcio pequeno, eles certamente no esto dizendo que ele pequeno em relao a alguma outra causa que realmente identificaram. Por esse motivo, declaraes do tipo o comrcio teve uma importncia secundria em comparao com a mudana tcnica so imprecisas.

    Consequncias de uma demanda mais elstica por trabalhadores

    Em uma economia mais aberta para o comrcio e o inves-timento estrangeiros, a demanda por mo de obra geralmente responder mais a mudanas no preo da mo de obra, ou ser mais elstica. A razo disso que os empregadores e os consu-midores finais podem substituir mais facilmente os trabalha-dores locais por trabalhadores estrangeiros quer investindo no estrangeiro ou importando produtos feitos por trabalhadores estrangeiros. Como a demanda por mo de obra uma demanda derivada, que varia proporcionalmente com a elasticidade da de-manda por produtos, a integrao dos mercados de produtos por si s torna mais elstica a demanda por mo de obra domstica (Richardson; Khripounova, 1996). A questo colocada clara-mente pelo deputado trabalhista Thomas R. Donahue (citado no Ministrio do Trabalho dos Estados Unidos, 1994, p.47): O mundo se tornou um enorme bazar com as naes vendendo suas foras de trabalho em competio uma com a outra, oferecendo os preos mais baixos para realizar negcios. Os clientes, claro, so as corporaes multinacionais.

    3 O exemplo de Murdoch foi dado por Eli Berman durante sua apresentao do trabalho de Berman; Machin; Bound (1996), no Institute of the National Bureau of Economic Research, Cambridge, MA.

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    No modelo de comrcio padro de Heckscher-Ohlin, a de-manda por mo de obra domstica na verdade perfeitamente elstica (reagindo infinitamente s mudanas nos custos salariais) enquanto houver uma especializao incompleta, mesmo na ausncia de investimento estrangeiro.4 De maneira mais geral, a demanda por qualquer fator de produo (como a mo de obra) torna-se mais elstica quando outros fatores (como o capital) podem reagir s mudanas no ambiente econmico com maior facilidade (por exemplo, mudando-se para o estrangeiro).5

    Um dos achados mais robustos da literatura emprica sobre o comrcio que a integrao do comrcio aumenta a elasticidade da demanda por produtos vista pelos produtores domsticos, um fato revelado por uma reduo nas margens de preo e custo. Visto que, como mencionado anteriormente, a demanda por mo de obra uma demanda derivada, com um vnculo direto entre as elasticidades da demanda do produto e dos mercados de trabalho, essa evidncia tem uma relevncia bvia aqui. Em um estudo recente, Matthew Slaughter apresentou uma evidncia ainda mais significativa. Slaughter (1996) documenta que a demanda por mo de obra produtiva nos Estados Unidos tornou-se mais elstica desde a dcada de 1960 na maioria das indstrias manufatureiras de dois dgitos e que a elasticidade da demanda por mo de obra tende a ser maior (em valores abso-lutos) nas indstrias que exibem maiores nveis de integrao internacional. Similarmente, Richardson e Khripounova (1996) relatam uma duplicao da elasticidade transversal da demanda entre 1979 e 1991 para os trabalhadores da produo, mas (curio-

    4 Ver Leamer (1996) para uma bela exposio. 5 Isto segue o princpio de Le Chatelier-Samuelson. Agradeo a Avinash Dixit

    por me lembrar da relevncia desse princpio nesse contexto. O Apndice A apresenta um modelo simples em que a elasticidade da demanda por mo de obra domstica aumenta com a mobilidade internacional do capital fsico.

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    samente) no para os trabalhadores no pertencentes rea da produo. Observe que as medidas de abertura relevantes nesse contexto no so os volumes do comrcio ou do investimento, mas a facilidade com que as transaes internacionais podem ser realizadas.

    Embora grande parte disso seja bem reconhecido, suas im-plicaes no funcionamento do mercado de trabalho no tm recebido muita ateno. Como notado anteriormente, a literatura econmica tem se concentrado em identificar at que ponto a curva da demanda por mo de obra no qualificada diminuiu, e no nas consequncias do aumento na elasticidade dessa de-manda. Concentrar-se nestas ltimas importante porque elas podem ser responsveis por muitas das mudanas observadas no mercado de trabalho sem estarem acompanhadas por grandes mudanas nos fluxos do comrcio e do investimento ou nos pre-os relativos dos produtos. Como foi observado na Introduo, o aumento na substituio dos trabalhadores no qualificados entre as fronteiras afeta trs ingredientes fundamentais das relaes de trabalho: a incidncia dos custos no salariais, a volatilidade dos ganhos e das horas trabalhadas e a barganha no local de trabalho. Vou considerar um de cada vez.

    Incidncia

    As oportunidades aumentadas de comrcio e investimento tornaram mais difcil aos trabalhadores atingir um alto nvel de padres de trabalho e benefcios. Os custos das condies de trabalho melhoradas no podem mais ser compartilhados com os empregadores com a mesma facilidade que antes porque estes esto mais sensveis s mudanas nesses custos. Quanto maior for essa elasticidade na demanda por mo de obra, mais elevada ser a parcela desses custos que os prprios trabalhadores tero de arcar.

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    Figura 1 Efeito da abertura na distribuio dos custos dos pa-dres de mo de obra entre empregadores e trabalhadores

    salrio

    w0

    BC

    A

    Ls

    wlw1

    Ld (economia aberta)

    Ld (economia fechada)

    emprego

    A imposio de um padro de mo de obra desloca para cima a curva de suprimento de mo de obra (Ls). Em uma economia fechada, os salrios caem de w0 para w1. Em uma economia aberta, os salrios caem de w0 para w1.

    A questo pode ser analisada usando-se a estrutura de supri-mento e demanda (Figura 1). O equilbrio inicial do mercado de trabalho no Norte representado pelo ponto A, com os salrios em w0. Agora considere as consequncias de elevar os padres de mo de obra digamos, aumentando a segurana no local de trabalho. Da perspectiva dos empregadores, os padres da mo de obra podem ser encarados como um imposto sobre o trabalho. O resultado um deslocamento ascendente na curva de suprimen-to de mo de obra efetiva (Ls) por uma quantidade correspondente ao custo adicional (por trabalhador) de introduzir o padro. No novo