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FICHA TÉCNICA Título original: A Higher Loyalty Autor: James Comey Copyright © James Comey, 2018 Edição portuguesa publicada por acordo com Kaplan/DeFiore Rights através de The Foreign Office Agência Literária, S. A. Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Tradução: Maria João Ferro, Maria João da Rocha Afonso e Cristina Carvalho Coordenação da tradução: Maria João Ferro Revisão: Editorial Presença Capa: Vera Espinha/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. Depósito legal n.º 444 021/18 1.ª edição, Lisboa, setembro, 2018 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 Barcarena [email protected] www.presenca.pt

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FICHA TÉCNICA

Título original: A Higher LoyaltyAutor: James ComeyCopyright © James Comey, 2018Edição portuguesa publicada por acordo com Kaplan/DeFiore Rights através de The Foreign Office Agência Literária, S. A. Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2018 Tradução: Maria João Ferro, Maria João da Rocha Afonso e Cristina CarvalhoCoordenação da tradução: Maria João FerroRevisão: Editorial PresençaCapa: Vera Espinha/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.Depósito legal n.º 444 021/181.ª edição, Lisboa, setembro, 2018

Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 [email protected]

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ÍNDICE

Nota do Autor ......................................................................................... 11

Introdução ......................................................................................... 17

1. A Vida .......................................................................................... 21

2. Esta Coisa Nossa ........................................................................... 31

3. O Rufia ......................................................................................... 46

4. Significado .................................................................................... 57

5. A Mentira Fácil ............................................................................. 67

6. No Caminho Certo ........................................................................ 92

7. Viés de Confirmação ...................................................................... 118

8. À Sombra de Hoover ..................................................................... 134

9. Escutar como em Washington ....................................................... 156

10. Atropelamento de Animais .............................................................. 175

11. Falar ou Ocultar .......................................................................... 204

12. A Torre Trump ............................................................................ 228

13. Testes de Lealdade ....................................................................... 246

14. A Nuvem .................................................................................... 264

Epílogo .............................................................................................. 297

Agradecimentos ................................................................................. 301

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INTRODUÇÃO

A capacidade que o Homem tem para a justiça torna a demo‑cracia possível, mas a predisposição do Homem para a injustiça

torna a democracia necessária.

Reinhold Niebuhr

Dez quarteirões separam a sede do FBI do Capitólio, e todos eles estão gravados na minha memória graças às incontáveis viagens de ida e volta que tive de fazer ao longo da Avenida Pennsylvania. Passar pelo Arquivo Nacional, no qual os turistas fazem fila para ver os documentos dos Estados Unidos, pelo Newseum — com as palavras da Primeira Emenda gravadas na sua fachada de pedra — e pelos vendedores de T ‑shirts e rulotes de comida tornou ‑se uma espé‑cie de ritual.

Estávamos em fevereiro de 2017 e eu seguia sentado num dos bancos traseiros de um Chevrolet Suburban blindado do FBI. A fila dos bancos do meio do veículo tinha sido retirada, por isso eu ia num dos dois bancos da fila de trás. Habituara ‑me a observar o mundo que passava pelas pequenas janelas laterais à prova de bala. Ia participar em mais uma reunião confidencial do Congresso sobre a interferência da Rússia nas eleições de 2016.

Ter de comparecer perante os membros do Congresso era algo difí‑cil, mesmo num dia bom, e geralmente é desanimador. Quase toda a gente parecia ter tomado partido por um dos lados e parecia ouvir apenas aquilo que interessava às suas próprias conveniên cias. Era habi‑tual começarem a discutir uns com os outros através de mim: «Senhor

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diretor, se alguém dissesse X, essa pessoa não seria idiota?» E a res‑posta surgia através de mim também: «Senhor diretor, se alguém dissesse que alguém que disse X era idiota, não seria essa pessoa a verdadeira idiota?»

Quando a temática era sobre as eleições mais controversas de que há memória, a discussão no rescaldo imediato era ainda mais viru‑lenta, sendo que poucos se mostravam dispostos a pôr de parte os seus interesses políticos para se concentrarem na verdade, ou nem tinham capacidade de o fazer. Os republicanos queriam ter a certeza de que não haviam sido os russos a eleger Donald Trump. Os demo‑cratas, ainda a recuperar dos resultados obtidos algumas semanas antes, queriam o oposto. Havia pouca base de entendimento. Era como estar num jantar de celebração do Dia de Ação de Graças em que os membros da família tinham de comer juntos por imposição do tribunal.

O FBI, e eu como seu diretor, foi apanhado no meio da bílis partidária. Não se podia dizer que fosse uma novidade. Tínhamos sido sugados para as eleições já em julho de 2015, quando os nossos profissionais experientes do FBI desencadearam uma investigação criminal à forma como Hillary Clinton lidara com informação con‑fidencial no seu sistema de e ‑mail pessoal. Eram tempos em que até usar os termos «criminal» e «investigação» era fonte de controvérsia desnecessária. Um ano depois, em julho de 2016, começámos a inves‑tigar a possibilidade de ter existido um tremendo esforço russo para influenciar a votação presidencial, prejudicando Clinton e ajudando a eleger Donald Trump.

Era uma situação desagradável para o FBI, se bem que inevitá‑vel. Embora faça parte do poder executivo, o FBI tem de se manter afastado da política que domina a vida americana. A sua missão é descobrir a verdade. Para o fazer, o FBI não pode tomar o partido de ninguém, a não ser do país. É claro que os membros do FBI podem ter as suas visões políticas pessoais, como qualquer outra pessoa, mas quando os seus funcionários se levantam numa sala de audiências ou no Congresso para relatarem as suas descobertas, não podem ser vistos como republicanos ou democratas ou parte do séquito seja de quem for. Há quarenta anos, o Congresso criou um mandato de dez anos para o diretor do FBI para reforçar essa independência. Porém, numa

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capital e num país destroçados pelos conflitos partidários, a separação do FBI parecia simultaneamente estranha e confusa e era constante‑mente posta à prova. Isso colocava uma pressão tremenda nos quadros da agência, especialmente porque as suas motivações estavam cons‑tantemente a ser postas em causa.

Olhei de relance para Greg Brower, o novo responsável do FBI pelos assuntos do Congresso, que ia comigo no carro para o Capitólio. Greg, natural do Nevada, tinha cinquenta e três anos e o cabelo gri‑salho. Tínhamos ido buscá ‑lo a uma firma de advogados. Antes disso, ele fora o procurador federal principal do Nevada e também fora eleito legislador federal. Conhecia bem o funcionamento das agên‑cias policiais e de investigação criminal, bem como o funcionamento muito diferente e desafiante da política. A tarefa dele era representar o FBI no tanque de tubarões que é o Congresso.

Contudo, Brower não estava preparado para um turbilhão desta envergadura, que aumentou ainda mais após o resultado chocante das eleições de 2016. Greg não estava no FBI há muito tempo, por isso eu temia que toda esta loucura e todo este stresse o pudessem afetar. Quase estava à espera de que ele abrisse a porta do Chevrolet Suburban em andamento e se pusesse a correr em pânico. Se eu fosse mais jovem e tivesse passado menos vezes pela mesa das testemunhas no Congresso, podia ter pensado na hipótese de fazer exatamente o mesmo. Quando olhei para ele, assumi que estava a pensar o mesmo que eu: como é que vim aqui parar?

Percebi essa preocupação na expressão de Brower e, por isso, que‑brei o silêncio.

— ISTO É OU NÃO É O MÁXIMO?! — exclamei num tom troante, que, sem dúvida, captou a atenção dos agentes que seguiam nos bancos da frente.

Brower olhou para mim.— Estamos na MERDA — disse eu.Nesse momento, ele pareceu ficar confuso. Teria o diretor do FBI

acabado de dizer «merda»?Pois é, tinha mesmo.— Estamos na merda até ao pescoço — acrescentei com um sor‑

riso exagerado, mostrando com as mãos até onde estávamos enfiados. — Onde é que poderíamos querer estar? — Mutilando o discurso de

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Shakespeare do dia de São Crispim, acrescentei: — As pessoas que se encontram nas suas camas em Inglaterra neste momento iriam gostar de estar aqui.

Ele riu ‑se e pareceu ficar menos tenso. Também eu fiquei menos tenso. Embora estivesse certo de que a ideia de sair do carro em anda‑mento ainda passasse pela mente de Greg, a tensão dissipara ‑se um pouco. Ambos respirámos fundo. Durante alguns instantes, fomos apenas duas pessoas a passear de carro. Tudo iria correr bem.

Depois esses instantes passaram e encostámos em frente do Capitólio para irmos falar sobre Putin e Trump e sobre as alegações de conspiração e dossiês secretos e sabe ‑se lá mais sobre o quê. Era pura e simplesmente mais um momento de grande tensão naquele que foi um dos períodos mais irracionais, importantes e até educativos da minha vida, e há quem diga da vida do país.

Por várias vezes, continuei a fazer ‑me a mesma pergunta: mas como é que eu vim aqui parar?

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CAPÍTULO 1

A VIDA

Não pensar em morrer é não pensar em viver.

Jann Arden

A vida começa com uma mentira.Em 1992, eu era procurador ‑geral federal assistente na cidade de

Nova Iorque e essas foram as palavras que ouvi da boca de um mem‑bro sénior de uma das famílias do crime mais famosas dos Estados Unidos.

Salvatore «Sammy the Bull» Gravano foi um dos mafiosos americanos mais poderosos a tornar ‑se testemunha federal, algo inédito até então. Passara para o lado da lei para evitar uma pena de prisão perpétua e também porque ouvira dizer que o governo tinha gravações nas quais o seu chefe, John Gotti, o caluniava nas suas costas. Agora sob custódia, Gravano fez ‑me uma introdução à vida da máfia.

Só era possível ser ‑se membro oficial da Cosa Nostra — «coisa nossa» — depois de se fazer um juramento durante uma cerimó‑nia secreta em frente do chefe, do subchefe e dos consiglieri da família. Depois da cerimónia, o criminoso passaria a ser conhecido como um made man, ou seja, parte do grupo. A primeira pergunta da iniciação secreta era «Sabes porque é que estás aqui?», à qual o escolhido teria de responder «Não», muito embora, tal como Gravano explicou, só um idiota poderia não saber por que motivo os líderes da família estavam reunidos com ele na cave de um clube noturno qualquer.

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Durante quase duas décadas, os líderes da máfia americana tinham concordado que não seriam aceites novos membros. Em 1957, «fecha‑ram os livros» — um termo que refletia o facto de o processo envolver uma partilha efetiva de papéis entre as famílias mafiosas, que continham as alcunhas e os nomes reais dos seus membros —, devido a preo‑cupações sérias em relação ao controlo de qualidade e à possibilidade de penetração de informantes. Porém, em 1976, concordaram que cada família poderia admitir dez novos membros e que depois os livros seriam novamente fechados, podendo ser admitidos novos membros apenas em substituição de algum membro que morresse. Para cada família, estes dez homens eram a nata dos gângsteres mais duros, cujas carreiras tinham ficado congeladas durante vários anos. Gravano entrou na máfia como parte dessa «superclasse».

É claro que a admissão de dez novos membros depois de as portas terem estado fechadas durante tanto tempo representou um grande esforço para a associação criminosa. Numa cerimónia de admissão comum, espera ‑se que um iniciado segure nas mãos em concha uma fotografia em chamas de um santo católico, manchada pelo sangue que escorrera do dedo com que pressiona o gatilho, enquanto recita: «Que a minha alma arda como este santo se alguma vez trair a Cosa Nostra.» Gravano recordou que, quando chegaram à conclusão tea‑tral da cerimónia, ele foi obrigado a recitar essas palavras com um lenço de papel manchado de sangue e em chamas em vez do santo. A família Gambino não se dera ao trabalho de arranjar santos sufi‑cientes para queimar.

A cerimónia de admissão de Gravano não só começara com menti‑ras, mas também terminara com elas. O chefe recordou ‑lhe as regras da Cosa Nostra americana: não matar com explosivos; não matar agentes da autoridade; não matar outros made men sem permissão oficial; não dormir com a mulher de outro made man; não traficar estupefacien‑tes. Regra geral, os mafiosos conseguiam cumprir as duas primeiras regras. O governo americano esmagaria qualquer pessoa que fizesse mal a inocentes com explosivos ou que matasse agentes da autori‑dade. Porém, as promessas de não matar made men, não dormir com as mulheres deles ou não traficar droga eram a mais pura das menti‑ras. Gravano e os seus companheiros da máfia faziam habitualmente as três coisas. Tal como o meu colega procurador Patrick Fitzgerald

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expôs a questão, eram como as regras contra a violência no hóquei no gelo — no papel, é proibida, mas faz regularmente parte do jogo.

A máfia siciliana, com laços de proximidade, tinha uma regra diferente, que sublinhava o lugar central ocupado pela desonestidade em todo o empreendimento do crime organizado em ambas as mar‑gens do Atlântico. Aos membros recém ‑iniciados era ‑lhes dito que não podiam mentir a outro membro oficial — chamado «homem de honra» na Sicília —, com exceção, e esta era uma grande exceção, dos casos em que isso fosse necessário para o atrair para a sua morte. Uma vez perguntei a outra testemunha do governo, um assassino da máfia siciliana, Francesco Marino Mannoia, acerca desta regra.

— Franco — comecei —, isso significa que podes confiar em mim a não ser que estejamos prestes a matar ‑te.

— Sim — respondeu, confuso com a minha pergunta. — Os homens de honra só podem mentir sobre as coisas mais importantes.

A Vida das Mentiras. O círculo silencioso do consentimento. O chefe que controla tudo. Juramentos de lealdade. Uma mundivi‑dência do nós contra eles. Estas regras e estes padrões eram os traços distintivos da máfia, mas, ao longo da minha carreira, viria a ser surpreendido pela quantidade de vezes que os vi aplicados fora da organização.

A minha carreira inicial como procurador, principalmente o meu papel de confronto com a máfia, reforçou a minha crença de que fizera a escolha acertada no que tocava ao meu percurso profissional. A lei não fora um caminho óbvio para mim. Em última análise, escolhi uma carreira relacionada com as forças da lei porque acreditava que seria a melhor forma que eu teria para ajudar as outras pessoas, prin‑cipalmente aquelas que sofrem às mãos dos poderosos, dos chefes do crime, dos rufias. Na altura, não tive consciência disso, mas é possível que uma experiência de vida que tive aos dezasseis anos, que envolveu uma arma literalmente apontada à minha cabeça, tenha tornado essa escolha inevitável.

* * *

O atirador não sabia que eu estava em casa naquela noite. Estivera a observar a casa através de uma janela da cave e vira os meus pais

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a despedirem ‑se da figura deitada no chão da sala de estar, ilumi‑nada apenas pelo brilho do televisor. Provavelmente, pensou que essa figura era a minha irmã, Trish. Porém, na verdade, era o meu irmão mais novo, Pete (Trish regressara à faculdade depois da pausa de outono e o nosso irmão mais novo de todos, Chris, estava numa reunião dos escuteiros). Minutos depois de o carro dos meus pais se afastar, o homem derrubou, com um pontapé, a porta principal da nossa casa modesta, ao estilo de um rancho, e dirigiu ‑se logo para o piso inferior.

O dia 28 de outubro de 1977 mudou a minha vida para sem‑pre. Era sexta ‑feira. Um pouco por toda a área de Nova Iorque, os meses anteriores haviam ficado conhecidos como o Verão de Sam, quando a cidade e os seus subúrbios foram atacados por um assas‑sino em série que se aproveitava de casais sentados dentro dos seus carros. Contudo, na zona norte de Nova Jérsia, foi o verão — e o outono — do Violador de Ramsey. O atacante recebera esse nome na sequência da dezena de ataques que haviam começado numa cidade chamada Ramsey; a nossa cidade, a calmíssima Allendale, ficava um pouco a sul.

Ao ouvir os passos pesados nos degraus rangentes que levavam à cave e uma rosnadela grave do nosso cão, Pete deu um salto e escondeu‑‑se. No entanto, o atirador sabia que ele se encontrava lá. Apontou uma pistola e ordenou ao meu irmão que saísse do esconderijo. Perguntou‑‑lhe se havia mais alguém em casa. Pete mentiu e disse que não.

Nessa altura, eu estava a terminar o liceu, era um autêntico marrão com poucos amigos. Para provar isso mesmo, estava em casa naquela noite, a terminar um artigo para a revista literária da escola. Seria uma sátira brilhante dos miúdos fixes, dos rufias e da sufocante pressão dos pares no liceu. O artigo estava atrasado e carecia de algum brilhantismo, mas eu não tinha mais nada para fazer numa sexta ‑feira à noite. Por isso, lá estava eu sentado à secretária, no meu quarto pequeno, a escrever.

Na cave com Pete, o atirador obrigou ‑o a conduzi ‑lo ao quarto principal. Pouco depois, ouvi dois conjuntos de passos a passarem mesmo à minha porta, dirigindo ‑se ao quarto dos meus pais. Posto isto, ouvi mais sons que denunciavam o ato de abrir e fechar gavetas no closet e na cómoda. Por estar irritado e com curiosidade, levantei‑‑me e abri a porta deslizante que dava para a casa de banho que ligava

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o meu quarto ao dos meus pais. O quarto deles tinha todas as luzes acesas e, através da casa de banho, consegui ver Pete deitado de lado em cima da cama, com a cabeça virada na minha direção e os olhos bem fechados.

Entrei no quarto, olhei para a direita e fiquei petrificado. Um homem branco e entroncado, de meia ‑idade, com um barrete enfiado na cabeça, trazia na mão uma pistola e estava a vasculhar o closet dos meus pais. O tempo abrandou de uma forma que nunca voltei a sentir. Deixei de ver durante alguns instantes. Recuperei a visão por entre uma névoa estranha e todo o meu corpo pulsava, como se o meu coração tivesse ficado demasiado grande para o meu peito. Vendo ‑me, o atirador aproximou ‑se rapidamente de Pete e enfiou ‑lhe um joelho no meio das costas, usando a mão esquerda para encostar o cano à cabeça do meu irmão com quinze anos. Voltou ‑se depois para mim.

— Dás um passo, puto, e estouro ‑lhe os miolos.Não me mexi.O atirador cuspiu, irado, para Pete:— Não me disseste que não havia mais ninguém em casa?O atirador depois saiu de cima de Pete e mandou ‑me deitar na

cama ao lado do meu irmão. Junto aos meus pés, exigiu saber onde é que poderia encontrar dinheiro. Mais tarde, vim a saber que Pete tinha dinheiro no bolso das calças, durante todo aquele tempo que ali estivemos deitados, e não revelou nada. Eu revelei tudo. Falei ‑lhe de todos os locais de que me consegui lembrar — mealheiros, carteiras, moedas avulsas que os meus avós me tinham dado por alguma oca‑sião especial, tudo. Na posse das minhas dicas, o atirador deixou ‑nos estendidos na cama e pôs ‑se à procura.

Pouco depois, regressou e ficou a pairar sobre nós, apontando ‑nos a arma. Não sei quanto tempo ele esteve a apontar a arma sem emitir qualquer som, mas foi o suficiente para esse momento me transfor‑mar. Tive a certeza de que ia morrer. O desespero, o pânico e o medo sufocaram ‑me. Comecei a rezar em silêncio, sabendo que a minha vida estava prestes a terminar. No instante seguinte, fui assolado por uma estranha onda de frio e o meu medo desapareceu. Comecei a raciocinar e cheguei à conclusão de que, se ele disparasse sobre Pete primeiro, eu deslizaria da cama e tentaria agarrar as pernas dele. E depois comecei a falar — a mentir, mais precisamente. As mentiras

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saíram em catadupa. Expliquei que não éramos nada chegados aos nossos pais — na verdade, disse que os odiávamos — e que não nos importávamos que ele lhes levasse tudo e que não iríamos dizer a ninguém que ele ali tinha estado. Fartei ‑me de mentir.

O atirador disse ‑me para me calar e mandou ‑nos pôr de pé. Depois, começou a empurrar ‑nos pelo corredor estreito, parando em cada quarto por onde passávamos para vasculhar os armários. Eu estava agora convencido, pelo menos temporariamente, de que iria viver e comecei a tentar ver bem o rosto dele para poder depois descrevê ‑lo à polícia. Ele espetou ‑me várias vezes o cano da pistola nas costas, dizendo ‑me para não olhar para ele.

Comecei outra vez a falar, dizendo ‑lhe vezes sem conta que ele devia trancar ‑nos em algum lado e nós ficaríamos fechados para ele poder escapar. Dei voltas à cabeça à procura do lugar ideal em nossa casa — um local que pudesse ser trancado. Contra toda e qualquer razão lógica, sugeri a casa de banho da cave, dizendo ‑lhe que não conseguiríamos abrir a pequena janela porque o meu pai a selara para o inverno. Isso era apenas em parte verdade: o meu pai prendera um plástico transparente à moldura da janela para reduzir as corren tes de ar, mas a janela abria ‑se simplesmente se levantásse‑mos a metade de baixo.

Ele levou ‑nos para a casa de banho da cave, indicou ‑nos que entrássemos e disse:

— Digam ao papá e à mamã que foram uns lindos meninos.Posto isto, entalou alguma coisa na maçaneta do lado de fora para

nos impedir de escapar.Ouvimos a porta que dá para a garagem abrir e fechar enquanto o

homem saía. Comecei a tremer assim que o efeito da adrenalina pas‑sou. Já a tremer convulsivamente, olhei para a janelinha e, de repente, o rosto do homem preencheu ‑a. Ele estava a verificar a janela do lado de fora. Só de vê ‑lo, fiquei sem ar. Depois de o rosto dele desaparecer, disse a Pete que íamos ali ficar até os nossos pais regressarem a casa. Mas Pete tinha outras ideias e afirmou:

— Sabes perfeitamente quem é aquele homem. Ele vai fazer mal a mais gente. Temos de ir pedir ajuda.

No meu estado tremelicoso, acho que não percebi logo o que Pete estava a sugerir, nem no que poderia ter acontecido naquela

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noite se a nossa irmã Trish, então com dezanove anos, estivesse efetivamente em casa.

Por isso, resisti à ideia. Tinha medo. Pete discutiu comigo durante alguns instantes e depois anunciou que ia sair dali. Arrancou o plás‑tico da janela, girou o trinco em formato de meia ‑lua e abriu a janela. Com balanço, atirou os pés para fora e aterrou no nosso quintal.

Embora provavelmente só tivessem passado um ou dois segundos, na minha memória sinto que fiquei muito tempo a olhar para a janela aberta e para a noite escura. Seria melhor permanecer onde estava ou segui ‑lo? Enfiei os pés pela janela. Assim que tocaram na terra fria do jardim da minha mãe, ouvi o atirador a gritar. Deixei ‑me cair de quatro no chão e rastejei furiosamente para o meio dos arbustos den‑sos que havia nas traseiras da casa. O homem já agarrara em Pete e estava agora a chamar por mim.

— Aparece, puto, senão o teu irmão é que paga.Saí de onde estava e o homem repreendeu ‑me por lhe ter mentido.

Tendo esgotado as mentiras, retorqui:— Nós voltamos lá para dentro. — E comecei a caminhar para a

janela aberta.— Agora é tarde — disse ele. — Encostem ‑se à vedação.Pela segunda vez naquela noite, pensei que ia morrer. Pelo menos,

até ouvir o enorme husky ‑siberiano do nosso vizinho, Sundance, a cor‑rer pelo nosso quintal com o dono, Steve Murray, professor de Alemão do liceu e treinador de futebol, a correr atrás dele.

Os segundos que se seguiram estão totalmente enevoados na minha memória. Lembro ‑me de ter fugido do atirador para dentro de minha casa, com Pete e o treinador Murray a seguirem ‑me de perto, e lembro ‑me de depois ter fechado a porta atrás de mim. Trancámos a porta, deixando o atirador do lado de fora para aterrorizar a mulher e a mãe do treinador, que o haviam seguido para ver qual era a confusão em nossa casa — uma atitude que ainda me faz estremecer de culpa tantas décadas depois.

Em seguida, subimos as escadas a correr, apagámos todas as luzes e armámo ‑nos. Eu peguei numa faca de talhante enorme. Não havia o número de emergência, 911, naquela altura, por isso ligámos para a operadora e pedimos que nos transferisse a chamada para a polí‑cia. Falei com um telefonista, que não parava de me dizer para me

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acalmar. Expliquei ‑lhe que não me conseguia acalmar, que havia um homem armado em nossa casa e que ia regressar e precisávamos de ajuda. Esperámos junto à porta da rua, às escuras, e considerámos a hipótese de irmos nós atrás do homem. Um carro da polícia abrandou em frente da minha casa. Fizemos as luzes da frente piscar e o carro parou. Abrimos a porta de rompante e corremos direitos ao agente, eu descalço e com uma grande faca na mão. O agente saiu rapidamente do carro e levou a mão à arma.

— Não, não! — gritei, apontando para a casa dos Murrays. — Ele vai ali. Ele tem uma arma!

O atirador saiu a correr pela porta da frente dos Murrays e desatou a fugir na direção de uma mata que ali havia.

À medida que vários carros da polícia de diferentes jurisdições iam convergindo na nossa ruazinha, pus ‑me em cima da minha Schwinn com dez velocidades, descalço, e pedalei os quatrocentos metros que nos separavam do salão da igreja, onde os meus pais estavam a ter aulas de dança. Saltei da bicicleta, deixei ‑a cair ao chão, abri a porta do salão de rompante e gritei com toda a minha força:

— Pai!Pararam todos e a multidão moveu ‑se na minha direção, com os

meus pais à frente. A minha mãe começou a chorar assim que viu o meu rosto.

A polícia não encontrou o Violador de Ramsey naquela noite. Alguns dias depois, foi detido um suspeito, mas nunca conseguiram montar um caso contra ele, pelo que foi libertado. Porém, naquela noite, a longa série de assaltos e agressões sexuais do Violador de Ramsey parou.

O meu encontro com o Violador de Ramsey provocou ‑me vários anos de sofrimento. Pensei nele todas as noites pelo menos nos cinco anos que se seguiram — e não estou a dizer que pensei nele a maioria das noites, não, pensei mesmo todas as noites — e dormi com uma faca à mão durante ainda mais tempo. Na altura, não fui capaz de per‑ceber, mas aquela experiência assustadora foi também, de certa forma, uma dádiva. O facto de ter acreditado — de ter sabido, na minha mente — que ia morrer e depois ter sobrevivido fez com que a vida parecesse um milagre precioso e delicado. Quando era finalista no liceu, comecei a ver o pôr do Sol, a olhar para os rebentos nas árvores

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e a reparar na beleza do nosso mundo. Esse sentimento perdura até hoje, embora, por vezes, se exprima de formas que podem parecer pirosas a pessoas que felizmente nunca passaram pela experiência de medir o seu tempo nesta terra em segundos.

O Violador de Ramsey ensinou ‑me muito cedo que muitas das coisas a que atribuímos valor não têm valor nenhum. Sempre que falo com jovens, sugiro que façam uma coisa que pode parecer um pouco estranha: fechem os olhos, digo ‑lhes. Fiquem aí sentados e imaginem que chegaram ao fim das vossas vidas. A partir desse ponto de vista, o nevoeiro da procura do reconhecimento e da riqueza já se dissipou. Casas, carros, prémios nas paredes? De que é que isso vale? Vocês estão prestes a morrer. Quem é que gostavam de ter sido? Digo ‑lhe que espero que alguns deles decidam querer ter sido pessoas que empregaram as suas capacidades para ajudar quem mais precisa — os fracos, os que passam por dificuldades, os assustados, os intimidados. Alguém que defendesse alguma coisa. Alguém que fizesse a diferença. Essa é a verdadeira riqueza.

* * *

O Violador de Ramsey não me conduziu às forças da lei de forma consciente, pelo menos, não de imediato. Ainda pensava que que‑ria ser médico e fui estudar Medicina com uma especialização em Química na Faculdade de William & Mary. Contudo, um dia, estava a dirigir ‑me para um laboratório de Química e reparei na palavra morte num placard. Detive ‑me. Era um folheto que anunciava uma cadeira no Departamento de Religião, que partilhava o edifício com o Departamento de Química. Inscrevi ‑me na cadeira e tudo mudou. Essa disciplina permitiu ‑me explorar um tópico que me interessava muito e perceber de que forma várias religiões do mundo lidavam com a morte. Acrescentei Religião como segunda especialização.

O Departamento de Religião apresentou ‑me ao filósofo e teólogo Reinhold Niebuhr, cujo trabalho me dizia muito. Niebuhr via o mal no mundo, compreendia que as limitações humanas faziam com que fosse impossível qualquer de nós realmente amar outrem como a si mesmo, mas conseguia apresentar um argumento convincente no sentido de ser nosso dever tentarmos obter justiça num mundo

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Page 16: A Higher Loyalty Autor: James Comey Copyright © James ... · cie de ritual. Estávamos em fevereiro de 2017 e eu seguia sentado num dos bancos traseiros de um Chevrolet Suburban

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falho. Ele nunca ouviu o músico country Billy Currington dizer «Deus é grande, a cerveja é boa e as pessoas são loucas», mas teria sabido apreciar essa letra e, embora isso não fizesse da canção um hit, provavelmente teria acrescentado: «E, mesmo assim, temos de tentar alcançar alguma justiça no nosso mundo imperfeito.» E a justiça, segundo Niebuhr acreditava, era mais facilmente alcançável através dos instrumentos do poder governativo. Lentamente, comecei a per‑ceber que, afinal, não ia nada ser médico. Os advogados participam muito mais diretamente na busca da justiça. Esse caminho, pensei, podia ser a melhor forma de conseguir fazer a diferença neste mundo.

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