A História dos Papas-C.Bússola

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Nesta obra o autor não inteciona retratar a História do Cristianismo ou História da Igreja cristã, mas tão somente a história dos homens que buscaram o poder na Igreja de Roma. Trata-se de ganância humana pela busca do poder.

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3/1/2012

IDEOLOGIA & PODER

A HISTRIA DOS PAPAS

A verdade sobre a origem da Igreja Romana | CARLO BSSOLA

A histriA dos PAPAsA verdade sobre a origem da Igreja Romana

Carlo Bssola

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Nota do Editor:

O Professor Carlo Bssola, residente em Vitria-ES, um erudito e pesquisador incansvel deste tema o qual exps com brilhantismo, jamais visto por este editor, numa srie de artigos publicados semanalmente no jornal A Tribuna e acompanhados e lidos com avidez pelo principal jornal do Estado do Esprito Santo. Hoje desfrutando da merecida aposentadoria, o Professor Carlo Bssola durante anos esteve frente da ctedra de Filosofia na Universidade Federal do Esprito Santo (UFES). Agradecemos distinta famlia do Professor Carlo Bssola que, gentilmente, nos autorizou reproduzir este riqussimo material em formato digital.

Este precioso acervo e legado, fruto da dedicao e profunda pesquisa, est disposio dos nossos internautas e fiis leitores. No entanto, lembramos, vedada a republicao ou postagem deste material sem a expressa autorizao dos editores desta obra, amparada numa consulta famlia do Professor Carlo Bssola detentora e fiel depositria dos direitos autorais legais.

Lembramos ainda que o uso e/ou distribuio deste material sob quaisquer formas fora dos limites aqui expostos configura crime, sendo os infratores passveis das penalidades previstas nas leis de direitos autorais.

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I - A Ideologia e o MitoA Roma crist e seu poder esto fundamentados sobre a Roma pag

Ateno, leitor! Esta obra que estou comeando a escrever no Histria do Cristianismo ou Histria da Igreja crist, mas to somente a histria dos homens que ocuparam o cargo de bispos na cidade de Roma. Vou falar de homens e de sua ideologia do poder. S. Nos casos especficos dos bispos de Roma chamo de ideologia a interpretao que os mesmos fizeram e fazem de uma situao religiosa que tem um aspecto social e poltico. Essa interpretao acontece a partir de uma evoluo histrica para a qual confluram elementos polticos, morais, religiosos, filosficos e econmicos que implicaram numa tomada de posio, de modo que em primeiro lugar foram elaboradas doutrinas para justificar aquela interpretao e, em seguida, foram tomadas as medidas que se julgara necessrias para a realizao do sonho interpretativo de situao j programada, para realiz-lo com referncia ao poder. Neste caso, a "ideologia do poder" o sonho espalhado no grande crculo eclesistico romano que justifica, sob a luz da religio, todos esses elementos polticos, econmicos, morais e religiosos de uma supremacia (ou ditadura) papal. Por "poder" aqui entendo aquele aspecto da faculdade da vontade que quer colocar-se acima dos outros para domin-los ou fsica, ou poltica, ou economicamente, sempre, porm, sob o manto da religio. Noutras palavras: poder, enquanto tal, significa capacidade de dominar. Por isso, neste caso, ideologia do poder o sonho de domnio que usa da religio para estar acima do bem e do mal, seja poltico ou econmico. Deste modo, a ideologia do poder se torna, num certo momento, o substrato de toda uma mentalidade. Seria o caso de falar do inconsciente coletivo que se reflete no inconsciente individual dos bispos de Roma. Para Sto. Agostinho, s para citar um dos grandes responsveis desta ideologia, "o Estado justo deveria ser aquele em que a verdadeira religio mantida pela lei e pela autoridade e nenhum Estado poderia ser justo a partir do advento do cristianismo, a menos que no fosse tambm cristo". (G. Sabine; "Histria das Teorias Polticas"; Ed. F. de C; RJ; 1964; pg. 198). Em todos os prximos artigos s tratarei da ideologia do poder dos homens que foram bispos em Roma. Se, a um certo momento, estes homens deram ao seu cargo de bispos um cunho universal porque os homens que ocupavam este cargo compartilhavam de uma ideologia que, embora no fosse da essncia do cargo, quiseram enxert-la no mesmo cargo. O que mais impressiona o historiador que nunca foi escrito algo com referncia direta e exclusiva a este assunto. Todos os historiadores misturam a vida poltica do bispo de Roma com a histria da vida crist no Ocidente, de modo que vida crist e vida papal se fundem.

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Sem contar que muitos historiadores colocam um manto sobre o assunto para que o leitor no entenda nada. Por exemplo: "A Reforma na Idade Mdia" de Brenda Balton (Edies 70) s diz pgina 20: "A Igreja tornara-se negligente e mundana". E George Duby em "O Ano Mil" (Ed. 70) nem fala da vida pessoal dos papas ou de sua ideologia do poder... E justamente o ano 1000 que o mais importante para este assunto! Quanto ao famoso Daniel Rops, nem se fale! Alis, no meu modo de ver, ele confunde papado e cristianismo. Vou agora dar o nome dos principais historiadores e suas obras das quais me servi para este trabalho. Em primeiro lugar, Maurice Lachatre: "Histria dos Papas, etc."; traduo de A. J. Vieira; Ed. Mestre Popular; Lisboa; 1895. So cinco enormes volumes que eu consegui de uma universidade portuguesa, quando eu era assessor do reitor da Ufes, Dr. Manoel C. S. de Almeida. 20 Duplessis-Mornay; "Mistrios e Iniqidades da Corte de Roma". 30 Sto. Irineu, bispo de Lyon; "Demonstrao e Refutao da Falsa Gnose". 40 Eusbio, bispo de Cesareia; "Histria Eclesistica" e tambm; "A vida do bem-aventurado Constantino. 5: Anastsio o Bibliotecrio (da Igreja romana). 60: Joo de Sa-risbury; "Histria Pontificalis". 7: Johannes Burchard, bispo alemo; "Diarium" (sobre Alexandre VI e sua poca). 80: Flaccius Illyricus, telogo protestante; "Histria Ecclesistica per Centrias". 90: Luis Mainburg, padre jesuta. 100: Claude Fleury, padre e escritor francs; "Histoire Eclesiastique" em 20 volumes. 11: G. D. Mansi, arcebispo de Lucca na Itlia; "Acta Conciliorum" em 31 volumes. 12: Pierre Bayle, professor de Teologia; "Dictionnaire Historique et Critique". 130: J.J.I. von Dllinger; "Der Papst und das Konzil" e "Die Papstfabeen des Miltecalters". 14: L. von Pastor; "Histria dos papas desde o fim da Idade Mdia": 16 volumes. Alguns desses livros eu guardo xerocados, j que no se encontram mais. De outros, tenho as notas, em velhos cadernos amarelados, que eu fazia nos sbados e nos domingos na poca em que, jovem estudante de Filosofia e Teologia, eu era chefe da Biblioteca Teolgica e, portanto, guardio das chaves dos "livros proibidos". Resta-me agora uma pergunta: por qual motivo houve (e talvez ainda haja) uma ideologia do poder radicalmente contrria mentalidade e pregao de Jesus Cristo assim como aparece nos evangelhos (se que os evangelhos retratam fielmente o pensamento d'Ele...). Parece-me que o mito de supremacia da Roma eclesistica se baseia em quatro pontos: 1o Roma "caput mundi" (cabea do mundo) com 20 seus divinos imperadores que tambm eram 3o "summi pontfices"; e finalmente a crena que 40 So Pedro tenha sido bispo de Roma. 1) "Roma caput mundi", como se dizia ento, isto : cabea e centro do mundo. De fato, por mais de mil anos antes e depois de Cristo, Roma era a capital do imprio. Era o centro poltico de uma estratgia muito sria, ao ponto que abstraindo da Roma material, foi criado o conceito de "Dea Romaria (a deusa Roma) que estaria vivendo espiritualmente na Roma material. Este fato poltico era to srio que quando os povos helenizados das provncias romanas orientais quiseram divinizar o imperador Augusto, ele s admitiu o culto sua pessoa conquanto que fosse ligado ao culto de Roma. Mircea Eliades em "Histria das crenas e das idias religiosas" explica isto muito bem. 5

Ora, pensavam os bispos cristos de Roma, do mesmo modo que o culto do imperador e o culto de Roma unificava o imprio, assim, agora, o culto ao vigrio de Cristo e o culto cidade de Roma, quase toda crist, unificar o Cristianismo. 2) "Seus divinos imperadores": divinos, por causa da Deusa Roma. ainda Mircea Eliades (op. cit.; Zahar; 1978; T. 1; v.l;pg. 116) que nos relata quais e porque os imperadores romanos foram proclamados deuses: Jlio Csar; Augusto (27 a.C. -14 d.C); Cludio (41 d.C.); Vespasiano (6979); Tito (79-81); Adriano (117-138); Antonino (138-161); Marco Aurlio (161-170); Cmodo e Galliano. 3) "Pontfices Maximi" (sumos pontfices): o II rei de Roma, Numa Pomplio (715 - 672 a.C.) organizou a religio dos romanos e fundou o colgio de cinco sacerdotes dirigidos por um sumo pontfice cujo cargo chegou a ser de tanta importncia junto ao povo e aos nobres que os imperadores o reservaram para si. A partir de ento estavam juntos, numa s pessoa, a poltica e a religio e deste modo era mais fcil conseguir a obedincia total e completa do povo. Foi a partir desta idia que nasceu a ideologia eclesistica do poder: poder religioso e poltico. 4) So Pedro bispo de Roma: verdade ou mentira, o fato que a idia pegou. O primeiro a nos dizer que Pedro esteve em Roma foi Eusbio, que morreu 303 anos aps a morte de Pedro (67 d.C.)!!! Mas ele diz ter acolhido testemunhos de Sto. Irineu, bispo de Lyon (que morreu 136 anos aps Pedro!!); de Clemente de Alexandria (que morreu 146 anos aps Pedro!!) e de Papias (que morreu 207 anos aps Pedro!!)... pura tradio: veja meus artigos nmeros 541, 546, 547, 539. Verdade ou mentira, a idia pegou e serviu muito bem ideologia do poder eclesistico romano. No fim da obra colocarei um ncleo sinttico de pesquisas com referncia aos "passos" dados pelos bispos de Roma para alcanar o poder e um resumo da evoluo jurdico-teolgica da ideologia eclesistica do poder, a partir do comeo at Bellarmino e Suarez, ambos jesutas.

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II - Existe Uma Ideologia do Poder?A ideologia de um poder eclesistico romano fundamentou-se em Roma capital do Imprio

Quando eu morava em Beirute, uma das queixas que os cristos ortodoxos faziam contra o Vaticano era a insistncia romana para que reconhecessem o bispo de Roma como chefe supremo de todos os cristos. Por que esta insistncia? Porque existia no Vaticano a ideologia do poder papal centralizador. Vou dar aqui o mais recente caso, entre os tantos j ocorridos, relatado pela revista alem Der Spiegel (nmero 1; jan/96) que escreve: mesmo que o Vaticano no esteja disposto a escutar-nos, ns tentaremos, com insistncia, ser ouvidos". o resumo de uma longa queixa contra o poder autoritrio do bispo de Roma; e quem se queixa so 40 bispos americanos cujo porta-voz o arcebispo de Milwankee, Rambert Weakland. De que se queixam? Que o princpio da colegialidade promulgado pelo Concilio Vaticano II esquecido propositadamente por Joo Paulo II que governa a Igreja "como um consrcio multinacional com o quartel-geral em Roma, enquanto as dioceses so relegadas condio de filiais sem autoridade prpria". Os americanos tiveram a coragem de dizer isto porque, como pblico e notrio, so eles que mais contribuem com as finanas do Vaticano: "sem o dinheiro americano o Papa faria suas viagens intercontinentais no barco de So Pedro". (Entrevista Rumos; Braslia, nmero 56; jan. 1990; p. 8). Mas porque o Papa age assim? Porque existe l, em Roma, a ideologia do poder: um poder que j foi eclesistico e, depois, poltico, e, agora, espiritual. Assim veio surgindo nestes dois mil anos de cristianismo a ideologia do poder centralizado no bispo de Roma. H, sim, uma ideologia do poder! O que ideologia do poder? Bertrand Russel pensava que o poder, com a glria de que se reveste, permanece como a mais alta aspirao e a maior recompensa dos homens: "Dos infinitos desejos do homem, o principal o desejo do poder coroado de glria" (em: "Power, a new social analysis"; Ed. W. Norton; New York; pg. 11). H toda uma sria de poderes: poder fsico, como por exemplo o poder militar; poder intelectual; poder econmico; poder espiritual; e todos os demais aspectos que a sociedade humana atribui capacidade de fazer, ou mandar fazer alguma coisa. Quando, do ponto de vista abstrato, o poder se torna uma funo social que envolve, consciente ou semiconsciente, sentimentos e vontades, juntamente com idias e valores tpicos de uma determinada classe social, ento podemos falar de ideologia do poder. Ou, noutras palavras, de como, surgindo (consciente ou inconscientemente) de desejos, sensaes e vontades abstratas, se forma a idia do poder: qualquer que seja o tipo do poder. 7

Por exemplo, quando Jesus perguntava aos seus discpulos: "quem dizem os homens que eu sou?" poderia ser interpretada como a busca do conhecimento de seu prprio poder. E quando Pedro disse: "tu s o filho de Deus", ele teve a representao clara do seu poder, quase um claro conhecimento de si dentro de uma funo social. Ento l pelo fim de sua vida Ele dir: "todo poder foi-me dado no cu e na Terra: ide, pois..." Entre a pergunta que fez aos discpulos e o exerccio do seu poder (neste caso, poder espiritual) houve todo um complexo de situaes (psquicas, afetivas, volitivas, etc.) que constituam a ideologia do seu poder espiritual: no que este poder tenha-lhe vindo dos outros; mas os outros foram apenas a ocasio, o espelho para Ele ter conscincia e confirmao daquilo que interiormente Ele sentia e queria, isto , a busca e o reconhecimento do seu poder espiritual. J. Kenneth Galbraith escreveu o livro "Anatomia do Poder" (Livraria Pioneira Ed.; S.P.; trad. Port.; 1984) onde fala dos trs meios pelos quais o poder se exerce: pela persuaso, apelando cincia; pela compensao e pela punio. Tambm fala sobre as fontes do poder: o poder origina-se na personalidade, na propriedade e na organizao. E uma espcie de ideologia do poder considerada no seu aspecto prtico (mais do que terico) e social. Por isso o livro constitui uma tese que poderia ser muito bem aplicada, por exemplo, em primeiro lugar a So Paulo apstolo (So Pedro, neste caso, mais um "inocente til), e, depois, a alguns bispos de Roma antes do Concilio de Nicia, em 324; e a todos os bispos de Roma, depois de Nicia. O apstolo Paulo, como os bispos de Roma, a partir de Constantino e, sobretudo, de Teodsio, estava imbudo da ideologia do poder: um poder que exercia pela persuaso, pelas ameaas e pela promessa de recompensas - trs momentos diferentes que brotavam da sua personalidade e da sua capacidade organizacional. Tambm os bispos de Roma, depois do Concilio de Nicia, fundamentaram sua autoridade, ou seja, seu poder eclesistico, poltico e espiritual, no fato de serem os sucessores ininterruptos do apstolo Pedro. Com efeito, a ideologia do primado do bispo de Roma se fundamenta em primeiro lugar no evangelho de Mateus (16, 17-19) e, em segundo lugar, na tradio que aponta Roma como sendo a cidade onde Pedro esteve. Quanto autenticidade de Mateus 17,17-19, h muita controvrsia. Os catlicos evidentemente aceitam este trecho; mas os telogos protestantes e a crtica histrica negam a sua autenticidade, mesmo depois que R. Bultmann a tenha aceitado. Mas isto no interessa porque seja ela verdadeira, ou no, contribuiu a criar uma ideologia: e isto que importa. Por exemplo, o documento da doao de Constantino era falso, mas criou a ideologia do "papa-se-nhor-de-territrios"; alis, fundamentou esta ideologia mesmo depois que L. Valla, em 1410, mostrou que era falsa. O segundo pilar que sustenta a ideologia do poder papal a tradio. Chamamos de tradio uma transmisso oral de lendas, fatos, doutrinas, costumes, etc, durante um longo espao de tempo.

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Tratando-se do poder eclesistico do bispo de Roma, deveramos encontrar esta doutrina nos escritos, que ainda restam, de outros bispos da poca, de forma ininterrupta no tempo e no espao. Na realidade, encontramos nos primeiros trs sculos apenas trs bispos que em seus escritos fazem algumas referncias primazia da s episcopal romana. So eles: Irineu que morreu em Lyon, na Frana, em 208; Cipriano, que morreu em Cartago (frica) em 258; e Eusbio que morreu em Cesaria (Capadcia) em 340. um nmero extremamente exguo para que se possa falar de uma tradio dos primeiros sculos! Tratam-se de trs opinies pessoais com breves acenos s episcopal de Roma cuja influncia era nula, ou quase nos primeiros trs sculos. Todavia, importante notar que esses trs autores no falam de "Primado" e sim de "preeminncia" da Igreja romana; "Igreja", no "bispo" de Roma. Talvez a tradio possa ser encontrada em outros elementos. Mas antes de ver esses elementos, vejamos o que dizem estes trs bispos. Na realidade nos primeiros dois sculos temos bem pouca coisa; alis, no temos nada para que se fale de uma tradio capaz de formar e fundamentar a ideologia do primado. Certamente esta tradio deve fundamentar-se num outro elemento bem mais importante, isto , Roma capital do imprio que atraa, pelos seus encantos visitantes, comerciantes, chefes polticos, charlates, mgicos, enfim: pessoas de todas as raas, de todas as religies e de todas as filosofias... At So Paulo suspirava por Roma... e Pedro, que desde muito tambm quis ir a Roma: fiscalizar Paulo? tempo seguia os passos de Paulo,

Como j Tiago e at o mesmo Pedro haviam feito vrias vezes l na sia menor, Pulo considerava-se chefe dos pagos convertidos (conforme sua interpretao do pacto de Antioquia) e Pedro era o chefe dos judeus-cristos. Em Roma, terra de pagos, de pagos convertidos havia muitos judeus e judeus-cristos, o que explicaria a ida a Roma de Paulo e de Pedro: este, como visitante? Ou como bispo? Isto ainda no foi desvendado... Tudo no passa de suposio... Certamente Roma merecia uma s episcopal que fosse o centro das igrejas do imprio; aqui que comea a lenda de Pedro como primeiro papa. Lenda? Verdade? Isto no interessa. O que interessa que a partir destas suposies os bispos de Roma constroem, ponto por ponto, a ideologia do poder eclesistico. E o primeiro ser o bispo Clemente romano sugerindo que o cristianismo deve tornar-se uma fora organizada como o exrcito romano, com um chefe supremo e demais subalternos.

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III - Onde Est a Tradio do Primado Nos Primeiros Trs Sculos?Nos primeiros trs sculos no existe nem a idia de um Primado romanoMais uma vez lembro que esta no uma histria do cristianismo e, sim, to somente dos homens que ocuparam o cargo de bispos em Roma. Existe uma dificuldade muito grande em escrever este tipo de histria que estou tentando redigir porque o historiador catlico se esfora para justificar e defender a posio do bispo de Roma, interpretando e at forando o sentido de situaes histricas e de documentos que chegaram at ns, no na sua forma original mas atravs de citaes. Veja, por exemplo, o verbete "Papado" na Enciclopdia Mirador, edio 1980, pgina 8530: "So Clemente I escreveu carta aos Corntios em 95 ou em 96; esta uma das primeiras provas do primado romano". Ora, isso s pode ser verdade para quem escreveu o artigo; para outros que gostam de analisar e investigar, esta uma grande mentira, pois trata-se de uma verdade preconcebida. Por causa disso, temos centenas de concluses apressadas que distorcem os fatos e dificultam a pesquisa. Para provar a existncia do Primado romano nos primeiros trs sculos, citam-se trs bispos: Clemente romano, Irineu e Cipriano. Clemente foi bispo em Roma de f, 88 a 97 d.C. e tornou-se famoso por uma carta que escreveu aos cristos de Corinto ("Carta de Clemente romano"; Editora Vozes; Petrpolis; 1971). Quem nos fala desta carta Eusbio em "Histria Eclesistica" (IV; 23,11). Eusbio, que morreu em 340, isto , pouco mais de 200 anos depois, nos diz que o bispo de Corinto leu essa carta aos fiis e depois guardou-a como preciosidade por ter vindo de Roma... Duzentos anos depois!! Eusbio nos relata este fato... sem provar!... Irineu, bispo da Igreja de Lyon que dependia do metroplito de Roma, e morreu em 208, isto , cerca de 100 anos depois de Clemente romano, deixou escrito em "Adversus Haereses" (III, 3) que Clemente foi o terceiro sucessor de Pedro em Roma, aps Lino e Anacleto, e enviou uma carta aos cristos de Corinto. O que h de interessante nessa carta de Clemente? De interessante h que ele faz uma comparao entre o exrcito romano e os grupos dos cristos: para serem invictos como o exrcito romano, os cristos devem observar uma severa disciplina eclesistica onde deve haver uma hierarquia com chefes e subalternos. Com efeito, escreve Clemente, "os apstolos estabeleceram bispos e diconos e deram instrues para que, aps a morte deles, outros homens comprovados sejam eleitos presbteros da comunidade" (47,6; 54,2; 57,1). A interpretao dos telogos catlicos que esta carta o primeiro documento comprovante da supremacia universal (o Primado) do bispo de Roma. No entanto os telogos luteranos e outros 10

protestantes (S. Jki; "Les tendences nouvelles de 1'ecclesiologie"; Her-der; Roma; 1957) no vem nenhum Primado na carta de Clemente. Clemente no era o nico bispo que mandava cartas ou relatrios a outros bispos, tanto em forma de consulta, como em forma de esclarecimento. Alis, como podemos ler no "Curso de Teologia Patrstica", de F. A. Figueredo (Ed. Vozes; 1983; pg. 67), Clemente no faz alguma distino entre "epscopoi" (bispos) e "presbiteri" (ancios); por "presbiteri" ele designa bispos e diconos. evidente que nessa carta o termo "episcopi" significa sorvelhante, supervisor, sem a conotao de pessoa "consagrada" para um ministrio especfico, em oposio a "leigos" que seria o povo cristo no consagrado (como interpreta I. de la Potterie em "Nouvelle Revue Thblogi-que"; LXXX; 1958; pg. 840 ss.). No se deve esquecer que muitos bispos, nesta poca, escreviam cartas a outros bispos, Diniz, bispo de Alexandria, escreveu cartas; at aos bispos da Espanha, resolvendo questes disciplinares, que eram aceitas por outros bispos (-Fleury; "Hist. Ecles"; VII; 56). O mesmo fez Gregrio, bispo de Neocesaria, no sculo III e Ba-slio, bispo de Cesaria; e suas intervenes eram aceitas pelos demais bispos. Quando nos fins do sculo III o imprio foi dividido em: Oriente, Illria, Itlia e Gallia, constituram-se os patriarcados de Roma, Antioquia e Jerusalm; mas cada bispo estava sujeito assemblia dos bispos de seu patriarcado. Mas a grande importncia da carta de Clemente aos Corntios, se no a prova do Primado, como queria B. Bartmann no seu Tratado de Teologia (vol. II; pg. 425 e 483) e os demais telogos catlicos, est no fato que ele d incio formao do presbiterado, como prova muito acertadamente Ernesto Renan ("Histria das Origens do Cristianismo"; Lello Irms Ed.; Porto; vol. V; pg. 171). Essa carta de Clemente mostra que "a lei suprema da Igreja a ordem e a obedincia" (Renan; op. Cit.; pg. 177). "A essa altura j se percebe que a comunidade dos fiis ps todos os poderes nas mos dos ancios ou presbteros e o corpo presbiterial resumia-se num s personagem, o bispo; mais tarde os bispos da Igreja anulam-se diante de um s, que o bispo de Roma. (...) A criao do episcopado obra do II sculo; mas a absoro da Igreja pelos presbteros um fato consumado antes do fim do primeiro sculo". Deste modo "o ttulo apostlico tudo; o direito do povo cristo nada. (...) Previa-se que a Igreja livre como a concebera Jesus e como a admitia So Paulo, era uma utopia anrquica sem proveito para o futuro" (id. ib.; pg. 182). disso que trata a carta, mas no do Primado: este ser uma conseqncia tardia da poltica de Clemente romano como tentativa de impor uma ideologia do poder. Outro bispo que a Teologia catlica aponta como defensor do Primado romano Irineu (130 -208), bispo de Lyon e portanto sujeito ao bispo metropolitano de Roma (nunca esqueamos disto!). No seu "Adversus Haereses" (III; 3,2) escreve: "Examinemos somente a Igreja mais antiga e por todos conhecida, fundada e estabelecida em Roma pelos dois gloriosssimos apstolos Pedro e Paulo e provamos que a tradio que ela recebeu dos apstolos e a f que pregou aos homens chegaram at ns por sucesso de bispos."

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"Deste modo confundimos todos aqueles que por vanglria, cegueira, ou erro, formam seitas herticas. (...) Todos devem concordar com esta igreja (de Roma) pela sua superioridade dominante (propter potentiorem eius principalitatem)" Esta carta um prato cheio para os telogos catlicos, mas no para os telogos protestantes e nem para os catlicos liberais. Em primeiro lugar, h muita informao errada neste trecho. Primeiro: a Igreja de Roma historicamente no a "mais antiga" e nem mesmo seria apenas "antiga". Segundo: no historicamente provado que foi fundada por Pedro e Paulo; sabe-se que ela existia antes da chegada dos dois apstolos. Terceiro: "a f que pregou": pregou quando? Como? Onde? Por meio de quem? So afirmaes bombsticas para homenagear a Igreja de Roma que (isto sim!) a "me" da Igreja de Lyon!!! E, finalmente, quarto, a frase que deveria ser fatal: pela sua superioridade dominante que, traduzindo ao p da letra significa: "por causa do seu maior poder", como se sabe, "potens,potentis", em latim, se refere fora... fora fsica, fora militar. Na lngua latina no h exemplos de que esse adjetivo se refira fora espiritual! Logo, a Igreja estabelecida em Roma receberia seu poder justamente por estar em Roma, centro e capital do imprio... Logo, nada de Primado! Se de primado se trata, o primado da capital do mundo do qual a Igreja romana compartilha. E finalmente Cipriano, bispo de Cartago, que morreu em 258 d.C. e escreveu: "Como Deus uno e uno o Cristo, assim h uma s Igreja e uma s ctedra fundada sobre Pedro, pelo Senhor" (Ep. 43,5). O problema que nem no "De Unitate Eclesial" (nmero 4) Cipriano fala dos sucessores de Pedro. O que ele quer salientar a necessidade de pertencer Igreja, fora da qual no h salvao. dele a famosa frase: "Extra Eclesia nulla salus". At o Bartmann (-vol. II, pg. 484) conclui: "Devemos todavia reconhecer que Cipriano no teve uma idia exata do Primado". Alis, no teve nenhuma idia! O Primado uma inveno muito mais tardia. Algumas observaes para concluir: H a interpretao da Igreja africana: vejam-se as observaes que Hirsh tirou do livro: "The conversations of Walines" de 1921-1925; h a interpretao do Luteranismo: vejam-se as concluses de K.L. Schmidt e de Kattembush; h a interpretao de Hamack; h a interpretao dos "velhos catlicos": veja-se o Langen; e h a interpretao da Igreja Catlica que se baseia em Clemente romano e Irineu, ou seja, nos primeiros sculos... Tempo suficiente para a criao do mito. Finalmente observamos que Clemente, Irineu e Cipriano falam em "Igreja" de Roma e no em "bispo" de Roma.

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IV - No Existe Primado Nos Primeiros SculosNo comeo do cristianismo, toda a autoridade eclesial repousava nos snodos patriarcais

O ttulo acima significa que nos primeiros sculos do cristianismo no existia poder especial eclesistico romano, isto , do bispo de Roma.Toda ideologia do poder eclesial romano se fundamenta no Primado; ora, se for provado que o Primado no existia nos primeiros sculos, a ideologia deste poder fica invalidada por ficar claro que no passa de uma inveno tardia. Ora, os racionalislas e os telogos liberais nos informam que a igreja crist j no II sculo era composta de bispos, presbteros e simples leigos; eram essas trs classes que tinham todo o poder eclesial, e no o bispo de Roma. Eis as provas desta tese: Eusbio nos informa (III; II) que com a morte de Tiago, primeiro bispo de Jerusalm, "os sucessores de Jesus, os apstolos, os discpulos e os parentes ainda vivos de Jesus reuniram-se para dar-lhe um sucessor e de comum acordo elegeram Simeo" (Simeo, Simo-Pedro). E Clemente, bispo de Roma, na epstola aos Corntios, no fim do I sculo, nos diz que este costume ainda perdurava. At o concilio de Nicia, em 325, parece ser este um costume ininterrupto. O IV concilio de Cartago (fim do IV e comeo do V sculo) proibia os bispos de ordenar outros bispos e presbteros sem o consentimento do clero e a aprovao dos leigos (cnon 22). Este costume ser includo pelo bispo de Roma, Leo I (440 - 461) nas "Constituies Apostlicas" porque, dizia ele, "quem deve mandar em todos, deve ser eleito por todos". E Hormisda, bispo de Roma em 520, aceita a aclamao do povo como sendo "Juzo de Deus". Este costume vigorou at a Idade Mdia, quando os bispos da Frana eram nomeados pelo povo, pelos clrigos e monges, sem nenhuma consulta ao bispo de Roma, que freqentemente aceitara as decises que no lhe agradavam, como, por exemplo, em meados do III sculo quando houve o conflito entre os dois rivais Cornlio e Novaciano, ambos bispos de Roma, ao mesmo tempo. No ano de 253, dois espanhis, o bispo de Mrida e o bispo de Len, foram depostos pelo snodo provincial por terem trado a f durante a perseguio de Gallo. Os dois recorreram ao bispo de Roma, Estvo, que se reintegrou na sua s. Mas um outro snodo, reunido por Cipriano, bispo de Cartago, anulou a deciso d Estevo e confirmou o snodo espanhol. Anos mais tarde foi novamente Cipriano que advertiu o bispo de De Roma contra o bispo de Arles, que favorecia a heresia de Novaciano. A carta de Cipriano uma afirmao positiva da igualdade jurisdicional existente entre os metropolitas, e de competncia exclusiva dos snodos locais para destituir os bispos prevaricadores. Diniz, bispo de Alexandria (Egito), exercia sua autoridade moral sobre as igrejas da Espanha, resolvendo questes de disciplina e de moral e suas decises eram aceitas pelos snodos. 13

Quem nos informa disso o historiador Fleury ("Hist. Ecles."; VII cap. 56). Thomassino, o famoso canonista do sculo XVII, escreve que at o ano de 500 todos os bispos, inclusive o de Roma, eram eleitos democraticamente segundo a tradio. Foi a partir do sculo VI que, logo aps a sua eleio, na forma da tradio, os patriarcas costumavam avisar o bispo de Roma como ato de cortesia, pois jamais pensavam receber confirmao do fato (Tomo II; p. II; liber II; C. VIII; a. XI). Por muitos sculos os bispos de Roma limitavam-se administrao de sua diocese, sem tomar conhecimento, ou, mesmo tomando conhecimento, sem interferir na disciplina geral das igrejas e muito menos nos artigos de f. Veja aqui, por exemplo, toda uma srie de heresias que nos primeiros sculos foram julgadas, ou condenadas por conclios formados de bispos que no eram da Igreja de Roma: 1- Os Ebionitas com sua teologia dualista. 2 - Os gnsticos de Simo Mago. 3 - Os milagres de Apolnio de Thiana. 4 - Saturnino com a sua teologia da criao. 5 - Baslide de Alexandria que negava a redeno. 6 - Carpocrates que negava a divindade de Jesus. 7 - Valentinianos com suas teorias gnsticas. 8. - Marcio que negava ser Jesus o filho de Deus. 9 - E outras heresias menores. Ora, quem denunciava estas heresias e as condenava eram bispos orientais ou africanos: Igntio de Antioquia; Policarpo de Esmirna; Justino de Samaria; e Ireneu de Lyon (o nico do Ocidente). O bispo de Roma nem sequer era nomeado, quanto menos consultado! E mesmo quando o bispo romano Victor (193-202) pediu que todos o aceitassem como juiz supremo, por ser bispo da capital do imprio, ningum o escutou, alis o bispo de Efeso repeliu de forma spera seu pedido lembrando-lhe o dever de respeitar a independncia das igrejas. Do mesmo modo, quando na metade do III sculo surgiu o debate sobre aqueles que foram apstatas na perseguio de Dcio, isto : se poderiam ser novamente recebidos no seio da Igreja, ou no, foi o bispo de Cartago, Cipriano, que resolveu a questo, num snodo cujos decretos foram aceitos por todas as igrejas. E quando pouco mais tarde surgiu a controvrsia sobre o batismo dos herticos, foi novamente o bispo de Cartago que resolveu o problema contra as decises do bispo de Roma, Estvo (253-257). At Sto. Agostinho deu razo ao bispo de Cartago (" De Bapt.; II; c. XV). Quando era bispo de Roma Felix I (269-274), surgiu a heresia de Paulo de Samosata. Ento os bispos da regio se reuniram em Antioquia sob a presidncia do bispo local e condenaram e depuseram Paulo de Samosata, sem que o bispo de Roma fosse informado. O mesmo aconteceu com o cisma donatista que negava os sacramentos aos apstatas arrependidos, exigindo que fossem batizados de novo: o bispo de Roma nem sequer teve parte porque quem presidiu o conclio foi o imperador Constantino e, em Arles, foi o bispo da cidade como representante do imperador. E o que aconteceu no Conclio de Nicia em 325? Quem o convocou e quem o presidiu foi o imperador Constantino, e no o bispo de Roma. Alis, sabemos que quando o imperador no estava 14

presente, quem presidia o conclio era Osias, bispo de Crdova, na qualidade de deputado imperial que, por sinal, era o emissrio imperial em quase todos os conclios de ento. Ora, as decises conciliares de Nicia eram logo transmitidas por comunicao especial, somente Igreja de Alexandria e no Igreja de Roma... Era bispo de Roma Silvestre, que reuniu os bispos europeus, ausentes do concilio, para assinarem as concluses de Nicia. bom lembrar aqui que o concilio de Nicia concedeu ao bispo de Alexandria e seus sucessores, os mesmos privilgios que tinha o bispo de Roma e de Antioquia. Pouco antes do ano 340, bem na metade do sculo IV, Eusbio, bispo de Cesaria, escrevia: "Maioris momenti controvrsia aliter quam per synodos camponi: non possunt" ["Vita const. Imp."; I; LI) que significa: as controvrsias religiosas de maior importncia somente podem ser resolvidas por meio de snodos: ficando subentendido: e no apelando ao bispo de Roma ou a outro bispo qualquer. Mas o bispo de Roma Jlio I (337-352), pensando (e querendo) ser uma espcie de centro do cristianismo por estar na capital do imprio, lanou a idia que s ele tinha direito de julgar os assuntos importantes. Foi mexer num ninho de marimbondos! Os bispos de Antioquia, de Nicia, de Calcednia, de Flacilla e outras, advertiram-no de que "por ser bispo de uma cidade maior, no era superior em dignidade aos demais bispos; e era de se espantar que um bispo estranho fosse intrometer-se num debate que no lhe dizia respeito; com efeito, um bispo deposto por um snodo de bispos de uma provncia no podia ser reintegrado por outros bispos, muito menos pelo bispo de Roma''! (mais notcias, em: L. Maimbourg: "Histria do Arianismo"; L.I). Estava fixada aqui a ruptura entre o cristianismo oriental, baseado na tradio eclesial, e o cristianismo ocidental com seus prolegmenos da ideologia do poder eclesial. Nunca esqueamos isto, se quisermos entender as atuais relaes entre catlicos romanos e catlicos ortodoxos. Sto. Agostinho, enquanto bispo de Ipona, convocou sete conclios sem pedir permisso ao bispo de Roma. Num desses conclios se afirma que s o concilio provincial o juiz supremo dos bispos provinciais. Um outro concilio confere exclusivamente ao bispo de Cartago o poder de instituir novas dioceses. Um outro probe aos bispos que se comuniquem com os bispos de alm-mar (leia-se: Roma) sem prva permisso dos bispos provinciais. A lista de snodos e conclios realizados antes do sculo VI ainda muito extensa. O que neles aparece o seguinte: o bispo de Roma quase nunca era informado e quando era informado, por um ato de cortesia, no se lhe dava nenhum poder maior do que aos demais bispos de outras provncias. Era totalmente desconhecida a tal de jurisdio universal do bispo de Roma sobre os bispos da cristandade. (Veja-se o recente trabalho; de pesquisa histrico-teolgica realizado por Heinz-Jurgen Vogelsir "Priester drfen heiralen"; Bonnfl 1992 e outro: "Noi siano la chiesa"; Clandiauna; Torino; 1996). Is-;' to terminantemente provado pela histria do cristianismo. Alis, nestes primeiros sculos, nenhum bispo de Roma disse claramente ser ele o sucessor do apstolo Pedro e, muito menos, que Pedro morreu, bispo, em Roma.

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V - A Organizao da Igreja PrimitivaA Igreja primitiva era fraternal e no havia sinais de ideologia eclesistica de poder algum

Lemos em "Histria da Civilizao" de Will Durant (Comp. Ed. Noc; SP; 1946; V; VI; III p.; I. II; pg. 276): "O cristianismo no destruiu o paganismo, mas adotou-o. O moribundo esprito grego ressurgiu na teologia e na liturgia da Igreja crist. A lngua grega, depois reinar tantos sculos sobre a Filosofia, tornou-se o veculo da literatura e do ritual cristo" Os mistrios gregos passaram-se para os mistrios da missa. Outras culturas pags tambm contriburam para esse sincretismo. Do Egito vieram as idias da divina Trindade, do juzo final, e da imortalidade pessoal com recompensas e castigos." Tambm de l vieram a adorao da me e do filho e a mstica teosofia que produziu o Neoplatonismo e o Gnosticismo que obscurecem o credo cristo. De l ainda [vieram] os germes do monasticismo cristo. De Frgia veio a adorao da grande me. Da Sria, o drama 'da ressurreio de Adonis." "Da Trcia talvez tenha vindo o culto a Dionsio, o deus que morre para salvar os homens. Da Prsia veio a idia do milnio, as 'idades do mundo', a conflagrao final, o dualismo Deus-e-sat luz-etrevas. J no quarto evangelho Cristo a luz brilhando nas trevas; uma luz que as trevas nunca apagaram." "O ritual de Mitras assemelha-se tanto ao sacrifcio da missa que os padres cristos acusavam o diabo que inventara essas semelhanas com a finalidade de desnortear os espritos fracos: como afirmavam Justino em Apologia (I, 6G) e Tertuliano em De Baptismo (5). Deste modo o cristianismo foi a ltima grande obra do velho mundo pago!" E o mais interessante de tudo que a sntese de Will Durant verdade histrica (para os pesquisadores - claro! No para o povo...), mesmo que telogos catlicos e protestantes tentem neg-lo. (O problema que se encontra um s pesquisador entre mil telogos... Os telogos s fazem repetir o que foi dito!). Voltando a Will Durant, acho que ele esqueceu de acrescentar uma frase: "este cristianismo que vingou no o cristianismo de Jesus Cristo, e, sim, o cristianismo dos seus vigrios, moldado "ad usum Delfini". Foi por isso que o grande pesquisador, o padre Altai, cujo verdadeiro nome Mlinge, nascido em Saintonge, na Frana, escreveu o livro "O cristianismo de Cristo e o dos seus vigrios" (Federao Esprita Brasileira; Rio de Janeiro; 1922) pois ele queria mostrar e provar que a organizao religiosa e social da Igreja crist no obra de Jesus Cristo, mas to somente dos seus vigrios, tomados (acrescento eu) pela ideologia do poder eclesistico que chegaram ao ponto de atribuir ao Senhor Jesus coisas que Ele nunca imaginou. Veja, por exemplo, o caso das mulheres. O primeiro a maltratar as mulheres, ou porque fosse machista, ou porque fosse misgino, ou porque fosse homossexual (-efr. "Rumos"; Braslia; 1992;n87;pag. 9) foi So Paulo apstolo, que na primeira carta aos Corntios (11,3) escreve: 16

"As mulheres devem conservar-se em silncio na Igreja, ocupando um lugar discreto. Se elas querem saber algo, que o perguntem ao marido, mas em casa, porque coisa feia a mulher falar na Igreja (...) A mulher deve cobrir a cabea com um pano, simbolizando, assim, a sua sujeio ao homem". (Observao: deste modo Paulo condenou o prprio Jesus, que andava e vinha rodeado de mulheres, como os prprios evangelhos nos contam. Veja: Uta Ranke: "Eunucos pelo reino de Deus"; Ed. Rosa dos Tempos; 1988; particularmente os captulos VIII e IX). Ao invs de condenar a exigncia de Paulo, So Gernimo exigia que as mulheres cortassem todos os cabelos por consider-los extremamente sedutores (cartas; 93) capazes de distrair at os anjos (Tertuliano: "Contra Wlarcionem"; V, 8) que esvoaam pela Igreja... Mas apercebendo-se ser coisa muito difcil engaiolar as mulheres, ento os telogos da poca inventaram toda uma srie de obras de caridade onde engajavam vivas e solteiras. Foi a partir da que nasceram as vrias ordens de freiras na Igreja, sempre com a finalidade de control-las e us-las ao servio da ideologia do poder eclesistico que at hoje permanece privilgio masculino. Depois da proibio de sacrifcios aos dolos ou esttua do imperador, a proibio mais forte era o aborto e o infanticdio que, segundo Tertuliano ("-Apol."; IX, 8), dizimava a sociedade pag. Tambm os cristos no podiam assistir aos teatros ou aos jogos do circo. Para condenar a dissoluo da sociedade pag, fazia-se do celibato e da virgindade o supremo ideal moral, tolerandose o casamento como nico meio de perpetuar a espcie, mas insistindo para que os cnjuges refreassem as relaes sexuais (W.G. Sum-ner; "War and other Essays"; yale Univ, Press; 1911; pg. 54 ss). O divrcio entre cristos era proibido; s era permitido para os pagos que quisessem casar com cristos. Desaconselhava-se o casamento de vivos. Condenava-se tambm o homossexualismo. O substrato psicolgico dessas estranhas atitudes era o fato que Jesus devia voltar logo, logo, nas nuvens... Ento, por que apegar-se s coisas materiais? Neste primeiro momento da histria do cristianismo estava-se colocando as bases da moral crist, cujo ncleo perdurar at os nossos dias no "Novo Catecismo da Igreja Universal", de autoria de Joo Paulo II. Naqueles primeiros tempos no eram benquistos a msica, os jantares sofisticados, o po branco, os vinhos importados, os banhos quentes e o simples barbear-se (Tertuliano; "De spectaculis"; I, 3). L pelo fim do II sculo comea a tomar forma a nossa missa catlica. que os pagos acusavam os cristos de serem ateus por no terem o "sacrifcio". Como podia ser isso se at os judeus tinham o sacrifcio? Juntaram-se, ento, idias que vieram dos servios do templo de Jerusalm, com idias de purificao que vieram dos mistrios gregos, com idias do sacrifcio indireto do qual se participava pelo ato de comer alimentos sacrificados... Isso tudo intercalado com oraes e cantos e com o memorial da morte de Jesus.

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Assim nasceu a missa, onde o po e o vinho (outrora smbolos de fraternidade na f e na esperana da volta "nas nuvens" do Senhor Jesus) passaram a ser entendidos como o corpo e o sangue de Jesus crucificado. Os mistrios de sis e os mistrios de Mitra j tinham algo parecido. Deste modo no precisava de muita explicao, pois a mente daqueles cristos j estava preparada para entender o significado do mistrio eucarstico apresentado na I carta aos Corntios (9, 23-29; e 10, 16-18). Foi assim que o cristianismo se tornou a ltima grande religio de mistrios, com o sacramento da santa ceia. Nestes primeiros tempos, o cristianismo s conhecia trs sacramentos (entendendo por sacramento, algo que d ao indivduo uma graa especial); o batismo, a santa ceia, e a ordenao dos presbteros. Os atos dos apstolos nos relatam (8, 14-17 e 19, 1-6) a imposio das mos que passou a ser privilgio exclusivo dos bispos. A extrema-uno foi tirada da carta de Tiago (5, 14) como a forma do ltimo perdo. A descoberta dos sacramentos foi o momento mais importante para a realizao dos presbteros como corpo jurdico e para a sua atuao jurdica sobre o grupo dos cristos. J Clemente romano havia feito uma distino entre leigos ("lai-kos", em grego, que deriva de "las", povo em geral) e os cristos consagrados para uma tarefa especfica ("klrikos", em grego, do verbo "Klero", eleger, designar para tarefas especiais). Qual tarefa? A conduo da assemblia ("eklsia") dando-lhe meios para receber a graa de Deus: estes meios so os sacramentos que s os "kleriki" poderiam manusear. (Cfr: I. De Lo Potterie Jesu-ta),que esclarece isso muito bem em: "N. R. Th."; LXXX; 1958; pg. 840 ss; no artigo: L'origine et le sens primitif du mot Laic). Deste modo, os sacramentos se tornariam a matria fundamental da ideologia do poder eclesistico, porque com os sacramentos a vida espiritual dos cristos estava nas mos da hierarquia eclesistica. S escapava o casamento... E no foi fcil apoderar-se desta instituio de direito natural! Mas finalmente a Igreja conseguiu, e foi justamente o bispo de Roma. Desde o comeo valia a afirmao de Ulpiano, falecido em 228 d.C, que " o consentimento que faz autnticas as npcias". Esta sentena passar para o Digesto de Justiniano (50, 17, 30) assim: "Nuptias non concubitus sed consensus facit". O matrimnio era do Direito Civil; por isso o autor da "Epstola a Diogneto", no comeo do III sculo, escrevia que "os cristos se casam como os outros cidados" (5,6; veja: H. I. Marron; Ed. Du Cerf; 1951; pg. 62-63). Mas eis que aparece logo um bispo, Incio de Antioquia que escreve: "Convm aos homens e s mulheres que se casam, contrair a sua unio com o conhecimento do bispo" ("De Inst. Virg."; 6. P.L. 16; col. 330). De passo em passo chegamos a Pedro Lombardo (sculo XII) que conseguiu mostrar ser o casamento um sacramento, e mais tarde o Concilio de Trento (sc. XVI) definiu ser isso um dogma de f catlica. (Denziger: 791). 18

A ideologia do poder eclesistico foi to longe que em 1954 o papa Joo XXIII, para mostrar seu poder sobre os sacramentos e, em particular sobre o casamento, anulou o matrimnio legtimo de dois pagos que continuaram a viver no paganismo! To longe foi a ideologia do poder eclesistico!

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VI - A Roma do Primeiro SculoA tristeza da situao poltica no impedia que os cristos do primeiro sculo vivessem como uma famlia

A Roma do primeiro sculo vivia uma situao poltica bastante triste. Tibrio (14-37 d.C.) era um imperador de dupla personalidade. A maioria dos historiadores tecem elogios sua administrao, esquecendo a sua violenta tirania e despotismo, em nome da razo de Estado. Mas os cristos (confundidos com os judeus) no tinham do que se queixar. A Tibrio sucedeu Calgula (37-41 d.C), to cnico que, para insultar o Senado, deu as honras de Cnsul ao seu cavalo! Na "Histria dos Csares" apelidado de animal ferox, tamanha era a sua crueldade. Por fim, foi assassinado por Cludio, o capito de sua guarda pessoal. E foi uma festa pelo imprio afora. Sucedeu-lhe Cludio (41-54 d.C), um homem irresoluto e tmido, e to covarde que consentia que Calgula o esbofeteasse e o chicoteasse em pblico. Uma vez imperador, mandou matar todos seus amigos, a um ponto que Agripina mandou envenen-lo. Ento, Nero subiu ao trono (54-68 d.C): a pior desgraa da Roma antiga! Mandou matar sua me, Agripina, e seu mestre Sneca e dezenas de amigos. Isso j no comeo. Ento casou-se com um homem, praticando relaes sexuais luz do dia, na presena de sua corte. As demais loucuras, atrocidades e crime de Nero, todos as conhecem. Mas no podemos esquecer a noite de 19 de julho do ano de 64, quando ele mandou incendiar Roma e, depois, colocou a culpa nos cristos. Talvez fossem cerca de 200 cristos, vestidos com tnicas impregnadas de pez negro, que queimavam como tochas vivas. Foi a primeira e mais terrvel perseguio contra os cristos e o testemunho de que, em Roma, j havia uma pequena comunidade, embora no se tenha registros histricos de seus fundadores - certamente no So Pedro, como mostrei nos artigos passados. Finalmente, o povo se revoltou: invadiu o palcio e acabou com Nero. Sucedeu-lhe, primeiro, Galba, e, depois, Oto e Vitlio, tolos ineptos e corruptos, particularmente este ltimo, que era tambm sdico e sanguinrio. Ento Vespasiano tornou-se imperador (69-79 d.C). Era bondoso e condenava as crueldades de seus antecessores. Sucedeu-lhe Tito (79-81 d.), que o povo apelidou de "delcias do gnero humano". Quando morreu, o povo dizia: "Um imperador como este, ou nunca devia ter nascido ou devia viver para sempre". Sucedeu-lhe Domiciano (81-96 d.C.), homem orgulhoso, ftil, avarento e cruel. Desencadeou a segunda perseguio contra os cristos. O prazer de Domiciano era matar pessoas e d-las aos ces para comer. Outra diverso desse monstro era mandar queimar os rgos sexuais de amigos. Foi assassinado. Sucedeu-lhe Nerva (96-98). O historiador Apolnio, que viveu nessa poca, diz que Nerva era benvolo, generoso e modesto. Todos os historiadores romanos louvam e admiram Nerva, com o qual comea a dinastia antonina. 20

Nesses altos e baixos polticos a vida dos cristos em Roma certamente sofria, mas no tanto para ficarem dispersos. Muito pelo contrrio! Era uma comunidade pequena, mas muito unida. Embora o perodo que foi do ano 70 ao ano 110 seja completamente obscuro quanto histria, podemos ter alguma notcia por meio de Ireneu e de Incio. So notcias misturadas ideologia do poder eclesistico do qual os dois estavam, imbudos. Mas quem ns fornece as melhores notcias j a Arqueologia Paleo-crist. Tenho aqui importantssima obra de Giovanni Battista De Rossi: "Roma Sotterranea" (Roma Subterrnea), escrita entre os anos de 1864 e 1877. Esse De Rossi, arquelogo e epigrafista italiano (1822-1894), fez o levantamento topogrfico das catacumbas de Roma; foi o criador da Epigrafia Crist; organizou o Museu Cristo do Latro e redigiu, a partir de 1863, o Boletim de Arqueologia Crist, com a assistncia da Comisso Vaticana de Arqueologia Sagrada. Os tmulos que ele descobriu e os sarcfagos que ele descreveu nos apresentam os mais antigos smbolos, pinturas e objetos deste primeiro sculo de vida crist. Encontramos l o alfa e o mega (Deus, princpio e fim); muitas ncoras (a cruz da salvao); muitas palmas (a vitria sobre o paganismo); o cordeiro (o fiel do Cristo); o peixe, cujo acrstico, em grego, significa: "Jesus-Cristo-Filho-de-Deus-Salvador"; o pastor (o bom pastor da parbola); o pescador (Jesus em busca dos homens); o orante (a Igreja em orao); e muitas outras imagens. s vezes, a tampa do sarcfago tem cenas tiradas da mitologia e passveis de uma interpretao espiritual: Orfeu enfeitiando os animais (Cristo fascinando os alunos); Eros abraando Psique (o amor celeste envolvendo o amor humano); Ulisses amarrado ao mastro para resistir ao canto das sereias (o cristo desdenhando o mundo profano). Alm dos sarcfagos, encontramos as pinturas rudimentais, sobretudo nos muros e nas abbadas dos cubculos e das criptas. So pinturas de cores suaves, amarelo-rosado com toques de verde-claro e sombras castanho-vermelhas, retratando cenas bblicas ou evanglicas: Moiss batendo no rochedo; Daniel no fosso dos lees; No na sua arca; Abrao sacrificando Isaac; Lzaro ressuscitado; o paraltico sarado; Jesus disfarado como pastor. Isso tudo mostra o profundo respeito que os cristos tinham pelos seus mortos: a cristianizao da antiga cultura do mediterrneo. A cultura.romana reverenciava os tmulos, que, por lei, deviam ser preservados de qualquer mutilao, a fim de que as almas no se tornassem "errantes", como escreveu Plnio o Moo. Os cristos s acrescentavam a essa cultura a idia da ressurreio. por essas pinturas, que ainda hoje so visveis nas catacumbas descobertas, que conhecemos o modo de orar dos primeiros cristos; as roupas que vestiam, de acordo com o sexo; como era o "repartir do po"; como era o batismo; o lugar daquele que presidia a comunidade e at alguns dos trabalhos exercidos pelos cristos, em vida. Da anlise dessas esculturas e pinturas podemos concluir que os cristos romanos dos primeiros sculos viviam dentro da cultura material romana. A nica coisa que os distinguia dos romanos era a atitude perante o sexo e o casamento. (Veja: C. Munier; "Lglise dans 1'empire romain"; Paris; 1970; sobretudo o resumo: pg. 7-16. Veja tambm em: "tica sessuale e Matrimnio nel cristianesimo delle origini"; Ed. Cantalamassa; Milano: 1976. O ensaio de P.F. Beatrice: "Continenza e matrimnio nel cristianismo primitivo"; 3).

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Se, para os pagos de Roma, o corpo era o instrumento do prazer; se, para os judeus, o corpo era o instrumento da continuidade da raa e a disposio para receber o Messias vindouro; para os cristos o corpo era o instrumento para servir a comunidade e para dar guarida ao Esprito de Jesus. Explica-se assim porque no so benquistas as segundas npcias e, porque a comunidade se orientava para o celibato, que, alm do mais, se tornava uma bandeira que os distinguia dos pagos e dos judeus - talvez tenha infludo nisto a expectativa da iminente vinda de Jesus "nas nuvens". Mas o celibato era adotado somente em idade madura, justamente pelos presbteros (palavra grega que significa "ancios"). Na chefia da vida crist, encontramos aquele que ocupa o primeiro lugar: o bispo palavra grega que significa vigilante. Quem eram os bispos de Roma nos primeiros dois sculos? Existem catlogos completos e pormenorizados, mas no esqueamos que a srie de biografias dos papas do "Liber Pontificalis" (o livro dos pontfices), cuja primeira parte, que vai at Felix IV, em 530, tem quase nenhum valor histrico: o que pensa monsenhor Luis M.O. Duchesne, historiador eclesistico catlico (1843-1922) e professor do Instituto Catlico de Paris que aplicou princpios histrico-crticos em suas pesquisas sobre os primeiros papas, pesquisa que reuniu no livro "Le Liber Pontificalis" (1886-1892). De todos esses bispos romanos, o mais importante Clemente romano (97-101) que, na sua carta aos Corntios, lana a idia da necessidade de organizar os cristos, a exemplo do exrcito romano, com um chefe supremo (o bispo de Roma, claro!!!) e os chefes subalternos (os demais bispos) e, finalmente, a tropa bem organizada e obediente. Essas idias amadurecero e, em 325, no Concilio de Nicia, encontramos, como coisa normal, os bispos ao lado do imperador Constantino, colocando as bases da ideologia do poder eclesistico.

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VII - Presbiterado e o Comeo do Poder EclesisticoO bispo de Roma Leo Magno foi o primeiro que falou no direito que os bispos tm de mandar nos cristos

Desde o comeo, os apstolos estabeleceram auxiliares. Assim nos informa Clemente Romano. Estes auxiliares eram chamados "episcopi" ou ''presbiteri". Tambm as cartas de Incio de Antioquia (100-115) dizem a mesma coisa, talvez repetindo Clemente...Tambm Cipriano, bispo de Cartago, repete Clemente. Para todos, porm, coisa evidente que os bispos so autnomos em suas assemblias (Igrejas); "quando muito, comunicam-se uns com os outros mediante cartas exortatrias ou doutrinais, ou simplesmente pedindo esclarecimentos. Assim Clemente de Roma escreve ao bispo de Corinto; assim Dionsio, bispo de Corinto, escreve ao bispo de Roma... Surge, aos poucos, para facilitar as consultas entre si, o cargo dos metropolitanos, cujas sedes so: Antioquia, Cesaria, Jerusalm, Alexandria e Roma. Os bispos que pertencem a uma s metropolitana, vez ou outra se renem em snodos para confrontarem suas idias, ou para julgarem as idias de algum cristo que pensa diferente (herege), ou para solucionar casos duvidosos. S com o concilio de Nicia, em 325, que a coisa toma vulto oficial e imperial... Notamos aqui, de passagem, que os primeiros nove conclios se realizaram todos no Oriente e os bispos de Roma no estiveram presentes em nenhum deles, to insignificante era a igreja de Roma! Foi a partir do sculo V que os bispos de Roma tentaram reservar-se o poder de confirmar as concluses destes conclios, baseando-se no fato de serem bispos da antiga capital do mundo. Veremos isto mais frente. Voltemos agora ao bispo Clemente Romano, iniciador da ideologia do poder, dando continuidade ao artigo passado. Eusbio, bispo de Cesaria (265-340) e fundador da Histria Eclesistica, nos deixou escrito (livro III; c. II) que, com a morte de Tiago, primeiro bispo de Jerusalm, "os apstolos, os discpulos e os parentes vivos do Salvador juntaram-se para dar-lhe um sucessor e, por consenso unnime, elegeram Simo Pedro". (Parntese: ento, o primeiro sucessor de Jesus e papa, seria Tiago!?!). Ora, na citada carta aos Corntios, o bispo de Roma, Clemente, nos confirma que esta regra ainda perdura na Igreja de Jesus. No s isso, mas, em Nicia (325), os bispos presentes confirmaram ser este costume ininterrupto. Hoje, sabemos que o XXII cnon do Concilio de Cartago "proibia aos bispos ordenar padres sem o consentimento dos demais sacerdotes e sem a presena e aprovao dos leigos". E o bispo de Roma, Leo Magno (440-461) fez uma lei para a sua Igreja, onde se l que "aquele que por direito ter que mandar em todos, haver de ser eleito por todos".

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um ato de democracia eclesistica, sem dvida, que esconde uma realidade que j era aceita por todos leia-se, de novo, o que So Leo Magno escreveu: "aquele que por direito ter que mandar em todos...". Fala-se de "direito" e fala-se de "mandar". Ora, mandar um ato de jurisdio que implica em "poder" - neste caso, poder eclesistico que se fundamenta em direitos... O que poder eclesistico? O que so estes direitos? Poder eclesistico de difcil definio... um poder muito elstico, que pode ser esticado no tempo e no espao, quilmetros afora... Na sua formulao inocente parece algo que tem a ver com a vida da alma... um poder espiritual. Mas, ao longo dos sculos, passou da alma dos fiis ao corpo dos fiis (lembra da Inquisio?) e do corpo dos fiis passou terra dos fiis (lembra a doao de Constantino? e da terra dos fiis passou aos reinos, ao Ocidente, terra inteira... (lembra do Tratado de Tordesilhas, em 1494?). E o poder eclesistico (elstico como ) se fundamenta em direitos adquiridos. Quais so estes direitos adquiridos dos presbteros e dos epscopos? Para entender isto, voltemos ao comeo. J na poca do bispo romano Clemente no era reconhecido igreja de Roma, no mbito da cristandade, nenhuma autoridade sobre as demais igrejas do Oriente ou do Ocidente. Veja-se por exemplo, a luta escandalosa entre Cornlio e Novaciano, na metade do III sculo, querendo ambos ser bispos de Roma. Foram excomungados por um snodo romano, mas a resposta definitiva reconhecendo Cornlio como legtimo bispo de Roma, veio do snodo de Cartago (frica). O mesmo aconteceu quando um snodo espanhol deps Marcial, bispo de Mrida, e Basildio, bispo de Lyon, por terem trado a f na perseguio de Gallo. Os dois apelaram ao bispo de Roma, Estvo, que os reintegrou. Mas um outro snodo de Cartago (frica) anulou o ato do bispo de Roma, confirmando a deciso do snodo espanhol. Cornlio, bispo de Roma (251-253), gritava que era a ele que competia decidir estas coisas, por ser Roma a capital do imprio, mas ningum lhe deu ouvidos. Assim, quando se tratou de fixar a data da Pscoa, no o costume da Igreja de Roma que vale, mas o que determinam os conclios provinciais de Cesaria, dq Ponto, da Gallia e da frica, que, seguem o exemplo de Alexandria (Egito), enquanto que as pretenses de Victor I, bispo de Roma (189-199) foram derrubadas pelo bispo de feso. Assim, depois da perseguio de Dcio ainda o concilio de Cartago, convocado pelo bispo Cipriano, que resolve a questo da reconciliao dos apstatas e o bispo de Roma nem mesmo consultado. Aconteceu o mesmo com o batismo dado pelos hereges: ainda o bispo de Cartago, com os demais bispos africanos, que impe as regras. (Veja: Santo Agostinho; "De Batismo" livro II; c. XV). Temos dezenas de outros exemplos parecidos com esses que acabamos de citar, como, por exemplo, o caso de Paulo de Samosata; o cisma donatista; a teologia de rio; etc. Em todos esses casos, eram os conclios episcopais das diferentes igrejas que impunham o seu parecer, desfazendo, freqentemente, o parecer do bispo de Roma. (Veja: Fleury; "Histria Eclesistica"; livro VII; 56).

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pena que quem redigiu a lista dos papas na enciclopdia Mirador, tenha colocado sob o ttulo "principais eventos" muitas afirmaes que no tm nenhuma prova histrica. Esses fatos acima relatados nos colocam j diante de uma situao aceita no mundo cristo de ento; uma situao que enquanto mostra a falta do primado romano, nos primeiros sculos, salienta o direito de cada bispo (esteja ele onde estiver) para decidir questes dogmticas e disciplinares.

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VIII - Todo o Poder aos Bispos!A ideologia do poder eclesistico romano comea com Clemente I, bispo de RomaA tradio atribui ao bispo de Roma, Clemente 1, toda uma srie de escritos sobre a doutrina e sobre a disciplina crist, e a mesma tradio diz que foi Clemente I que teve a idia de reunir todos esses escritos de carter eclesistico juntamente com a memria referente ao apstolo Pedro. (Ateno: trata-se de tradio e no de provas histricas objetivas!). Tambm quando algum quis redigir as famosas "Constitutiones Apostlicas", diz a tradio que foi Clemente I quem se incumbiu da tarefa. Parimente, quando Hermes escreveu o "Pastor", novamente Clemente que manda todos os livros cristos aparecidos em Roma, aos outros bispos, pressionando-os a aceit-los. Este verbo "pressionando-os" bastante forte, mas exprime bem o estilo do missivista romano (fosse quem fosse!). Com efeito, tudo o que Clemente escreveu (supondo que seja ele o autor) tem um estilo autoritrio: com autoridade que, a cada pgina, ele recomenda que se obedea hierarquia eclesistica, isto , padres e bispos. Sente-se que Clemente bispo em Roma, a cidade imperial que reflete seu poder naquela igreja, cujo chefe e senhor o bispo. Dizem alguns historiadores que Clemente era da famlia Flavia, que j deu trs imperadores: Vespasiano, Tito e Domiciano e, portanto, carregava no sangue o autoritarismo... Se isso fosse verdade, seria explicado seu estilo de escrever, pois escreve como o comandante-chefe. Na sua carta aos Corntios, h um trecho que nos diz tudo: "Olhemos os soldados que servem os nossos soberanos; com que ordem, com que pontualidade, com que submisso executam o que lhes comandado"!!! "Com que submisso"! Segundo uma linha histrica ininterrupta de dois mil anos, chegamos ao ano de 1937, quando Pier Costante Righini, diretor nacional da Juventude Catlica Italiana, me levou a Roma para ver o Papa. Eu tinha 13 anos e no entendia nada do que Pio XII dizia, a no ser uma frase que at hoje ressoa na minha memria: "A igreja no precisa de gente que pensa: ela precisa de gente que obedea". a submisso de que fala Clemente, bispo de Roma! Para Clemente, o exrcito romano o nico modelo de como deve ser a Igreja Crist: obedecer, cada um em seu lugar. Obedecer a quem? Aos bispos, claro! A palavra obedecer era muito forte numa poca em que as comunidades unidas ao redor de seus "presbteros" formavam uma famlia que ainda se reunia no cmodo mais amplo de uma casa. Houve muitos protestos de bispos. S de bispos. A comunidade havia colocado sua autoridade nas mos dos ancios (presbteros), mas o corpo presbiterial j se resumia numa s pessoa: o bispo. (Mais tarde, os bispos iro aniquilar-se numa s pessoa: o papa - mas ainda faltaro alguns sculos). 26

Deste modo, parece claro que a criao do poder episcopal obra do segundo sculo, j que a absoro da Igreja pelos presbteros aconteceu antes do fim do primeiro sculo. Outra coisa que intriga na carta de Clemente a idia de que o presbiterado anterior ao povo cristo. Lemos ainda na carta de Clemente: "Todos os rgos do corpo conspiram e obedecem a um princpio fixo de subordinao pela conservao do todo". E assim nasceu o conceito jurdico de hierarquia eclesistica, fundamentado na exigncia da "conservao do todo", algo que nem So Paulo imaginava quando fez o elenco dos carismas entre os cristos. Assim, a idia de So Paulo (que sempre se sentiu livre e independente perante os apstolos), como, de resto, a idia de Jesus, isto , de uma assemblia (Igreja) de gente livre, parecia agora uma utopia anrquica intil para o futuro. Bem escrevia Renan em "As origens do cristianismo"; v.5; pg. 183: "Com a liberdade evanglica havia a desordem, mas no se previu que, com a hierarquia, ter-se-ia no futuro a uniformidade e a morte". Mesmo colocando-se alguns bispos contra as idias de Clemente, no conseguiram impedir o alastramento de suas idias contidas na sua carta. Apareceram ento, por volta do ano 170 d.C, uma serie de cartas (de Incio?) que ansiavam pela organizao da autoridade episcopal. Fazia tempo que os bispos sentiam a necessidade de organizar-se, j que Jesus no voltava "nas nuvens" como havia prometido (ou como eles imaginavam que Ele tivesse prometido). Uma famlia composta de uma dzia de pessoas consegue organizar-se no amor. Mas uma dzia de famlias s d certo quando houver uma organizao clara e definida. Traduzindo este conceito em termos eclesisticos, significa que, se os poderes dos bispos e dos presbteros emanassem da prpria assemblia dos fiis, a Igreja perderia seu carter de hierarquia teocrtica. E assim, aos poucos, sem solavancos psquicos ou sociais, o clero falar em nome do Senhor Jesus assemblia e em nome da assemblia ao Senhor Jesus... e ningum se apercebeu, l no segundo sculo, que agora quem mandava era o bispo e no o Senhor Jesus. o que acontece todo dia num condomnio em que os proprietrios delegam ao sndico todo o servio do prdio, dando graas a Deus que haja algum para a tarefa. O voto deliberativo torna-se voto simblico, at o dia em que no h mais nada para votar, pois o sindico " pessoa de confiana" e "sabe o que faz" e, de fato, agora ele que faz tudo. Ento surgiu o costume de os presbteros e de os epscopos sentarem no primeiro lugar. Depois veio a idia de colocar um ou dois estrados debaixo da cadeira episcopal unicamente para poder ver o rosto de todos os fiis. Depois a cadeira foi substituda pelo trono episcopal. Paulo de Samosata, bispo de Antioquia, foi o primeiro a usar esse trono com o dossel e o bispo de Roma comeou a colocar ao lado de seu nome a palavrinha "pa. pa." que significa "pater patrum', ou seja, pai dos pais, pastor dos pastores, bispo dos bispos.

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Isso foi em 389 com o bispo de Roma Sircio e com a permisso do imperador Teodsio. Enquanto isso, estabeleceu-se que s o bispo podia celebrar a santa ceia, segundo uma carta de Ireneu ao bispo de Roma Vitor (Eusbio; "-Hist. Ecles."; V; XXIV; 17). Ento, o bispo foi o nico "Senhor" (dominus) da Igreja local, tendo ao seu lado um conselho de presbteros e de diconos. O que valia agora no era mais a comunidade dos fiis que o havia eleito, mas a imposio das mos que lhe dava o ttulo e a herana apostlica de "epscopo" (bispo). Hegesipo um escritor cristo que, na segunda metade do II sculo, escreveu sobre as origens do cristianismo. Ele nos interessa muito porque nas suas viagens, ele s procura e interroga os bispos: para ele, a Igreja s o bispo (veja: Eusbio; "Hist. Ecl"; IV; XXII; 1-3); no o bispo de Roma, mas cada bispo em sua Igreja. Hegesipo sabia que agora no existia mais a primitiva igualdade crist, mas que a Igreja era propriedade de um "dominus" chamado bispo. E, na verdade, por quanto este novo cristianismo parea antidemocrtico, ser esta nova organizao que disciplinar a anarquia, pois colocar cada bispo em sua diocese com todo o poder. Jesus havia inoculado em seus discpulos o esprito de fraternidade, onde todos estavam dispostos a renunciar s suas idias e desejos de serem os primeiros no "reino". Jesus havia repetido que "o primeiro de vs, seja o servidor de todos". Com o bispo de Roma, Clemente I, tudo isto foi deixado de lado para alcanar a organizao necessria para impor-se ao mundo pago. Clemente I (Epist. I; c. 42-44) considera o episcopado como sendo o nico herdeiro dos poderes apostlicos. Deste modo, com ele comea a ideologia do poder eclesistico, uma vez que os sacramentos e a graa divina que eles conferem so privilgios que o Cu deposita nas mos da hierarquia eclesistica. Foram as Igrejas paulinas que pegaram logo esta ideologia. Trechos das cartas de So Paulo eram agora interpretados como uma premissa da constituio da hierarquia, uma vez que freqentemente insistiam no respeito pela autoridade dos presbteros. Ento inventaram-se mais trs epstolas: a Tito e a Timteo, que foram atribudas a So Paulo, para fundamentar a ideologia do poder eclesistico. So trs pequenos tratados sobre os deveres eclesisticos e sobre a grandeza do episcopado: "grande coisa o episcopado!" (I Tim. 3 e Tito, 1). Clemente I encontrou aqui tudo aquilo que estava procurando, sob o selo e a garantia da divina inspirao. As Igrejas judeu-crists (sabemos pela Histria) tornaram-se quase uma sinagoga e nelas o clericalismo no deitou razes. Mas j no o caso da Igreia de Roma, na primeira metade do III sculo, quase logo aps o "reinado" de Clemente I: "No ano de 248, a Igreja de Roma dispe de um clero de 155 membros e mantm cerca de 1.500 vivas e pobres. Tal grupo, independentemente dos religiosos regulares, to numeroso como a mais importante corporao da cidade. E, na verdade, um grupo enorme, numa cidade em que as agremiaes culturais e as confrarias funerrias contam seus membros s dzias. Mais revelador, talvez, o papa Cornlio apresenta essas estatsticas impressionantes como uma das justificaes de seu direito a ser considerado o bispo da cidade.

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(...) a essa Igreja conduzida com firmeza por tais dirigentes que Constantino, em 312, confere uma posio inteiramente pblica, que se revelar decisiva e irreversvel ao longo do sculo IV". (V.V.A.A.; "Histria da vida privada"; Comp. das Letras; 58; 1990; V.I.; pg. 260).

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IX - De Constantino a Teodsio: Mais Poder aos BisposO imperador Constantino o verdadeiro fundador da ideologia do poder eclesisticoAt o Concilio de Nicia (325), o poder dos bispos ainda espiritual, mas com tendncias polticas e econmicas simuladas na ateno carinhosa para com o imperador Constantino, que, em 313, mediante o Edito de Milo, notificou indiretamente este poder. Em 325, Constantino amarra a si numa forma sutil, e na esteira de muitas regalias, todos esses bispos. Mas ningum pense que o imperador fosse cristo! Podemos ler em "Historiae Augustae" (Loeb Library seyerus Alex"; 51) que, na sua corte gaulesa Constantino "vivia rodeado de filsofos pagos" e, mesmo depois de Nicia, pouco se interessou por problemas religiosos e muito menos por diferenas teolgicas. O que ele queria era a unidade dos bispos cristos, pois havia percebido que eles eram o maior instrumento poltico de que ento ele podia dispor para realizar a monarquia absoluta e o fato de colocar o correio do imprio a servio deles era j um destes meios para realizar seus planos. Como era a Roma crist nos sculos III e IV? O nico bispo desta poca que possa interessar histria crist Silvestre I. Mas, antes dele, a Histria lembra Dinis, que nasceu na Grcia e foi bispo de 259 a 268. Nesses anos, foi condenado Paulo de Samosata, aquele do trono - com o dossel, que, embora bispo, dizia que Jesus era um simples homem e no Deus. Em 270, morreu tambm Plotino, o fundador do Neoplatonismo, que, como Scrates e Plato, afirmava que qualquer pessoa, pela simples luz da razo, podia elevar-se at Deus, que, contrariamente ao que pregavam os cristos, no tinha forma alguma, nem podia ser definido por palavras humanas. Plotino era contrrio a todas as seitas crists, principalmente os gnsticos, que acreditavam em espritos e demnios secundrios. Antes de morrer, disse aos seus discpulos: "Vou reunir o que existe de divino em mim com o que existe de divino no universo" (veja meu livro: "Plotino e a alma no tempo", Ufes - F.C.A.A.; 1990). Ento veio Felix I, que foi bispo de Roma de 268 e 274. Homem bom, mas de nenhuma importncia poltica. Mais importante o que aconteceu com o bispo Eutiquiano (275-283), quando apareceu em Roma a religio de Manes que, nesta poca, fundou no Oriente o Maniquesmo. Manes ensinava que existiam dois princpios opostos: um, autor da luz e de tudo o que bom; outro, autor das trevas, da matria e do mal. Falava de si como sendo o Esprito Santo enviado por Jesus. Ensinava que Jesus s tinha aparncias humanas. Manes dizia que a matria, os corpos, os reis, os magistratos e outros seres, eram criaes do princpio mau. Por isso, ele proibia os casamentos e as guerras assim como comer carne e beber vinho. Manes dizia que Jesus era o Sol. Este ponto que nos interessa, porque, at o fim de sua vida, Constantino adorou o Sol como seu Deus e nesta poca que os cristos comeam a chamar Jesus de "Christus Sol" como que para agradar Constantino. 30

Paulus Osrius, sacerdote e historiador espanhol, escreveu, no ano de 416 d.C, uma "Histria Universalis" (que evidentemente s podia compreender o imprio romano) em sete livros e em lngua latina. Pois bem, eis o que ele escreve ainda no primeiro livro, quanto s condies do imprio: "Os exrcitos dispunham, vontade, do poder supremo e os chefes militares apoderavam-se alternadamente do poder supremo(...). Foi no execrvel reinado destes tiranos que todos os males caram a um tempo sobre o imprio: a Bretanha foi subjugada pelos calcednios e pelos saxes; a Gallia, pelos Francos, alemes e burguinhes; a Itlia, pelos alemes, suevos, quados e marcomanos; a Macednia, a Mdia e a Trcia pelos Godos, Hrules e Srmatas; os persas invadiram a costa da Sria. Finalmente, a guerra civil, a fome, a peste, arruinavam as cidades e aniquilavam as populaes que tinham escapado ao ferro dos brbaros. As cidades foram arrasadas por terremotos que duravam dias; o mar saiu do seu leito e inundou provncias inteiras. Em Nbia, na Acaia e em Roma, a terra abriu-se e engoliu campos e casas. A peste matava diariamente milhares de homens". Mesmo dando um desconto de 50%, este relato d para pensar... Hrmias Sozmenos, que morreu na Palestina em 443 d.C, escreveu uma Histria Eclesistica que no diferente desta acima citada. Mas os nicos que no se impressionavam com a situao geral eram os bispos e os padres. Escreve Eusbio, na sua "Histria Eclesistica", a propsito do estado social e religioso do fim do III sculo e comeo do IV: A doutrina de Jesus Cristo era muito estimada e glorificada entre os gregos e brbaros. A Igreja gozava de livre exerccio do seu culto; os imperadores tinham vivo afeto aos cristos e davam-lhes o governo das provncias, sem os obrigarem a sacrificar aos dolos; muitos cristos estavam at espalhados pelas cortes dos prncipes e tinham permisso de cumprir, junto com suas famlias, os deveres da religio crist. (...) Os bispos eram venerados e queridos dos povos e dos governadores das provncias. Inmeros pagos vinham todos os dias fazer profisso de f crist. Em todas as cidades se construam igrejas e os templos j eram pequenos demais para a quantidade de fiis que a eles concorriam. Mas o excesso de liberdade produziu a quebra da disciplina e ento comeou a guerra por meio de palavras ofensivas entre bispos e padres, que, excitados uns contra os outros, provocaram rixas e desordens. (...) Os padres, desprezando as santas regras de piedade, tiveram entre si contestaes e disputas; fomentaram dios e inimizades, disputando os primeiros lugares como se fossem dignidades seculares". novamente a ideologia do poder! Em 314 d.C. eleito o bispo de Roma Silvestre I (314-335), que, na literatura crist, ficou com a glria de ter convertido Constantino e do qual teria recebido em doaes quase toda a Europa Ocidental. (Will Durant; Co,. Ed. Moc; SP; 1955; v. VII; pg. 71). Quem era este Silvestre I, grande bajulador do imperador? Nasceu em Roma e "subiu ao trono episcopal com dossel" em 314, justamente um ano aps o Edito de Milo.

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A Igreja de Roma e quase todas as demais Igrejas estavam se enriquecendo e tudo parecia normal, quando apareceu rio, natural da Sria, que ensinava ser Jesus somente um homem, ou, melhor: no homem-Jesus veio "habitar" o Lgos, que o primeiro e mais alto de todos os seres criados. Ento Jesus se tornou o Filho "Primognito", como escreveu So Paulo, mas que no se pode confundir com o Deus eterno. Eusbio, bispo de Nicomdia, e outros bispos apoiavam rio, mas outros, e particularmente um tal de Alexandre, o combatiam. Ento Constantino convidou rio e Alexandre para discutirem calmamente como filsofos. Eusbio de Cesaria nos guardou a carta do imperador ("Vida de Constantino"; II; 63, 70): "Eu me propus fixar numa s forma as idias que todas as pessoas tm a respeito da Divindade, porque sinto profundamente que, se eu pudesse unir os homens nesse ponto, a conduo dos negcios pblicos me ficaria muito facilitada. Mas, ai! Vim saber de recentes disputas teolgicas! E a causa me parece insignificante e indigna de to feroz debate. Tu, Alexandre (...) e tu, rio, se tiveste tais pensamentos devias ter guardado silncio (...) j que no passam de problemas que s a vadiao sugere para a ginstica mental. So coisas tolas, prprias de crianas sem experincia e no de sacerdotes de boa cabea". Mas, na verdade, comeou uma verdadeira guerra entre bispos que apoiavam rio e outros que o condenavam. No havia mais paz no imprio e isto preocupou o imperador Constantino, que, sem pedir licena a bispo algum, exigiu que todos os bispos cristos se reunissem em Nicia para resolver o problema. Era o ano de 325. Nicia, como se sabe, na Turquia e no em Roma... Alis, o bispo de Roma, Silvestre, nem foi avisado. Eusbio (op. cit.) diz que Constantino "ouvia pacientemente os debates" e "moderava a violncia dos contendores". No fim, [Constantino] cansado de tantas abstraes e ameaando aqueles que eram causa de divises, mandou que se contasse quantos acreditavam na divindade de Jesus. Eram presentes ao todo 318 bispos (o bispo de Roma no estava presente) auxiliados por um grande nmero de padres" (Eusbio: "Nicia"; 6). 301 bispos levantaram o brao concordando com a tese de Alexandre, condenando rio. Aps novas ameaas de Constantino, 313 bispos levantaram o brao. Novas ameaas: 316 bispos concordaram; apenas dois bispos se negaram: foram banidos do imprio. E Jesus foi declarado Deus por contagem de votos. Mas todos entenderam que a sobrevivncia da Igreja dependia da unidade da doutrina e disciplina, e sobretudo entenderam que, naquele dia, estava selada a aliana do cristianismo com o Imprio Romano e a maior prova disto foi que Constantino determinou que quem desobedecesse s determinaes de Nicia fosse punido pela autoridade secular, porque aquelas determinaes eram "dogmas (leis) imperiais". Os desobedientes se tornaram hereges, o que era crime contra as leis imperiais e contra a religio. O Concilio de Nicia (com a permisso do imperador) concedeu ao bispo de Alexandria os mesmos privilgios de honra de que gozava o bispo de Roma, cuja autoridade, porm, limitava-se s sua diocese. Mas assim mesmo o bispo de Roma ficou satisfeitssimo por ter recebido o palcio do Latro e algumas terras, alm de uma boa mesada. 32

Em seguida, Constantino mandou destruir todos os livros que apresentavam Jesus como homem e no como Deus. Em sinal de gratido pelas concluses de Nicia, Constantino, embora pago, recebeu dos bispos o ttulo de episcopus ad extra (o bispo de fora) e doravante ser ele quem julgar os bispos; convocar e presidir conclios e resolver questes religiosas. Depois de Nicia as leis eclesisticas tiveram valor de leis cveis, por isso tiveram o nome de "dogmas". Com o imperador Teodsio (347-395) os bispos e os padres se tornam oficiais estatais (381) e so pagos pelo governo imperial. Teodsio mandou fechar todos os velhos templos pagos e permitiu ao clero assumir a magistratura e os cargos municipais. Deste modo, j comeava a realizar-se a ideologia do poder pelo que tocava os bispos de Roma: um poder que se tornar sempre mais forte daqui a pouco, quando os brbaros iro invadir a Itlia em sucessivas hordas. O bispo de Roma ser praticamente a nica autoridade "imperial" a tratar com tila, Alarico, Genserico... e, assim, seu poder espiritual comear a tornar-se poder poltico.

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X - "Mors Tua Vita Mea"Sobre as cinzas do imprio romano, nasce e cresce o poder poltico do bispo de Roma

Mors tua vita me (era necessria a tua morte para que eu pudesse ter yida). Nunca um ditado semtico (alis, tambm bblico) expressou to bem a sorte do cristianismo romano: foi necessrio que o imprio poltico romano morresse, para que, de suas cinzas, nascesse o imprio eclesistico romano, isto : foi necessrio que os brbaros invadissem o imprio e a provncia da Itlia e que Constantino transferisse a capital para Bizncio para que, desta dupla situao, se aproveitasse o bispo de Roma e realizasse novos passos em direo ao poder poltico eclesistico. Trs acontecimentos que mudaram a histria do mundo: os brbaros invasores; a converso de Constantino; Bizncio, a nova Roma. Gibbon, que muitos apontam como o maior dos historiadores, em "Decline and Fall of the Roman Empire" (Ev. Library; v.I; pg. 274) sustenta que a causa da queda de Roma foi o cristianismo, que teria destrudo a velha f, que dava carter e vitalidade alma romana... Ora, nunca foi dita besteira maior! A verdade que o cristianismo cresceu com tanta rapidez justamente porque Roma estava morrendo! Estava morrendo porque o Estado romano defendia os ricos contra os pobres; fazia guerras para obter escravos; punha taxas exorbitantes sobre o trabalho, para sustentar o luxo dos "patrcios". Porque nunca soube proteger o povo (que era cerca de trs quartos da populao) contra a fome, contra a peste e as invases dos brbaros. Se o cristianismo teve to grande nmero de proslitos e to depressa, porque era um seguro de vida na pobreza, na doena e na morte. (Veja: E. Fromm; "O dogma de Cristo"; Zahar. Ed.; Rio; 1978; todo o captulo II e III). Nunca os romanos haviam encontrado tanto respeito e tanta segurana, inclusive a segurana de um po... como no cristianismo. (E ser por causa disso que o povo romano no dar grande importncia s imoralidades de seus bispos e padres!). As causas econmicas do declnio de Roma aparecem de maneira trgica com Diocleciano: a falta de novos escravos para os latifndios que se tornavam improdutivos; o trfico, sempre mais perigoso, prejudicava o abastecimento, com a conseqente perda de mercadorias e de mercados; guerra sem fim entre ricos e pobres; o enorme custo do exrcito, cujos soldados no sentiam mais o gosto das vitrias, pois andavam cansados de dcadas a fio de lutas inteis; a inflao da moeda e a emigrao do capital e do operariado; o sistema servil e escravocrata da agricultura e a eterna e enorme burocracia, sem falar da desintegrao moral, que comeou com a conquista da Grcia e foi crescendo at os dias de Nero. Se houve uma melhora na moral romana, isto se deve influncia do cristianismo. No foi por acaso que os cristos romanos eram to rgidos quanto ao sexo e ao casamento. As idias de Gibbon j esto h muito superadas! Veja: R. Mc Mullen: "Paganism in the Roman Empire"; Yale; 1901; passim. Veja tambm: P. Veyne: "Le pain et le cique"; Ed. Du Senil; Paris; 34

1976. Veja tambm: W. Lecky: "History of European Morais from Augustus to Charle-Magne"; Londres; 1869. Veja tambm A.H.M. Jones: "The later Roman Empire"; Oxford; 1964; sobretudo o II volume. O mesmo Will Durant, grande admirador de Gibbon, alm de no concordar com o mesmo Gibbon conclui: "As causas polticas da decadncia do imprio romano enraizavam-se num fato: o crescente despotismo destrua o senso cvico dos romanos, estancando o estadismo em suas fontes" (Histria da Civilizao"; vol. VI; pg. 361, eplogo). Ento cita Montesquieu: "Patriotismo e religio pag nasceram e cresceram juntos e, agora, juntos morriam". ("Grandeur et decadence des Romains"; Paris; 1924; pg. 36). Essa digresso foi necessria, porque uma coisa o cristianismo como mensagem de Jesus; e outra coisa o cristianismo como meio para alcanar o poder poltico. Constantino se apercebeu logo que o cristianismo, enquanto mensagem de Jesus, era algo de srio... to srio que ele preferiu receber o batismo poucas horas antes de morrer, para no ter que submeter-se a uma moral to rgida... Mas, enfim, no ano de 330, ele levou a capital para Bizncio, onde fundou Constantinopla, que se tornou o ponto estratgico de onde ele poderia vigiar os movimentos das hordas dos brbaros que faziam presso nos confins do imprio. Todavia, ningum pense que os bispos de Roma, com seus padres, fossem pessoas humildes e pobres. O historiador pago Ammiano Marcelino, de origem grega (330-400 d.C), considerado o continuador de Tcito e o nico historiador crtico da sua poca, em seus "Rerum Gestarum Libri XXXI" (trinta e um livros de feitos) escreve a propsito do bispo de Roma e de seus padres: "Eles tm vida boa porque se enriquecem com os donativos das damas importantes e exibem suas riquezas com trajes de requintes, oferecendo jantares to copiosos que seus banquetes eclipsam a mesa dos reis e, no entanto, poderiam realmente ser reverenciados, sem ter como desculpa a grandeza da cidade de Roma. Mas eles alegam a grandeza de Roma como desculpa de seus vcios e preferem isto ao fato de viver como certos bispos de provncia que, pela extrema simplicidade no beber e no comer e pelas vestes modestas e atitudes humildes, agradam ao Deus eterno como homens puros e venerveis". ( o poder econmico que sempre precede o poder poltico: este j est s portas). S.M. Pellistrandi em "O Cristianismo Primitivo" (Ed. Ferni; RJ; 1978; pg. 345) escreve: "Observemos os celebrantes bem no fundo da nave da igreja. Os diconos vestem por cima das tnicas a dalmtica com longas mangas debruadas e gales escuros como os de hoje. Alm disso, a tonsura e as sapatetas negras que usam todas as pessoas de categoria. Sobre a dalmtica, o bispo veste a ampla casula e, sobre ela, o plio, que o manto do comando. Trajados desta maneira e rodeados do conforto, adquirido atravs da proteo dos imperadores, dos poderosos e da generosidade dos ricos, os membros do clero muitas vezes provocam inveja". O autor deste trecho conclui, pgina 348: "Pois que o luxo e a corrupo invadiram a antiga cidadela da Igreja primitiva. Todos aqueles que querem viver o ideal herico de outrora comeam o xodo para o deserto. Nesse retorno s fontes, os monges do deserto substituem um martrio tornado impossvel, pela renncia e pela mortificao". O monasticismo aparece no Egito, com Antnio, nos meados do sculo IV, justamente quando o bispo de Roma procura uma entrada para o poder poltico que no tardar a vir. 35

Mas h tambm uma lenda, que diz que, na hora em que Constantino doou o palcio do Latro a Silvestre, bispo de Roma, juntamente com alguns pedaos de terras, veio do cu uma voz que disse: "Hoje entrou na Igreja o veneno!". Mas Silvestre estava disposto a beber o veneno, mas no a perder uma oportunidade poltica to preciosa. Com Constantino em Bizncio, a Itlia ficava nas mos do bispo de Roma. No exagero. Com Constantino, a jurisdio episcopal diocesana entra numa nova fase: sob a forma de "episcopolis audientia". Isto significa o seguinte: em 318, Constantino reconhece a jurisdio episcopal em questes civis, no mbito estatal ("Cdigo de Teodsio", 1, 27, 1). Mas, antes de examinar este fato to importante, vejamos o fim da histria de Constantino e a histria de Teodsio e Justiniano, os trs imperadores romanos que mais se comprometeram com o cristianismo. Constantino recebeu o batismo com a idade de 67 anos, em 337, quando estava para morrer. Ento, houve uma srie de imperadores inteis. O mais importante foi Teodsio (347-v; 395), que, em lugar de combater os brbaros invasores, quis aproveitar-se dessas foras e deix-los instalar-se no imprio como federados, ou como soldados no exrcito romano. Teodsio tomou o partido do Concilio de Nicia e quis continuar a poltica de Constantino com referncia ao cristianismo. Alis, fez muito mais: inseriu a hierarquia eclesistica nos quadros civis (381). Ento aconteceu a verdadeira mudana na histria do imprio e do cristianismo. A ideologia do poder eclesistico agora tinha feies polticas. Com a morte de Teodsio, o filho Honrio se tornou imperador do Ocidente (395-423) e o filho Arcdio imperador do Oriente. Mas Honrio se mostrou incapaz de frear as invases dos brbaros. Primeiro, Alarico, depois Genserico e tila, que foram, enfrentados no pelo imperador e seu exrcito, mas pelo bispo de Roma Leo I (440-461). Outro imperador romano foi Justiniano (482-565), que, para agradar ao bispo de Roma Felix IV (525530), mandou fechar, em 529, a ltima escola de Filosofia livre de Atenas. De agora em diante, s permitido o comentrio da Bblia e dos evangelhos feito pelos eclesisticos. A Igreja e o imprio no precisam de filsofos, de gente que pensa; mas de gente que obedea. O conhecimento no ser mais racional, mas fidesta. a partir disso que os intelectuais se revoltam. a partir dessa poca que encontramos as razes do atesmo moderno: um subproduto do cristianismo poltico.

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XI - Sto. Agostinho: a Teologia Como Base do Poder Poltico EclesisticoNo livro A Cidade de Deus, Agostinho d a entender que a Igreja a nica representante de Deus na Terra

Para entender o pensamento de Sto. Agostinho lembramos uma particularidade histrica de valor fundamental: at o sculo IX ser bispo cristo ou mesmo ser um fiel cristo, no significava estar em comunho com o bispo de Roma. Essa "comunho" uma inveno muito tardia no cristianismo; alm do mais, a autoridade e o valor eclesistico de um bispo qualquer no eram maiores do que aquilo que tem um padre (vigrio) qualquer da nossa cidade, com exceo do poder poltico do bispo de Roma que representava na Itlia o imperador que vivia no Oriente. Era-se cristo pela adeso aos decretos dos grandes conclios: de Nicia (325) em primeiro lugar; mas tambm de Constantinopla (381) que tratou do Esprito Santo; de Efeso (431) que condenou o nestorianismo e o pelagianismo; de Calcednia (451) que afirmou que Jesus tinha uma natureza humana e uma natureza divina unidas na nica pessoa do verbo; e de Constantinopla II (553). Os bispos eleitos costumavam escrever uns para os outros afirmando sua f e lealdade aos decretos dos conclios. Os bispos de Roma faziam a mesma coisa: mandavam e recebiam cartas de outros bispos. Da o erro de muitos historiadores catlicos que imaginam serem estas cartas romanas documentos comprobatrios do "primado": erro imperdovel porque distorce a verdade. Voltemos a Sto. Agostinho (354-430) nascido no norte da frica, numa terra que era uma mistura de raas (nmida; pnica; romana) e uma mistura de religies (orientais; egpcios; pagos romanos e cristos). O "pnico" a antiga lngua da Fencia cuja cultura sobrepujava em Cartago. Leia-se o interessante romance histrico "O Cartagins" de Manf Hardan; Ed. Edicon; SP; 1985. Mas no deixe de ler tambm J. Mac Cabe: "St. Augustine and his Age"; London; 1926; onde se l, pgina 35, que Salviano, sacerdote cristo e telogo, morto em Marslia em 494, escreveu que "a frica a cloaca do mundo" e que Cartago "a cloaca da frica". Apesar de ter nascido em Tagaste, foi em Cartago que Agostinho viveu at os 29 anos de idade quando se foi para Roma, onde lecionou Retrica por um ano, mas, no sendo pago pelos alunos, transferiu-se para Milo. O resto da histria da sua vida, sua converso ao catolicismo; sua volta frica; sua eleio a bispo bem conhecida... Mas da sua influncia no poder eclesistico que agora quero falar. J no Concilio de Cartago, convocado em 411 pelo imperador Honrio (e no pelos bispos!!!) para pr fim briga dos donatistas e seus 279 bispos, contra os 286 bispos catlicos, notamos a posio de Agostinho: ele ensinava que sendo a Igreja Catlica o "pai espiritual de todos os cristos", ela tem o "direito de pai" para punir o filho desobediente e isso para o prprio bem dele (Epist. 173). 37

Quanto ao pensamento teolgico de Agostinho, ele pode ser resumido em trs pontos: primeiro, o univer