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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – São Paulo - SP – 05 a 09/09/2016 1 Machado de Assis Vai ao Cinema: Estudo da Adaptação Fílmica do Conto “A Cartomante” 1 Eugênio Vinci de Moraes 2 Centro Universitário Uninter (PR) Resumo Este artigo discute a adaptação cinematográfica de “A cartomante”, de Machado de Assis, realizada por Wagner de Assis (2004). Este trabalho integra o projeto de pesquisa sobre as versões cinematográficas nacionais baseadas na obra de Machado. O objetivo geral é identificar e interpretar as visões que o cinema nacional produziu com base na obra do escritor carioca. Os comentários, as análises e a interpretação basearam-se nas categorias narrativas formuladas Ismail Xavier, Robert Stam (cinema), Alcides Vilaça, Maria Augusta Fonseca e Marlyse Meyer (literatura). Observou-se que o filme lê a narrativa machadiana como uma alegoria sobre o destino, expressada por meio do gênero melodramático, deixando de lado os aspectos irônicos e metadiscursivos do conto. Palavras-chave: Cinema Brasileiro; Adaptação; Machado de Assis; A cartomante. . Introdução A pesquisa da qual deriva este texto pretende fazer uma análise ampla da leitura da obra machadiana pela cinematografia nacional 3 . A proposta inicial é comparar obra literária e os filmes por suas estruturas comuns presentes no ato de narrar (ponto de vista do narrador, tempo, espaço etc.) sem se preocupar com conceitos de fidelidade na linha proposta por Ismail Xavier e Robert Stam (2006). Segundo Xavier, “Em todas essas formas de expressão, o fato de estar presente o ato de narrar permite o uso de categorias comuns na descrição dos elementos que organizam a obra em aspectos essenciais” (2003, p. 64). Produziram-se cerca de 30 filmes com base na obra machadiana no Brasil, segundo um primeiro levantamento. 4 Dos nove romances escritos por Machado, quatro foram levados ao cinema não necessariamente com o mesmo título: Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas de Brás Cubas (1880), e Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Dentre os romances machadianos, Memórias Póstumas é o que recebeu mais versões para cinema até esta data, quatro. Entre os contos, destaca-se “A cartomante”, adaptado cinco vezes. Foi 1 Trabalho apresentado no GP Cinema, no XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa da Intercom, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutor pela Universidade de São Paulo e professor do Centro Universitário Uninter-PR. 3 Pesquisa de Iniciação Científica realizada no Centro Universitário Uninter (DGP Comunicação Tecnologia e Sociedade). 4 Fontes usadas neste levantamento inicial: Academia Brasileira de Letras, Cinemateca Brasileira, MIS-SP, e a página Memórias Cinematográficas de Machado de Assis (Disponível em: www.imagemtempo.com/machadodeassis. Acesso em 29/07/2015).

Intercom Sociedade Brasileira de Estudos ...portalintercom.org.br/anais/nacional2016/resumos/R11-1044-1.pdf · ficara aliviada pois a adivinha lhe garantira que Camilo não a esquecera

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Machado de Assis Vai ao Cinema: Estudo da Adaptação Fílmica do Conto “A

Cartomante”1

Eugênio Vinci de Moraes2

Centro Universitário Uninter (PR)

Resumo

Este artigo discute a adaptação cinematográfica de “A cartomante”, de Machado de Assis,

realizada por Wagner de Assis (2004). Este trabalho integra o projeto de pesquisa sobre as

versões cinematográficas nacionais baseadas na obra de Machado. O objetivo geral é

identificar e interpretar as visões que o cinema nacional produziu com base na obra do

escritor carioca. Os comentários, as análises e a interpretação basearam-se nas categorias

narrativas formuladas Ismail Xavier, Robert Stam (cinema), Alcides Vilaça, Maria Augusta

Fonseca e Marlyse Meyer (literatura). Observou-se que o filme lê a narrativa machadiana

como uma alegoria sobre o destino, expressada por meio do gênero melodramático,

deixando de lado os aspectos irônicos e metadiscursivos do conto.

Palavras-chave: Cinema Brasileiro; Adaptação; Machado de Assis; A cartomante.

.

Introdução

A pesquisa da qual deriva este texto pretende fazer uma análise ampla da leitura da obra

machadiana pela cinematografia nacional3. A proposta inicial é comparar obra literária e os

filmes por suas estruturas comuns presentes no ato de narrar (ponto de vista do narrador,

tempo, espaço etc.) sem se preocupar com conceitos de fidelidade na linha proposta por

Ismail Xavier e Robert Stam (2006). Segundo Xavier, “Em todas essas formas de

expressão, o fato de estar presente o ato de narrar permite o uso de categorias comuns na

descrição dos elementos que organizam a obra em aspectos essenciais” (2003, p. 64).

Produziram-se cerca de 30 filmes com base na obra machadiana no Brasil, segundo um

primeiro levantamento.4 Dos nove romances escritos por Machado, quatro foram levados ao

cinema não necessariamente com o mesmo título: Iaiá Garcia (1878), Memórias póstumas

de Brás Cubas (1880), e Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Dentre os

romances machadianos, Memórias Póstumas é o que recebeu mais versões para cinema até

esta data, quatro. Entre os contos, destaca-se “A cartomante”, adaptado cinco vezes. Foi

1 Trabalho apresentado no GP Cinema, no XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa da Intercom, evento componente

do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Doutor pela Universidade de São Paulo e professor do Centro Universitário Uninter-PR. 3 Pesquisa de Iniciação Científica realizada no Centro Universitário Uninter (DGP –Comunicação Tecnologia

e Sociedade). 4 Fontes usadas neste levantamento inicial: Academia Brasileira de Letras, Cinemateca Brasileira, MIS-SP, e a

página Memórias Cinematográficas de Machado de Assis (Disponível em:

www.imagemtempo.com/machadodeassis. Acesso em 29/07/2015).

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publicado em 1884 e depois selecionado para abrir o seu quinto livro de contos, Várias

histórias, de 1895.

Neste artigo apresentaremos alguns apontamentos decorrentes da análise comparativa entre

o conto e filme homônimo de Wagner de Assis, produzido em 2004. Exibido no mesmo

ano, produzido dirigido e roteirizado por ele, o filme mantém a história central do conto – a

“fábula banal” (FONSECA, 2008, p. 187) do adultério, as personagens Camilo, Rita e

Vilela – o casal de amantes e o marido – além da Cartomante. Em primeiro lugar, será feito

um comentário sobre o conto acrescido de uma hipótese interpretativa; em seguida,

abordaremos o filme; para, por último, tecer algumas considerações de cunho comparativo

acerca de livro e filme.

Um conto célebre

“A cartomante”5, conto de Machado de Assis, parece estar a todo o momento desafiando o

leitor ou fazendo troça dele. Centrada numa aventura protagonizada por “três nomes” –

Vilela, Camilo e Rita –, a história narra um episódio de adultério. No correr da história dois

modos de contar se defrontam: de um lado, formas de um melodrama; do outro, o drama,

em registro paródico. O primeiro modo se constitui pela forma que as personagens Rita e

Camilo, o casal adúltero, interpretam os sinais que lhe são lançados no correr da trama;

outro, pelos sinais inseridos pelo narrador, que ora aparecem como moldura da história

vulgar (como a referência ao Hamlet, de Shakespeare), ora pela forte ironia despejada pelo

narrador nas personagens mencionadas há pouco. Nesse sentido uma série de sugestões

aponta para um enredo em que os protagonistas ou não sabem ler ou leem mal ou, quando

não conseguem ler, apelam para um leitor muito especial, a cartomante. Essa inabilidade de

leitor leva o casal à morte.

Além do par amoroso e adúltero, temos Vilela, o marido traído. Os homens são amigos

desde a infância. Bom tempo afastados, reencontram-se na vida adulta. Juiz e depois

advogado, Vilela casara-se com Rita, “formosa e tonta”, na descrição do narrador. A mulher

conhece Camilo, já funcionário público, homem sem crenças, sem experiência e sem

intuição. Apaixonam-se e logo veem seu caso em risco quando Camilo passa a receber

cartas e bilhetes anônimos advertindo-lhe acerca do mau passo. Ele resolve ausentar-se da

casa do amigo, que passara a frequentar desde que se reencontraram. Rita sente falta do

amante e por isso recorre à Cartomante para saber o que acontecera com ele. Neste ponto

5 Todas citações do conto são de Várias histórias, de Machado de Assis, edição preparada por Hélio

Guimarães (São Paulo: Martins Fontes, 2004).

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começa o conto, não a história. Tranquilizada pela Cartomante, Rita conta a Camilo que a

pitonisa dissera que ele a amava. O amante ri, faz troça e ambos acertam ter mais cuidados

dali por diante. Poucas semanas depois, Rita observa a mudança de comportamento do

marido e logo depois, num dia na repartição, Camilo recebe um bilhete de Vilela, pedindo-

lhe que fosse imediatamente a sua casa. Camilo hesita – ir ou não ir?, parodiando Hamlet.

Resolve ir, mas antes, devido a um incidente, para na Cartomante e ouve-lhe as predições.

Agora é ele quem sai tranquilizado. A sibila italiana garante-lhe que tudo está bem e diz-lhe

para ir em frente. Camilo vai e é morto por Vilela, que momentos antes assassinara a

mulher.

A narrativa começa com Rita contando ao amante o que a Cartomante lhe dissera. Que

ficara aliviada pois a adivinha lhe garantira que Camilo não a esquecera apesar de sua

ausência. Brincando, ele a interrompe, dizendo-lhe: “- Errou!”. Para, em seguida, zombar

que “a melhor cartomante era ele mesmo”. Páginas adiante essa situação se inverterá. Na

sequência final da história Camilo procurará Rita e, por fim, a cartomante para resolver o

seu dilema, ir ou não ir a casa de Vilela.

Ainda no primeiro episódio do conto Rita não deixará por menos e dirá a Camilo que a

mulher adivinhara tudo – “mas o certo é que”6 –, empregando inclusive termos forenses: “a

prova é que agora ela estava tranquila e satisfeita”. A cena vai terminando com a separação

dos dois, ambos certos do amor do outro: “Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o

estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a

repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado”.

Nesse começo, o narrador apresenta a trama central em forma de diálogo jocoso entre

amantes, enredando o leitor num vaivém de acertos e erros. Se num primeiro momento,

dada a menção inicial ao Hamlet, de Shakespeare, a atmosfera poderia caminhar para um

plano misterioso (“Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que

sonha a nossa filosofia”), a condução da narrativa, ao contrário, leva para um tom leve e

animado de conversa entre amantes, entremeada de recursos retóricos argumentativos

estabelecendo mais um jogo de contrários. Isso se vê pela sequência expressiva que vão

armando os termos “consultar”, “verdade”, “errei”, “o certo”, “a prova”, “certa de ser

amada”. Chama a atenção a primeira fala de Camilo: “Errou!”, quando ele julga a

cartomante, a mesma que decidirá seu “destino”. De fato, o leitor verá que a cartomante não

acerta; ou melhor, o próprio autor da frase é que erraria redondamente. Mas essa forma

6 Grifos, sempre nossos.

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estridente de iniciar o conto atinge também o leitor, como se um sinal lhe fosse enviado

pelo narrador, uma piscadela acerca do que viria pela frente.

Há ainda uma pequena digressão acerca de Camilo antes do desmanchar da cena. Nesse

trecho o narrador descreve-o como alguém despossuído de qualquer saber:

Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não

possuía um só argumento: limitava-se a negar tudo. E digo mal,

porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade;

diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi

andando (ASSIS, 2004, p. 9)

Assim, o narrador num vaivém rápido ironiza a personagem que, destituída completamente

de ferramentas intelectuais, emite juízos peremptórios.

O leitor também não poderá esperar o contrário de Rita. Descrita como “formosa e tonta”,

de “lábios interrogativos”, ela não é mais arguta que Camilo, a não ser no que compete a

sua feminilidade, que descende de Eva e da serpente. Temos, pois, um diálogo entre bobos

encimado pela referência a Shakespeare, que dá mais relevo ainda à vulgaridade das

personagens (VILLAÇA, 1998). Porém, o diálogo e a descrição de Camilo se dão com

termos como o “argumento”, “verdade”, “certo”, “consulta”, que levam ao terreno mais

próprio ao da personagem sobre a qual ainda não se falou – e que fala pouco durante o

conto, a não ser por um bilhete: Vilela, magistrado e advogado. Talvez a personagem mais

indicada a dar qualquer parecer.

No campo da justiça além de muita oratória há muito papel: sentenças, petições etc. Esse é

o meio por excelência da certificação das coisas. As expressões da língua atestam: “pôr no

papel”, “de papel passado”, entre outras. Chama-se a atenção para isso pois outra ponta do

conto que deixa ver seus elementos mais internos é justamente a função do papel ou carta

na história. Além da cartomante, alguém que lê um tipo de papel, o envio de bilhetes marca

passagens cruciais na história. Três pelo menos: a descoberta do amor por Camilo e Rita, a

denúncia anônima, e o bilhete fatal manuscrito por Vilela. Uma rede de cartas e bilhetes

tece o conto. Conto, por sua vez, protagonizado por maus leitores, seja por lerem mal ou

por não lerem as entrelinhas, seja por lerem por interesse. Entre os primeiros, o par

amoroso; entre os segundos, a cartomante. A Vilela caberia a leitura final, a sentença.

No aniversário de Camilo, Rita lhe dá um bilhete escrito com “palavras vulgares”, mas

como diz o narrador, “há vulgaridades sublimes”. O narrador aproveita para tirar sua

casquinha e distanciar-se mais ainda das personagens remetendo-se ao Gênesis, ao narrar o

asfixiamento viperino promovido por Rita nas “costelas” de Camilo. No plano das

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personagens, vulgaridades; no plano do narrador, o sublime, o elevado (VILLAÇA, 1998).

Seja como for, o bilhete é como o filtro mágico que instila o amor em Camilo. Daí em

diante abre-se-lhes a estrada do amor, enfim se amam, se veem, sem que Vilela saiba. No

parágrafo seguinte, outro bilhete; desta vez anônimo e ameaçador: “a aventura era sabida de

todos”. É esta peripécia que levará à cena inicial do conto, a ida de Rita à Cartomante. Ao

receber este bilhete, Camilo passa a diminuir as visitas à casa de Vilela até estancá-las de

vez, o que deixou Rita insegura e a levou a procurar a adivinha. Camilo recebe mais duas

ou três cartas anônimas, o que leva ambos a decidirem não se verem por algumas semanas.

Então, mal o leitor respira, mais um bilhete surge, desta vez de Vilela, intimando o amigo a

ir até sua casa: “Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora”. Este bilhete acabara

levando Camilo a cartomante graças a um recurso folhetinesco usado pelo narrador que

interrompe a corrida do tílburi que Camilo pegara para chegar à casa de Vilela: uma carroça

tomba no meio da rua próxima à casa da Cartomante. Com isso, o tílburi para, retarda-se o

fecho da história, e permite-se que Camilo busque a sua leitura final, a da cartomante.

O movimento dos bilhetes dá o ritmo à história, que oscila entre o drama e o melodrama:

“Não faltam ao conto ingredientes de melodrama romântico: o nó da intriga se aperta com a

atuação acusatória e ameaçadora das cartas anônimas que vão chegando a Camilo”

(VILLAÇA, 1998, p. 6). O melodrama como definiu Décio de Almeida Prado é

“sentimental, moralizante, otimista”; o drama, “fatal, tenebroso, revoltado contra a

sociedade, secretamente tentado pelo mal” (apud FONSECA, 2008, p. 205). O narrador

parece brincar com esses gêneros, com as personagens e com o leitor. Perto do drama, um

melodrama é vulgar. Neste ponto, como notou Alcides Villaça o drama metafísico de

Hamlet é reduzido a uma dúvida imediata: “vou ou não vou?” (VILLAÇA, 1998 p. 6). Esta

oscilação poderia ser recolocada: melodrama ou drama? Final feliz ou trágico?

Camilo, quando recebe o bilhete de Vilela, imagina um drama: “Imaginariamente, viu a

ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando da

pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo” (ASSIS,

2004, p. 14). Isso parecia-lhe “verossímil”, como diz o narrador. Esta leitura correta de

Camilo, da perspectiva final do conto, vai ser revirada pela leitura das cartas, pela

cartomante. O narrador empurra a personagem (e o leitor) para leitura equivocada

(“Errou!”), para o melodrama. O leitor empírico ou o narratário pode ou não perceber “a

ponta de um drama”.

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Temos, então, primeiro, personagens que se deixam levar pela leitura fácil, seja pela

brevidade dos bilhetes, seja pela rapidez da mensagem mágica trazida pelo divino por

intermédio da cartomante. Vazio intelectual e moralmente, Camilo precisa de uma resposta

que o alivie, que o console, não de uma verdade, não de um juízo verdadeiro. Ele recusa o

juízo e acaba na mão do juiz. Segundo, temos o narrador que, sobranceiro, cita

Shakespeare, alude ao Gênesis e escreve de forma a “de modo algum deixar-se confundir

com seu objeto” (VILLAÇA, 1998, p. 13-14) e enche o texto de pistas – como num conto

policial –, que podem ser compreendidas ou não dependendo do leitor que as lê. Por fim,

teríamos o gênero. A alusão a Hamlet é uma primeira pista de que estamos diante de um

drama, vulgar mas drama. Ou melhor, um drama burguês, já que contracenado por um

funcionário público, um advogado e ex-juiz, e uma dama “formosa e tola”. Mas o próprio

Machado ao vulgarizá-lo, não pode seguir regras estritas desse gênero, claro. Nem gostaria,

já que a essa altura de sua obra a mistura de gêneros, tons e tudo mais já é o seu estilo, ou

melhor, a sua poética. Primeiro, trata-se de um conto, que por si só é novidade e Machado

será não só no Brasil como no mundo todo um dos primeiros a dar-lhe uma feição

autônoma em face dos gêneros mais prestigiados. Mas, ao contrário de Poe, cuja obra o

escritor carioca conhecia a ponto de traduzi-la, Machado não enveredou neste caso para um

tema dramático ou trágico, mas, muito diferentemente, apelou para um tema já batido dos

romances e folhetins, o adultério. O desenrolar do conto, como mencionamos, se faz: 1.

Pela oposição sublime (narrador) x vulgar (personagens); 2. Drama x melodrama; 3. Alta

literatura x folhetim.

Assim, o conto aponta, entre outras direções, para o fazer literário do seu tempo. Escrever o

drama burguês no Brasil só seria possível via paródia, do humor, sarcasmo ou ironia como

o narrador faz impiedosamente como as personagens Camilo e Rita – também com Capitu-

Bentinho, Cubas-Virgília, entre outros. O drama burguês parece precisar emprestar ao

melodrama sua estrutura, que num plano “opõe personagens representativos de valores

opostos: vício e virtude” e num outro “alterna momentos de extrema desolação e desespero

com outros de serenidade ou de euforia, fazendo a mudança com espantosa velocidade”

(HUPPES, 2000, p.27). Esse vaivém sentimental é nuclear na história (sabe, não sabe; vai,

não vai), assim como as mudanças trazidas pelas várias reviravoltas que aparecem num

texto tão curto quanto um conto. Rita e Camilo, leitores sentimentais e otimistas, colocados

no rolo de peripécias que prendem a respiração do leitor. Com isso Machado estaria

ironizando os gêneros de entretenimento, ou seus leitores, em favor da alta literatura, e de

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seus leitores? Nesse sentido a justiça feita aos dois seria um modo de o escritor escarnecer o

mau leitor, em especial, os seus próprios leitores, uma vez que ele publicou o próprio conto

no jornal e publicou boa parte da sua obra em periódicos como o Jornal da Famílias,

destinado a um leitor “vulgar”?

Contudo, que papel teria Vilela, o vilão, como bem observou Maria Augusta Fonseca, o

único a ser mencionado pelo sobrenome? Vilela é diminutivo de “vila”, ou seja, Vilela é um

proprietário. Como dissemos é ele quem tem um saber: o da justiça, o da lei. Portanto, ele lê

o mundo como o burguês: se ambos morrem é porque infligem uma norma burguesa. Isso

que o casal adúltero não soube ler. Além disso, seu saber serve de contraponto ao da

Cartomante. O pensamento dela seria ao mesmo tempo mágico e enxovalhado, palavra

usada pelo narrador para designar as cartas dela antes de serem acionadas para revelar o

destino de Camilo e Rita. Se é mágico, é sem mediação, bem ao gosto das personagens

machadianas, lembremos de Brás Cubas e seu emplasto. No conto, a solução da contradição

entre “ir ou não ir”, “Vilela sabe ou não sabe” é buscada no âmbito do pensamento mágico,

o da Cartomante. Acontece que as cartas da Cartomante são enxovalhadas, que além de

significar sujas, maculadas, na sua origem está a palavra enxovia, “prisão”. O leitor dessas

cartas está preso a seu texto, sem discernimento, ao contrário de Vilela. Seria isso mesmo?

Não há resposta definitiva, mas arriscamos uma hipótese. Este é um conto marcado pelo

campo semântico do papel, a partir do próprio nome Cartomante, seja pelo papel do leitor,

seja pelo gênero que se coloca no papel, seja pelo papel da literatura na periferia. No conto,

Machado joga com sua poética – a do “tradutor de si mesmo” detalhada por Alcides Vilaça

–, que mistura estilos, brinca com a intertextualidade, parodia; que lança mão de recursos

do folhetim ou melodrama ao escolher um tema batido e rebatido nesse gênero e povoar a

breve história de um bom número de reviravoltas ecoando Rocambole (MEYER, 1996); e

acentuar o dado realista do drama burguês dialogando com o drama shakespeariano. Ou

seja, o conto não renega o folhetim ou o melodrama por inteiro por não poder fazê-lo – vide

o fato de o conto ser o primeiro do Várias Histórias e o mais adaptado dos contos

machadianos – por ser irremediável ter de usar essas estratégias num ambiente em que o

leitor brasileiro é leitor de folhetim como se vê nos próprios textos de Machado, como

mostrou Marlyse Meyer (MEYER, 1998). O fato de inserir suas estratégias em seu conto é

mais um artifício da própria poética machadiana, luciânica, como apontaram Merquior

(1972) e Sá Rego (1989). Em suma, esse conto parecer resolver o sofrimento do “Homem

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célebre”, outro conto de Várias histórias, pois há nele Mozart (Hamlet) e a polca

(Folhetim/melodrama).

Polca em película: a Cartomante de Wagner Assis.

“A cartomante”, de Machado de Assis é relida, por um diretor cujas origens vêm de um

campo oposto ao do escritor: da arte como entretenimento. Wagner de Assis foi roteirista da

Globo e dos filmes de Xuxa Xuxa Popstar (2000), Xuxa e os Duendes (2001) e Xuxa e os

Duendes 2 (2002). Em 2004 resolve se aventurar numa produção, segundo ele,

independente. Em depoimento publicado no livro da série Aplauso Cinema Brasil, editado

pela Imprensa Oficial (2005), o diretor relata a escolha de maneira bastante aleatória para

não dizer superficial. O pai do seu parceiro de direção, Pablo Uranga, e a sua mãe lhe

indicam o conto de Machado. Wagner de Assis lê, se apaixona pelo texto e o escolhe,

sempre segundo ele, como fonte do filme. Neste relato em nenhum momento faz referências

a outras versões da mesma história já realizadas, em especial a de Marcos Farias, de 1974,

diretor de um dos episódios de (“O favelado”) Cinco vezes favela (1962), filme importante

que marca os inícios do Cinema Novo. Assis prossegue e conta as várias redações do

roteiro, sendo a mais importante aquela em que diz ter desistido da adaptação de época por

causa das limitações financeiras. Por fim, o diretor resolve fazer um thriller romântico,

pois, segundo ele, “Como romântico, eu não tinha medo de escrever bobagens, nem ser

melodramático”, (ASSIS, 2005, p. 71). Essa foi a chave então para largar Machado e tentar

alçar voo próprio: “Deixei o bruxo do Cosme velho de lado com o coração partido”

(ASSIS, 2005, p. 71).

Há três aspectos que chamam a atenção nesses depoimentos do autor: a ausência de fontes

ou referências cinematográficas ou literárias na idealização inicial que presidissem o

roteiro; a declaração do ponto de vista romântico; e uso do clichê para anunciar o

rompimento com a obra inicial que pretendia adaptar. O diretor não parte, portanto, nem de

intérpretes da obra (da crítica literária, por exemplo) nem de adaptações precedentes. Ou

seja, não faz uma pesquisa sobre as leituras anteriores, sejam literárias, sejam fílmicas.

Nesse sentido é bem econômico: “A presença de uma previsão ‘equivocada’ no final, como

se o destino estivesse enganando os amantes, fez-me perder a respiração”. Ele opta então

por um ponto de vista romântico, que, como vimos, vai de encontro com a perspectiva do

conto. Aliás parece estar uma das chaves de leitura dessa aventura cinematográfica: a

adoção do ponto de vista das personagens do conto, e não do narrador, muito menos do

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autor. A nosso ver, é essa (falta de) interpretação que leva à má composição da história do

filme. Opor-se à visão do narrador não seria problema, desde que fosse uma opção

consciente, justificada por razões expressivas, ideológicas etc. Fica ainda a pergunta, por

que não escolher, então, outra história do autor, da primeira fase do escritor, por exemplo?

Por fim, a expressão que ele usa para dizer que deixaria para trás a obra do escritor

fluminense é temperada pelo clichê, mecanismo que usa e abusa durante o filme: “coração

partido”, que parece ser o grande drama pessoal do diretor – não partir corações. O clichê,

contudo, esconde outro problema: ele não abandonou de fato “A cartomante”. Vejamos

como isso se dá.

O filme mantém o núcleo da história do conto, alterando-o minimamente. Rita (Débora

Secco), prestes a se casar com o médico Vilela (Ilya São Paulo), apaixona-se pelo bad boy

Camilo (Luigi Baricelli), melhor amigo do médico. Deste entrecho inicial decorrem as

peripécias do filme. Ela é menina ingênua, leitora de horóscopo, cujo sonho maior é ter um

príncipe encantado (resquícios dos filmes da Xuxa?). Vilela seria esse príncipe, não fosse a

inserção do amigo entre os dois. Seduzida pelo bad boy – depois da cena clichê com planos

fechados nos rostos dos personagens e uso de câmara lenta em que se encontram – ela vai

atrás de uma cartomante. A cartomante a induz a ir em frente e ela se entrega ao amante.

Próximo do fim, Rita separa-se de Vilela e de Camilo, mas ela reencontra tempos depois o

amante em um Museu e terminam, em happy end, juntos.

“A cartomante”, quarta figura do filme, na verdade é uma psiquiatra, que se constitui na

personagem criada pelo diretor ou pela produtora, a própria atriz, Silvia Pfeiffer. Além dela,

o diretor inclui o que parecer ser uma história paralela, protagonizada por uma empresária,

Karen Albuquerque (Giovanna Antonelli). Na verdade esta história irá se juntar à principal

por meio de Antônia Maria dos Anjos, a psiquiatra, que também é a Cartomante e

personagem chave (que faz às vezes de narrador) quando o filme está terminando. O papel

dela seria o de manipular Rita, seja por prazer pessoal, seja para molestar Vilela, colega de

hospital de Antônia. Assim, há a história da traição, as mesmas personagens, com a

diferença que a Cartomante, no filme, é na verdade a psiquiatra de Rita. No final, os três

protagonistas do caso amoroso – Camilo, Rita e Vilela – descobrem que Antônia manipulou

Rita e seus pacientes a fim de testá-los até o limite.

Assim, em relação às diferenças, a mais acentuada é a temporal, uma vez que o filme passa

na década de 1990. Por causa disso, mudam-se alguns aspectos das personagens para que se

adaptem a essa modificação histórica. Em vez de juiz, Vilela é médico; Camilo, em vez de

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funcionário público, é um típico bad boy carioca; e Rita, uma comerciária. A caracterização

psicológica das personagens adúlteras é parecida: Rita é ingênua; e Camilo, entre tolo e

esperto. Já Vilela, por aparecer mais no filme do que no conto, adquire mais traços. O

principal talvez o de ser ambicioso, diferentemente do estabelecido Vilela do conto. A

mudança mais significativa se dá em relação à cartomante, que ganha nome e função social,

a psiquiatra Antônia, que ocupa papel importante, inclusive de dividir o papel de narradora

no filme.

O filme começa justamente com a história de Karen, que foi manipulada por Antônia e se

mata. Personagens e espectadores só descobrem isso só no final. Na sequência que antecede

o fim do filme, quando se revelam as vilanices da psiquiatra, as quatro personagens estão

reunidas e a ação termina em uma imagem congelada de um tiro: Rita atirando em Antônia.

Há um corte e daí em diante vem a resolução do conflito na forma de tomadas separadas

das três personagens utilizando voz em off: Vilela parte para outra, vai em busca de outro

amor e atrás de sua obsessão, ser diretor de hospital; Camilo perdoa o pai e com isso

supostamente rompe com o passado para poder buscar outras experiências e Rita larga seus

horóscopo e a maquiagem para, mais experiente, buscar outro amor. Mas quando

pensávamos que tudo havia terminado, o diretor inclui mais uma sequência: nela vemos

Rita e Camilo se reencontrarem num museu, no qual, à distância, vemos Vilela tomando um

café. Camilo e Rita se beijam enquanto uma voz over surge, da nova e última personagem,

Vitória – cujo nome é precedido pela imagem da estátua Vitória de Samotrácia exposta no

mesmo museu em que estão Rita e Camilo – que faz um discurso parecido com o de

Antônia, com quem, por fim, sabemos ser sua interlocutora. Os cabelos compridos da

psiquiatra indicam o tempo transcorrido da última cena até aquela.

Assim, embora o trio amoroso inicialmente sejam os protagonistas da história, no final –

numa forma quase de ex-machina – é a figura de Antônia que passa a ser protagonista, uma

vez que explica as ações da história. Ela, então, está acima das demais personagens por

saber quem são, por saber levá-las para onde deseja e por enganá-los o tempo todo. Essa

superioridade é metaforizada pela imagem que inicia o filme e o termina: ela no alto de um

prédio olhando para a orla do Rio de Janeiro, falando de si mesma, por meio da voz off -

recurso narrativo empregado pelo diretor em várias sequências do filme -, cuja fala é esta:

“meu interesse é o ser humano, mas essa não é minha história”. Fala essa que se repete no

começo e no fim do filme. Além disso, Antônia é um anjo, como sinaliza seu nome, que

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controla toda a história. Espécie de anjo da guarda às avessas, ela encarna o destino e o

narrador do filme ao mesmo tempo.

Resumindo, o que acontece de nuclear e importante no filme não foge muito ao entrecho do

conto. Guardadas inconciliáveis proporções, o enlace entre os amantes que ficam entre o

jogo de esconde-esconde com Vilela é o que move também a película. Acrescenta-se a

possibilidade de fugirem para realizarem seu grande amor, pois o século XXI dá abertura

para isso, obviamente. Mas como Camilo é fraco, como é néscio o Camilo do conto, e Rita

é ingênua, como a tola do conto, não conseguem dar esse passo – nesse sentido ecoam as

personagens do conto, que são ingênuos e tolos, portanto, fracos. Ou melhor, esse passo só

se dá no fim, com a ajuda do ponto de vista do diretor, que insere uma sequência final,

descolada da intriga central do filme, como vimos. Como o próprio Wagner de Assis disse,

ele é um romântico e o gênero é um thriller romântico, foi “obrigado” a criar o final feliz.

Mas isso só vai se dar, como vimos, depois de uma sucessão de fatos mal encadeados em

que o papel da psiquiatra vai se mostrando central. O que nos obriga a falar dela.

A princípio Antônia está, como um anjo, acima dos mortais. Ela pode inserir e tirar

obstáculos de frente das personagens. É médica psiquiatra, pode tirar e receitar remédios a

quem quiser. Ou induzir a tomar drogas demais como faz com a personagem Karen da

suposta trama paralela. No fim do filme fica-se sabendo que ela induziu a empresária a se

matar – e por extensão o marido dela. Ou então isto: ela teria instilado ideias contraditórias

na paciente de modo a obrigá-la a fazer escolhas. Se certas, libertação; se erradas, a morte

via suicídio. Sabemos disso no final do filme quando Antônia completa o texto que iniciou

no começo do filme: sua empregada teria cortado os pulsos três vezes, três vezes ela a teria

salvado; na quarta a deixou esvair-se em sangue até morrer.

Chega-se, então, a umas das ideias-chave do filme enunciada por uma das suas personagens

– aliás personagem secundária: “Você acha que controla o destino? Espere para ver o que o

destino acha disso?”. Ou seja, o filme gira em torno desse eixo: ninguém controla o acaso,

nada é previsível, tudo é regido pelo imponderável: “Assim, trouxe comigo a presença

marcante do imponderável, a tensão psicológica, o destino como agente transformador da

vida das personagens”, escreve Wagner de Assis (2005, p. 65).

Tal ideia parece não se amarrar à função da psiquiatra, pois não sabemos se ela está ali para

mostrar que o destino não tem papel algum, o que existe são as escolhas que fazemos –

como ela mesma diz no final do filme. Ou, então, nem como psiquiatra nem como anjo ela

é capaz de alterar o que tem de acontecer. Se for isso, que sentido teria sua presença no

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filme? Se fosse para criticar o papel do cientista ou do saber, poderia funcionar, inclusive

utilizado o próprio Machado do “Alienista”, do “Conto Alexandrino” e até da “Causa

Secreta”. A escolha do nome Vitória para a última personagem que aparece no filme deixa

mais enigmática a mensagem. Seria ela o destino, o anjo, por isso sempre vitoriosa? Ou

seja, independente do que acontecer é sempre o destino que rege tudo? Do suicídio da

empregada ao final feliz entre Rita e Camilo? Então, a psiquiatra-anjo seria a personificação

do destino? Mas o que fica para o espectador dessa história? Faça as escolhas certas, que

tudo vai dar certo? E a empregada? Escolheu errado ou foi manipulada? Voltamos a

possibilidade de uma crítica ao poder, seja médico, seja político tanto faz a essa altura, mas

nada parece convergir para isso. Seria propositadamente ambígua? Nada disso fica claro ou

bem amarrado no filme. Até porque a questão do amor é central no filme, marcadamente na

personagem mais forte do trio, Rita, simbolizado pela Vênus de Milo, que intermedeia o

enlace entre ela e Camilo.

O filme comporta uma contradição entre a mensagem do filme (plano do conteúdo) e sua

realização (plano da expressão): se o filme é todo recheado de perguntas acerca do destino;

se o imponderável é a palavra-chave usada pelo o autor para explicar o seu roteiro, a

resposta que recebemos é mais que previsível: “mocinha e mocinho [sic] ficam juntos e

tudo acaba bem, vitória!”. O destino do espectador está traçado: haja o que houver, ele terá

um final feliz. Seria quase uma inversão do conto. Ou seja, tudo ali é para dar errado,

menos com a Psiquiatra, mas tudo acaba bem, e para todos. Sem exceção. Nesse sentido é

um filme que utiliza o gênero folhetinesco, que podemos atualizar pela palavra

entretenimento, baseado numa obra da alta literatura.

Nesse sentido, Wagner de Assis não se consegue desprender da obra de Machado a despeito

do que afirma na apresentação de seu Roteiro citado acima. Como que hipnotizado pela

fábula fácil, o adultério, o diretor não larga dela apesar de tentar produzir algo diferente,

autoral. E ao não conseguir se desprender dela, escolhe caminhos equivocados.

Considerações finais

Se o conto encena, como se viu, um dos dilemas literários do século XIX, ou seja, a

contaminação entre gêneros literários altos e baixos, o filme desfaz o problema, escolhendo

a via do entretenimento. A encenação proposta por Machado é irônica, uma vez que

trapaceia o leitor ao prometer um melodrama e entregar uma meia-tragédia. Meia-tragédia

justamente porque o conto emprega, ainda que ironicamente, as estratégias do Folhetim.

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Nesse sentido, “A Cartomante” pode ser compreendida como uma obra que resolve o

dilema de Pestana, personagem de “Um conto célebre”, músico que sofria por causa do seu

sucesso como compositor de polcas e seu fracasso como autor de obras eruditas. Em “A

cartomante”, Machado atira esse problema para o leitor, mantendo-se à distância,

manipulando os cordéis dos dois gêneros, afirmando-se como um autor moderno,

consciente da contaminação incontornável entre as esferas literárias alta e baixa, oriunda

das influências dos novos meios de comunicação no campo da literatura.

O filme de Wagner de Assis, por sua vez, não percebe o dilema do conto nem o dilema do

cinema de seu tempo. As discussões do Cinema Novo e do Cinema da Retomada por

exemplo sequer são comentadas pelo diretor. Por exemplo, a opção por filmar adaptações

de obras literárias como recurso para driblar a censura durante a ditadura militar tomada por

cineastas como Nelson Pereira dos Santos, que adaptou “O alienista”,7 do mesmo Machado

de Assis, e Joaquim Pedro de Andrade,8 que adaptou Macunaíma, de Mário de Andrade.

Wagner de Assis buscou o verniz da alta literatura para um filme “global” ao adaptar “A

cartomante”. Ao misturar thriller romântico com sinais de filme autoral, produziu uma obra

inconsistente, por um lado, mas emblemática de uma marca muito nacional de nosso

arrivismo local, por outro lado. Solitariamente, sem pesquisa, sem diálogo com seus

predecessores, valendo-se de atores conhecidos, de um gênero rentável, buscou

reconhecimento e bilheteria como se estivesse seguindo as instruções do pai de Janjão, do

conto “A teoria do medalhão”.

Como recepção à obra machadiana, o filme revela o traço bacharelesco que segmentos

conservadores leem os textos do escritor carioca, relevando mais o aspecto tradicional e

superficial de sua obra; segmentos como os da Academia Brasileira de Letras, ou

segmentos ligados a certa tradição escolar, que o veem mais como totem de nossa literatura

e menos como autor de mil faces, irônico e crítico da sociedade brasileira e do homem em

geral. Nesse sentido, o filme faz recuar a leitura ou a visão de Machado para fins do século

XIX e início do XX, quando perdurava a visão do Machado ático, clássico e bem-

comportado. Do ponto de vista de nossa filmografia, a película representa a ligação entre o

cinema e a tevê brasileira, ou seja, a tentativa de levar para a tela técnicas e linguagens da

mídia televisiva como processo vinculado a nossa incipiente indústria midiática. Ligação

que ao mesmo tempo exibe a ausência de vínculo com a tradição cinematográfica nacional

propriamente dita. Tradição esta rica em adaptações literárias.

7 Azyllo muito louco, de 1969. 8 Macunaíma (1969)

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Referências bibliográficas

ASSIS, Joaquim M. Machado de. Várias histórias. Edição de Hélio de S. Guimarães. São

Paulo: Martins Fontes, 2004.

ASSIS, Wagner de. A cartomante. Roteiro comentado. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.

FONSECA, Maria A. Fonseca. “A cartomante”: ciladas do conto. In: FANTINI, Marli.

Crônicas da antiga corte. Literatura e memória em Machado de Assis. Belo Horizonte:

Editora UFMG, 2008, p. 185-212.

HUPPES, Ivete. Melodrama: o gênero e sua permanência. São Paulo: Ateliê, 2000.

MEYER, Marlyse. As mil faces de um herói canalha e outros ensaios. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ, 1998.

MEYER, Marlyse. Folhetim. Uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.

STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: Da fidelidade à intertextualidade. Ilha do

Desterro, Florianópolis, n. 51, p. 19-53, jul./dez. 2006.

VILLAÇA, Alcides. Machado de Assis, tradutor de si mesmo. Novos Estudos, n. 51, p. 3-

14, julho de 1998.

XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In:

PELEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac/Itaú Cultural,

2003, pp. 61-90.

Referência fílmica

A CARTOMANTE. Direção: Wagner de Assis e Pablo Uranga. Roteiro: Wagner de Assis.

São Paulo, 2004. 95 min. Color.