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A Historia Do Mundo Em 100 Objetod - Neil MacGregor

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A Historia Do Mundo Em 100 Objetos - Neil MacGregor

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DADOS DE COPYRIGHTSobre a obra:A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. expressamente proibida e totalmente repudivel a venda, aluguel, ou quaisquer usocomercial do presente contedoSobre ns:O Le Livros e seus parceiros disponibilizam contedo de dominio publico e propriedadeintelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educao devemser acessveis e livres a toda e qualquer pessoa. Voc pode encontrar mais obras em nossosite: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link."Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."Copyright the Trustees of the British Museum and the BBC, 2010Publicado mediante acordo com BBC e The British MuseumO logo da BBC marca registrada de British Broadcasting Corporation e utilizada sob licena.BBC logo BBC 1996O logo de The British Museum marca registrada de The British Museum Company Limited e marca no registrada deThe Trustees of the British Museum e utilizada sob licena.TTULO ORIGINALA History of the World in 100 ObjectsADAPTAO DE CAPAJulio MoreiraPREPARAOCarolina RodriguesREVISOSuelen LopesClara DiamentREVISO DE EPUBFernanda NevesPRODUO DE EPUBSimplssimo LivrosE-ISBN978-85-8057-442-5Edio digital: 2013Todos os direitos desta edio reservados Editora Intrnseca Ltda.Rua Marqus de So Vicente, 99, 3 andar 22451-041 GveaRio de Janeiro RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br Para todos os meus colegas do British MuseumSumrioCapaFolha de rostoCrditosMdias sociaisDedicatriaPrefcio: Misso impossvelIntroduo: Sinais do passadoParte umTornando-nos humanos2.000.000-9000 a.C.1. Mmia de Hornedjitef2. Ferramenta de corte de Olduvai3. Machadinha de Olduvai4. Rena nadadora5. Ponta de lana de ClovisParte doisDepois da era glacial: alimento e sexo9000-3500 a.C.6. Mo de pilo em forma de pssaro7. Estatueta dos amantes de Ain Sakhri8. Miniatura de gado de barro egpcia9. Esttua de deus maia do milho10. Vaso jomonParte trsAs primeiras cidades e os primeiros Estados4000-2000 a.C.11. Etiqueta da sandlia do rei Den12. Estandarte de Ur13. Selo do Indo14. Machado de jade15. Tabuleta de escrita primitivaParte quatroO despontar da cincia e da literatura2000-700 a.C.16. Tabuleta do Dilvio17. Papiro matemtico de Rhind18. Saltador de touro minoico19. Capa de ouro de Mold20. Esttua de Ramss IIParte cincoVelho Mundo, novas potncias1100-300 a.C.21. Relevos de Laquis22. Esfinge de Taharqo23. Vaso ritualstico chins da dinastia Zhou24. Tecido paracas25. Moeda de ouro de CresoParte seisO mundo na era de Confcio500-300 a.C.26. Modelo da carruagem de Oxus27. Escultura do Partenon: centauro e lpita28. Jarros de Basse-Yutz29. Mscara de pedra olmeca30. Sino de bronze chinsParte seteConstrutores de imprios300 a.C.-10 d.C.31. Moeda com a cabea de Alexandre32. Coluna de Ashoka33. Pedra de Roseta34. Taa de laca chinesa da dinastia Han35. Cabea de AugustoParte oitoPrazeres antigos, tempero moderno1-500 d.C.36. Taa de Warren37. Cachimbo norte-americano em forma de lontra38. Cinturo cerimonial de jogo de pelota39. Pergaminho das Admoestaes40. Pimenteiro de HoxneParte noveA ascenso das religies mundiais100-600 d.C.41. Buda sentado de Gandhara42. Moedas de ouro de Kumaragupta I43. Prato ilustrando Shapur II44. Mosaico de Hinton St. Mary45. Mo de bronze rabeParte dezA Rota da Seda e mais alm400-800 d.C.46. Moedas de ouro de Abd al-Malik47. Elmo de Sutton Hoo48. Vaso de guerreiro mochica49. Telha coreana50. Pintura de princesa em sedaParte onzeDentro do palcio: segredos da corte700-900 d.C.51. Relevo maia de sangria real52. Fragmentos de pintura mural de harm53. Cristal de Lotrio54. Esttua de Tara55. Figuras tumulares da China dos TangParte dozePeregrinos, invasores e mercadores800-1300 d.C.56. Tesouro do vale de York57. Taa de Edwiges58. Espelho de bronze japons59. Cabea do Buda de Borobudur60. Cacos de vasos de KilwaParte trezeSmbolos de status1100-1500 d.C.61. Peas de xadrez de Lewis62. Astrolbio hebraico63. Cabea de If64. Os vasos de David65. Banco cerimonial tainoParte catorzeEncontro com os deuses1200-1500 d.C.66. Relicrio do Santo Espinho67. cone do Triunfo da Ortodoxia68. Escultura de Shiva e Parvati69. Escultura de deusa huasteca70. Esttua Hoa Hakananaia da Ilha de PscoaParte quinzeO limiar do mundo moderno1375-1550 d.C.71. Tughra de Suleiman, o Magnfico72. Cdula Ming73. Lhama de ouro inca74. Taa com drago de jade75. Rinoceronte de DrerParte dezesseisA primeira economia global1450-1650 d.C.76. O galeo mecnico77. Placa de Benin: o oba com europeus78. Serpente de duas cabeas79. Elefantes kakiemon80. Peas de oitoParte dezesseteTolerncia e intolerncia1550-1700 d.C.81. Estandarte para desfile religioso xiita82. Miniatura de um prncipe mogol83. Marionete de Bima84. Mapa manuscrito mexicano85. Cartaz do centenrio da ReformaParte dezoitoDescobrimentos, explorao e Iluminismo1680-1820 d.C.86. Tambor akan87. Capacete de plumas havaiano88. Mapa norte-americano em couro de cervo89. Escudo australiano de casca de rvore90. Bi de jadeParte dezenoveProduo em massa, persuaso em massa1780-1914 d.C.91. Cronmetro martimo do HMS Beagle92. Conjunto de ch do incio da era vitoriana93. A grande onda, de Hokusai94. Tambor de fenda sudans95. Moeda desfigurada sufragistaParte vinteO mundo que construmos1914-2010 d.C.96. Prato revolucionrio russo97. No vilarejo tedioso de Hockney98. Trono de armas99. Carto de crdito100. Lmpada e carregador a energia solar MapasLista de objetosBibliografiaRefernciasCrditos de imagens e textosAgradecimentosSobre o autorPrefcio:Misso impossvelA funo dos museus contar histrias utilizando objetos. E, se vamos us-los para contar ahistriadomundo,oBritishMuseum,quehmaisde250anosreneobjetosdetodasaspartesdoplaneta,noummaulugarparasecomear.Naverdade,pode-sedizerqueexatamente isso que o museu tenta fazer desde que o Parlamento o criou em 1753, exigindoquetivessecomoobjetivoauniversalidadeefossegratuitoparatodos.Estelivrooregistro de uma srie de programas transmitida em 2010 pela Rdio 4, da BBC, mas tambmreitera o que o museu tem feito, ou tentado fazer, desde a sua fundao.AsregrasquenorteiamAhistriadomundoem100objetosforamestabelecidasporMarkDamazer,superintendentedaRdio4,eeramsimples.ColegasdomuseuedaBBCescolheriamnoacervodoBritishMuseumcemobjetosdeumperodoquecomeassenosprimrdiosdahistriadahumanidade,haproximadamentedoismilhesdeanos,echegasseatosdiasatuais.Aspeastinhamqueabrangeromundointeiro,daformamaisigualitriapossvel.Tentariamtratardetantosaspectosdaexperinciahumanaquantofossevivelenosfalariamdesociedadesinteiras,noapenasdosricosepoderosos.Precisavamincluir,portanto,artigoshumildesdavidacotidianaegrandesobrasdearte.Comocincoprogramas seriam transmitidos a cada semana, ordenaramos os objetos em grupos de cinco,girando o globo para chegar a diferentes pontos no tempo e observando cinco momentos domundoporintermdiodeobjetosrelativosadatasespecficas.LevandoemcontaqueacoleodoBritishMuseumenglobaomundointeiroequeaBBCtransmitidaemtodooplaneta,convidaramosespecialistasecomentaristasdenacionalidadesdiversasparaparticipar.claroqueessahistriapodeserapenasumahistriadomundo,pormpodeainda tentar ser uma histria para a qual o mundo tenha contribudo de alguma forma. (Emparteporrazesdecopyright,aspalavrasdoscolaboradoresforamcolocadasaquiessencialmente como foram ditas.)Oprojetoeraclaramenteimpossvelporvriosmotivos,masumaspectoemparticularprovocouumdebateacalorado.Todososobjetosseriamapresentadospelordio,nopelateleviso.Portanto,emvezdeseremvistos,teriamdeserimaginadospelosouvintes.Deincio, acho que o pessoal do museu, acostumado a um exame minucioso dos artefatos, ficouapreensivo,masnossoscolegasdaBBCestavamconfiantes.Sabiamqueaimaginaoseapropriadascoisasdeummodoparticular,queparacadaouvinteoobjetoemdiscussoseriaumapropriedadeeque,consequentemente,cadaqualconstruiriasuaprpriahistria.Paraaquelesqueporalgumarazoprecisavamverosobjetosenopodiamvisitaromuseupessoalmente, imagens ficaram disponveis no site de A histria do mundo em 100 objetos*apartir de 2010 e agora so reproduzidas neste livro belamente ilustrado.Neil MacGregorSetembro de 2010 * http://www.britishmuseum.org/explore/a_history_of_the_world.aspx. (N. do E.)Introduo:Sinais do passadoNestelivroviajamosdevoltanotempoecruzamosogloboterrestreparavercomons,sereshumanos,moldamosomundoefomosmoldadosporelenosltimosdoismilhesdeanos.Estaumatentativainditadecontarahistriadomundoaodecifrarasmensagenstransmitidasporobjetoscomopassardotempomensagenssobrelugaresepopulaes,ambienteseinteraes,sobrediferentesmomentosnahistriaesobrenossaprpriapocaquando refletimos sobre ela. Esses sinais do passado alguns confiveis, outros conjecturais,muitosaindaaseremrecuperadossodiferentesdequaisqueroutrasindicaesquepossamosencontrar.Falammaisdesociedadesinteirasedeprocessoscomplexosdoquedeeventos isolados e nos contam sobre o mundo para o qual foram feitos, assim como sobre osperodosposterioresqueostransformarameosmudaramdelugar,svezesadquirindosignificadosmuitoalmdaintenooriginaldequemosproduziu.Ahistriadomundoem100objetostentadarvidascoisasqueahumanidadeproduziu,aessasfontesdehistriameticulosamentemoldadaseasuastrajetrias,quasesemprecuriosas,atravsdesculosemilnios.Olivroincluitodosostiposdeobjetos,cuidadosamenteprojetados,sejamosadmiradosepreservados,sejamosusados,quebradosejogadosfora.Elesvariamdeumapanela a um galeo dourado, de uma ferramenta da idade da pedra a um carto de crdito,e todos vm do acervo do British Museum.Ahistriaqueemanadessesobjetosparecerdesconhecidaparamuitos.Hpoucasdatasclebres,batalhasfamosasouincidentesnotrios.Acontecimentoscannicosaconstruodoimprioromano,adestruiodeBagdpelosmongis,oRenascimentoeuropeu,asguerrasnapolenicas,abombadeHiroshimanosoocentrodasatenes.Entretanto,estopresentes,refletidosemobjetosindividuais.Apolticade1939,porexemplo, determinou a forma como Sutton Hoo foi escavado e compreendido (Captulo 47).APedradeRoseta(comotudoomais)documentaalutaentreaGr-BretanhaeaFrananapolenica(Captulo33).AGuerradaIndependnciaAmericanamostradaaquidoinusitado ponto de vista de um mapa em couro de cervo produzido pelos nativos americanos(Captulo88).Aolongodetodoolivro,escolhemosobjetosquecontammuitashistrias,eno apenas os que do o testemunho de um s evento.A necessria poesia das coisasSequisermoscontarahistriadomundointeiro,umahistriaquenofavoreaindevidamente uma parte da humanidade, no podemos faz-lo usando apenas textos, pois,duranteamaiorpartedotempo,sumafraodomundotevetextos,enquantoamaioriadassociedadesnoteve.Escreverumadasltimasconquistasdahumanidade,e,atbemrecentemente, mesmo sociedades letradas registravam preocupaes e aspiraes no apenasem seus escritos, mas em suas coisas.Umahistriaidealrenetextoseobjetos,ealgunscaptulosdestelivroconseguemexatamenteisso,pormemmuitoscasosimpossvel.Oexemplomaisevidentedessaassimetriaentrehistriacomesemescritatalvezoprimeiroencontro,emBotanyBay,entreaexpediodocapitoCookeosaborginesaustralianos(Captulo89).Dosingleses,temosrelatoscientficoseodiriodebordodocapitosobreaquelediafatdico.Dosaustralianos, temos apenas um escudo de madeira deixado para trs por um homem em fugadepois de sua primeira experincia com um tiro de arma de fogo. Se quisermos reconstruir oquedefatoaconteceunaqueledia,oescudodeveserexaminadoeinterpretadocomamesmaprofundidadeeomesmorigorcomqueexaminamoseinterpretamososrelatosescritos.Almdoproblemadafaltadecompreensomtua,hasdistoresacidentaisoudeliberadasdavitria.Comosabemos,soosvitoriososqueescrevemahistria,sobretudoquando apenas eles sabem escrever. Os que esto do lado perdedor, aqueles cujas sociedadesso conquistadas ou destrudas, em geral s dispem de suas coisas para contar histrias. Ostainoscaribenhos,osaborginesaustralianos,opovoafricanodeBenimeosincas,todosmencionadosnestelivro,tmmaispoderaofalarconoscodesuasconquistaspassadaspormeiodosobjetosquecriaram:umahistriacontadaatravsdascoisaslhesdevolveavoz.Quandoexaminamosocontatoentresociedadesletradasenoletradascomoessas,osprimeiros relatos de que dispomos so inevitavelmente distorcidos apenas uma metade dodilogo.Sequisermosencontraraoutrametade,devemoslernosostextos,masosobjetos. muito mais fcil falar do que fazer. Escrever histria a partir do estudo de textos umprocesso bem conhecido, e temos sculos de aparato crtico para nos ajudar na avaliao dosregistrosescritos.Aprendemosajulgarsuafranqueza,suasdistores,seusestratagemas.Com os objetos, temos, claro, estruturas de percia arqueolgica, cientfica, antropolgicaquenospermitemfazerperguntasvitais.Noentanto,precisamosadicionaraissoumconsidervel esforo de imaginao, devolvendo o artefato sua antiga vida, envolvendo-noscomeletogenerosaepoeticamentequantopudermos,naesperanadealcanarosvislumbres de compreenso que ele possa nos oferecer.Paramuitasculturas,sequisermosdescobriralgoarespeitodelas,esseonicocaminho.AculturamochicadoPeru,porexemplo,sobreviveapenasnosregistrosarqueolgicos.Umvasomochicaemformatodeguerreiro(Captulo48)umdospoucospontosdepartidaparadescobrirmosaidentidadedessepovoecompreendermoscomoeleviveu,comoviaasimesmoeaoseumundo.umprocessocomplexoeincerto,noqualobjetos,alcanveishojeapenasatravsdecamadasdetraduocultural,precisamserrigorosamenteexaminadoseimaginadosdenovo.Aconquistadosastecaspelosespanhis,porexemplo,encobriu,parans,aconquistadoshuastecaspelosastecas:porcausadessasrevoluesdahistria,avozdoshuastecassrecupervelagorapelaversoespanholadoque os astecas lhes contaram. O que os prprios huastecas pensavam? No deixaram registrotextual para nos contar, porm a cultura material dos huastecas sobrevive em figuras como adeusadepedrade1,5metrodealtura(Captulo69),cujaidentidadedeinciofoiequiparadamaisoumenosdadeusa-meastecaTlazolteotlemaistardedaVirgemMaria.Essasesculturassodocumentosprimriosdopensamentoreligiosohuasteca,e,emboraseusignificadoexatopermaneaobscuro,suapresenanuminosanosconduzdevolta aos relatos em segunda mo dos astecas e espanhis com novas percepes e perguntasmaiscerteirasaindaassimrecorrendo,emltimaanlise,anossasintuiessobreoqueest em questo nesse dilogo com os deuses.Taisatosdeinterpretaoeapropriaoimaginativassoessenciaisparacontarqualquerhistriausandoobjetos.EssesmtodosdepercepoeramfamiliaresaosfundadoresdoBritishMuseum,queviamarecuperaodeculturaspassadascomoumalicerceessencialparaacompreensodenossahumanidadecomum.Oscolecionadoreseespecialistas do Iluminismo contriburam com o ordenamento cientfico dos fatos e com umararacapacidadedereconstruopotica.Oprojetofoirealizadosimultaneamentedooutroladodomundo.OimperadorQianlongdaChina,contemporneoquaseexatodeGeorgeIII,emmeadosdosculoXVIIItambmsededicouacolher,colecionar,classificar,categorizareexploraropassado,produzindodicionrios,compilandoenciclopdiaseescrevendoarespeitodesuasdescobertascomosefosseumeruditoeuropeudosculoXVIII.Umasdasmuitascoisasquecolecionoufoiumdiscodejade,oubi(Captulo90),muitoparecidocomosdiscosdejadeencontradosnostmulosdadinastiaZhang,deaproximadamente1500a.C.Aindasedesconheceasuautilidade,masdecertosoobjetosdestatuselevadoelindamenteproduzidos.OimperadorQianlongadmiravaaestranhaelegnciadobidejadequeencontroueps-seaconjecturarsobresuaserventia.Aabordagem dele era to imaginativa quanto erudita: percebeu que o objeto era muito antigoerecapituloutodososoutrosdequetinhaconhecimentoquepodiamsercomparveisquele,mas,acimadetudo,estavaperplexo.Comolheeracaracterstico,escreveuumpoemasobresuastentativasdedecifr-lo.Ento,emumaatitudetalvezchocanteparans,mandouinscreveropoemanoprprioobjetoumpoemanoqualconcluiqueolindobideve ser um suporte de bacia e que, por isso, colocaria sobre ele uma bacia.EmboraoimperadorQianlongtenhachegadoconclusoerradasobreautilidadedobi, confesso que admiro seu mtodo. Utilizar coisas para pensar sobre o passado ou sobre ummundodistantesempreserelacionacomarecriaopotica.Reconhecemososlimitesdoquepodemossabercomcertezaedepoistemosqueiratrsdeumtipodiferentedeconhecimento,conscientesdequeobjetosforamfeitosnecessariamenteporpessoasiguaisansnaessnciaportantodeveramossercapazesdedesvendarporqueofizerameparaque serviam. Muitas vezes, essa pode ser a melhor maneira de compreender grande parte domundoemgeral,nosnopassado,masnanossaprpriapoca.Algumdiapoderemoscompreendernossossemelhantes?Talvezsim,masapenascommuitaimaginaopotica,aliada a um conhecimento rigorosamente adquirido e ordenado.OimperadorQianlongnoonicopoetanestahistria.ArespostadeShelleyaRamss II seu soneto Ozymandias no nos diz nada a respeito de como a esttua foifeitanoEgitoantigo,mascontamuitosobreafascinaodocomeodosculoXIXpelaefemeridadedosimprios.NograndebarcofunerriodeSuttonHoo(Captulo47),hdoispoetasemao:aepopeiadeBeowulfrecuperadanarealidadehistrica,enquantoaevocaodoelmodoguerreiro,deautoriadeSeamusHeaney,confereumaatualidadeaessafamosapeadearmaduraanglo-saxnica.impossvelusarobjetosparanarrarumahistria sem que haja poetas.A sobrevivncia das coisasUmahistriadomundocontadaporobjetosdeve,portanto,comimaginaosuficiente,sermaisigualitriadoqueaquelabaseadaapenasemtextos.Permitequediferentespovosfalem,emespecialnossosancestraisdopassadomuitodistante.Aparteinicialdahistriahumanamaisde95%detodaahistriadahumanidadepode,narealidade,sercontadaapenascompedras,pois,comexceodosrestosmortaisdehumanoseanimais,sas pedras sobrevivem.Entretanto,umahistrianarradaporobjetosnuncapodeser100%equilibrada,poisdependeporcompletodaquiloquesobrevive.umaquestoparticularmenteseveraemculturascujosartefatossofeitosdematerialorgnico,emespecialondeoclimacausasuadeteriorao: na maior parte do mundo tropical, pouco resta do passado distante. Em muitoscasos,osartefatosorgnicosmaisantigosdequedispomosforamcoletadospelosprimeirosvisitanteseuropeus:doisobjetosdestelivro,porexemplo,foramrecolhidospelasexpediesdocapitoCookojmencionadoescudoaborgineaustralianodecascadervore(Captulo89)eocapacetedeplumashavaiano(Captulo87),adquiridosnoprimeirocontato entre essas sociedades e os europeus. claro que tanto no Hava como no sudeste daAustrliaexistiramsociedadescomplexasqueproduziamartefatoselaboradosbemantesdessapoca.Masquasenenhumdosprimeirosartefatosdemadeira,plantasoupenassobreviveu,porissodifcilnarrarosprimrdiosdessasculturas.Umararaexceoofragmentotxtilde2.500anosdasmmiasdeParacas(Captulo24),preservadopelascondies excepcionalmente ridas dos desertos do Peru.Contudo,ascoisasnoprecisamsobreviverintactasparafornecerumaenormequantidadedeinformaes.Em1948,dezenasdepequenosfragmentosdecermicaforamencontradosporumatentocatadornumapraiaaopdeumpenhascoemKilwa,Tanznia(Captulo60).Eram,literalmente,lixo:lascasdelouadebarrojogadasfora,semserventiapara ningum. Mas, ao junt-las, o catador percebeu que naqueles cacos estava a histria dafricaOrientaldemilanosatrs.Defato,oexamedesuavariedadereveloutodaumahistriadooceanondico,porque,olhandocomateno,ficaclaroqueosfragmentosprovmdelugaresmuitodiferentes.Umcacoverdeeoutroazulebrancoso,claramente,fragmentosdeporcelanafabricadanaChinaemgrandesquantidadesparaexportao.OutrospedaostrazemdesenhosislmicosesodaPrsiaedogolfo.Outros,ainda,sodecermica indgena da frica Oriental.Essascermicastodasusadas,acreditamos,pelomesmopovo,todasquebradasejogadasnolixomaisoumenosnamesmapocademonstramoquepormuitotempoesteve fora do campo de viso da Europa: que entre os anos 1000 e 1500 da era crist, a costaleste da frica manteve contato com todo o oceano ndico. Havia comrcio regular entre elaeaChina,aIndonsia,andiaeogolfo,ematrias-primasemercadoriascirculavamamplamente. Isso era possvel porque, ao contrrio do Atlntico, cujos ventos no ajudam, ooceanondicotemventosquesopramsuavementedosudesteseismesesporanoedonoroesteoutrosseis,permitindoqueosmarujospartissemparapontosmuitodistantescomuma certeza razovel de que voltariam para casa. Os fragmentos de Kilwa demonstram que ooceanondico,narealidade,umenormelagoatravsdoqualculturassecomunicamhmilniosecomerciantestransportamnoapenasartigos,mastambmideias,eascomunidades daquele litoral esto interconectadas como as do Mediterrneo. Um ponto queahistriadessesobjetosdeixaclaroqueaprpriapalavraMediterrneoomarnocentrodaTerramalconcebida.ElenoestlocalizadonocentrodaTerraeapenasumademuitasculturasmarinhas.Novamos,claro,procurarumanovapalavraparadescrev-lo, mas talvez devssemos.As biografias das coisasEstelivrotalvezpudesseterrecebidoottulomaisexatodeAhistriadosobjetosemmuitosmundosdiferentes,poisumacaractersticadascoisasquecomgrandefrequnciaelasmudamousomodificadasmuitotempodepoisdecriadas,adquirindosignificadosque jamais poderiam ter sido imaginados em sua origem.Umnmerosurpreendentedosnossosobjetostrazasmarcasdeacontecimentosposteriores.svezessoapenasdanoscausadospelotempo,comooadornodecabeaquebradodadeusahuasteca,oupelafaltadejeitoduranteaescavaoepelaremooforada.Muitasvezes,porm,intervenesposteriorestinhamporobjetivoalterardeliberadamenteseusignificadoourefletiroorgulhoeosprazeresdaposserecente.Oobjeto se torna um documento no apenas do mundo para o qual foi feito, mas tambm dosperodosposterioresqueoalteraram.Ovasojomon(Captulo10),porexemplo,faladosavanos precoces dos japoneses em cermica e das origens de ensopados e sopas milhares deanos atrs, porm seu interior dourado fala de um Japo posterior, estetizante, j conscientedesuastradiesparticulares,revisitandoehonrandosualongahistria:oobjetotorna-secomentriodesimesmo.Otambordefendaafricano(Captulo94)umexemploaindamaisnotveldasmuitasvidasdeumobjeto.FeitoemformadebezerroporumgovernanteprovavelmentedonortedoCongo,tornou-seobjetoislmicoemCartum,sendodepoiscapturadoporlordeKitchener,entalhadocomacoroadarainhaVitriaedespachadoparaWindsorumanarrativaemmadeiradeconquistaseimprios.AchoquenenhumtextopoderiacombinartantashistriasdafricaedaEuropanemtorn-lastopoderosamenteimediatas. Essa uma histria que s uma coisa poderia contar.Doisobjetosnestelivrosonarrativasdesconcertantementemateriaisdealianasdesfeitasedeestruturasfalhas,mostrandodoisladosdiferentesdedoismundosbemdistintos.ApartedafrentedeHoaHakananaia(Captulo70)proclamacominabalvelconfianaapotnciadeseusancestraisque,devidamentevenerados,manteroaIlhadePscoa a salvo. Atrs,porm,estesculpidoofracassodessemesmocultoedasuaposterioreansiosasubstituioporoutrosrituais,medidaqueoecossistemadaIlhadePscoaentravaemcolapsoeospssaros,indispensveisparaavidanailha,iamembora.Ahistriareligiosa de uma comunidade, vivenciada durante sculos, pode ser lida nessa nica esttua.O prato da Rssia revolucionria (Captulo 96), por outro lado, mostra mudanas resultantesdeescolhashumanasedeclculopoltico.Ousodeporcelanaimperialparatransmitirimagensbolcheviquestrazumacativanteironia;masissologoofuscadopelasagacidadecomercialadmirveldesupor,acertadamente,quecolecionadorescapitalistasdoOcidentepagariammaiscaroporumpratoquecombinasseafoiceeomartelodaRevoluocomomonograma imperial do czar. O prato mostra os primeiros passos do complexo compromissohistricoentreossoviticoseasdemocraciasliberais,queprosseguiriapelossetentaanosseguintes.Essasduasreformulaesfascinameinstruem,masaremodelagemquemedmaisprazersemdvidaoPergaminhodasAdmoestaes(Captulo39).Porcentenasdeanos,enquantoaclebreobra-primadapinturachinesaaospoucossedesenrolavadiantedeles,proprietrioseespecialistasencantaram-seeregistraramoprpriodeleitecomamarcadeseussinetes.Oresultadotalvezdesconcerteoolhoocidentalacostumadoacontemplaraobra de arte como espao quase sagrado, mas acho que h algo de comovente nesses atos detestemunhoestticoquecriamumacomunidadedesatisfaocompartilhadaatravsdossculos na qual ns, por nossa vez, podemos ser admitidos mesmo sem acrescentar nossossinetes.Nopodehaverdeclaraomaisclaradequeessebeloobjeto,quecativoupessoasde formas diferentes por um perodo to longo, ainda tem o poder de nos encantar e agora nosso para dele desfrutarmos.Existeaindaoutraformacomoabiografiadascoisassealteracomopassardotempo.Umadasprincipaistarefasdosmuseus,eacimadetudodacinciadaconservaodemuseus,semprevoltaraosnossosobjetos,medidaquenovastecnologiasnospermitemfazer diferentes indagaes a respeito deles. Os resultados, sobretudo nos ltimos anos, comfrequnciatmsidosurpreendentes,abrindopossibilidadesdeinvestigaoerevelandosignificadosinesperadosemcoisasquejulgvamosconhecerbem.Nestemomento,osobjetosestomudandodepressa.Oexemplomaisextraordinriodestelivrosemdvidaomachado de jade de Canterbury (Captulo 14), cujas origens agora podem ser reconstitudasatopenedodeondeelefoioriginalmenteescavado,noaltodeumamontanhadaItliasetentrional.Graasaisso,hojecompreendemosmelhorasrotascomerciaisdosprimrdiosdaEuropaedispomosdeumnovoconjuntodehiptesessobreosignificadodoprpriomachado,especialmentevalioso,talvez,portervindodeumpontoacimadasnuvensemuito distante. Novos mtodos para avaliaes mdicas nos do um conhecimento profundodasenfermidadesdosantigosegpcios(Captulo1)edostalismsquelevavamparaoalm-tmulo.AtaamedievaldeSantaEdwiges(Captulo57),famosapelacapacidadedetransformar gua em vinho, h pouco tempo tambm sofreu uma mudana em sua natureza.Graasanovasanlisesdovidro,agorasepodeafirmar,comboadosedeconfiana,queoriundadoMediterrneoOriental,e,commenosconfiana(masgrandealegria),possvelvincul-laaummomentoparticularnahistriadinsticamedievaleaumainteressantefigura da histria das Cruzadas. A cincia reescreve essas histrias de formas inesperadas.Ummaterialcientficoacuradocombinadoaumaimaginaopoticapoderosanocasodotamborakan(Captulo86),adquiridoporsirHansSloanenaVirgniaporvoltade1730.Especialistasemmadeiraseplantasconstataramrecentementequeessetamborfoi,semdvida,produzidonoOestedafrica:devetercruzadooAtlnticoemumnavionegreiro.Agoraquesabemosseulocaldeorigem,impossvelnoseperguntaroqueesseobjeto pode ter testemunhado e deixar de imaginar sua jornada cruzando o terrvel Atlnticodesde a corte real no Oeste da frica at um latifndio norte-americano. Sabemos que essestamboreseramusadostantonadanadosescravosparacombateradepressodentrodosnavios quanto nas propriedades, em alguns momentos, a fim de incitar os escravos revolta.Se um dos propsitos da histria de um objeto dar voz a quem no tem, ento esse tamborpossuiumpapelespecial:odefalarpormilhesquenotinhamodireitodecarregarnadaconsigo ao serem subjugados e desterrados e que no podiam escrever a prpria histria.Coisas atravs do tempo e do espaoRodaroglobotentandoveromundointeiromaisoumenosnomesmoinstante,comodescrevi no prefcio, no uma forma habitual de contar ou ensinar histria: desconfio quepoucosdens,emnossostemposdeescola,foraminstadosarefletirsobreoqueacontecianoJapoenoLestedafricaem1066.Mas,seexaminarmosomundoempocasespecficas,oresultadoemgeralsurpreendenteedesafiador.Emtornode300d.C.(Captulos41-45),porexemplo,comumsincronismoquenosparecedesconcertante,obudismo,ohindusmoeocristianismopassaramaadotarasconvenesderepresentaoque,emgeral,aindahojeutilizam,concentrando-seemimagensdocorpohumano.umacoincidnciaadmirvel.Porqu?Astrsreligiesteriamsidoinfluenciadaspeladuradouratradiodaesculturahelnica?Ouissoocorreuporquetodasforamprodutodeimpriosricosemexpanso,capazesdeinvestirmuitonanovalinguagempictrica?Teriasurgidoumaideianova,partilhadaportodos,dequeohumanoeodivinoeram,emcertosentido,inseparveis?impossvelproporumarespostadefinitiva,pormsessamaneiradeveromundopoderiaformulartoperemptoriamenteoquedeveriaserumaquestohistricacentral.Em alguns casos, nossa histria retorna mais ou menos ao mesmo ponto diversas vezes,com intervalos de milhares de anos, e observa o mesmo fenmeno. No entanto, em tais casos fcil explicar as semelhanas e coincidncias. A esfinge de Taharqo (Captulo 22), a cabeade Augusto de Meroe (Captulo 35) e o tambor de fenda de Cartum (Captulo 94) falam deumviolentoconflitoentreoEgitoeoquehojeoSudo.Emcadacaso,opovodosulSudodesfrutoudeummomento(oudeumsculo)devitria;emcadacaso,opoderque governava o Egito finalmente se imps, e a fronteira foi restabelecida. O Egito dos faras,aRomadeAugustoeaGr-BretanhadarainhaVitriaforamobrigadosareconhecerqueem torno das primeiras cataratas do Nilo, onde o mundo do Mediterrneo encontra a fricanegra, h uma secular fratura geopoltica. Ali as placas tectnicas sempre colidem, resultandoemconflitoendmico,adespeitodequemdetenhaocontrole.Trata-sedahistriaqueajuda a explicar a poltica atual.Rodaroglobomostratambm,naminhaopinio,comoahistriaparecediferentedependendodequemolhaedeondeolha.Porisso,emboratodososobjetosdolivroestejam agora em um s lugar, muitas vozes e perspectivas foram deliberadamente includas.Aobraseutilizadaperciadasequipesdecuradores,conservadoresecientistasdoBritishMuseum,mastambmapresentapesquisaseanlisesdosmaisrenomadosestudiososdomundointeiro,incluindoavaliaesdepessoasquelidamemsuasprofissescomobjetossemelhantesaosquesodiscutidosaquidopontodevistahistrico:ochefedoServioPblicoBritnicoavaliaumdosmaisantigosregistrosadministrativosdaMesopotmia(Captulo 15), um satrico contemporneo examina a propaganda da Reforma (Captulo 85),eumtitereiroindonsiodescreveoquehojeestenvolvidonessetipodeapresentao(Captulo83).Comextraordinriagenerosidade,juzeseartistas,ganhadoresdoPrmioNobel e lderes religiosos, oleiros, escultores e msicos abordam os objetos com as percepesde sua experincia profissional.Felizmente,olivrotambmcontmvozesdascomunidadesoudospasesondeosobjetosforamfeitos.Paramimissoindispensvel.Selassocapazesdeexplicarosignificado atual dessas coisas naquele contexto: s um havaiano pode dizer o que o capacetedeplumasdadoaocapitoCookeseuscolegasrepresentahojeparaoshabitantesdailha(Captulo87),250anosapsaintrusoeuropeiaeamericana.NingummelhordoqueWole Soyinka para explicar o que significa para um nigeriano ver agora os bronzes de Benim(Captulo77)noBritishMuseum.Soquestescruciaisemqualqueranlisedeobjetosnahistria.Nomundointeiroidentidadescomunitriasenacionaissodefinidas,cadavezmais,pornovasinterpretaesdesuahistria,eessahistriacostumaestarancoradaemcoisas.OBritishMuseumnoapenasumacoleodeobjetos:umaarenaondesignificadoseidentidadessodebatidosecontestadosemescalaglobal,porvezescomaspereza.Essesdebatessoparteessencialdoqueoobjetosignificahoje,assimcomoasdiscussessobreondedeveriamserexpostoseabrigados.Essasopiniesdevemserarticuladas por aqueles a quem os objetos mais interessam.Os limites das coisasTodososmuseussebaseiamnaesperananacrenadequeoestudodascoisaspodelevaraumacompreensomaisverdadeiradomundo.aissoquesedestinaoBritishMuseum. A ideia foi expressa vigorosamente por sir Stamford Raffles, cuja coleo chegou aoBritish Museum como parte de sua campanha para convencer os europeus de que Java tinhaumaculturacapazdeassumir,comorgulho,umlugarentreasgrandescivilizaesdoMediterrneo. A cabea de Buda de Borobudur (Captulo 59) e as marionetes de sombra deBima (Captulo 83) mostram como os objetos podem ser eloquentes na arguio dessa causa,enopossvelqueeusejaonicoaolharparaelestotalmenteconvencidopelosargumentosdeRaffles.EssedoisobjetosnosconduzemamomentosmuitosdistintosdahistriadeJava,demonstrandoalongevidadeeavitalidadedacultura,efalamdeduasreas bem diferentes da experincia humana: a solitria busca espiritual do conhecimento e acatica diverso pblica. Por intermdio deles, pode-se vislumbrar, apreender e admirar todauma cultura.O objeto que talvez melhor resuma as ambies no apenas deste livro, mas do prprioBritishMuseumatentativadeimaginarecompreenderummundodoqualnotemosconhecimentodireto,masapenasrelatoseexperinciasdeoutros,orinocerontedeDrer (Captulo 75), animal que ele desenhou sem jamais ter visto. Motivado por relatos derinocerontesindianosenviadosdeGujaratparaoreidePortugalem1515,Drerseinformouomelhorquepde,lendoasdescriesquecirculavampelaEuropa,etentouimaginarqueaparnciateriaesseanimalextraordinrio.omesmoprocessopeloqualpassamosaojuntarindciosecomelesconstruirnossaimagemdeummundopassadooudistante.OanimaldeDrer,inesquecvelemsuacontidamonumentalidadeeperturbadorcomsuasplacasrgidasesuapeledobrada,umarealizaomagnficadeumartistasupremo.notvel,evocativoetorealquepareceprestesasaltardapgina.Eest,clarorevigorantemente?angustiantemente?tranquilizadoramente?(noseiquetermousar),errado.Mas,afinal,noissoqueimporta.OrinocerontedeDrerummonumentonossa incessante curiosidade sobre o mundo alm dos nossos limites e necessidade humanade explor-lo e compreend-lo.PARTE UMTornando-nos humanos2.000.000-9000 A.C.Avidahumanacomeounafrica.Lnossosancestraisfizeramosprimeirosinstrumentosdepedraparacortarcarne, osso e madeira. Essa dependncia cada vez maior dascoisas criadas por ns que torna os humanos diferentes dosoutrosanimais.Nossacapacidadedefabricarobjetospermitiuquenosadaptssemosaumaimensaquantidadede ambientes e nos espalhssemos da frica para o OrienteMdio,aEuropaeasia.Hcercadequarentamilanos,durante a ltima era glacial, os humanos criaram a primeiraarte representativa. Essa era glacial baixou o nvel dos maresnoplaneta,fazendosurgirentreaSibriaeoAlascaumaponteterrestrequepermitiuqueossereshumanoschegassemsAmricaspelaprimeiravezelogoseespalhassem pelo continente.IMmia de HornedjitefSarcfago de madeira, de Tebas (perto de Luxor), EgitoAPROXIMADAMENTE 240 A.C.QuandopasseipelaprimeiravezpelasportasdoBritishMuseumem1954,comoitoanos,comecei pelas mmias, e acho que ainda por onde a maioria das pessoas comea a primeiravisita.Napoca,oquemefascinouforamasprpriasmmias,aideiaexcitanteemacabradoscorposmortos.Hoje,quandoatravessooGrandePtioousuboosdegrausdeentrada,aindavejogruposdecrianasanimadasindoparaasgaleriasegpciasenfrentaroterroreomistriodasmmias.Agoraestoumuitomaisinteressadonossarcfagos,e,emboraesteaquemerefironoseja,demodoalgum,oobjetomaisantigodomuseu,pareceumbomponto de partida para contar esta histria atravs de objetos. Nosso relato cronolgico inicia-senoCaptulo2,comosprimeirosobjetosquesabemosteremsidofeitosintencionalmenteporsereshumanos,hpoucomenosdedoismilhesdeanos,portantopodeparecerumpoucoperversojpegarahistriaandando.Mascomeoaquiporqueasmmiaseseussarcfagosaindaestoentreosmaispoderososartefatosdomuseuerevelamcomoestahistriavaisuscitaresvezesrespondervariadostiposdeperguntassobreobjetos.Escolhiestesarcfagoemparticularfeitoporvoltade240a.C.paraumaltosacerdoteegpciochamadoHornedjitefeumdosmaisimpressionantesdomuseuporque,surpreendentemente,elecontinuaafornecernovasinformaeseanosenviarmensagenscom o passar do tempo.Sevoltamosaummuseuquevisitamosquandocriana,amaioriadenstemasensaodetermudadobastanteenquantoascoisaspermaneceram,serenamente,asmesmas.Noentanto,nobemassim:graasapesquisascontnuasenovastcnicascientficas,nossoconhecimentosobreelasestsempreseexpandindo.AmmiadeHornedjitef encontra-se em um imenso caixo externo negro, no formato do corpo humano,dentrodoqualhumsarcfagointernodecoradocomcapricho,que,porsuavez,guardaaprpriammia,embalsamadacomomaiorcuidadoeembrulhadaaoladodeamuletosetalisms.TudoquesabemosarespeitodeHornedjitefvemdesseconjuntodeobjetos.Decertaforma,eleseuprpriodocumento,eumdocumentoquecontinuaarevelarseussegredos.Hornedjitefchegouaomuseuem1835,maisoumenosdezanosdepoisqueammiafoiescavada.Textosescritosemhierglifosegpciostinhamacabadodeserdecifrados,eoprimeiro passo foi ler todas as inscries nos caixes, que nos contaram quem ele era, no quetrabalhavaealgosobresuascrenasreligiosas.SabemosonomedeHornedjitefporqueestescritonocaixointerno,assimcomoofatodetersidosacerdotenoTemplodeAmonemKarnak durante o reinado de Ptolomeu III ou seja, entre 246 e 222 a.C.O caixo interno tem uma bela face dourada o ouro indica status divino, pois se diziaqueacarnedosdeusesegpcioseradeouro.Sobafacehumaimagemdodeussolcomoum escaravelho alado, smbolo da vida espontnea, ladeado por babunos adoradores do solnascente.Comotodososegpcios,Hornedjitefacreditavaqueseseucorpofossepreservadoeleviveriaapsamorte,masantesdealcanaravidanoalmteriadefazerumaperigosaviagem para a qual precisava se preparar com o mais extremo cuidado. Por isso levou consigoamuletosefeitiosparaqualquereventualidade.Aparteinteriordatampadosarcfagodecoradacominscriesdefeitios,imagensdedeuses,quefuncionamcomoprotetores,econstelaes.Aposiodessesitensnatampasugerequeoscusseestendemsobreele,transformandoointeriordocaixoemumaminiaturadocosmo:Hornedjitefencomendouseuprpriomapadasestrelasesuamquinadotempo.Paradoxalmente,suameticulosapreparaoparaofuturoagoranospermiteviajarnadireooposta,devoltaparaeleeseumundo.Almdasnumerosasinscries,podemosdecifraracoisaemsi:ammia,seusarcfago e os objetos que contm.Graasaosavanosnapesquisacientfica,hojepodemossabermuitomaissobreHornedjitefdoqueerapossvelem1835.Nosltimosvinteanos,principalmente,grandespassosforamdadosparacolherinformaesdeobjetossemdanific-losnoprocesso.Tcnicas cientficas nos permitem preencher muitas lacunas no mencionadas nas inscries:detalhes da vida cotidiana, a idade das pessoas, que tipo de alimento consumiam, seu estadodesade,acausadesuamorteetambmcomoforammumificadas.Porexemplo,atrecentementenuncatnhamosconseguidoinvestigarparaalmdoslinhosqueenrolamasmmias,poissecorriaoriscodedanificarotecidoeocorpoaodesenrol-los.Masagora,com tcnicas de escaneamento como a tomografia computadorizada, usada em pessoas vivas,conseguimosverporbaixodasuperfciedolinhoosobjetosembrulhadosnopanoeoprprio corpo.O interior da tampa do sarcfago de HornedjitefA mmia envolta em linho, parcialmente coberta por sua cartonagemJohnTaylor,curadordonossoDepartamentodoEgitoAntigoeSudo,pesquisaasmmiasnoBritishMuseumhmaisdeduasdcadasenosltimosanoslevoualgumasahospitaislondrinosparaescaneamentosespeciais.Essesexamesnoinvasivosenodestrutivos renderam grandes descobertas:Agora podemos dizer que Hornedjitef era um homem de meia-idade ou j velho quando morreu e que foi mumificadocom os melhores mtodos disponveis na poca. Sabemos que seus rgos internos foram retirados, embalados comcuidado e colocados de volta; podemos v-los em seu interior. Vemos que resinas leos caros foram derramadasno corpo para preserv-lo, e tambm conseguimos detectar amuletos, anis, joias e pequenos talisms sob as faixas detecido, postos ali para proteg-lo em sua jornada para a outra vida. Desenrolar uma mmia um processo bastantedestrutivo,eosamuletos,quesomuitopequenos,podemsedeslocar;oposicionamentodeleseraabsolutamentecrucial para sua funo mgica, e ao escanear a mmia vemos todos eles, cada um em seu lugar, mantendo a mesmarelaoentresidequandoforamcolocadosalihmilharesdeanos.Issorepresentaumenormeganhoparaoconhecimento. Alm disso, podemos examinar os dentes minuciosamente, estabelecendo o grau de desgaste e a doenadental de que sofriam; conseguimos olhar os ossos e descobrir que Hornedjitef tinha artrite nas costas, o que deviacausar muita dor.Recentesavanoscientficosnospermitiramdescobrirmuitoalmdosproblemasnascostasde Hornedjitef. A leitura das inscries em seu caixo nos fala sobre seu lugar na sociedade eque tipo de crena essa sociedade tinha sobre a vida aps a morte, mas as novas tcnicas nospossibilitamanalisarosmateriaisusadosnapreparaodasmmiasenafabricaodoscaixes, o que nos ajuda a compreender como o Egito se relacionava economicamente com omundo ao redor. As mmias, para ns, talvez sejam quintessencialmente egpcias, mas o quesesabeagoraqueteriasidoimpossvelprepar-lasapenascomosrecursosdisponveisnoEgito.Isolandoetestandoosmateriaisutilizadosnamumificao,podemoscompararsuacomposioqumicaasubstnciasencontradasemdiferentespartesdoMediterrneoOrientalereconstruirasredescomerciaisqueabasteciamoEgito.Porexemplo,algunssarcfagostmbetumenegroalcatroado,epossvelrastre-loporanlisequmicaatafonte: o mar Morto, centenas de quilmetros ao norte, em uma regio que normalmente noficava sob controle egpcio. Esse betume deve ter sido negociado. Alguns caixes so feitos demadeiradecedrocara,compradaemgrandesedispendiosasquantidadesnoLbano;quandounimosamadeiradeluxodessesatadesaosttuloseposiohierrquicadaspessoas neles sepultadas, comeamos a ter uma noo do cenrio econmico do Egito antigo.Aextensodasmadeirasdoscaixes,sejamlocaisouimportadas,carasoubaratas,bemcomoaqualidadedotrabalhoexecutadonamadeira,osacessrioseonvelartsticodaspinturas tudo isso reflete a renda e a classe social. Pr indivduos como Hornedjitef nessescontextosmaisamplos,v-losnoapenascomosobreviventessolitriosdeumpassadodistante,mascomopartedeumasociedadeplena,ajuda-nosaescreverhistriasmaiscompletas do Egito antigo do que era possvel no passado.A maior parte do material que Hornedjitef tinha consigo no caixo destinava-se a gui-lonagrandejornadaparaavidaapsamorteeaajud-loasuperartodasasdificuldadesprevisveis.AnicacoisaqueseumapadasestrelascomcertezanopreviufoiqueeleacabariaemLondres,noBritishMuseum.assimquedeveriaser?SerqueHornedjitefeseuspertencesdeveriamestarl?Perguntasassimsurgemcomfrequncia.Ondedeveriamficar agora as coisas do passado? Onde melhor exibi-las? Deveriam ser expostas onde foramfeitasoriginalmente?Soperguntasimportantes,eretornareiaelasnodecorrerdolivro.PergunteiescritoraegpciaAhdafSoueifcomoelasesentiaaovertantasantiguidadesegpcias to longe de casa, em Londres:No fim das contas, talvez no seja ruim haver esttuas, pedras e obeliscos egpcios espalhados pelo mundo todo. Issonos faz recordar da poca do colonialismo, sim, mas tambm lembra ao mundo a nossa herana comum.Nomuseu,ahistriadeHornedjitef,assimcomoadetodososoutrosobjetoslabrigados,continua. Sua jornada ainda no terminou, nem nossa pesquisa, que realizada com colegasdomundointeiroecontribuiotempotodoparanossoentendimentocompartilhadoecadavez maior do passado global nossa herana em comum.2Ferramenta de corte de OlduvaiUtenslio encontrado na garganta de Olduvai, Tanznia1,8-2 MILHES DE ANOSEstaferramentadecorteumdosobjetosmaisantigosqueossereshumanosproduziramdeformaconsciente,et-laemmosnoscolocaemcontatodiretocomaquelesqueafizeram. Nesta histria do mundo contada pelas coisas, esta pedra lascada da frica ondehoje fica a Tanznia o comeo de tudo.Comoeudissenaintroduo,seumdosobjetivosdequalquermuseunospermitirviajarnotempo,nossoentendimentodaextensodetempoquehparaviajarmosaumentoudeformaespetaculardesdequeomuseuabriusuasportasem1759.quelaaltura, a maioria dos visitantes devia concordar que o mundo tinha comeado em 4004 a.C.,paraserexatoaoanoitecerdavsperadedomingo,23deoutubrodaqueleano.Essadataespantosamenteprecisafoicalculadaem1650peloarcebispoUssherdeArmagh,quepregavaemLincolnsInn,pertodoBritishMuseum,equevasculhoucomcuidadoaBblia,somando as idades de cada descendente de Ado e Eva, e ento combinou o resultado comoutros dados para chegar a essa data. Entretanto, nos ltimos sculos, arquelogos, gelogosecuradoresdemuseustmrecuadoconstantementecomacronologiadahistriahumana,dosseismilanosdoarcebispoUssherparaquaseinimaginveisdoismilhes.Portanto,seotempohumanonocomeounoJardimdodenem4004a.C.,quandocomeou?Eonde?Muitofoisugerido,masnosechegouanenhumarespostaconclusivaecertamenteanenhumadataconfivelat1931,quandoumjovemarquelogochamadoLouisLeakeypartiu em uma expedio patrocinada pelo British Museum com destino frica.AmetadeLeakeyerachegargargantadeOlduvai,umarachaduraprofundanasavana do norte da Tanznia, no muito longe da fronteira do Qunia. Ela faz parte do valedoRift,noLestedafrica,umimensorasgonasuperfciedaTerracommilharesdequilmetrosdecomprimento.FoiemOlduvaiqueLeakeyexaminoucamadasderochasexpostasqueagemcomoumasriedecpsulasdotempo.Enquantoestudavaasrochasmoldadaspelosol,peloventoepelachuvadassavanas,Leakeyalcanouumacamadaemqueaspedraserammoldadastambmporalgomais:moshumanas.Elasforamencontradasaoladodeossos,eerabvioquetinhamsidotransformadasemutensliosdeaougue para cortar carne e quebrar ossos de animais mortos na savana. Em seguida, indciosgeolgicosestabeleceram,semsombradedvida,queacamadaemqueosutensliosforamencontradostinhamaisoumenosdoismilhesdeanos.Aquilofoiumadinamitearqueolgica.As escavaes de Leakey apresentaram os mais antigos objetos produzidos pelo homemdequesetemnotciaemqualquerpartedomundo,emqualquerpoca,edemonstraramquenoapenasossereshumanostinhamseoriginadonafrica,masaculturahumanatambm.EstaferramentadecortefeitadepedrafoiumdosobjetosqueLeakeyencontrou.O grande naturalista e apresentador de televiso sir David Attenborough descreve um poucoda emoo que Leakey deve ter sentido:Ao segurar isto, sinto como era estar nas savanas africanas, precisando cortar uma carcaa para obter uma refeio.Aopeg-lo,aprimeirareaoach-lomuitopesado,eclaroqueopesodpotnciaaogolpe.Asegundaperceberquecabesemdificuldadenapalmadamo,eemumaposioemqueumnguloafiadovaidodedoindicador ao punho. Ento o que seguro uma faca afiada. Mais ainda, h uma salincia que me permite segurar comfirmeza a quina, que foi lascada de modo especial e muito cortante Eu poderia perfeitamente cortar carne com isto.Essa a sensao que me conecta ao homem que um dia teve o trabalho de lasc-la uma, duas, trs, quatro, cinco vezesde um lado e trs do outro portanto, oito aes dele, golpeando com outra pedra para tirar uma lasca e deixar estalinha quase reta, que um gume afiado.Recentementefabricamosumaferramentadecortecomastcnicasqueteriamsidousadasna garganta de Olduvai. Ao segur-la na minha mo, ficou evidente que pode muito bem serusada como apetrecho para remover a carne de uma carcaa. Experimentei-a num pedao defrangoassado.umutensliorpidoeeficazparaarrancaracarneedepois,comumsgolpe, quebrar o osso e chegar ao tutano. Mas da mesma forma pode ser utilizado para cortarcascadervoreoudescascarrazesparatambmcom-las.Realmenteumimplementomuitoverstilnacozinha.Muitosanimais,sobretudomacacos,usamobjetos;pormoquenosdistinguequefabricamosnossasferramentasantesdeprecisarmosdelasedepoisasguardamosparaus-lasdenovo.EstapedralascadadagargantadeOlduvaiaorigemdacaixa de ferramentas.Os primeiros humanos a usarem utenslios de corte como este provavelmente no eramcaadores,masoportunistasbrilhantes:esperavamquelees,leopardosououtrosanimaismatassem suas presas e ento entravam em cena com suas ferramentas de corte, garantiam acarneeotutanoelevavamcomoprmioaboladadeprotena.Gorduradetutanonoamaisapetitosa,masbastantenutritivacombustvelnoapenasparaaforafsica,mastambmparaumgrandecrebro.Ocrebroummecanismoextremamentefamintodeenergia. Embora corresponda a apenas 2% do peso do corpo, consome 20% de toda a energiaqueingerimoserequeralimentaoconstante.Nossosancestraisdequasedoismilhesdeanos atrs garantiam o futuro dando ao crebro o alimento de que ele precisava para crescer.Quandopredadoresmaisfortes,maisrpidosemaisferozesdescansavamsombradepoisdematarsuaspresas,oshumanosprimitivospodiamsairprocuradecomida.Usandoferramentascomoestaparaobtertutano,apartemaisnutritivadacarcaa,deramincioaumantigocrculovirtuoso.Essealimentoparaocorpoeparaamentesignificavaqueosindivduosmaisastutos,demaiorcrebro,sobreviveriamparagerarcrianasdecrebromaior, capazes, por sua vez, de fabricar utenslios mais complexos. Voc e eu somos apenas oproduto mais recente desse processo contnuo.Ocrebrohumanocontinuouaevoluirdurantemilhesdeanos.Umdosmaisimportantesavanosfoificarassimtricomedidaquepassavaalidarcomtodoumnovoconjuntodediferentesfunes:lgica,lngua,osmovimentoscoordenadosnecessriosparafabricarferramentas,imaginaoepensamentocriativo.Oshemisfriosesquerdoedireitodocrebrohumanoadaptaram-separaseespecializaremdiferenteshabilidadesetarefasbem diferente do que ocorreu com o crebro dos macacos, que continua no apenas menor,massimtrico.Estaferramentadecorterepresentaomomentoemquenostornamosdistintamente mais espertos, movidos por um impulso no s de fazer coisas, mas tambm deimaginar como melhorar as coisas. Como diz sir David Attenborough:Este objeto est na base de um processo que se tornou quase obsessivo entre os seres humanos. algo criado a partirde uma substncia natural com um propsito especfico, e, de certa maneira, quem fez o objeto tinha uma noo depor que precisava dele. mais complexo do que o necessrio para desempenhar a funo na qual foi usado? Acho quesepodequasedizerquesim.Eleprecisavamesmotiraruma,duas,trs,quatro,cincolascasdeumladoetrsdooutro? No bastariam duas? Acho que sim. Acho que o homem ou a mulher que segurou isto o fez apenas para umtrabalho especfico e talvez sentisse alguma satisfao em saber que aquilo cumpriria sua tarefa com grande eficcia,economia e ordem. Com o passar do tempo, se poderia dizer que ele passou a faz-lo de forma primorosa, mas talvezainda no. Era o comeo de uma jornada.Aquelas lascas extras no gume da ferramenta de corte revelam que, desde o incio, ns aocontrriodeoutrosanimaissentimosodesejodefazercoisasmaissofisticadasdoqueonecessrio.Objetostransmitempoderosasmensagenssobrequemosproduz,eaferramentade corte o comeo de uma relao entre os seres humanos e as coisas que criaram, o que tanto um caso de amor quanto uma dependncia.A partir do momento em que nossos ancestrais comearam a fabricar ferramentas comoesta, ficou impossvel para as pessoas sobreviver sem os objetos que produzem; nesse sentido,fabricar coisas o que nos torna humanos. As descobertas de Leakey na terra quente do valedoRifttiveramcomoresultadomaisdoquesimplesmenteobrigaroshumanosarecuarnotempo: deixaram claro que todos ns descendemos desses ancestrais africanos e que cada umdenspartedeumagigantescadisporaafricanatodostrazemosafricanoDNAetodasasnossasculturascomearamali.WangariMaathai,ambientalistaquenianaagraciadacom o Prmio Nobel da Paz, avalia as implicaes disso:As informaes de que dispomos nos dizem que viemos de algum ponto no Leste da frica. De to acostumados queestamos a ser divididos por fronteiras tnicas, seguindo fronteiras raciais, e a procurar razes para sermos diferentesunsdosoutros,devesersurpreendenteparaalgunsperceberqueoquenosdiferenciaquasesempremuitosuperficial, como a cor da pele, a cor dos olhos, a textura do cabelo, mas que, essencialmente, todos viemos do mesmotronco,temosamesmaorigem.Porisso,achoque,medidaquecompreendermosmelhoransmesmoseaprendermos a nos estimar uns aos outros sobretudo quando compreendermos que todos temos a mesma origem, abandonaremos muitos dos preconceitos que abrigamos no passado.Quando ouvimos as notcias no rdio ou assistimos televiso, fcil ver o mundo divididoemtribosrivaisecivilizaesconcorrentes.Porissobomnaverdade,essenciallembrarmo-nosdequeaideiadenossahumanidadecomumnoapenasumsonhoiluminista,masumarealidadegenticaecultural.algoqueveremosmuitasvezesnestelivro.3Machadinha de OlduvaiFerramenta encontrada na garganta de Olduvai, Tanznia1,2-1,4 MILHO DE ANOSOquevoclevaquandoviaja?Amaioriadensapresentariaumalongalistaquecomeacom escova de dentes e termina com excesso de bagagem. No entanto, durante a maior partedahistriadahumanidade,shaviaumacoisadefatonecessriaemumaviagem:umamachadinhadepedra.Elaeraocanivetesuodaidadedapedra,umapeaessencialdetecnologiacommltiplosusos.Apartepontudapodiafuncionarcomobroca,easlminascompridas dos dois lados serviam para cortar rvores ou carne ou ainda para raspar cascas oupeles.Parecebemsimples,masaverdadequefabricarumamachadinhaextremamentecomplicado,e,pormaisdeummilhodeanos,elafoiavanguardadatecnologia.Acompanhounossosancestraisdurantemetadedesuahistria,permitindoqueseespalhassem primeiro pela frica, depois pelo mundo.Durante um milho de anos, o som da fabricao de machadinhas era a batida da vidacotidiana. Qualquer um que escolhesse cem objetos para contar a histria do mundo teria deincluiramachadinha.Eoquetornaestemachadodepedrainteressanteomuitoquenosdiz no apenas sobre a mo, mas sobre a cabea de quem o fez.A machadinha da garganta de Olduvai no tem qualquer semelhana, claro, com ummachadomoderno:noexistecabonemlminademetal.umpedaoderochavulcnica,deumverde-acinzentadobonito,emformadelgrima.muitomaisverstildoqueummachado moderno. A pedra foi desbastada para formar gumes afiados nas laterais compridasda lgrima e uma ponta fina. Quando segurada na mo, percebe-se o quanto as duas formasse parecem, embora esta machadinha seja inusitadamente grande grande demais para queumamohumanaaseguresemalgumadificuldade.resultadodeumbelotrabalho,epossvel ver as marcas da remoo das lascas que lhe deu forma.Asprimeirssimasferramentas,comoadecortequevimosnoCaptulo2,nosparecembastante rudimentares. Lembram pedras de calamento lascadas, e eram feitas golpeando-sepedra contra pedra, tirando lascas para produzir pelo menos um gume afiado e cortante. Estamachadinhabemdiferente.Bastaobservarumbritadortrabalhandoparaperceberqueofabricantedenossamachadinhadevetertidomuitashabilidades.Machadinhasnosoobjetossimplesdeproduzir;sooresultadodeexperincia,planejamentocuidadosoehabilidade adquirida e refinada durante um longo perodo.Toimportanteparaanossahistriaquantoagrandedestrezamanualnecessriaparafazeresteinstrumentodecorteosaltoconceitualexigido:acapacidadedeimaginarnumbrutoblocodepedraaformaquesequerproduzir,assimcomooescultordehojevaesttua que aguarda dentro do bloco de pedra.Esteparticularpedaodesupremapedrahigh-techtementre1,2e1,4milhodeanos.ComoaferramentadecortedoCaptulo2,elefoiencontradonoLestedafrica,nagargantadeOlduvai,agranderachaduranasavanadaTanznia.Masveiodeumacamadageolgicamaisrecentedoqueaferramentadecorte,feitacentenasdemilharesdeanosantes, e h um imenso salto entre aqueles primeiros utenslios de pedra e esta machadinha. aquiqueencontramosasorigensreaisdoshumanosmodernos.Nsreconheceramosalgum igual a ns em quem a fez.Todaacriatividadecuidadosamentefocalizadaeplanejadanecessriaparafazerestamachadinhapressupeumenormeavanonamaneiracomonossosancestraisviamomundo e como seu crebro trabalhava. A machadinha pode tambm conter o indcio de algoainda mais extraordinrio: essa ferramenta de pedra lascada talvez guarde o segredo da fala,eprovvelqueproduzindoobjetoscomoestetenhamosaprendidoafalarunscomosoutros.Recentemente,cientistasestudaramoqueacontecedopontodevistaneurolgicoquando um utenslio de pedra produzido. Eles usaram modernos scanners de hospital paraverquaispedacinhosdocrebrosoativadosenquantobritadorestrabalhamnapedra.Surpreendentemente, as reas do crebro moderno que utilizamos ao fazer uma machadinhasobrepem-seconsideravelmentequelasusadasquandofalamos.Parecemuitoprovvelque, se podemos moldar uma pedra, possamos moldar uma frase.claroquenosabemosoqueofabricantedanossamachadinhadiria,maspareceprovvel que ele teria as mesmas habilidades lingusticas de uma criana de sete anos. Fossequalfosseonvel,essafalainicialteriasido,claramente,osprimrdiosdetodaumanovacapacidade de comunicao e isso significaria que as pessoas podiam se sentar para trocarideias,planejarotrabalhoemconjuntoouatmesmofofocar.Sepodiamfazerumamachadinhadecentecomoestaetransmitirascomplexashabilidadesenvolvidasnoprocesso,possvelqueestivessembemadiantadasrumoaqualquercoisaqueteramosreconhecido como uma sociedade.Assim,h1,2milhodeanos,ramoscapazesdefazerferramentas,comonossamachadinha,quenosajudavamacontrolaretransformaromeioambiente;amachadinhanos proporcionou melhores alimentos, assim como a capacidade de esfolar animais para fazerroupas e desbastar galhos para acender fogueiras ou construir abrigos. E no foi s isso: agorapodamos falar uns com os outros e imaginar algo que no estava fisicamente diante de ns.Oqueviriaaseguir?Amachadinhaestavaprestesanosacompanharemumaimensajornada,pois,comtodasessashabilidades,jnoestvamospresosanossoambienteimediato.Pornecessidadeouatmesmoporumsimplesdesejopoderamosnosdeslocar.Viajartornou-seumapossibilidade,epodamosiralmdasquentessavanasdafricaesobreviver,talvezatprosperar,emumclimamaisfrio.Amachadinhafoinossobilhete para o resto do mundo, e nas colees de estudo do British Museum h machadinhasde todas as partes da frica Nigria, frica do Sul, Lbia e tambm de Israel e da ndia,da Espanha e da Coreia at de uma saibreira perto do aeroporto de Heathrow.Aosaremdafricapelonorte,algunsdessesfabricantesdemachadinhasetornaramos primeiros bretes. Nick Ashton, arquelogo e curador do British Museum, discorre:EmHappisburgh,Norfolk,temosessespenhascosdedezmetrosdealtura,compostosdeargila,limoeareia,queforamdepositadosaliporumaenormeglaciaoh450milanos.Masfoidebaixodessasargilasqueummoradorpasseandocomseucodescobriuumamachadinhaincrustadanossedimentosorgnicos.Aquelasferramentasproduzidas na frica h 1,6 milho de anos chegaram Europa Meridional e a partes da sia h pouco menos de ummilho de anos. claro que naquela poca a costa situava-se vrios quilmetros mais longe. E, se caminhssemos poresse antigo litoral, chegaramos ao que hoje chamamos de Pases Baixos, no corao da Europa Central. Nessa poca,haviaumagrandeponteterrestreligandoaGr-Bretanhaaocontinenteeuropeu.NosabemosdefatoporqueossereshumanoscolonizaramaGr-Bretanhanessapoca,mastalveztenhasidoporcausadaeficciadanovatecnologia que chamamos de machadinha.4Rena nadadoraEscultura entalhada em dente de mamute, encontrada emMontastruc, Frana11000 A.C.Hmaisoumenoscinquentamilanospareceteracontecidoalgodrsticocomocrebrohumano. Em todo o mundo, humanos comeavam a criar padres que decoram e intrigam, afazerjoiasparaenfeitarocorpoeaproduzirrepresentaesdeanimaiscomosquaisdividiamseumundo.Faziamobjetosquetinhammenosavercommudarfisicamenteomundodoquecomexploraraordemeospadresvistosnele.Emsuma,faziamarte.Asduasrenasrepresentadasnestepedaodeossosoamaisantigaobradearteexistenteemqualquergaleriaoumuseubritnico.Elafoifeitanofimdaltimaeraglacial,porvoltadetrezemilanosatrs.Suafragilidadeassustadora:nsamantemosnummostruriocomtemperaturacontroladaportermostatoequasenuncaamudamosdelugar,poisqualquerchoquesbitopoderiareduzi-laap.umaesculturadecercadevintecentmetrosdecomprimento,entalhadanapresadeummamuteevidentementedaparteprximaponta,porquefinaeumpoucocurvada.obradeumdosnossosancestraisquequismostrarseumundoparasimesmoe,aofaz-lo,nostransmitiuseumundocomespantosoimediatismo.umaobra-primadaeraglacialeaomesmotempoevidenciaumaimensamudana no modo de funcionar do crebro humano.Asferramentasdepedraqueexaminamosnoslevaramaquestionarsefazercoisasoquenostornahumanos.Poderamosnosimaginarhumanossenousssemosobjetosparalidar com o mundo? Acho que no. Mas h outra pergunta que logo surge quando olhamosessesartefatosmuitoantigos.Porquetodosossereshumanosmodernossentemacompulsodeproduzirobrasdearte?Porqueohomemquefabricaferramentassetorna,em toda parte, o homem artista?As duas renas desta obra de arte nadam juntas, uma atrs da outra, e ao posicion-las oescultorexploroudemaneirabrilhanteoformatocnicodapresademamute.Arenamenor,afmea,vainafrente,comapontadodenteformandoapontadofocinho;eatrsdela, na parte mais encorpada da presa, vem o macho, maior. Devido curva do marfim, osdoisanimaissomostradosdequeixoparaoaltoeoschifresparatrs,exatamentecomofariamseestivessemnadando,enaparteinferioraspernasestoesticadas,dandoumamaravilhosa impresso de movimento hidrodinmico. uma pea magnificamente estudadaespodetersidofeitaporalgumquepassoumuitotempoobservandorenasatravessarem rios a nado.Portanto,porcertonofoiapenasumacasotersidoencontradapertodeumrio,numabrigodepedraemMontastruc,naFrana.Estaesculturaumarepresentaobelaerealistadasrenasque,trezemilanosatrs,perambulavamemgrandesrebanhospelaEuropa.Ocontinentenessapocaeramuitomaisfriodoqueagora;amaiorpartedapaisagemconsistiaemplanciesabertas,semrvores,comohojeaSibria.Paracaadores-coletoreshumanosnesseterrenoimplacvel,asrenaseramumdosmaisimportantesmeiosdesobrevivncia.Acarne,apele,osossoseoschifresforneciampraticamentetodooalimentoetodaaroupadequeprecisavam,almdematria-primaparaferramentasearmas.Enquantopudessemcaarrenas,elessobreviveriam,eofariamcomconforto.Entono surpreende que nosso artista conhecesse to bem os animais e que tenha decidido fazeruma imagem deles.Arenamaior,omacho,exibeumaimpressionantegalhada,queseestendeporquasetodoocomprimentodascostas,epodemosidentificarseusexocomtotalconfiana,poisoartistaesculpiuosgenitaissobabarriga.Afmeatemchifresmenoresequatropequenasprotubernciasnabarrigaqueparecemtetas.Contudo,podemosseraindamaisespecficos:os animais foram claramente retratados no outono, poca do cio e da migrao para os pastosde inverno. no outono que machos e fmeas tm galhadas completas e a pele em condiestomaravilhosas.Notraxdafmeaascostelaseoesternoestoesculpidoscomprimor.Esteobjetofoifeitonoapenascomoconhecimentodeumcaador,mastambmcomacompreensodeumaougueiro,algumquenoapenasobservava,mastambmcortavaesses animais.Mamute esculpido em chifre de rena h aproximadamente 12,5 mil anosSabemosqueessenaturalismominuciosoeraapenasumdosestilosqueosartistasdaeraglacialtinhamaseudispor.NoBritishMuseumexisteoutraesculturaencontradanamesmacavernaemMontastruc.Porumafelizsimetria,issopodenosercoincidncia:enquantonossasrenasestoesculpidasemdentedemamute,aoutraesculturadeummamuteentalhadoemumchifrederena.Masomamute,apesardeimediatamentereconhecvel, desenhado de modo bem diferente: simplificado e esquematizado, algo entrecaricatura e abstrao. Essa dupla no um acaso isolado: artistas da era glacial exibem umaamplavariedadedeestilosetcnicasabstrato,naturalista,atsurrealista,almdeusaremperspectivaecomposiosofisticada.Sohumanosmodernos,dementemoderna,comons.Aindavivemdecaarecoletar,masinterpretamseumundoporintermdiodaarte. O professor Steven Mithen, da Universidade de Reading, caracteriza a mudana:Algo aconteceu com o crebro humano entre, digamos, cinquenta e cem mil anos atrs que possibilitou o surgimentodessa criatividade, imaginao e capacidade artstica fantsticas provvel que diferentes partes do crebro tenhamse conectado de uma nova maneira, passando a combinar diversas formas de pensar, inclusive o que as pessoas sabemsobreanaturezaeoquesabemsobrecomofazercoisas.Issolhesproporcionouumanovacapacidadedeproduzirobrasdearte.Masascondiesdaeraglacialtambmforamcruciais:foiumapocamuitodifcilparaaspessoasviveremduranteinvernosseveroselongos;anecessidadedeconstruirvnculossociaisrealmenteintensos,anecessidade de rituais, a necessidade de religio, tudo isso est relacionado ao florescimento da arte criativa naquelapoca. Parte da arte um senso irresistvel de deleite, apreciao e celebrao do mundo natural.umaapreciaonoapenasdomundoanimal;aquelaspessoassabiamtiraromximoproveito das rochas e dos minerais. Esta pequena escultura resultado de quatro tecnologiasseparadasdeusodapedra.Primeiro,apontadodentefoiaparadacomumaferramentadecorte;depois,oscontornosdosanimaisforamtalhadoscomumafacaeumraspadordepedra. Em seguida, toda a pea foi polida com uma mistura de xido de ferro em p e gua,provavelmenteusando-secamura,e,porfim,asmarcasnoscorposeosdetalhesdosolhosforamcuidadosamentegravadoscomumaferramentadepedraparaentalhe.Tantonaexecuoquantonacomposio,umaobradeartemuitocomplexa.Mostratodasasqualidadesdeobservaoprecisaedeexecuohabilidosaquesebuscariamnumgrandeartista.Por que se dar tanto trabalho para fazer um objeto sem serventia prtica? O Dr. RowanWilliams, arcebispo de Canterbury, v um profundo significado em tudo isso: possvel sentir que quem fez isto se projetava com imensa generosidade de imaginao no mundo ao redor e via esentianosossosesseritmo.Naartedesseperodoveem-sesereshumanostentandoentrarplenamentenofluxodavida,paraquefaampartedetodooprocessodavidaanimalocorrendosuavolta,deumaformaquenodizrespeito apenas a lidar com o mundo animal ou garantir xito nas caadas. Acho que mais do que isso. um desejode penetrar no mundo e de se sentir quase vontade nele, num nvel mais profundo, e isso a rigor um impulso muitoreligioso, estar vontade no mundo. s vezes tendemos a identificar a religio com no estar vontade no mundo,comoseacoisarealficasseemoutrolugarnoParaso;mas,seexaminarmosasorigensreligiosasemuitosdosprincipais temas das grandes religies, o que se v justamente o contrrio: trata-se de como viver aqui e agora, decomo ser parte do fluxo da vida.A escultura das duas renas nadando no possui funo prtica, apenas forma. Ter sido umaimagemfeitasporsuabeleza?Outeriaoutrafinalidade?Aorepresentaralgumacoisa,aofazer um retrato ou uma escultura dela, damos-lhe vida por uma espcie de poder mgico eafirmamosnossarelaocomelaemummundoemquenossomoscapazesdeexperimentar como tambm de imaginar.Pode ser que grande parte da arte feita no mundo na poca da ltima era glacial tivesse,defato,umadimensoreligiosa,emboraagorapossamosapenassuporqualquerusoemritualquepudesseter.Pormessaarteestbaseadanumatradioaindaviva,umaconscinciareligiosaemevoluoquemoldamuitassociedadeshumanas.Objetoscomoaesculturadasrenasnadadorasnosconduzemmenteeimaginaodepessoasmuitodistantes de ns, mas muito parecidas conosco a um mundo que no podiam ver, mas quecompreendiam instantaneamente.5Ponta de lana de ClovisPonta de lana de pedra encontrada no Arizona, EstadosUnidos11000 A.C.Imagine:vocestnumapaisagemverderepletadervoresearbustos.Fazpartedeumgrupo de caadores que se aproxima furtivamente de um rebanho de mamutes e espera queumdelessejaoseujantar.Seguraumalanaleve,compontadepedra.Chegamaisperto,atiraalanaeerra.Omamutequevocqueriamatarquebraalanasobapata.Essalananoserveparamaisnada.Vocpegaoutraecontinuaedeixaparatrs,nocho,algo que no mais apenas uma ferramenta para matar que errou seu alvo, mas o objeto quelevar uma mensagem atravs dos tempos. Milhares de anos depois de o mamute ter calcadosualana,humanosencontraroaquelapontadelanadepedraesaberoquevocesteveaqui.Coisasjogadasforaouperdidasdizemtantosobreopassadoquantoasqueforamcuidadosamentepreservadasparaaposteridade.Artigosmundanosbanais,descartadoshmuitocomolixo,podemnoscontarashistriasmaisimportantesdetodaatrajetriahumananestecaso,comoossereshumanosmodernostomaramcontadomundoe,depois de povoar a frica, a sia, a Austrlia e a Europa, finalmente chegaram Amrica.Este pequeno objeto a parte importante de uma arma mortal. de pedra e foi perdidopor algum como ns, um ser humano moderno, no Arizona, h mais de treze mil anos. Ficana galeria norte-americana do British Museum, entre magnficos adornos de cabea, expostoao lado dos totens. A ponta de lana de slex; tem mais ou menos o tamanho de um celularpequenoeestreito,mascomoformatodeumafolhacompridaefina.Apontaaindaestintacta e muito afiada. A superfcie tem belas ondulaes de ambos os lados. De perto, nota-se que so as marcas de fabricao, onde as lascas de slex foram desbastadas com cuidado. um objeto que d gosto tocar e acariciar e bastante adequado sua funo letal.TalvezofatomaissurpreendentesobreessapontadelanasejaodetersidoencontradanaAmrica.Sereshumanosmodernosoriginaram-senafrica,epelamaiorpartedenossahistriaficamosconfinadosfrica,siaeEuropa,todasconectadasporterra. Como foi que povos que faziam lanas assim chegaram Amrica, e quem eram eles?Pontasdelanacomoestanosoraras;elaapenasumaentremilharesencontradasnaAmricadoNorte,ossinaismaisslidosdeixadospelosprimeirossereshumanosapovoarocontinente.SoconhecidascomopontasdeClovisemhomenagempequenacidade do estado americano do Novo Mxico onde foram descobertas em 1936, ao lado dosossosdosanimaisquetinhammatado.Osfabricantesdessaspontasdelanadepedra,opovo que caava com elas, tambm so conhecidos como o povo de Clovis.AdescobertaemClovisrepresentouumdossaltosmaisespetacularesnanossacompreensodahistriadasAmricas.Lotesdepontasdelanaquaseidnticasforamencontrados do Alasca ao Mxico e da Califrnia Flrida. Elas mostram como aquele povoeracapazdeestabelecerpequenascomunidadesnessareaimensaquandoaltimaeraglacial chegava ao fim, h aproximadamente treze mil anos.OpovodeClovisseriaoprimeiropovoamericano?Umdosmaioresespecialistasnesseperodo, o professor Gary Haynes apresenta seus argumentos:H sinais espalhados de que havia pessoas na Amrica do Norte talvez antes de essas pontas de Clovis serem feitas,masamaioriadasevidnciasquestionvel.Clovisparecetersidooprimeiropovo.QuaseemqualquerlugardaAmricadoNorte,aosecavarumstioarqueolgico,osnveismaisprofundostmcercadetrezemilanos,e,sehouver algum artefato, ser do povo de Clovis, ou relacionado a ele. Portanto, parece que eles foram os primeiros a sedispersarem,quepovoaramocontinenteesetornaramosancestraisdosnativosamericanosmodernos,ocupandoquase toda a Amrica do Norte, e vieram de algum lugar ao norte, porque estudos de gentica parecem comprovar queos ancestrais dos nativos americanos so do Nordeste da sia.Assim,aarqueologia,oDNAeamaiorpartedaopinioacadmicanosdizemqueapopulaooriginalnorte-americanachegouaoAlascahmenosdequinzemilanos,proveniente do Nordeste da sia.Maisoumenosquarentamilanosatrs,sereshumanoscomonsjhaviamseespalhadodafricaparaasiaeaEuropa,eatcruzadoosmaresparachegarAustrlia.MasnenhumserhumanotinhapisadonasAmricas.Essaoportunidadesurgiugraasagrandesmudanasclimticas.Primeiro,cercadevintemilanosatrs,umaintensificaodaeraglacialaprisionougrandequantidadedeguaemmantosglaciaisegeleiras,causandoumaimensaquedanonveldomar.OmarentreaRssiaeoAlasca(oestreitodeBering)tornou-seumaponteterrestrelargaefcildeatravessar.Animaiscomobiseserenasmudaram-se para o lado norte-americano, e os humanos que os caavam os seguiram.OcaminhoemdireoaosulparaorestantedaAmricaerapelocorredorsemgeloentreasMontanhasRochosasdoladodoPacficoeovastomantoglacialquecobriaoCanaddooutrolado.Quandooclimaesquentouhquinzemilanos,foipossvelparaumgrandenmerodeanimais,novamenteseguidosporseuscaadoreshumanos,passarporessecorredorparachegaraosricosterritriosdecaadaregioquehojeosEstadosUnidos. Era esse o Novo Mundo americano das pontas de Clovis. Tratava-se, obviamente, deum grande lugar para os humanos determinados do Norte da sia. Para os mamutes, porm,as perspectivas no eram to auspiciosas. As ondulaes laterais da ponta de Clovis, que achoto lindas, provocavam um sangramento intenso em qualquer animal alvejado, por isso nemeranecessrioserumatiradordeprimeiraousequeratingirumrgovital;bastavaacertarqualquer ponto, e a perda de sangue aos poucos enfraqueceria a presa at ficar fcil liquid-la. E, por volta de 10000 a.C., todos os mamutes e muitos outros grandes mamferos tinham,de fato, sido liquidados. Gary Haynes pe a culpa no povo de Clovis:HumaligaodiretaentreosurgimentodepessoaseodesaparecimentodemuitosdosgrandesmamferosnaAmrica do Norte, se no todos. Pode-se estabelecer essa conexo no mundo inteiro, sempre que o moderno Homosapiens surge. O desaparecimento de grandes mamferos quase invarivel e no apenas alguns animais, mas umagrande proporo deles; na Amrica do Norte, algo em torno de dois teros a trs quartos.Hdozemilanos,opovodeCloviseseusdescendenteshaviamseespalhadonospelaAmricadoNorte,mastambmpeloextremomeridionaldaAmricadoSul.Nomuitotempodepoisdisso,oaquecimentodoclimaeoderretimentodogeloelevaramdrasticamenteosnveisdomar,eaponteterrestrequetrouxerasereshumanosdasiavoltouaserinundada.Nohaviaretorno.Pelosdezmilanosqueseseguiram,maisoumenos,atoconstanteataquedoseuropeusnosculoXVI,ascivilizaesdasAmricasdesenvolveram-se por conta prpria.Portanto,hcercadedozemilanos,chegamosaummomentocrucialdahistriadahumanidade.ComexceodasilhasdoPacfico,sereshumanostinhamcolonizadotodoomundo habitvel, incluindo a Austrlia. Parece que somos naturalmente compelidos a seguiremfrente,semprequerendosaberoquehdepoisdaprximacurva.Porqu?OapresentadoreviajanteMichaelPalinandouporboapartedogloboe,nasuaopinio,oque nos faz seguir em frente?Semprefuiinquieto,edesdemuitopequenomeinteressavaporlugaresondeeunoestava,noquehaviaalmdohorizonte, no que havia depois de dobrarmos a esquina. E quanto mais se examina a histria do Homo sapiens, mais sepercebe que tudo uma questo de movimento, desde a primeira vez que resolveu sair da frica. essa inquietaoquepareceumfatorsignificativonaformacomooplanetafoicolonizadopeloshumanos.Parecequenoestamosacomodados. Achamos que sim, mas continuamos procura de um lugar onde algo seja melhor mais quente, maisagradvel. Talvez haja nisso um elemento, um elemento espiritual, de esperana de que vamos encontrar um lugarmaravilhoso. a busca do paraso, a busca da terra perfeita talvez isso esteja por trs de tudo, todo o tempo.A esperana como uma qualidade definidora do homem um pensamento encorajador. Oque mais me chama a ateno em nossa jornada at aqui, de quase dois milhes de anos, oafconstantedoserhumanodefazersempremelhor,deproduzirferramentasnoapenasmais eficientes, mas tambm mais bonitas, de explorar no apenas ambientes, mas ideias, delutarporalgoqueaindanotenhasidoexperimentado.Osobjetosquedescreviseguiramesse movimento: desde as ferramentas de sobrevivncia no muito diferentes das que outrosanimais poderiam usar at uma grande obra de arte e os possveis primrdios da religio. Osprximoscaptulosmostramcomocomeamosatransformaromundonaturallavrandoaterra.Noprocesso,transformamosnoapenasapaisagem,masasplantas,osanimaise,acima de tudo, ns mesmos.PARTE DOISDepois da era glacial: alimento e sexo9000-3500 A.C.Oavanodaagriculturaocorreudemaneiraindependenteempelomenossetepartesdiferentesdomundonofimdaltimaeraglacial,dezmilanosatrs.Essalentarevoluolevousculoseteveprofundasimplicaes.Trabalharnalavoura e domesticar animais significava que, pela primeiravez,sereshumanosseestabeleciamemumlugar.Aagriculturaproduziuumexcedentedealimentosquepermitiaagrandesgruposviverjuntosemudarnosoestilo de vida, mas tambm o jeito de pensar. Novos deusesforam desenvolvidos para explicar o comportamento animale os ciclos sazonais das culturas agrcolas.6Mo de pilo em forma de pssaroMo de pilo de pedra encontrada no rio Aikora, provnciade Oro, Papua-Nova Guin6000-2000 A.C.Da prxima vez que estiver na seo de saladas de um restaurante, observe com ateno ashortaliasexpostas.Provavelmentehsaladadebatata,arroz,milhoefeijo,todosprovenientesdediferentespartesdomundo;nadaincomumnosdiasatuais,masnenhumdelesexistirianaformanutritivadeagoraseasplantasqueosproduzemnotivessemsidoescolhidas, apreciadas e profundamente modificadas durante geraes por nossos ancestrais.A histria dos cereais e hortalias mais modernos comeou h dez mil anos.Jobservamoscomonossosancestraissedeslocavampelomundo;agoravoumeconcentrarnoqueaconteceuquandosefixaramemumlugar.Eraumtempodeanimaisrecm-domesticados, deuses poderosos, clima perigoso, sexo bom e alimento ainda melhor.Honzemilanos,omundopassouporumperododerpidasmudanasclimticas,culminando no fim da mais recente era glacial. As temperaturas aumentaram, e os nveis domarsubiramrapidamentealgoemtornodecemmetrosogeloderretiaeanevedavalugargrama.Asconsequnciasforammudanaslentas,masprofundas,nomododeviverdos humanos.Dezmilanosatrs,ossonsdavidacotidianacomearamamudarnomundointeiro,medidaquenovasformasdemoereesmagaranunciavamapreparaodealimentosquealterariamnossasdietasenossaspaisagens.Durantemuitotempo,nossosancestraisusaramo fogo para assar carne; agora a cozinhavam de um modo que hoje nos parece mais familiar.HumaimensavariedadedeobjetosnoBritishMuseumqueeupoderiaterescolhidoparailustraressemomentoparticulardahistriadahumanidade,noqualaspessoascomearam a plantar razes e cultivar espcies que as alimentavam o ano todo. Os primrdiosdessetipodelavouraparecemterocorridoemmuitoslocaisdiferentesmaisoumenosaomesmotempo.ArquelogosdescobriramrecentementequeumdesseslugaresfoiPapua-Nova Guin, a enorme ilha ao norte da Austrlia, de onde vem esta mo de pilo em formadepssaro.Calculamosquetemporvoltadeoitomilanos,enaquelapocaumamodepilodeviaservirexatamenteparaoqueservehoje:moeralimentosnumrecipienteedecomp-los para poderem ser comidos. uma mo de pilo grande, com 35 centmetros decomprimento. A parte usada para moer, a inferior, um bulbo de pedra do tamanho de umaboladecrquete;seudesgastevisvel,enohdvidadequefoimuitousado.Acimadobulbo, o cabo muito fcil de segurar, mas a parte superior foi esculpida em uma forma quenada tem a ver com a produo de alimento: parece um pssaro esbelto e alongado, com asasabertas e um longo pescoo para a frente.lugar-comumemtodasasculturasqueprepararecompartilharalimentosnosune,sejacomofamliaoucomunidade.Todasassociedadescomemoramacontecimentosimportantescombanquetes,eboapartedaslembranasedasemoesdavidaemfamliaestassociadaapanelasefrigideiras,aospratosecolheresdepaudanossainfncia.Essasassociaesdevemterseformadobemnocomeodahistriadacozinhaedeseusimplementos cerca de dez mil anos atrs, mais ou menos o perodo de nossa mo de pilo.NossamodepilodepedraapenasumaentremuitasencontradasemPapua-NovaGuin,assimcomonumerososrecipientes,mostrandoquenaquelapocahaviamuitosagricultorescultivandolavourasnasflorestastropicaisenassavanas.EssadescobertarelativamenterecentecontrariouaopinioconvencionaldequeaagriculturatevesuaorigemnoOrienteMdio,naregiodaSriaaoIraque,geralmentechamadadeCrescenteFrtil, e que dali se espalhou pelo mundo. Agora sabemos que no foi bem assim. A verdadequeestecaptuloparticulardahistriadahumanidadeocorreusimultaneamenteemmuitos lugares. Pessoas que lavravam a terra, onde quer que fosse, comearam a concentrar-se num pequeno nmero de plantas, colhendo-as de maneira seletiva no mato, plantando-asecuidandodelas.NoOrienteMdio,optaramporcertasgramneasformasprimitivasdotrigo;naChina,peloarrozselvagem;nafrica,pelosorgo;eemPapua-NovaGuin,peloinhame, tubrculo rico em fcula.Paramim,omaissurpreendenteemrelaoaessasnovasplantasqueemseuestadonatural quase nunca podem ser comidas ou pelo menos tm um sabor repugnante quando setentaingeri-las.Deondeveioaideiadecultivaralimentosqueantesdeseremcomidosprecisamserdeixadosdemolho,cozidosoumodosparasetornardigerveis?MartinJones,professordeCinciaArqueolgicanaUniversidadedeCambridge,vnissoumaestratgiaessencial de sobrevivncia: medida que a espcie humana se espalhava pelo globo, tivemos de enfrentar a concorrncia de outros animais pelosalimentos fceis. Onde no era possvel competir, procurvamos o alimento difcil. amos atrs das pequenas e durassementesdegramneaquechamamosdecereais,indigestassecomidascruas.Elaspodematservenenosas,eprecisamos reduzi-las a polpa e transform-las em coisas como pes e massas. Alm disso, passamos a consumir osvenenosostubrculosgigantes,comoabatata-doceeoinhame,quetambmprecisavamserdrenados,trituradosecozidosantesdeseremcomidos.Foiassimqueconseguimosumavantagemcompetitiva:outrosanimaisquenotinham crebro como o nosso eram incapazes de pensar vrias etapas frente para fazer isso.Portanto,precisotercrebroparaingressarnaculinriaeexplorarnovasfontesdealimento.NosabemosseoscozinheirosqueusavamnossamodepiloparatriturarinhamenaNovaGuineramhomensoumulheres,massabemos,devidoaprovasarqueolgicasnoOrienteMdio,queaculinriaerabasicamenteumaatividadefeminina.Aoexaminartmulosdesseperodo,cientistasdescobriramqueosquadris,ostornozeloseosjoelhosdasmulheresmadurasgeralmentesofriammuitodesgaste.Logo,moa-seotrigode joelhos, balanando para a frente e para trs a fim de esmagar os gros entre duas pedraspesadas.Essaatividadequeprovocavaartritedevetersidomuitordua,maseraassimqueasmulheresdoOrienteMdioeosnovoscozinheirosportodapartecultivavamumapequenavariedadedealimentosnutritivosbsicosquepodiamsustentargruposmuitomaioresdepessoasdoqueatentoforapossvel.Amaioriadessesnovosalimentoserainspida,pormopilopodetertidoumpapelvitalaquitambm,tornando-osmaisinteressantes. O chef Madhur Jaffrey, que escreve sobre culinria, comenta:Se pegarmos sementes de mostarda, j conhecidas nos tempos antigos, e as deixarmos inteiras, o sabor um, mas se astriturarmos ficam picantes e amargas. Altera-se a prpria natureza de um tempero esmagando-o.Essesnovosprodutosecondimentosajudaramacriarnovasformasdecomunidade.Elaseramcapazesdegerarexcedentes,queeramarmazenados,trocadosousimplesmenteconsumidosemumgrandebanquete.Ocorpolongoeelegantedenossamodepiloparecedelicadodemaisparasuportarosvigorososgolpesdiriosdadosnoinhame,porissotalvez seja lcito pensar nele mais como um utenslio festivo e cerimonial usado para prepararbanquetesespeciaisemquepessoassereuniam,comofazemosatualmente,paracomprarevender, danar ou comemorar momentos importantes da vida.Hoje, quando muitos podem viajar vontade, dependemos de alimentos cultivados porpessoasquenopodemfaz-lo,poisprecisampermanecernomesmopedaodeterra.Issotornaosagricultoresdomundointeirovulnerveisaqualquermudanaclimtica,esuaprosperidade depende de climas regulares e previsveis. No de surpreender, portanto, queosagricultoresdedezmilanosatrsformassem,ondequerquevivessem,umavisodemundobaseadaemdeusesdealimentoedeclima,queprecisavamserconstantementeaplacadosecultuadosparagarantiremociclocontnuodasestaesecolheitasboaseseguras.Agora,comoclimamudandomaisrpidodoqueemqualqueroutrapocadosltimos dez mil anos, a maioria dos que buscam solues se volta no apenas para os deuses,mastambmparaosgovernos.BobGeldofumdefensorapaixonadodessanovapolticados alimentos:Toda a psicologia dos alimentos, onde ela nos coloca, , creio, mais importante do que praticamente qualquer outroaspecto da vida. Em essncia, a necessidade de trabalhar vem da necessidade de comer, por isso a ideia de comida fundamental em toda a existncia humana. claro que nenhum animal existe se for incapaz de comer, mas agora, nocomeodosculoXXI,elaclaramenteumadastrsmaisaltasprioridadesaseremenfrentadaspelaspotnciasglobais. Do seu xito ou fracasso depende o futuro de setores inteiros da populao mundial. H vrios fatores, mas opredominante a mudana climtica.Assim, outra mudana climtica, como a de dez mil anos atrs, que nos trouxe a agricultura,pode agora estar ameaando nossa sobrevivncia como espcie global.7Estatueta dos amantes de Ain SakhriEscultura de pedra encontrada em Wadi Khareitoun, Judeia,perto de Belm9000 A.C.Quando a mais recente era glacial chegava ao fim, algum catou um seixo em um pequenorio perto de Belm. Ele decerto veio rolando com a correnteza, batendo de encontro a outraspedrasduranteadescidaesendoalisadoporelas,noprocessoqueosgelogoschamam,poeticamente,depercusso.Entretanto,hcercadeonzemilanos,umamohumanadesbastou e moldou este seixo belamente burilado e arredondado, fazendo dele o que hojeum dos objetos mais comoventes que existem no British Museum. Mostra duas pessoas nuas,literalmente envoltas uma na outra. a mais antiga representao de um casal fazendo sexode que se tem conhecimento.NasaladosmanuscritosdoBritishMuseum,amaioriadaspessoaspassadiretopelavitrine que contm a escultura dos amantes. Talvez seja porque, de longe, no parece grandecoisa;umapedrapequena,decormeioapagada,cinzenta,dotamanhodeumamofechada. Mas de perto se v que um casal sentado, braos e pernas em torno um do outrono abrao mais apertado. No h feies faciais claras, mas possvel dizer que um olha nosolhosdooutro.Achoqueumadasexpressesdeamormaisternasqueconheo,comparvel aos casais que se beijam dos grandes Brancusi e Rodin.Napocaemquemoshumanasderamformaaesteseixo,asociedadepassavaporumamudana.Conformeoclimaaquecianomundointeiroeospovosabandonavamgradualmenteacaaeacoletaporumaformadevidamaisfixabaseadanaagricultura,nossa relao com o mundo natural se transformava. Ns, que vivamos como a parte menordeumecossistemaequilibrado,comeamosatentarmoldaromeioambiente,acontrolaranatureza. No Oriente Mdio o clima mais quente favoreceu a disperso de ricas savanas. Atento,aspessoasmudavamsempredelugar,caandogazelasecoletandosementesdelentilha,gro-de-bicoeervassilvestres.Porm,nasnovasemaisexuberantessavanas,asgazelas eram abundantes e costumavam permanecer no mesmo lugar o ano inteiro, ento oshumanosseacomodaramcomelas.Umavezinstalados,puseram-seacoletarsementesdegramneasaindanotaloe,aocoletaresemearessassementes,praticaramsemquererumaformarudimentardeengenhariagentica.Amaioriadassementesdeervassilvestrescaidaplantaefacilmenteespalhadapeloventooucomidaporpssaros,masaquelespovosselecionavamassementesquepermaneciamnotalocaractersticaimportantssimaparadecidir se uma gramnea boa para cultivo. Eles tiravam e descascavam as sementes e moamos gros para produzir farinha. Com o tempo, passaram a semear as sobras de sementes. Foio incio da agricultura e h mais de dez mil anos partimos e partilhamos o po.Aquelesprimeirosagricultorescriaramaospoucosdoisdosmaisimportantesprodutosagrcolasdomundo:otrigoeacevada.Comavidamaisestabilizada,nossosancestraistiveramtempopararefletirecriar.Produziramimagensquemostramecelebramosprincipaiselementosdeseuuniversoemtransformao:alimentoepoder,sexoeamor.Oautor da escultura dos amantes foi um deles. Perguntei ao escultor britnico Marc Quinn oque achava da estatueta:Sempreimaginamosquefomososprimeirosadescobrirosexoequetodasasoutraserasantesdanossaerampudicas e simples, quando na verdade claro os seres humanos tm sido emocionalmente sofisticados desde pelomenos 10000 a.C., quando esta escultura foi feita, e, tenho certeza, to sofisticados como ns.O que h de incrvel nesta escultura que, quando a mudamos de lugar e examinamos de vrios ngulos, ela sealteraporcompleto.Deumlado,temosoplanogeraldoabrao,vemosasduasfiguras.Deoutro,umpnis;deoutro,umavagina;demaisum,osseios;pareceimitarformalmenteoatodoamor,almderepresent-lo.Eessesdiferentesladosdesdobram-sediantedensquandoseguramos,quandoviramosoobjetonamo,porissoelessedesdobramnotempo,oque,naminhaopinio,outroaspectoimportantedaescultura:noalgoinstantneo.Damos voltas em torno do objeto e ele se desdobra em tempo real. quase um filme pornogrfico, com planos gerais eclose-ups possui uma qualidade cinematogrfica quando o giramos, e vemos tantas coisas diversas. Ainda assim, um objeto comovente e lindo sobre as relaes entre pessoas.Oquesabemossobreaspessoascapturadasnesseabraoamoroso?Oautorouserquedevemosdizerescultor?dosamantespertenciaaumpovoquehojechamamosdenatufianos,queviviamnumaregioondeagoraestoIsrael,osterritriospalestinos,oLbanoeaSria.NossaesculturaveiodosudestedeJerusalm.Em1933,ograndearquelogoabadeHenriBreuileumdiplomatafrancs,RenNeuville,visitaramumpequeno museu em Belm. Neuville escreveu:J perto do fim de nossa visita, mostraram-me uma caixinha de madeira contendo vrios objetos das reas vizinhas,nenhum dos quais, com exceo desta estatueta, tinha qualquer valor. Percebi de imediato a importncia particular dodesignepergunteideondevinhamaquelesobjetos.Disseram-mequetinhamsidotrazidosporumbedunoquevoltava de Belm para o mar Morto.Intrigadopelafigura,Neuvillequeriasabermaisinformaessobresuadescobertaefoiprocurar o beduno de que lhe falaram. Conseguiu encontrar o responsvel pelo achado, queolevouatacavernanodesertodaJudeia,nomuitolongedeBelmdeondeaescultura fora retirada. O lugar chamava-se Ain Sakhri, e por isso essas figuras esculpidas quetantocativaramNeuvilleaindasoconhecidascomoosamantesdeAinSakhri.Umfatocrucialqueaesculturafoiencontradacomobjetosquedeixavamclaroqueacavernaeraumahabitao,enoumtmulo,demodoquedeveterdesempenhadoalgumafunonavida domstica cotidiana.Nosabemosexatamentequepapelteriasidoesse,massabemosqueessamoradapertencia a pessoas que viveram na alvorada da agricultura. Seu novo modo de vida envolviaa coleta e a estocagem de alimentos. O resultado foi uma transformao to profunda para osseres humanos como qualquer revoluo na histria. O processo de assentamento tornou-os, claro, mais vulnerveis que os caadores ou nmades frustrao com as safras, s pragas,sdoenase,acimadetudo,aoclima;contudo,quandoascoisasiambem,asociedadeprosperava. Uma fonte segura e abundante de alimento garantiu uma exploso populacionalabastecida,easpessoaspassaramaviveremgrandesaldeiasdeduzentosatrezentoshabitantesamaisdensaconcentraohumanaqueomundotinhavisto.Quandoasdespensas esto abastecidas e a presso se alivia, h tempo para pensar, e essas comunidadesfixas,decrescimentorpido,dispunhamdecioparacriarnovasrelaessociais,paracontemplar os mutveis padres de vida e para produzir arte.Observada por diferentes ngulos, a estatueta muda por completoNossapequenaesculturadeamantesentrelaadospodetrazeremsiumarespostacrucialaessenovomododevida:umaformadiferentedepensarsobrensmesmos.Narepresentaodoatosexualdessamaneiraenessapoca,oarquelogoIanHodder,daUniversidade de Stanford, v sinais de um processo que chama de domesticao da mente:Aculturanatufianadefatoanteriorsplantaseaosanimaisplenamentedomesticados,masjumasociedadesedentria. Esse objeto particular, focado em seres humanos e na sexualidade humana de forma to clara, parte deumamudanageralnosentidodeumapreocupaomaiorcomadomesticaodamente,adomesticaodoshumanos,adomesticaodasociedadehumana,depreocupar-semaiscomasrelaeshumanasdoquecomasrelaes entre os humanos e os animais selvagens, e com as relaes dos animais selvagens entre si.Quando seguramos o seixo de Ain Sakhri e o giramos, extraordinrio no apenas que hajaclaramente duas figuras humanas em vez de uma, mas que, devido maneira como a pedrafoi esculpida, seja impossvel dizer qual o macho e qual a fmea. Ser que esse tratamentogenrico,essaambiguidadequeforaaparticipaodoespectador,foiintencional?Nosabemos,mastambmnosabemoscomoapequenaesttuaerausada.Algunsestudiososachamquepodetersidofeitaparaumritualdefertilidade,masIanHoddertemoutraopinio:Este objeto pode ser interpretado de muitas maneiras. Houve um tempo em que provavelmente se pensava que essasnoes de acasalamento sexual e da prpria sexualidade estavam ligadas a ideias da deusa-me, porque j se sups queaprincipalpreocupaodosprimeirosagricultoreseraafertilidadedasplantaes.Minhaopinioqueasprovasno confirmam a ideia de uma deusa-me dominante j no incio, porque h interessantes achados recentes que notmqualquerrepresentaodemulheresamaiorpartedosimbolismomuitofalocntrica,porissominhaopinio no momento que a sexualidade importante nessas primeiras sociedades agrcolas, mas no em termos dereproduo/fertilidade,filhos,maternidadeeeducao.Naverdade,maisclaramentearespeitodoprprioatosexual.Paramim,oqueaternuradasfigurasabraadassugerenopotnciareprodutiva,masamor.Aspessoascomeavamafixar-seemumlugar,aformarfamliasmaisestveis,atermaisalimento,portantomaisfilhos,etalvezessesejaoprimeiromomentonahistriahumana em que um parceiro pde se tornar marido ou mulher.Todasessasideiaspodemestarpresentesnaesculturadosamantes,masaindanosencontramos nos vastos domnios da conjectura histrica. Em outro nvel, porm, ela nos faladiretamente,nocomodocumentodeumasociedadeemtransformao,mascomoeloquenteobradearte.DosamantesdeAinSakhriesculturaObeijo,deRodin,honzemil anos de histria da humanidade, mas no muita mudana no desejo humano.8Miniatura de gado de barro egpciaMiniatura pintada descoberta em Abidos (perto de Luxor),Egito3500 A.C.Basta falar em escavao no Egito para que a maioria de ns se veja entrando no tmulo deTutancmon,descobrindoostesourosocultosdosfarase,deumsgolpe,reescrevendoahistria.Arquelogosaspirantesdeveriamseravisadosdequeissosacontecemuitoraramente.Aarqueologiaquasesempreumnegciovagarosoesujo,seguidodeumregistroaindamaislentodaquiloquefoiencontrado.Eotomdosrelatriosarqueolgicostemumasecuradeliberada,acadmica,quaseclerical,muitodistantedasruidosasfanfarronices de Indiana Jones.Em1900ummembrodaEgyptExplorationSocietyescavouumtmulonosuldopas.Sobriamente, rotulou sua descoberta como Tmulo A23 e descreveu o contedo:Corpo,masculino.Bastodebarropintadocomfaixasvermelhas,comimitaodapartesuperiordeumcetroembarro.Pequenacaixadecermicavermelha,quatrolados,23porquinzecentmetros.Ossosdapernadepequenoanimal. Vasos e pea com quatro vacas de barro.1Asquatrovacascomchifresficamladoaladonaterrafrtil.Pastamemseuquinhodecapimsimuladohaproximadamente5500anos.IssofazcomquesejammuitoantigasnoEgito,maisdoqueosfarasouaspirmides.Essasquatr