A história transborda – sobre a noção de suplemento em J.Derrida

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Filosofia pós estruturalista

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    A histria transborda sobre a noo de suplemento em J.DerridaAline Magalhes Pinto1

    Se nada precedeu a repetio, se nenhum presente vigiou o trao, e se, de certo modo, o vazio que de novo se escava e se marca de impresses digitais, ento o tempo da escrita no segue mais a linha dos presentes modificados. O futuro no um presente futuro, ontem no um presente passado. O alm do fechamento do livro no deve ser esperado nem encontrado. Est l mas alm, na repetio mas evitando-a. Est l como a sombra do livro, o terceiro no agora da escrita, a distncia entre o livro e o livro, essa outra mo...2

    Uma mo que tateia, e escreve. Desenha. Ao faz-lo, toca o invisvel. Cifra-o e

    decifra-o, num movimento inesgotvel. Movimento das letras, movimento dos olhos,

    movimento das mos. Algo para que somos sempre cegos coordena a possibilidade de ver,

    de tocar, de mover. Com relao ao que est sempre alm e aqum, e que percebemos como

    transbordamento, e tambm como falta, s nos cabe escrever, inscrever, arriscar-se. Sendo a

    nica certeza o fato de que jamais, se ver, jamais se tocar.(DERRIDA, 1990. PP. 11-13).

    O pensamento derridiano, a noo de suplemento e a histria

    O pensamento de J. Derrida prioriza o texto e a escrita. Remeter a eles no significa

    abstrair-se numa realidade que s existe cerrada num livro. Na escrita derridiana, texto

    no se limita ao livro, ao discurso. No se restringe esfera semntica, representativa,

    simblica, ideal ou ideolgica. A textualidade implica todas as estruturas ditas reais,

    econmicas, histricas, scio-institucionais, em suma, todos os referenciais possveis.

    No h um fora do texto, o que no quer dizer que todos os referenciais esto suspensos ou

    negados. Ou ainda que todos estejam legitimados numa espcie de vale-tudo. Quer dizer

    to somente que todo referencial, todas as realidades, tm a estrutura de um trao

    diferencial, so textuais, e s nos podemos reportar a esse real numa experincia

    interpretativa que se d, ou s assume sentido, num movimento diferencial. O texto esse

    lugar que viaja entre as diferentes dimenses do vivido.(DERRIDA, 1995 :81-90)

    A escrita derridiana contempornea do que se convencionou chamar de

    reviravolta lingstica e que caracteriza boa parte do pensamento filosfico no sculo XX.

    Interessa-se pelo funcionamento da linguagem, suas relaes com a cultura, saberes e

    prticas, pelas possibilidades da problemtica do signo. O foco de sua investigao parte da

    constatao de que tudo que se subtrai ao jogo da linguagem s pode ser retomado na

    1 Doutoranda em histria social da cultura pela PUC-RIO, bolsista - CNPQ. 2

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    linguagem. (DERRIDA, 2004: p.79-80) Neste contexto, a linguagem aparece sem limites. O

    significado infinito, que parecia exced-la, deixa de cerc-la e cont-la. Mas a essa

    valorizao segue-se um processo de inflao que culmina na banalizao do signo

    linguagem. Este um dos indcios que permite a Derrida entrever um deslocamento da

    linguagem para a escrita. (Ibidem p.7)

    Se, por lidar com o significante do significante e ser considerada uma reduplicao,

    uma cpia da fala, a escrita ocupava um papel secundrio como forma auxiliar da

    linguagem entendida como comunicao, expresso e significao, agora, como

    significante do significante, a escrita descreve o prprio movimento da linguagem. A

    linguagem entendida como um conjunto de unidades cujo sentido dado por seu carter

    diferencial com relao aos demais signos, ou seja, uma escrita. A linguagem produz mais

    iterao que comunicao. Ela um momento, um fenmeno, um aspecto, uma espcie da

    escrita. No h sentido em si, apenas ao diferenciar-se o sentido se efetiva.( Ibidem. p.73-

    76.)

    Este ultrapassar da escrita sobre a linguagem se esboa como abertura ao jogo, onde

    o sentido arrebata-se e apaga-se em sua prpria produo. O cunho cindido entre leitura e

    escrita abre a possibilidade de acesso ao texto como repetio noutro lugar. Lugar no qual o

    leitor3 destronado da posio meramente especulativa imposta por uma receptividade

    ansiosa por expanso, progresso, evoluo, futuro, autenticidade, coerncia, verdade.4 Para

    tentar romper com a tradio desta histria e forma de recepo, Derrida abandona a busca

    por significados transcendentais para propor o jogo da suplementariedade e diferenas, no

    qual todo e qualquer elemento pode vir a ocupar uma eventual posio de referncia,

    sempre passvel de desalojamento.(CULLER, 1997., p.117-127.)

    Jogo diz respeito s substituies infinitas no fechamento de um conjunto finito. o

    termo usado para se referir ao processo de concretizao do sentido, cujo mecanismo no se

    encontra pr-determinado, mas disseminado e em constante reviso. Sob a noo de jogo, a

    totalizao no tem mais sentido. O jogo aparece como possibilidade de destituir qualquer

    3 As aspas entre as quais se situa o leitor no indicam uma morte, seno um deslocamento: H um leitor-modelo no s para Finnegans Wake, como ainda para os horrios de trem, e de cada um deles o texto espera um tipo diferente de cooperao. Um leitor derridiano, se existe, est mais para um leitor ideal acometido de uma insnia ideal, instrudo a desbravar os bosques perdidos num texto, mais do que para aquele que, na estao, observa o trem da histria seguir. Cf. CALVINO, Italo. Seis passeios pelos bosques da fico. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.7.4 A forma de recepo da qual se desvia aquela intimamente relacionada ao predomnio de um sentido histrico positivo e inexorvel, dentro do qual a estrutura e o tempo de um texto so considerados de tal maneira compactos a no oferecerem ao leitor seno sua verdade. Cf. HUTCHEON, Linda. Potica do ps-modernismo: Histria, teoria e fico. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p.11-25.

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    coisa de um significado transcendental. Os signos no tm um sentido nico, estvel ou

    permanente, mas encontram-se constantemente deriva, num jogo aberto de significaes.

    Tal jogo aberto entra em coliso com uma doutrina estruturalista sobre o sentido,

    entendido como resultado de uma estrutura ou cadeia fixa comum. Estando em jogo, o

    sentido de uma palavra s existe em funo da forma como essa palavra se relaciona com

    outras palavras, e esse sentido est sempre adiado e diferido em interminveis remessas de

    significaes, num movimento de suplementariedade. O suplemento um extra

    desnecessrio, adicionado a algo completo em si mesmo. Mas o suplemento adicionado a

    completar e compensar uma lacuna, em algo que deveria ser completo em si mesmo.Neste

    vis, a dimenso ldica deve ser entendida menos como distrao do que trabalho, pois a

    nfase recai sobre a produtividade de sentidos. (DERRIDA, 1995. p.243-245).

    O pensamento desconstrutor se instala nas oposies binrias, buscando romper

    com a hierarquizao que as tornam inconciliveis e inseparveis. So vrios os pares

    dicotmicos que marcam a histria da filosofia ocidental: natureza/cultura;

    inteligvel/sensvel; liberdade/necessidade; aparncia/essncia, racional/irracional; etc.

    Numa oposio, um dos termos ser considerado central, e nessa medida se constituir

    tambm como origem e telos da prpria oposio. O movimento de desconstruir coloca em

    destaque aquilo que, pelo fato do centramento, ficou relegado margem do campo textual e

    semntico aberto pela oposio. Entretanto, no se trata de restabelecer a margem como um

    centro. Deslocar o centro significa, na operao de desconstruo, criar estratgias para que

    nenhum elemento se cristalize novamente nesta posio. (SANTIAGO, Santiago.1976.

    p.17-19)

    Documento-suplemento: fontes transbordantes

    As fontes documentais so os limiares da fronteira entre histria e aquilo que a

    ultrapassa. O trabalho historiador cambia junto com o status e a forma como se trata estes

    textos. Certamente j no se pode mais afirmar a possibilidade de uma objetiva realidade

    histrica extrada dos documentos de uma forma totalizante. Mas ainda que o trato

    positivista a um documento isento, neutro, objetivo, cientfico, que comportava e

    comprovava toda a realidade histrica tenha sido praticamente abandonado, para o

    trabalho historiador a questo do documento e das fontes continua uma problemtica.5 Uma

    5 H uma extensa bibliografia que aborda a relao do historiador e os documentos. De relance, cita-se: COLLINGWOOD, Robin George. The limits of the historical knowlodge. In: Essays in the philosophy of history. New York: McGraw-Hill, 1965. p.90-103. CARR, Edward Hallet. O historiador e seus fatos. In: Que histria? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p.11-29. MARROU, Henri-Irenee. A histria faz-se

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    das marcas mais relevantes do deslocamento ocorrido no interior do campo historiogrfico

    com relao ao tratamento das fontes o texto Documento-monumento, de Le Goff, no

    qual se anuncia no somente um conceito de documento, mas uma tarefa e funo para a

    cincia histrica:6

    O documento no incuo. , antes de mais nada, o resultado de uma montagem, consciente ou

    inconsciente, da histria, da poca, da sociedade que o produziram, mas tambm das pocas

    sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser

    manipulado, ainda que pelo silncio. (...)O documento monumento. Resulta do esforo das

    sociedades histricas para impor ao futuro voluntria ou involuntariamente determinada

    imagem de si prprias. No limite, no existe um documento-verdade. Todo documento mentira.

    (LE GOFF, 2003. p.538.)

    Numa concepo apoiada nas reflexes foucaultianas a respeito das unidades e

    formaes discursivas,7 a tarefa da histria diante o documento passa a ser, sobretudo, tratar

    de pr a luz as condies de sua produo e mostrar em que medida este documento

    instrumento de um poder. (LE GOFF, 2003 p.525).

    Neste cenrio, a pretenso de validade do trabalho historiador como cincia est

    assegurada na medida em que, por meio de exame crtico das fontes, o historiador

    consegue acionar formalizaes cientficas em seus objetos no-cientficos. O pesquisador

    no pode ser pueril e deve, portanto, extrair a verdade da mentira que o documento

    carrega. O exame crtico das fontes, isto , situar os documentos no tempo e no espao, no

    recorte contextual, classific-los e critic-los a respeito da credibilidade e autenticidade, o

    apoio da pretenso cientificidade do historiador.( Ibidem. p.537-539.)

    A cincia histrica do sculo XX mudou o foco, mas no pde abrir mo da

    inspeo rigorosa das fontes como instncia de verificao da autenticidade, integridade e

    credibilidade do saber historiogrfico. Por inspeo rigorosa se entende os procedimentos

    inquisitoriais que garantem afastar suficientemente o saber histrico do puramente

    com documentos. In: Sobre o conhecimento histrico. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p.55-77. 6 A abertura e ampliao do que era tido como documento e fonte, para alm do que escrito, marcando a aceitao de outras linguagens como evidncia e prova histrica, tambm um acontecimento relevante. Depois dos trabalhos de Febvre, a noo de documento abranger cada vez mais vestgios de manifestaes humanas a caminho de uma histria total. Cf. FEBVRE, Lucien. Combates pela histria. 3 ed. Lisboa: Presena, 1989. 7 Foucault apresenta a renncia aos temas de anlise histrica que tm por funo garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presena no jogo de uma ausncia sempre reconduzida para tratar de reconstituir um outro discurso, re-estabelecer o texto mido e invisvel que percorre o interstcio das linhas escritas e, s vezes, as desarruma (...). Sua questo, infalivelmente, : o que dizia, pois, no que estava dito? In: FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Lisboa: Vozes, 1972. p.36-39. Cf. RAGO, Margareth. O efeito-Foucault na historiografia brasileira. Tempo social: Revista de sociologia da USP, So Paulo. v.7, n.1-2, p.73 et seq., out.1995.

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    ficcional e imaginativo, para faz-la figurar, triunfante, como uma cincia social.

    (BENATTI, 2000 p.81-82.)

    No af de ser cincia, o trabalho historiador seguiu, seja nos trilhos do marxismo

    economicista, do modelo econmico da segunda gerao dos annalistes ou dos modelos

    estatsticos da cliometria norte-americana, um caminho que levou ao fetichismo

    arquivista, culminando na hegemonia de uma histria cultural ou da cultura em que o

    status da prova emprica tal que as pesquisas so avaliadas mais pelos documentos

    (manuscritos ou no) inditos que foi possvel reunir do que pela problematizao

    alcanada pelo trabalho. (LACAPRA, 1985. p.80 et seq.)

    E, durante algum tempo, os historiadores puderam estar seguros de haver escapado

    do meramente literrio. (RANCIRE, Jacques. 1995. p.229 et seq.) At que a literatura

    volta histria, montando seu circo de metfora e alegoria, interpretao e aporia, exigindo

    que os historiadores aceitem sua presena zombeteira bem no corao daquilo que,

    insistiam eles, consistia sua disciplina prpria, autnoma e verdadeiramente cientfica.

    (HARLAN, David. 2000 p.15-18.)

    Pode-se assinalar como emergncia deste retorno do literrio na cena do saber

    histrico, o ensaio de Lawrence Stone O renascimento da narrativa: reflexes sobre a

    velha nova histria.8 Este texto tinha o intuito de apontar a tendncia da pesquisa histrica

    de ponta ao retorno da forma narrativa de escrita, fazendo na seqncia um levantamento

    das causas dessa tendncia. O alvoroo do debate que se seguiu tem menos a ver com o

    contedo da tese de Stone, do que com aquilo que a reabilitao da narrativa com intuito de

    melhor buscar uma verdade histrica recalca: o carter retrico e poitico do saber

    histrico, isto , o saber como prtica cultural produtora (inventora) de sentido.

    (BENATTI,2000., p.83-86)

    O cenrio (assustador?) pode ser vislumbrado nas palavras de Stone:A tendncia para a narrativa levanta problemas irresolvidos sobre a maneira que formaremos

    nossos graduandos no futuro supondo que haja algum para formar. Nas artes da retrica? Na

    crtica dos textos? Em semitica? Em psicologia? Ou nas tcnicas de anlise das estruturas

    sociais e econmicas que viemos praticando durante uma gerao? (STONE, Lawrence. 1991, p.36.)

    8 STONE, Lawrence. O renascimento da narrativa: reflexes sobre a velha nova histria. Revista de Histria, IFCH, UNICAMP, n.2-3, p.13-37, 1991. Este texto analisa o fato de que a partir da constatao da crise dos modelos de cincia a que a histria tentara se converter, havia um retorno, no a forma tradicional de narrativa, mas de um modo de escrever a histria que afeta e afetado pelo contedo e pelo mtodo, dirigida por um princpio gerador e que tem um tema e um argumento.

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    O desdobramento atual um conflito em que os historiadores tendem a repetir,

    como forma de convencer a si mesmos, que embora os acontecimentos passados s possam

    ser conhecidos por intermdio de seu estabelecimento em uma linguagem, eles ocorreram

    num passado real e emprico . (HUTCHEON, 1991 p.131-137.)No mximo da boa

    vontade com o lado ficcional do trabalho historiador, entende-se que h necessidade de se

    preencher lacunas deixadas pelos documentos, de maneira a organizar uma intriga

    racional e inteligvel.(VEYNE, 1983). De forma que:A histria, se a quisermos definir como fico, h que ter em conta que uma fico controlada.

    A tarefa do historiador controlada pelo arquivo, pelo documento, pelo caco que chega at o

    presente. De uma certa forma, eles se impem ao historiador, que no cria vestgios do passado

    (no sentido de uma inveno absoluta ), mas os descobre ou lhes atribui um sentido, conferindo-

    lhe o estatuto de fonte (...). Fico controlada, porque a histria aspira ter, em sua relao de

    representncia com o real, um nvel de verdade possvel (...). Esta histria-fico ainda

    submetida s estratgias argumentativas e aos rigores de mtodo, que cercam, testam, comparam

    e cruzam os documentos escolhidos no maior nmero de relaes e comparaes possveis.

    (PESAVENTO, 2000. p.39 40)

    A noo de vestgio, esses indcios de um passado presente, transformados pela

    metodologia em fonte, documenta o fundamento metafsico da histria. O vestgio pretende

    ser o atestado material de que h um limite inconteste para a interpretao e o jogo dentro

    do trabalho historiador. Procedendo por esta comodidade tico-metafsica, pe-se a

    escanteio a face aditiva e a influncia nociva do jogo interpretativo no saber histrico.

    (DERRIDA, 2004. p.359-360.)

    Este limite ganha corpo, no que se refere ao trato documental, de duas maneiras. A

    primeira, j um tanto desgastada, mas ativa sobretudo nos campos em que a grafia quer

    se fazer mais cientfica a distino entre fontes primrias, mais profundas e

    verdadeiras, e secundrias, superficiais ainda que teis, mas que no sustentam por si s um

    trabalho historiador. Esta hierarquia contempla a noo de original e a busca pela

    origem escondida ou perdida nos arquivos, capaz de provar que o historiador diz uma

    verdade sobre seu objeto. (JENKINS, 2005. p.79-83. LACAPRA, 1985. p.135 et seq.)

    Esta primeira hierarquia no desapareceu. Entretanto, a partir dos primeiros embates

    entre os contornos mais cristalizados da historiografia e os gestos esboados desde Saussure

    que ganharam fora e visibilidade a partir da dcada de setenta, configurando a virada

    lingstica o trabalho com o documento exigiu novos cuidados. A concepo do sistema

    lingstico como instvel e aberto defendida por Derrida, Barthes, Paul de Man e outros se

    disseminou entre tantas competncias disciplinares numa disperso difcil de domar. Ante

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    estudos tericos que insistiam colocar sob suspeio as noes de referente, originalidade,

    autoria e sentido, bases da crtica do documento, houve uma reformulao destas bases,

    sobretudo na histria intelectual, de modo a conformar o que David Harlan chama de uma

    nova ortodoxia. (HARLAN,.2000 p.19 et seq.)

    Esta nova ortodoxia estabelece como noes-chave para lidar com a

    documentao as idias de contexto e texto. O contexto tido como um quadro de

    referncia histrica, amplo universo de circunstncias culturais, dimenso de natureza

    privilegiada, diversa do texto, que ser compreendido e explicado a partir do pressuposto de

    que compreenso e explicao se devem restituio de sentido original ao documento.

    O olhar para as fontes direcionado para se obter delas a forma de seu funcionamento

    dentro de um tipo de discurso que lhe exterior, que lhe contm; e as maneiras pelas quais

    estes documentos modificam ou so modificadas por este discurso. O documento

    instrumento que comprova a existncia de um outro: o contexto. testemunha e

    representao do que teria existncia plena antes dele e sem ele. Ou seja: o interesse recai

    sobre o contexto e no sobre o texto. (LACAPRA, 1983. p.51 et seq.)

    O documento vive, desta maneira, uma situao paradoxal. Ele fundamental na

    medida em que o caminho pelo qual se reconstitui a inteno de homens que pensam e

    agem dentro de um contexto que lhes determina o sentido e a forma da ao. tambm a

    medida de veracidade dessa reconstituio. Mas ele secundrio, j que sistematicamente

    reduzido ao ser usado para reconstruir um ou outro contexto. Cada texto documental

    aparado at poder ser incorporado ao contexto. A abordagem dos documentos

    instrumental, sua historicidade pontual e restrita verdade de um contexto previamente

    delimitado. O documento sobrevive unicamente como expresso e justificativa da presena

    passada desse contexto, estimando e organizando o trabalho por um sistema de referncias

    diretas ao presente. (HARLAN, 2000 p.39-42.)

    Num lance dentro desta cena, o trabalho historiador convidado a se disseminar na

    escrita de histria(s). Pois as tentativas de minimizar os efeitos perversos produzidos pela

    teoria literria e filosofias da linguagem no tm sido suficientes para eclipsar a fenda

    aberta na unidade desse saber que, como episteme, quis ser uma fuso da letra e sentido

    metafsico. No horizonte do pensamento derridiano, como pensar o documento, esse lugar

    de inscrio, de consignao e de registro?( DERRIDA, 1995. p.246-247.)

    Como mquina textual desencadeada, o documento no pode mais ser um

    fragmento de margens brancas, virgens, vazias. uma pea cujo limite imediatamente

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    transbordado por um outro, que o contamina, o excede e faz quebrar seu sentido. Quando o

    trabalho historiador opera, no h distino ou hierarquia autntica entre um tipo de fonte e

    outro, nem mesmo entre o texto que est sendo tecido e aquele outro, documento, do qual se

    serve. A funo documental nessa operao suplementar. (DERRIDA, 1991. p.23-26.)

    A tarefa de um documento numa histria absolutamente envolvida com o sentido

    metafsico, no texto, de se colocar no lugar onde falta o presente passado, como prova de

    que ele realmente existiu. A tarefa das fontes suprir materialmente a ausncia que funda

    o saber histrico, evidenciando que seu objeto passou pelo mundo como presena e como

    tal pode ser representado. encarado, dessa forma, como um complemento, aquilo que

    torna completo o sentido de outrem. Mas a lgica do suplemento discute o documento como

    atestado de veracidade e completude de uma ou outra construo histrica. A insero do

    documento em um texto quebra a linearidade temporal e pretensa unicidade do discurso

    histrico, evidenciando a textualidade do trabalho historiador. (DERRIDA, Jacques. 2004.

    p.327-386.)

    O Suplemento uma adio, um significante disponvel que se acrescenta para

    substituir e suprir uma falta do lado do significado e fornecer o excesso que preciso.

    (SANTIAGO, 1976 p.88.) O trabalho historiador, ao adicionar repetidamente documentos

    em seu texto, faz ver que a verdade de seu trabalho est fora do seu texto, est no

    documento, este outro texto. E pe vista, ao mesmo tempo, que este documento s tem

    valor de verdade neste trabalho. O sentido est intermitente entre o fora e o dentro da

    operao histrica, e s se deixa produzir nas adies repetidas entre um e outro.

    Suplementariedade mtua. Se o documento apresentado como exterior ao trabalho

    historiador, como referncia e local de validao, ele ao mesmo tempo inserido e

    integrado mquina textual, entregando o sentido do texto ao jogo de remisses

    intertextuais, no qual a plenitude e originalidade da presena passada, a fonte, se apaga. (

    DERRIDA, 2004. p.263-266)

    O documento deveria ser a impresso da coisa em si, da presena que passou, mas a

    necessidade de transport-lo e inseri-lo num outro lugar, num texto, indica que esta presena

    j era lacunar. O trabalho historiador na escrita de histria(s) faz aparecer a impossibilidade

    da presena plena, presente, passada ou futura. Seu labor intempestivo, de um tempo

    desconjuntado, fora-de-si. Disseminada, a escrita da histria(s) trabalha o documento, no

    como prova e fragmento de um passado que existiu, mas como suplemento que intervm e

    se insinua no lugar da presena passada. O documento-suplemento assume,

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    performaticamente, a forma daquilo que, simultaneamente, ele resiste, substitui e engloba.

    Tem assim estatuto de suplente e poder de suplncia. O trabalho historiador se transfigura

    numa encenao intertextual na qual, se h lugar para o sentido, no desvio e no limite de

    uma performance de si prprio. (Ibidem. p.193-200. )

    O documento-suplemento interrompe a possibilidade de um sentido prprio a

    qualquer evento ou encadeamento de eventos. Procedendo por (com) brisura, produz-se um

    efeito interpretativo no qual aquilo que deveria conceder estabilidade e segurana

    identidade entre texto e algo que aconteceu acaba por perpetrar um deslizamento entre

    esses limites. Inserir e convocar um documento deveria proteger o texto histrico do

    desamparo literrio, mas se o faz, ao mesmo tempo deixa abrir neste texto a possibilidade

    de uma outra interpretao, remetendo diretamente textualidade que constitui, ainda que a

    contragosto, o campo historiogrfico.( Ibidem. p.195-196.)

    Dessa maneira, desponta outra forma de ler-escrever, feita no lugar e no tempo em

    que a deciso de faz-la parece impossvel. Essa leitura conjura na mquina textual, por

    contra-assinatura, os sujeitos inseridos no procedimento da mquina a fazer histrias. O

    sujeito que escreve (historiador?) e o que escreveu (agente? objeto?) se rasuram e

    se deslocam, se desdobram na finitude e perpetuao de seus documentos, registros do

    fato de que um e outro passaram por ali, ainda esto ali, de passagem, a celebrar em cada

    marca documental sua existncia e sua morte. O sujeito do documento e diante do

    documento no pode atuar mais como avalista, conselheiro, juiz, promotor, vingador ... a

    no ser encarando essas funes como mscaras, como assinaturas, parte da mquina que

    outrora julgou reger. (DERRIDA, 1984. p.75 et seq.)

    Uma histria(s) no comprometida com a clausura metafsica deliberadamente se

    aventura, procede como um pensamento errante sobre itinerrio e mtodo. As fontes se

    redobram como suplemento e transbordam, pois no podem nem ser a origem ou presena,

    e no podem ficar no lugar delas como uma representao, como tambm no podem ser

    simplesmente o avesso, uma fico ou uma mentira. Elas deslocam no texto esses lugares

    que tendemos a cristalizar. Isto no quer dizer que no haja diferena entre um evento

    ficcional e um real, mas que a fico e a realidade so suplementares e so possibilitados

    pela mquina textual. Trata-se de no excluir da histria(s) aquilo que no est presente e

    real (os inexistentes irreais), e mais: de considerar o evento histrico tido como real um

    caso particular de fico. (CULLER,1997 p.122-127.)O que tentamos mostrar ao seguir o fio de ligao do perigoso suplemento que no que

    chamamos de vida real das criaturas de carne e osso (...) nunca houve nada alm da escrita e

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

    nunca houve nada alm de suplementos e significaes substitutas, que poderiam surgir apenas

    em uma corrente de referncias diferenciais. O real sobrevm e adicionado apenas ao tomar o

    sentido de um vestgio ou a evocao de suplementos. (DERRIDA, Jacques 2004. p.196.)

    Onde quer que estejamos, j estamos em um texto. O trabalho historiador parte j e

    desde sempre da escrita e por isso suas fontes s fazem derivar e transformar o que nunca

    foi um sentido prprio. Os documentos no podem reunir-se numa unidade originria, num

    contexto que fosse fonte de emanao ou de provenincia do sentido deles. O que nele

    [documento] est se mescla com o que poderia ter havido; e o que nele h, se combina com

    o desejo do que estivesse; e que por isso passa a haver e a estar.9

    por isso que o alcance do contexto nunca pode ser dissociado da anlise do texto,

    e em funo dela, todo contexto transformador-transformvel, exportador e exportvel.

    Recortar o contexto de uma pesquisa histrica imediatamente corromper a pretensa pureza

    dele, pois exige que se engendre um limite contextual que por si s no estaria l. Esse

    limite, essa finitude, a condio para que a transformao contextual permanea sempre

    aberta. Isso no supe que os textos devam ser apartados de seus contextos, mas, pelo

    contrrio, que s existem contextos sem nenhum centro absoluto de ancoragem.10

    A fonte, ao tornar-se, abre o tempo como atraso da origem sobre si mesma.

    Estratagema de uma encenao que pretende se encerrar nos limites de uma conscincia e

    encetar uma presena. Desdobrar este atraso, espaar esta operao expor a temporalidade

    aporia, a falta de um traado. (DERRIDA, 2004. p.199 ; DERRIDA, 1991. p.315-347.) O

    documento-suplemento (suplemento do suplemento) toma-se como o irreversvel que

    infinitamente se reescreve: enquanto navegao, essa reescrita est para alm de

    diagnsticos, profecias e doutrinaes, modos de cercear a errncia. As fontes trabalham em

    rede intertextual, gerando acmulos e carncias que alimentaro outros lances e novas

    histria(s). (DERRIDA, 1995. p.245)

    Bibliografia

    9 Cf. LIMA, Luiz Costa. LIMA, Luiz Costa. Documento e fico. In: Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975. p.195. Costa Lima se refere aqui ao uso da literatura como fonte, mas a afirmao pode se estender a todos os documentos, escritos ou no, pois da perspectiva derridiana entende-se que em todo corpus documental se encontram aspectos de literalidade. Cf. LACAPRA, D. op.cit., p.52-55. 10 DERRIDA, Jacques. In: (LI). p.110-111. Lacapra, ao tratar das complexas relaes que podem existir entre texto e contexto, formula seis tipos de contextos histricos possveis. Sua preocupao menos esgotar os tipos de contexto do que demonstrar o quanto a naturalizao da idia de contexto pode empobrecer a historiografia, sobretudo a histria intelectual. Ele lista os seguintes contextos: relao entre inteno do autor e texto; relao entre vida do autor e texto; relao entre sociedade e texto; relao entre cultura e texto; reltao entre texto e corpo da escrita; relao entre modos de discurso e texto. Cf. LACAPRA, Dominick. op.cit., 1983. p.36-71.

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  • Srgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flvia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3. Seminrio Nacional de Histria da Historiografia: aprender com a histria? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6

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