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1 A HERANÇA CULTURAL JUDAICA NO AGRESTE PERNAMBUCANO. –“E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?(MARCOS 8:28) Um estudo sobre a rota dos cristãos novos no interior de Pernambuco e como vivem os b’nei anuss- Autora: Ana Lígia Lira. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas (ESURP), Especialista em Diplomacia e Negócios Internacionais (Faculdade Damas da Formação Cristã) Mestranda em Historia (UFRPE). E-mail: [email protected] Resumo: O presente estudo ocupa-se em investigar possível rota de migração de cristãos novos para o interior de Pernambuco, tomando como base a confluência de costumes, o estudo das memórias afetivas e o estudo de ruínas que indicam a ocupação destes indivíduos na região citada. Com esta contribuição, pretendemos despertar o interesse para novos estudos que considerem novas rotas de migração dos judeus saídos do Recife no período tanto da colonização holandesa (século XVII) quanto pós- colonização holandesa. Este estudo chama atenção ainda para a necessidade do resgate cultural das tradições judaicas que até pouco eram preservadas, mas que entram em desgaste no interior de Pernambuco, assim como as ruínas possivelmente antes habitadas por cristãos novos. Palavras- chave: judeus, êxodo, b’nei anussin. Para o exercício do estudo da historia, tarefa que hoje com a interdisciplinaridade abraça muito além dos historiadores, mas também escritores, literatos, sociólogos, filósofos e tantos outros, é necessário reavaliar as fontes e relatos históricos de forma constante, discutir e entender novas fontes documentais e usar

A HERANÇA CULTURAL JUDAICA NO AGRESTE … · Cimbres é que no periodo de 10 de outubro de 1840 até 14 de julho de 1852, consta a assinatura de Manuel Vicente da Anunciação nas

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A HERANÇA CULTURAL JUDAICA NO AGRESTE

PERNAMBUCANO. –“E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU

SOU?(MARCOS 8:28)

Um estudo sobre a rota dos cristãos novos no interior de Pernambuco e como

vivem os b’nei anuss-

Autora: Ana Lígia Lira.

Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Relações Públicas

(ESURP), Especialista em Diplomacia e Negócios Internacionais (Faculdade Damas da

Formação Cristã) Mestranda em Historia (UFRPE). E-mail: [email protected]

Resumo: O presente estudo ocupa-se em investigar possível rota de migração de

cristãos novos para o interior de Pernambuco, tomando como base a confluência de

costumes, o estudo das memórias afetivas e o estudo de ruínas que indicam a ocupação

destes indivíduos na região citada. Com esta contribuição, pretendemos despertar o

interesse para novos estudos que considerem novas rotas de migração dos judeus saídos

do Recife no período tanto da colonização holandesa (século XVII) quanto pós-

colonização holandesa. Este estudo chama atenção ainda para a necessidade do resgate

cultural das tradições judaicas que até pouco eram preservadas, mas que entram em

desgaste no interior de Pernambuco, assim como as ruínas possivelmente antes

habitadas por cristãos novos.

Palavras- chave: judeus, êxodo, b’nei anussin.

Para o exercício do estudo da historia, tarefa que hoje com a

interdisciplinaridade abraça muito além dos historiadores, mas também escritores,

literatos, sociólogos, filósofos e tantos outros, é necessário reavaliar as fontes e relatos

históricos de forma constante, discutir e entender novas fontes documentais e usar

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diversas ferramentas que proporcionem olhar o passado histórico e perceber o quanto

ele está vivo no presente. Assim, teremos a possibilidade de construir, a cada narrativa,

ou em cada vestígio deixado pela humanidade, uma nova possibilidade, um novo signo

que possa proporcionar a reinterpretação do passado e servir de base na construção do

agora e do depois fazendo emergir, como nos ilumina o termo criado por Jean Marie

Goulemot em A biblioteca vivida. Ou seja, a memória de leituras anteriores e de dados

culturais.

A “biblioteca vivida” era, aparentemente, tudo que se tinha ao iniciar este

trabalho de pesquisa sobre a possível presença de cristãos novos no interior do estado de

Pernambuco, mais precisamente na antiga Vila de Cimbres. Os indícios pareciam

resumir-se apenas aos costumes. Porém, mesmo que assim o fosse, era lago que merecia

ser objeto de estudo dada a importância de determinados traços do cotidiano na

formação cultural daquelas pessoas.

As observações feitas inicialmente apontaram haver uma confluência nas

memórias coletivas expressas principalmente na fala dos anciões, nos costumes e

contextos populares presentes entre os moradores da Vila de Cimbres, agreste

setentrional de Pernambuco, e nos costumes, estórias e contextos presentes em

comunidades judaicas observadas pela autora através do estudo da literatura e de

entrevistas com rabinos ortodoxos, conservadores ou reformistas.

Tenciona‐se, então, problematizar – sem quaisquer pretensões de esgotamento

ou completude - como a população da Villa de Cimbres adquiriu estes costumes,

tradições e saberes estando, geograficamente, tão distante da comunidade judaica

recifense e sendo completamente desconhecedora da existência da mesma. Teríamos

então indícios de uma nova rota de migração judaica ainda não estudada? Estaríamos

nos referindo a população formada por b’nei anuss1 ?

1 B'nei anussim (em português, "filhos dos forçados") designa os descendentes de judeus convertidos à

força (anusim) .São considerados B'nei anussim os descendentes dos

judeus sefarditas portugueses e espanhóis que foram obrigados a abandonar a Lei judaica e a

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Mumford joga luz sobre a questão quando diz que talvez o fato mais importante

de toda a transição urbana fosse o deslocamento de população que ocorreu em todo o

planeta e que a colonização por meio de comunidades deu lugar à colonização por

indivíduos ou seja, podemos considerar então que para uma comunidade ser formada tão

longe de suas origens, não seria absolutamente necessário uma migração em massa, mas

apenas a migração de alguns indivíduos. No entanto, a migração de apenas alguns

indivíduos poderia passar despercebida pela história, acostumada a investigar apenas os

grandes movimentos migratorios.

Este fenômeno de procurar lugar onde se possa construir um futuro, ou ao menos

viver o presente, é comum tanto nos idos da história da humanidade como na história do

tempo presente.

“Um dos problemas de nosso tempo, como diz Bauman em sua

imprescindível obra Vidas desperdiçadas (2004), é que vivemos

em um planeta que está socialmente cheio. Quer dizer, já não há

lugar onde “depositar os resíduos” nem sequer essa classe de

“resíduos humanos”, que não se restringe aos imigrantes, mas a

toda população que se encontra deslocada de seu lugar de

origem, considerada profissionalmente obsoleta e sem inserção

laboral”2

Conscientes que os primeiros moradores de Cimbres viveram onde hoje se

encontram a zona rural e a aldeia indígena, e que era preciso nos aproximar o máximo

possível do que houvesse sobrado destes tempos e destes povos para entender se houve

de fato o que os relatos da população e suas memorias afetivas indicavam claramente

ter havido, direcionamos um olhar especial para as ruínas existentes na região. Como

converterem-se ao cristianismo, contra a sua vontade, para escapar às perseguições movidas

pela Inquisição.

2 Côrrea, Elyane Lins. Reconceituações contemporâneas do patrimônio - Vol. 1. Edufba. 2011

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são muitas, foi preciso delimitar uma área de estudo. Para esta delimitação, usou-se os

seguintes critérios:

- Existência de ruínas que apresentassem algum tipo de indicio que conversasse com a

cultura judaica.

- Permissão dos proprietários ou autoridades para realização dos estudos.

-Não ser uma área cujas ruínas tenham sofrido interferências arquitetônicas recentes.

Uma das ruínas mais importantes encontradas trata-se de uma casa de tijolos

que exibe, de forma muito contundente, a estrela de seis pontas ou, hexagrama e está

em área indígena da tribo Xukuru do Ororubá, pertencente anteriormente ao território

da Vila de Cimbres.

As ruínas da casa que chamaremos de “Casa da estrela” apresentam, além da

estrela, paredes reforçadas, está em localização com vista privilegiada, porém de difícil

acesso. Em suas dependências, dispõe de forno para fabricação de tijolos o que indica

que sua construção foi feita com certa independência e está situada de forma que daria

acesso a pé aos seus moradores a outras ruínas que também apresentam características

e histórias de terem servido como habitação para Cristãos novos.

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Fotos: Marcella Gusmão.

Para compreensão de porque os judeus se deslocariam para o agreste de Pernambuco, vale

lembrar que no termo de rendição, os holandeses haviam exigido a corte de Portugal que os

judeus deveriam ser tratados da mesma maneira que outros cidadãos holandeses em

Pernambuco: eles teriam que deixar a região dentro de três meses e seriam autorizados a vender

sua propriedade e negócios.

(...) Apenas alguns (judeus) permaneceram no Brasil. Muitos dos que

não conseguiram sair, fosse por razões financeiras, ou principalmente

pessoais, foram mortos pelos portugueses. Para sobreviver alguns

tornaram a praticar o cripto-judaísmo. Estes viviam longe das

autoridades, no interior do Brasil. Alguns se tornarão donos de glebas

no ermo sertão nordestino, convivendo com indígenas bem diferentes

dos existentes no litoral, criando bovinos, caprinos, plantando algodão,

fumo e tocando a vida. É possível que alguns dos judeus que

buscaram refúgio no interior do sertão do Nordeste do Brasil

tenham construído vivendas fortificadas. 3

3https://tokdehistoria.com.br/2016/07/12/15533/

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Uma das casas que já esteve em situação de ruína, mas que mesmo tendo

passado por processo de ressignificação, ainda melhor preserva suas características

originais é o Casarão da fazenda Santa Rosa.

O citado casarão é o único tido claramente pela população simples do local,

porém população esta cuja ancestralidade é residente nas paragens já há séculos, como

casa de judeus e nele viveu talvez o único personagem que a história o define

objetivamente como judeu no agreste de Pernambuco: Manuel Vicente d’Anunciação.

Com construção datada de 1822, o casarão fica localizado em uma propriedade

que há época chamava-se “Lagoa dos cavalos” e era rota e parte do distrito de Cimbres.

Hoje denominada como Santa Rosa, é distrito da cidade de Alagoinhas (Pernambuco) e

faz fronteira com o território de Pesqueira.

Segundo matéria publicada no jornal portugues Correio da Manhã4 , o português

Manuel Vicente d’Anunciação partiu, só com a roupa do corpo, de Portugal para o

Brasil em 1820 e tornou-se um dos homens mais ricos da colónia, morrendo em 1889.

A informação referente ao ano da morte de Manuel Vicente levanta dúvidas já

que em verificação minuciosa tanto nos arquivos de óbito da Curia Diocesana de

Pesqueira como do Cartório de Registro Civil de Cimbres referentes ao ano de 1889 não

há nenhum registro ou referencia a morte dele como também não há registros em um

recorte temporal de cinco anos antes e cinco anos após a data citada pelo jornal.

O que sabemos mediante analise dos documentos citados no livro de atas de

Cimbres é que no periodo de 10 de outubro de 1840 até 14 de julho de 1852, consta a

assinatura de Manuel Vicente da Anunciação nas atas da Câmara Municipal de

Cimbres. Em 27 de dezembro de 1852 ele assina a ata de fundação da Catedral

Católica da Vila de Sant’Agueda, hoje cidade de Pesqueira. Estes dados apontam

para o fato de que Manuel desempenhava um papel de destaque e liderança na

sociedade daqueles dias.

4 Herança Desaparecida dá Guerra nos Tribunais. Correio da Manhã, Portugal, 02 de set. de 2006. Disponível em http://www.cmjornal.pt/portugal/detalhe/heranca-desaparecida-da-guerra-nos-tribunais. Acesso em 08 de Dez. 2017.

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Na região onde se localiza a construção ainda residem descendentes seus que

contam, sem qualquer conhecimento relativo a fé judaica, fatos que apontam para a

condição de cristão novo do primeiro proprietário da Fazenda Santa Rosa.

Em entrevista concedida em novembro de 2006, Francisca de Santana, então

com 96 anos de idade, lúcida e sendo neta de Manuel Vicente, tendo ela ainda residido

na Santa Rosa embora não tenha conhecido pessoalmente o avô, relatou que o seu pai,

filho de Manuel Vicente, contava as historias dos tempos dificeis, tempos de

perseguições, das pessoas que passavam semanas escondidas no porão da casa grande,

das rezas que precisavam serem feitas a portas fechadas e das velas que o povo pensava

serem para as almas. Ela afirma que não sabia quais rezas estranhas eram aquelas que

o seu pai rezava e nem o que tinha em um livro no qual só os homens podiam tocar e

que se perdeu no tempo.

“A antiga casa do comerciante português Manuel Vicente D

Anunciação, na fazenda Lagoa dos Cavalos, a cerca de cinco

quilómetros da cidade de Pesqueira, resiste ao tempo e ao abandono.

Imponente mesmo para os padrões actuais da região 144 metros

quadrados de área construída e telhado com eira e beira, na época

símbolos de poder e dinheiro. (...) O forro do telhado, todo em madeira

de cedro, por exemplo, já foi completamente destruído. E as paredes de

70 centímetros de espessura, padrão da época, estão a ser substituídas

por outras menores, de tijolo, no lugar do tradicional adobe. O porão foi

todo aterrado, o que pode ter encoberto vestígios de um suposto

esconderijo, tal como o sótão da casa. Supõe-se que eram espaços

utilizados para esconder judeus fugitivos das autoridades religiosas

europeias.5”

5 Herdeiros de Português Lutam por Fortuna Desaparecida. Diário de Trás os Montes, Portugal, 03 de

Set. de 2006. Disponível em http://www.diariodetrasosmontes.com/noticia/herdeiros-de-portugues-

lutam-por-fortuna-desaparecida. Acesso em 08 de Dez. 2017.

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Foto: Ana Lígia Lira.

A valorização dos marcos patrimoniais se fazem bússolas de viagem para

prováveis navegantes da história. Eles são pequenos pontos de luz, lembranças que se

fazem indícios.

No ano de 1887 dar-se inicio ao inventário de Margarida Jacome Bezerra, esposa

de Manuel Vicente. O evento da viuvez parece ter levado Manuel Vicente para o olho

de um furacão pois no desenrolar do inventario ele é intimado várias vezes a prestar

contas dos bens deixados pela esposa, vê seus filhos e genros se decladearem pela

herança e tem sua privacidade exposta nos atos de avaliação e leilão promovidos pelo

juizado da Comarca de Cimbres.

A proposito, são estes autos de avaliação e leilão que muito nos interessa neste

trabalho já que fornecem informações capazes de nos aproximar de um perfil do

cotidiano, das posses e da vida privada daquela familia.

Como exemplo da importancia de tais documentos para reconstrução dos

cenários que podem nos indicar ou negar a presença de judeus, segue a transcrição

paleografica de alguns trechos do inventário. (enriquecer)

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Transcrição paleografica da página 10/11 do Testamento lavrado por ocasião da morte

de Margarida Jacome Bezerra, esposa de Manuel Vicente da Anunciação. Datar

01- Moveis e Aviamentos

02- Dinheiro................................................................................Nada

03- Ouro......................................................................................Nada

04- Pratos, taças, copos de prata uza

05- dos e já furados pezando todos

06- treis sentos e noventa e seis oita

07- vas que avaliarão de cento e novem

08- ta seis oitavas, importando em

09- trinta e um mil trezentos e secen

10- ta .31f360

11- Uma taça antiga de prata

12- com duzentoas e cincoenta oitavas

13- que avaliarão a nove e centos

14- a oitava, importando em qua

15- renta mil reis .40f000

16- Umas colheres de prata inutili

17- zadas, com se centa e quatro

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18- Oitavas a cento e se cuenta e seis

19- mil duzentos e quarenta .10f240

20- Um tacho grande velho e fu

21- Rado que avaliarão em cin

22- Co mil reis .5f000

23- Uma meza redonda que

24- Avaliarão em oito mil reis .8f000

25- Uma outra grande velha que avaliará em seis

26- Uma outra menor com duas

27- Gavetas em estado que avaliarao e quatro mil reis6 .4f000

28- Uma outra pequena sem ga

29- Veta que avaliarao em dois mil reis .2f000

30- Uma cadeira de gaveta de guar

31- ----- que avaliarão em oito mil reis. .8f000

32- Uma cadeira velha de ---------

33- Que avaliarao em seis mil reis .6f000

34- Uma outra de ------que a

35- Valiarao em dois mil

36- Reis .2f000

37- Duas máquinas de descaroçar

38- algodão estando uma em bom

39- estado que avaliarao em cem

40- mil reis a de bom estado, e a outra .1.000f00

6 Os "Cristãos-Novos", utilizavam-se desse método

para esconder a comida quando chegava visita: esse costume é erroneamente relacionado à sovinice. Os

cristãos-novos e seus descendentes desenvolveram o hábito de guardar a comida que estavam comendo

quando chegava um visitante – normalmente um cristão-velho. Para isso, as mesas da copa tinham

gavetas. A raiz desse costume é que muitos cristãos-novos, apesar do batismo forçado, continuavam

praticando secretamente a sua religião. E no judaísmo, a comida deve ser kasher, ou seja, a comida

recomendada pela Torah, na qual existem alimentos proibidos aos judeus – Levíticos 11 – como, por

exemplo, a carne de porco, peixe sem escama, entre outros. Dentro desse preceito, há receitas tipicamente

judaicas. E se um cristão-velho chegasse de repente à casa e visse essa comida típica, fatalmente o

cristão-novo seria reconhecido e denunciado. Por isso, eles guardavam o que estavam comendo nas

gavetas, e ofereciam outra coisa ao visitante. Fonte de pesquisa: http://anussim.org.br/a-influencia-dos-

judeus-cristaos-novos-na-cultura-mineira/

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41- em mau estado que avaliarão em

42- quarenta mil reis. .40f000.

No restante deste documento, lê-se que a propriedade contava com vacas, cavalos e

escravos.

O casario tanto de Cimbres como da cidade de Pesqueira apresentam uma

particularidade digna de nota neste estudo: a frequência da estrela como ornamento na

faixada das casas. Podemos ter aqui uma discreta referencia a fé judaica e a presença de

judeus naquelas moradias, ou, ainda, uma referencia a quem as levantou ou planejou.

A Estrela de Davi, “estrela dos judeus”, é um símbolo de proteção, que também

representa a união dos opostos. Apesar de ser um hexagrama (estrela de seis pontas),

que é representada por dois triângulos equiláteros sobrepostos, esse símbolo representa

o número 7. Isso porque a soma da sua estrutura (pontas dos triângulos, 6, mais seu

centro) resulta nesse número, que é perfeito para o Judaísmo.

Também conhecido como Escudo de Davi, teria esse nome pelo fato de o rei

Davi ter usado um escudo nesse formato. O objetivo era poupar no metal na criação

dessa arma. Depois de o rei Davi ter usado esse escudo, seu exército passou a utilizar a

sua imagem nos escudos acreditando que o símbolo lhes trouxesse proteção.7

No entanto, vale ressaltar que o símbolo judaico que marca as casas dos judeus é

a mezuzá e não a estrela de Davi. Sendo assim, já que em algumas fachadas se

colocavam flores, em outras cálices, uma estrela passaria de forma discreta em tempos

de relativa paz. Já a presença de um mezuzá, se colocada como manda a lei judaica, não

poderia de forma alguma passar despercebida.

O Mezuzah é um talismã que representa proteção e também a fé dos devotos

judeus. Esse objeto é usado no lado direito das portas das casas e são tocados antes das

pessoas entrarem nas suas habitações. Consiste em um pequeno recipiente, dentro do

qual há um pergaminho com um texto sagrado.

7 Disponível em https://www.dicionariodesimbolos.com.br/simbolos-judaicos/ 10 de Fev.2018

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A pessoa a afixar a mezuzá deve ter uma idade superior a do bar mitzvah

(menino com idade superior a 13 anos), e a colocação deve ser feita de uma maneira

permanente. Se colocadas em arcos não é necessária realização da prece e se mais de

uma mezuzá for afixada ao mesmo tempo, só uma prece deve ser recitada.

Nas costas do pergaminho está escrito em hebraico a palavra Shadai , que quer

dizer Onipotente. Quando o pergaminho for enrolado esta parte deve estar voltada para

frente na hora de se fechar a caixa que vai conter a prece.

Antes de afixarmos a mezuzá no batente da porta a seguinte brachá (benção)

deve ser recitada:

Bendito sejas, ó Eterno, nosso D'us, rei do Universo, que nos

santificastes com seus preceitos, ordenando-nos a colocação da mezuzá.

Baruch ata Adonai Elohênu mélech haolam, asher kideshanú bemitsvotav

vetsivanu likboa mezuzá.8

Alguns historiadores, como Antonio Gutemberg da Silva (UEPB), no seu artigo

“O marranismo na Paraíba: aceitação, adaptação e resistência”, apontam que a Mezuzá

teve sua presença reafirmada na simbologia do uso das cruzes feitas de palha de coco e

colocadas nas portas, coisa comum nas comunidades rurais de Pernambuco e da

Paraiba.

Para efeito de comparação a cruz colocada atrás da porta, no passado, tinham

um formato hexagonal, assemelhando-se a estrela de Davi a qual seria um dos

maiores símbolos do judaísmo e que está presente na maior parte dos objetos

sagrados dos judeus tendo também a noção de se trazer sorte e afastar o mal,

uma vez que a estrela seria o sinal da vinda e da presença do messias atestado

pelos judeus em Ap. 22:16. Ou ainda Colossenses 2: 8-9. Tomando por base os

estudos do professor Ângelo de Assis9 , o uso da Mezuzah pode nos remeter ao

8 https://www.coisasjudaicas.com/2011/07/como-colocar-mezuza.html 9 Angelo Adriano Farias de Assis é Professor da Universidade Federal de Viçosa e pesquisador da

Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa. Doutor em História pela

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uso de cruzes afixadas nas paredes ou portas no intuito de trazer felicidade e

afastar o mal. Neste sentido pela porta da frente só se pode entrar o bem.10

A “cruz” citada pelo historiador, trata-se da cruz feita com folhas de palmeiras.

Palhas estas provenientes principalmente das celebrações acontecidas no domingo de

ramos. Segundo a tradição, quando Jesus entrou em Jerusalém antes da páscoa, a

população colheu folhas e ramos e forrou o chão por onde Ele passava montado em seu

jumento. Os ramos foram usados então como forma de saudar a chegada do Méssias

para os cristãos.

Está no costume da Igreja usar dos ramos abençoados neste dia para que, depois de

secos, sejam queimados e usados na quarta-feira de cinzas. É antiga a tradição de

queimá-los quando chegava o tempo de colheita, quando se aproximava uma

tempestade ou ainda queimar estes ramos em torno de casa ou do local de trabalho para

livrar de pestes e bichos peçonhentos. No entanto, o costume de transformar estas

palhas em cruzes e coloca-las por trás das portas é algo pouco encontrado fora da região

nordeste do Brasil e vem despertando o interesse da comunidade judaica.

Fotos: arquivo do Rabino Cukierkom.

Em sua pesquisa para o rabinato, o já agora Rabino Cukierkorn, percebeu o

mesmo costume entre os moradores da pequena cidade de Venha-Ver, Rio Grande do Norte,

Universidade Federal Fluminense com pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Professor Adjunto da

Universidade Federal de Viçosa. 10 Artigo :O marranismo na Paraíba: aceitação, adaptação e resistência. Antonio Gutemberg da Silva.

UEPB, Aluno de Especialização em História do Brasil/Paraíba pela FIP. Pag.09

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cidade que faz fronteira com a Paraíba. A localidade foi foco de seus estudos onde ele aponta

origens judaicas daquela população. O Rabino acredita que o uso das cruzes têm sua origem no

uso da mezuzá — pequena caixinha com uma reza que os judeus fixam nos batentes das portas.

Muitas delas têm formato hexagonal, como a Estrela de David, símbolo da fé judaica. A

população explica as cruzes nas portas de suas casas como uma proteção contra o mal, o

demônio, a ventania e os raios. Os judeus fixam a mezuzá nos batentes para demarcar a proteção

divina sobre a casa.11

É muito frequente o uso de tais cruzes nas casas em toda zona rural do antigo

território de Cimbres, na verdade, é quase um item obrigatório nas casas onde há

pessoas religiosas. No entanto, se as cruzes forem realmente representações da Mezuzá,

como explicaríamos também o uso das estrelas nas faixadas das casas? Em entrevista

feita por e-mail, o estudioso judeu Sergio Mota e Silva explicou:

“Quanto a cruz que colocam na porta não é um costume judaico, mas no

fundo substitui a Mezuzah, o receptáculo que contem um salmo colocado no

lado direito do portal da casa como era costume dos judeus portugueses. Em

muitas casas de judeus hoje ainda existentes em várias cidades de Portugal há

cruzes em baixo relevo para indicar que ali morava um judeu e agora são

cristãos-novos. Então, pode vir daí essa idéia de se colocar a cruz na porta já

que em Portugal usavam até bambu para confeccionar a mezuzá. Sobre o Signo

de Salomão mencionado pode sim ser um indício de costume dos judeus de

Portugal e da Galícia espanhola onde no bairro judeu as casas tem acima da

porta uma arte em forma de estrela de cinco pontas, o chamado signo de

Salomão (no Sul do Brasil chamam de Sin Salamão ou Sinu Saimão). Embora

não seja um signo oficial judaico era comum eles utilizarem como proteção da

casa além da Mezuzah. Convém lembrar que nem a estrela de seis pontas a

Maguen David era oficial no Judaísmo em Portugal. A oficialização da Maguen

David foi feita por rabinos alemães no século XVII e demorou a chegar às

comunidades sefaraditas hispano-portuguesas mesmo que algumas já

utilizassem esse símbolo. Ambas as estrelas eram símbolos mágicos não da

bruxaria mas para proteção de prédios e dos lares no Oriente Médio.”

11 https://tokdehistoria.com.br/tag/venha-ver/

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No entanto, na nossa realidade de estudo, o que constatamos com frequência no casario da

cidade de Pesqueira é o uso da estrela sempre em lugar de destaque.

“Os judeus penetraram em muitas sociedades e em todas elas deixaram a sua marca.” 12

Fotos: Ana Lígia Lira

O arquiteto Espanhol, Emilio Fonseca, em seu artigo “Viviendas de judíos y conversos

en Galicia y el Norte de Portugal ” Alerta para o fato de que é muito difícil determinar se uma

casa era de fato residência de um judeu caso não haja nela características particulares como

a presença do local da mezuzá ou, acrescentaria eu, uma mikve. Isto se deve ao fato de que

estas pessoas geralmente não queriam serem descobertas como judias ou praticantes de atos

religiosos judaizantes.

De conformidad con los historiadores no existen diferencias en cuanto

a la tipología de la vivienda de los judíos y los cristianos en la Edad Media. Sus

casas y viviendas eran similares en cuanto respondían a un mismo modo de

vida conforme con el nivel económico y la posición social del propietario (1). Es

por tanto difícil establecer por su configuración espacial y funcional que una

determinada vivienda situada en un burgo o en una ciudad, se encuentre o no

12 «In Paul Johnson, História dos Judeus – edit. Imago, p. 14»

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en el interior de la antigua aljama, el call (2) o la judería, perteneció o fue

habitada por una familia judía. El modo de vida judío era en todo parecido al

de los cristianos salvo en lo relativo a las prescripciones alimenticias, los usos

religiosos, las fiestas, y el día de descanso semanal. No existen por tanto

condiciones morfológicas singulares que diferencien la vivienda de un judío de

la de un cristiano. Lo que caracterizaba y singularizaba externamente la

vivienda de un judío era la mezuzá (3): una pequeña caja que guarda un rollo o

pergamino en el que están escritos unos determinados versículos del

Deuteronomio y que debe ser colocada, aproximadamente a la altura del

hombro de una persona adulta, en el plano interior de la jamba, con

preferencia la del lado derecho, de la puerta de entrada a la vivienda13

Podemos concluir então que, os sinais para identificação dos rastros desse povo

são extremamente discretos.

É ainda muito interessante o relato de outro espanhol, desta vez o escritor e

viajante José Luis do Pico Orjais, ao relatar em seu blogue de viagens que, em alguns

vilarejos da Espanha, é comum encontrar cruzes esculpidas nas entradas das casas, em

lugares onde provavelmente anteriormente havia uma mezuzá, como em uma tentativa de

afirmação que naquela morada residem cristãos e não judeus.

13 http://anuariobrigantino.betanzos.net/Ab2004PDF/2004%20431-466%20EMILIO%20FONSECA.pdf

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Fotos: José Luis do Pico Orjais14

Podemos perceber que a relação cruz x mezuzá sempre foi um jogo de esconde x

amostra quanto a ser ou não ser judeu.

Podemos concluir então que, os sinais para identificação dos rastros desse povo são

extremamente discretos.

Referencias Bibliograficas:

GOULEMOT, J.M (1996). Da leitura como produção de sentidos. In Chartier, R. (org) Práticas da

Leitura. São Paulo: Editora Estação Liberdade. Pg.113

MUMFORD, Lewis. “Paraíso Paleotécnico: Coketown” In: A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes, 1998. [1961]Pg 485:

14 http://ilhadeorjais.blogspot.com.br/2017/12/