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A história deste livro é inteiramente faccionada. Mas a sua seme-lhança com acontecimentos presentes ou passados, caso se verifique, não é acidental. Ela resulta do facto de as suas personagens serem em tudo semelhantes às que habitam o nosso mundo, partilhando os mesmos sentimentos, revelando os mesmos receios e angústias. E, nessa medida, aquilo que lhes acontece pode ter sucedido — ou estar a suceder — a qualquer de nós.

A acção da história decorre entre 13 de Agosto de 1970 e 10 de Outubro de 1978, num período em que têm lugar em Portugal mu-danças extraordinárias — as quais, no entanto, só muito remota-mente influenciam os comportamentos dos protagonistas.

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PRIMEIRA PARTE

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Um clarão azul intermitente movendo-se devagar é a única ame-aça à serenidade da noite. Na estrada mistura-se a brisa fresca que sopra do lado do mar com o bafo morno cheirando a figos, amêndo-as e alfarrobas que vem do campo. Os carros que passam em sentido contrário, a uma cadência aparentemente constante, ajudam a mar-car o ritmo da viagem. A ambulância não mostra qualquer pressa porque não tem nenhum objectivo: o corpo que transporta é já ca-dáver. No banco da frente, de bata branca desabotoada (sinal de que considera terminado o dia de trabalho), o maqueiro conta pela déci-ma vez ao motorista o episódio em que escapou à morte em África.

— Estivemos os vinte e seis meses da comissão sem ver um tur-ra. Nem sequer sabíamos o que era a guerra. Dentro de uma sema-na íamos para Bissau e já tínhamos data mar-cada para regressar à Metrópole. As nossas famílias estavam avisadas do dia em que che-gávamos e já tinham tudo preparado em casa, os quartos estavam arranjados, as camas feitas. Os pais, as mulheres e as namoradas dos que viviam na província tinham passagens compradas para Lisboa. Devíamos desembarcar no Cais de Alcântara. Saímos do quartel para ir buscar água, éramos doze, alguns não iam armados embora fosse obrigatório levar a arma. Quando eles começaram a disparar não nos apercebemos logo do que se passava. Aquilo durou segun-dos. Quando acabou nove dos nossos estavam mortos. Eu safei-me porque o da frente caiu em cima de mim. Fiquei com a farda enso-pada do sangue dele. Outro desapareceu e nunca mais ninguém o

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viu. O terceiro foi transportado de helicóptero para Bissau e depois para Lisboa. Ficou dois anos no Anexo do Hospital Militar, na Rua Artilharia Um. Fui visitá-lo. Estava dentro de um saco de lona pen-durado do tecto porque perdeu as duas pernas e os dois braços.

— Que horas são? — pergunta o condutor numa voz neutra, sem desviar os olhos da estrada, indiferente à descrição que já sabe de cor.

— Horas de estarmos em casa — responde o outro irritado com a falta de interesse do companheiro. Cala-se por uns momentos amu-ado mas não resiste ao silêncio e explode: — Não queres andar mais devagar? Parece que vais a passear o morto... Já passa da uma!

O motorista acelera sem responder. Faz-se um novo silêncio, mais comprido, que ele aproveita para apanhar o fresco da noite aproxi-mando a cara da janela semi-aberta. É mais gordo do que o colega e parece uns dez anos mais velho. Minutos antes, movendo-se mecani-camente como robots, os dois tinham enfiado pela porta traseira da ambulância a maca com um corpo coberto com um lençol branco.

— Como é que ele se terá metido aqui? — interrogara-se o mais novo contemplando a traseira vermelha brilhante do Alfa Romeo emergindo da água suja.

— Se calhar estava bêbado ou não tinha carta. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. Isto não é gente de cá — respondera o outro.

O reboque começara a puxar o carro lentamente para a margem. Quando ficara totalmente fora de água o condutor da ambulância limpara com a mão o pára-brisas molhado, perscrutara com os olhos o interior do automóvel e comentara para o companheiro:

— Também só estragou a vida dele: está sozinho. O cadáver tinha a cara manchada de lodo e as roupas encharcadas

de uma água lamacenta que sujava tudo e uniformizava a cor do chão e dos assentos onde um caranguejo se passeava. Uma nódoa negra no lado esquerdo da testa denunciava uma pancada. Mas as feições serenas, muito correctas, de pele fina e branca, não revelavam nenhuma angústia nem sofrimento.

Antes da uma e meia os maqueiros estarão a depositar o corpo

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na morgue do Hospital de Faro e o mais jovem lamentará à saída estarem ainda tão longe de casa.

— Se isto fosse assim todos os dias mudava de profissão. O que vale é que amanhã estou de folga.

Tavira, 13 de Agosto, quinta-feiraO telefone toca no posto da GNR de Tavira onde o agente de

piquete ressona sonoramente. O homem abre os olhos, estica o cor-po — com a nuca ainda apoiada no espaldar da cadeira — pega no auscultador e leva-o sem pressas ao ouvido.

— Está? — diz num tom enfadado, que não revela nenhum esfor-ço para disfarçar o aborrecimento que o telefonema lhe causa.

É uma chamada breve, muito breve. O guarda nem tem tempo para perguntar quem fala. Daí a segundos estará a bater com os nós dos dedos no vidro da porta do gabinete do sargento abrindo-a sem esperar por autorização para entrar.

— O que foi? — pergunta o superior levantando os olhos para ele, surpreendido com a brusquidão da entrada.

— Parece que caiu uma viatura à ria, meu sargento. Acabam de telefonar.

— Uma viatura caiu à ria? — repete o sargento parecendo duvi-dar do que ouviu. Mas perante a confirmação muda do subalterno adianta: — Pediste a identificação?

— Pedi mas já tinham desligado, meu sargento. Era uma voz de homem. Pela maneira como falou deve ser de fora.

— Tinha sotaque estrangeiro?— Não, não. Mas não deve ser pessoa aqui do Algarve. — Em que local foi o sinistro?— Na estrada municipal depois de Santa Luzia, meu sargento, um

quilómetro adiante ou talvez menos. O homem não parecia conhe-cer bem o sítio.

O sargento volta-se para trás rodando com dificuldade o corpo metido na farda demasiado justa e levanta a cabeça para o relógio

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de parede colocado um metro acima dos seus olhos.— Registaste a hora da chamada?— Claro que sim, meu sargento. Vinte e duas e quarenta e um.

Vim logo assim que desliguei.— Vamos então. Espera: é preciso avisar o delegado de saúde.O graduado pega no telefone, disca um número e aguarda uns

instantes.— Doutor Jacinto de Jesus?Depois de desligar levanta-se, puxa as calças para cima agarrando

o cinto com as duas mãos, vai buscar o blusão pendurado atrás da porta, pega no boné e sai, seguido pelo guarda.

— Não te esqueças de apagar a luz — diz sem se voltar para trás.

TaviraTavira é uma cidade agonizante. Faz lembrar Veneza: tem o mes-

mo cheiro a morte e a mesma presença omnipresente da água. É jun-to a Tavira que a Ria Formosa se liga ao mar, exactamente no mes-mo sítio em que desagua o Gilão. Por isso se chama a esse lugar as «quatro águas». As margens da Ria Formosa são pântanos escuros onde crescem pequenos tufos de arbusto, onde se apanha minhoca e berbigão (enterrados no lodo) e por onde se passeiam multidões de caranguejos de uma só pinça, únicos no mundo, e garças brancas que contrastam violentamente com o tom cinzento-esverdeado que domina a paisagem. O Gilão divide Tavira a meio, sendo as duas metades da cidade ligadas por uma única ponte, dita romana, que não tem largura para se cruzarem dois carros. A zona histórica fica na margem direita, encavalitada num morro que domina o lugar. Reconhece-se facilmente ao longe pela torre do relógio da igreja de Nossa Senhora dos Mártires. A margem esquerda é de construção mais recente e regular. Ao longo do rio alinham-se casas, algumas senhoriais, mas que não se comparam com os palácios venezianos: são brancas, geométricas, de fachadas planas encimadas por aço-teias ou por telhados de quatro águas.

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A humidade que se respira cheira a sal e a peixe, embora a pesca do atum que durante décadas alimentou a cidade esteja a morrer. Os atuns fugiram para outras paragens e os arraiais foram sendo abandonados, ficando à espera de um novo destino ou simplesmente da decrepitude. Mas as salinas permanecem — e o seu quadriculado entra pela cidade dentro, na parte baixa, do lado do mar.

O sotavento algarvio é o Algarve esquecido. Os turistas descobri-ram a outra metade, invadiram-na — apesar de as águas aí serem mais frias —, provocando uma revolução urbanística. Por toda a parte cresceram hotéis, blocos de apartamentos e aldeias turísticas. As zonas antigas foram engolidas por torres, cortaram-se avenidas a direito. Os camponeses que tinham propriedades numa faixa de dois quilómetros a partir da costa ficaram ricos, embora tenham passa-do a sentir-se intrusos na sua terra: venderam os terrenos para a construção civil, deixaram a agricultura e foram viver para Faro, Portimão ou Lagos.

Mas a febre que atingiu a praia da Rocha ou Albufeira não con-tagiou a outra metade do Algarve: o sotavento. É a metade solitária, triste, desprezada. Aqui fica Tavira — cuja esperança, desaparecido o atum, reside em boa parte num empreendimento em construção na Quinta das Pedras d’El Rei que poderá trazer algum movimento à cidade e criar emprego.

Há ainda os recrutas que frequentam o curso de sargentos mili-cianos no Centro de Instrução de Infantaria, mas esses nem sequer chegam para animar o comércio porque o pré é muito curto. Dizem piropos às alunas da Escola Técnica, às enfermeiras do hospital, às empregadas das lojas e às criadas de servir que ainda restam mas vão-se embora ao fim de seis meses e não deixam rasto, salvo alguma gravidez por imprevidência.

Para atrair os turistas a Tavira haverá que refazer infra-estruturas e preparar algumas melhorias. As redes de águas e de esgotos terão de ser inteiramente refeitas, havendo que esburacar as ruas e cortar o trânsito aos carros. No Verão, com o sol a pique e o ar carregado de pó, a atmosfera será por certo irrespirável.

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Apesar de esquecidos — ou talvez por isso — os tavirenses con-servam a fé. Enquanto os algarvios do barlavento parecem acreditar mais nas libras e nos marcos, em Tavira continua a acreditar-se em Deus e a sentir-se o peso da religião. Há 21 igrejas na cidade. E a in-fluência da Igreja Católica estende-se a todos os sectores. O hospital é da Misericórdia.

Tavira, 13 de Agosto de 1970, quinta-feiraJacinto prepara-se para se deitar. Já vestiu o pijama às riscas cin-

zentas e azuis claras que a mãe lhe ofereceu no Natal, bebeu o leite e arrumou a cozinha. Ficara no hospital para além do termo do serviço. Lera e relera o jornal da tarde não porque as notícias lhe interessassem ou esperasse alguma novidade mas por não ter sítio para onde ir. Jantara depois no restaurante que frequentava habi-tualmente e fora a seguir à esplanada onde esperara pela hora certa para regressar a casa. Metera a chave à porta minutos depois das dez. Está para se enfiar na cama quando o telefone toca.

— Doutor Jacinto de Jesus? — interpela uma voz áspera, enérgi-ca, antes de o médico ter podido dizer alguma coisa.

— Sim, é o próprio...— Fala o sargento Faria, da GNR. Houve um acidente aqui na

área. Um carro que se meteu na ria. Depois de passar Santa Luzia a caminho da Quinta das Pedras d’El Rei é aí a uns 800 metros, se-guindo a estrada municipal.

— Penso que conheço o sítio...— Parece que há um morto. No local está um jipe nosso com as

luzes acesas. Não deve ser difícil de localizar. Já chamei a ambu-lância. Desculpe a hora, senhor doutor, mas a morte não escolhe horários...

— Claro, claro. Não tem importância. São os ossos do ofício. Vou já para lá.

Jacinto de Jesus substitui o delegado de saúde que está de férias. É sempre assim em Agosto desde há seis anos. O médico não gosta da

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função mas aceitara uma vez e a partir daí não tivera coragem para recusar. Volta a vestir-se, vai buscar o sobretudo e um boné para o caso de estar a cair humidade e sai. O carro está estacionado quase à porta de casa.

JacintoJacinto de Jesus nasce no Outono de 1930 em S. Jacinto, na Beira

Baixa, entre o Fundão e Castelo Branco. São trinta casas de granito dispostas em duas ruas paralelas com o chão de lages de pedra ir-regular. Na aldeia tudo é escuro e agreste: as casas, os vestidos das mulheres e até o pêlo dos cães, malhado e eriçado. As portas e as janelas são buracos negros preenchidos por portadas de madeira também escuras. Num dos extremos da aldeia existe uma capela de granito e no outro uma igreja de cunhais de pedra e fachada pintada de branco, com uma única torre, ao centro. Quase todas as crianças andam descalças e às vezes topam com um dedo do pé numa pedra mais saliente ficando com o sangue a escorrer entre a unha e a carne. Jacinto faz a instrução primária na escola da aldeia e é sempre o melhor aluno da classe embora não tenha perfeita consciência disso. É tímido, aplicado e muito humilde.

O pai tem 58 anos quando Jacinto faz a quarta classe e gostaria que o filho fosse para o seminário: seria uma garantia de que con-cluiria os estudos mesmo que ele entretanto lhe faltasse. Os pais de Jacinto têm um pedaço de terra afastada uns 200 metros do extremo da aldeia e nas traseiras da casa há uma pequena horta onde a mãe e a irmã semeiam alfaces e couves galegas. Mas o sustento da família é garantido pelo ordenado que o pai recebe nos caminhos de ferro. Embora não contrariando abertamente a vontade do pai, a mãe de Jacinto não vê o filho padre e vai-o dissuadindo de seguir o sacer-dócio. Imagina-o antes médico. A tratar dos doentes da aldeia e das vizinhanças e a trabalhar no hospital da Covilhã ou no de Castelo Branco. E além disso quer netos. É verdade que os pode ter da filha, mas os filhos dos filhos e os filhos das filhas não são bem a mesma

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coisa.Jacinto matricula-se no liceu de Castelo Branco para onde vai de

manhã no comboio que pára no apeadeiro um pouco depois das sete e volta a meio da tarde. Como é o único rapaz da aldeia a ir para o liceu deixa de se dar com os rapazes da sua idade e torna-se ainda mais metido consigo. Faz o primeiro ciclo com média de catorze, o segundo com doze a letras e quinze a ciências e o terceiro ciclo com média de treze. Daí segue para Coimbra e deixa de viver com os pais. Quando aparece em S. Jacinto nas primeiras férias de Natal, de capa, batina, camisa branca, gravata preta e sapatos de verniz, Jacinto vê as raparigas olharem para ele e cochicharem em grupo — e cora de vergonha. Apesar da estada em Coimbra não está preparado para enfrentar os olhares femininos. As mães dos rapazes da sua idade olham-no com frieza e fecham a porta à sua passagem. Pensam que por ele ter seguido os estudos se julga superior aos filhos delas que ficaram na aldeia. Mas enganam-se: Jacinto sente-se mais compro-metido por ter ido estudar para fora do que superior aos que ficaram aqui a trabalhar a terra.

No primeiro ano em Coimbra Jacinto tem dificuldade em adaptar--se e chumba a duas cadeiras. No segundo chumba outra vez e não passa para o terceiro. Mas a partir daí não volta a dar preocupações aos pais nem lhes pede mais nada. Organiza com dois colegas de curso uma sala de estudo onde dá explicações de matemática, físico--químicas e ciências naturais a alunos do 5° e do 7° anos do liceu, que chega a ter oitenta explicandos divididos por várias turmas. E com esse dinheiro paga a renda da casa que alugou a meias com outros colegas, e ainda a alimentação e os livros. Nalguns meses con-segue mesmo fazer algumas poupanças. Abre conta na Caixa Geral de Depósitos da qual só levanta importâncias em ocasiões especiais, como no Natal e nos anos dos pais e da irmã, para comprar umas prendas. Depois de concluir o estágio em Coimbra nos Hospitais da Universidade passa as primeiras férias grandes na terra. Sabe-lhe bem voltar a casa. Nessas férias faz conhecimento com um primo afastado, também médico, cuja família vive no Fundão e que há três

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anos trabalha no Algarve, em Tavira.— Não queres ir ocupar o meu lugar? — pergunta-lhe ele um dia.

— Estou a pensar mudar-me para Lisboa e podias substituir-me no hospital... E, se quisesses, ficavas também com a casa.

Jacinto resiste de início. Gostaria mais de ficar por ali, pelo Fun-dão ou, no máximo, por Coimbra. Mas a pouco e pouco a ideia excita-o. Vêm-lhe à memória as histórias que ouviu em Coimbra de colegas que passaram férias no Algarve. Há estrangeiras por toda a parte, inglesas, suecas, alemãs. Têm outros costumes e entregam--se com facilidade aos portugueses. Jacinto lembra-se também dos amontoados de casas brancas, dos areais cheios de sol, das rochas escavadas pelo mar, das águas azuis. Claro que ele não vai gozar esse paraíso: é um mundo do qual nunca fará parte. Mas a simples ideia de poder estar perto, de assistir ao vaivém dos estrangeiros, de ser iluminado pelo mesmo sol, entusiasma-o. Jacinto não sabe que o Al-garve para onde vai não é o mesmo dos bilhetes postais e que Tavira é triste, monótona e pacata como ele.

Santa Luzia, 13 de Agosto, quinta-feiraA ambulância e o reboque chegam quase ao mesmo tempo. A am-

bulância é nova, muito branca, de cromados reluzentes; o reboque é velho e tem a pintura tão gasta que não se percebe qual era a cor ori-ginal. O jipe verde da Guarda já lá está, com os faróis virados para a ria, iluminando a superfície lisa da água de onde emerge a traseira vermelha de um carro.

A luz dos faróis era quase desnecessária porque a Lua projecta uma claridade intensa que torna as formas perfeitamente nítidas. O reboque aproxima-se da ria devagar, em marcha-atrás, pára, o condutor abre a porta e sai, troca umas palavras com o sargento da Guarda, volta a subir para a cabina, o reboque recua mais um pouco, finalmente imobiliza-se já com as rodas de trás atoladas na lama. O motorista sai outra vez, veste umas calças de oleado ama-relo que trazia ao ombro, calça umas galochas negras e começa a

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entrar lentamente na ria parando a cada passo a tactear o terreno. Chega junto do carro, a água suja dá-lhe já pelo peito, passa a ponta de um cabo metálico por uma argola situada na parte traseira do automóvel, volta para trás, sai da água, sacode a lama da roupa com as mãos e bate com as galochas no chão, entra de novo no reboque, fecha a porta, acciona um manípulo e o cabo começa a recolher, puxando o automóvel para a margem.

Jacinto de Jesus assistira à parte final da operação. Quando o car-ro fica totalmente fora de água aproxima-se. Um dos maqueiros lim-pa o pára-brisas com a palma da mão e diz que só há um ocupante. O médico também espreita para dentro. No lugar do condutor está um corpo tombado sobre o volante. O sargento da Guarda abre com dificuldade a porta do carro, o médico debruça-se sobre o corpo e tenta puxá-lo para trás mas verifica que está rígido. E um jovem en-tre os dezassete e os vinte anos. Jacinto observa uma nódoa escura no lado esquerdo da testa, certamente provocada por uma pancada. Espreita do outro lado mas não vê mais nada de relevante. Manda levantar o corpo.

Os maqueiros vão à ambulância, trazem uma maca que pousam no chão ao lado do carro, tiram o corpo do automóvel pegando-lhe por debaixo dos braços e pelas pernas e colocam-no em cima da maca. O sargento aproxima-se, ajoelha-se no chão, apalpa o bolso da camisa do rapaz mas não encontra nada. Procura a seguir nas calças. Retira da algibeira de trás um envelope com a tinta esborra-tada mas onde ainda se consegue ler um endereço. Vai ao carro, pega no walkie-talkie e dita para o posto o nome e a morada escritos no envelope.

— Esperem um pouco — ordena depois aos maqueiros. — Não o levem já. Pode ser que se resolva tudo aqui.

Jacinto — 2O primo de Jacinto tinha casa em Tavira na Rua Dr. Parreira e

consultório particular na Rua D. Paio Peres. Prestava além disso