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129 THEMIS - Revista da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará A IGUALDADE ENTRE AS FILIAÇÕES BIOLÓGICA E SOCIOAFETIVA 1 Anna Lúcia Wanderley Pontes Aluna da Especialização em Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC) – turma IV Analista Judiciária de Entrância Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará SUMÁRIO: 1- Introdução. 2 – A Evolução da família e da filiação socioafetiva. 2.1 – O Afeto como valor jurídico. 2.2 – Verdade biológica: verdade real de filiação. 3 – Espécies de filiação socioafetiva. 3.1 – Filiação afetiva na adoção. 3.2 – Filiação sociológica do filho de criação. 3.3 – Filiação eudemonista. 3.4 – Filiação socioafetiva na adoção à brasileira. 3.5 – Filiação derivada de inseminação artificial heteróloga. 4 – Conceito de estado de filho afetivo. 4.1 – Elementos que caracterizam o estado de filho afetivo. 4.2 – O Direito do filho afetivo de investigar a maternidade e a paternidade biológica. 5 – Conclusão. 6 – Referências bibliográficas. 1 Este artigo científico, elaborado em janeiro de 2009, sob a orientação da Professora Roberta Lia Sampaio de Araújo, Especialista em Direito Público (UFC), Mestre em Direito Constitucional (UFC), Professora da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, Professora da Escola Superior da Magistratura de Estado do Ceará – ESMEC e Coordenadora da OSCIP D3 – Direito, Democracia e Desenvolvimento, será apresentado como requisito para a obtenção do grau de especialista, na Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará. V.7 n.1 jan/jul 2009

A IGUALDADE ENTRE AS FILIAÇÕES BIOLÓGICA E … · sanguíneo e dando um tratamento análogo a todas as ... tem dado ao princípio da dignidade da pessoa humana na ... família

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A IGUALDADE ENTRE AS FILIAÇÕES BIOLÓGICA ESOCIOAFETIVA1

Anna Lúcia Wanderley PontesAluna da Especialização em Direito Constitucional da Escola

Superior da Magistratura do Estado do Ceará (ESMEC) – turma IV

Analista Judiciária de Entrância Especial do Tribunal de

Justiça do Estado do Ceará

SUMÁRIO: 1- Introdução. 2 – A Evolução da família eda filiação socioafetiva. 2.1 – O Afeto como valor jurídico.2.2 – Verdade biológica: verdade real de filiação. 3 –Espécies de filiação socioafetiva. 3.1 – Filiação afetiva naadoção. 3.2 – Filiação sociológica do filho de criação. 3.3 –Filiação eudemonista. 3.4 – Filiação socioafetiva na adoçãoà brasileira. 3.5 – Filiação derivada de inseminação artificialheteróloga. 4 – Conceito de estado de filho afetivo. 4.1 –Elementos que caracterizam o estado de filho afetivo. 4.2 –O Direito do filho afetivo de investigar a maternidade e apaternidade biológica. 5 – Conclusão. 6 – Referênciasbibliográficas.

1 Este artigo científico, elaborado em janeiro de 2009, sob a orientaçãoda Professora Roberta Lia Sampaio de Araújo, Especialista em DireitoPúblico (UFC), Mestre em Direito Constitucional (UFC), Professora daUniversidade de Fortaleza – UNIFOR, Professora da Escola Superior daMagistratura de Estado do Ceará – ESMEC e Coordenadora da OSCIPD3 – Direito, Democracia e Desenvolvimento, será apresentado comorequisito para a obtenção do grau de especialista, na Escola Superiorda Magistratura do Estado do Ceará.

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RESUMO: A relevância da pesquisa sobre o tema“Igualdade entre as filiações biológica e socioafetiva” éexpressa pela densidade da inovação constitucional que foia abolição de qualquer forma de discriminação entre asfiliações, subtraindo qualquer valoração atribuível ao fatorsanguíneo e dando um tratamento análogo a todas asfiliações, independentemente da origem. Faz-se necessáriofrisar ainda os laços afetivos havidos entre pessoas em quenão existe o vínculo biológico de parentesco, mas que aparentalidade é presente e realçada diariamente pelo amor,dedicação e respeito mútuo havido entre pais e filhos nãobiológicos, aclarando que hoje já não se pode identificar umfilho apenas pelo fator “sangue”.

PALAVRAS-CHAVE: Afetividade. Dignidade daPessoa Humana. Melhor Interesse da Criança.

1. Introdução

A Constituição de 1988 reconheceu a igualdade dafiliação quando não fez nenhuma discriminação entre os filhoshavidos ou não na constância do casamento, da uniãoestável ou da comunidade formada por pai e/ou mãe e ofilho. Assim sendo, os filhos têm direito constitucional àmaternidade ou paternidade biológica e/ou socioafetiva,sendo vedada qualquer discriminação entre eles quanto adireitos e qualificações.

A evolução social foi seguida pela notória evolução

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científica que em matéria de pesquisa genética dapaternidade ou maternidade possibilita a quase certeza dasua identificação.

A redefinição dos valores sociais, principalmente astransformações pelas quais passou a família, consolidouefetivamente os laços de afetividade e companheirismo,valorando-se fundamentalmente o respeito à identidadepessoal e à individualidade, firmando-se menor relevânciaà maternidade ou paternidade biológica.

A problematização do tema reside no fato de queembora o exame genético (DNA) seja usado para aconstatação da paternidade, deve-se considerar que acimadeste reconhecimento está o vínculo afetivo que caracterizaa natureza da paternidade social (como se definirá),igualando-a à biológica. Considera também nesse contexto,se o critério biológico poderá ser superado por outro queconfira maior legitimidade à paternidade socioafetiva, bemcomo a que princípios se filiam as decisões judiciais queprestigiam a paternidade socioafetiva.

Este trabalho busca exame da doutrina e dajurisprudência na investigação de elementos da discussãose a filiação socioafetiva deve ser relevada nas situaçõesem que se tem no outro polo uma prova inequívoca a tentardesconstituí-la, no caso, o DNA.

Constitui objetivo geral deste trabalho analisar arelativização do critério de natureza biológica em contrapontoao da filiação socioafetiva no que tange à determinação dapaternidade, enfocando a inserção da importância que setem dado ao princípio da dignidade da pessoa humana na

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busca da decisão justa, da consideração do real valor jurídicodo afeto, pois há inúmeras jurisprudências que reconhecemo afeto como elemento relevante na relações familiares dequalquer natureza.

O artigo pesquisa o quanto também é “verdade real”o fenômeno da filiação afetiva conquanto a evidênciagenética não menos o seja, deve-se, contudo, despir-se de(pre)conceitos históricos para um bom caminhar na questão.

2. A evolução da família e da filiação socioafetiva

Não obstante o processo evolutivo pelo qual passoua família ao longo dos tempos, nossas leis insistiam emcaracterizar a família de duas formas: a legítima e a ilegítima,sendo que “legítima” era aquela consubstanciada nocasamento, sendo o mais considerado como família ilegítima.

Desse modo, os filhos oriundos de uma famíliaestabelecida sob o véu do matrimônio eram ditos legítimose a eles a lei era irretorquível. Já os filhos advindos de uniõesestáveis ou mesmo de relacionamentos extramatrimoniaiseram vistos com olhos de preconceito, uma vez que asociedade não aceitava este tipo de comportamento e taisfilhos eram tidos como ilegítimos, pesando sobre eles omanto do abandono legal. Aliás, o próprio sistema jurídicovalidava a distinção entre os filhos legítimos e ilegítimos,elevando sobremaneira os primeiros porque, para a lei, afamília era um grupo baseado em laços sanguíneosestabelecidos por meio do matrimônio.

A consagração do princípio da igualdade de filiação,

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estabelecido a partir da Constituição Federal de 1988, foium marco na evolução da nossa legislação, que há muitodeveria ter acompanhado o progresso por que passou asociedade. Assim, o referido princípio da igualdade em muitocontribuiu para o rompimento do caráter patriarcal exaltadopelo homem no exercício do papel de chefe da famíliaconjugal. Dessa maneira, a fisionomia da família mudou, vezque hoje desempenha como papel principal o de fornecersuporte emocional ao indivíduo, intensificando-se os laçosafetivos.

Ademais, com o ingresso da mulher no mercado detrabalho, o homem deixou de ser o provedor financeiro dafamília, havendo necessidade da cooperação do mesmo emoutras atividades domésticas que antes eram “obrigação damulher”. Consoante ensinamento de Maria Berenice Dias,“a família é um grupo social fundado essencialmente noslaços de afetividade após o desaparecimento da sociedadepatriarcal, que desempenhava funções procriativas,econômicas, religiosas e políticas”2 .

Portanto, identifica-se a família sem necessariamenteter-se presente o vínculo do casamento. Desta forma, aspessoas já não necessitam ficar em relacionamentos defachada ou mesmo desenvolvendo outros relacionamentosde modo simultâneo, em face da remodelação por quesofreu a família.

A Constituição de 1988 deu nova vestimenta àsfamílias quando consagrou em seu art. 226 que a família,

2 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 3. ed. SãoPaulo: RT, 2006, p. 39.

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base da sociedade, tem especial proteção do Estado. Emais, ao elastecer o conceito de família, ressaltou o vínculofamiliar entre um dos genitores e os filhos, quando enunciano art. 226, § 4º que “entende-se, também, como entidadefamiliar a comunidade formada por qualquer dos pais e seusdescendentes”.

A Carta Constitucional de 1988 legitimou a evoluçãofamiliar que há muito já se vivenciava, assim é que o núcleofamiliar passou a ser constituído tanto pelo casamento, comopela união estável (art. 226, § 3º) e também pela comunidadeformada por quaisquer dos pais e descendentes (art. 226, §4º), passando a ser um grupo fundado na proteção,constituindo-se um verdadeiro lar no qual se destaca asolidariedade, a fraternidade, a ajuda mútua, enfim, onde ovínculo que os liga é embasado no afeto e no amor.

A evolução estrutural da família, em oposição aomodelo tradicional, posicionou-a um passo à frente,estimulada por fatores sociais que rompeu com o modelo“perfeitinho”, já que não mais se podia negar a existênciada coabitação fora do casamento, das relaçõesextramatrimoniais, assim como das famílias sem filhos,descortinando-se a realidade e abrindo espaço pararealidades, como uniões homoafetivas, existência dasfamílias monoparentais etc.

Portanto, não é demais lembrar que o conceito defamília precisou ser reinventado e a Constituição Federalde 1988 foi um marco no sentido de quebrar paradigmas,romper barreiras e isto se diz em virtude da proibição dequaisquer designações discriminatórias relativas à filiação,

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que agora já passa a ser entendida não somente no planobiológico, ganhando corpo no que se refere à filiaçãosocioafetiva, esta constituída na ideologia do afeto, docarinho, da convivência, independentemente da origem dafiliação.

Rompeu-se então com a supremacia da filiaçãobiológica, dando-se um caráter mais social à filiação e,dessa forma, a filiação, que antes tinha sua importâncialigada ao matrimônio, aos filhos havidos do casamento,passou a despir-se do véu da hipocrisia, cedendo espaço auma verdade que não se pode olvidar; os filhos sempre serãofilhos, independentemente de terem sido gerados de uniõesnão fundadas no matrimônio, da adoção, da inseminaçãoartificial, enfim, desapareceu a importância da origem dosfilhos, fixando-se a atenção para outros aspectos relevantes,fundados na afetividade.

O papel da origem biológica relativizou-se com oadvento da Constituição de 1988, e não era para menospois, em virtude das profundas transformações por quepassou o direito de família, enfatizaram-se os direitosatinentes à personalidade.

A Carta Magna não fez qualquer discriminaçãoatinente à filiação, assim, não se pode albergar a correntebiologista que incide pelos tribunais brasileiros, desta feita,por que não se pode confundir estado de filiação com origembiológica. Na verdade, com o avanço científico, surgiu umfascínio muito grande em face do exame de DNA, como seum mero resultado hematológico pudesse desconstituir umaverdade socioafetiva construída ao longo dos tempos.

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Desse modo, é que se pode dizer que o liamedecorrente da filiação não é somente o biológico, mas osocioafetivo, o qual vem atender sobremaneira ao princípiodo melhor interesse da criança, enunciado na Declaraçãodos Direitos da Criança, e de princípios fundamentais, comoo da dignidade da pessoa humana e da paternidaderesponsável, presentes também na Declaração dos DireitosHumanos e na Constituição de 1988.

Nessa ótica é que a igualdade jurídica atribuída atodas as espécies de filiação trouxe um tratamento uniformeda família, rompendo-se com o modelo patriarcal ouhierarquizado, chamando à realidade a efetiva relaçãopaterno-filial, no sentido que ela não se basta na verdadegenética, mas a transcende, no momento em que se valorizaa paternidade construída e não somente aquela paternidadeem que o modelo de pai é apenas daquele que emprestoumaterial genético para geração de uma criança, sendo-lheatribuída a paternidade.

Há no novo plano jurídico uma vontade deredimensionalizar a paternidade, como afirma Luiz EdsonFachin, “[...] muito antes de ser reconhecida a paternidadegenética, vai esboçar-se a paternidade psicológica”. Assimé que os papéis na família moderna são a cada diamodificados, verificando-se que “a divisão dos papéis nafamília e mesmo o princípio da autoridade são afetados pelaprogressiva eliminação da hierarquia e pela liberdade deescolha”3 .

3 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 24.

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No Brasil há dois “divisores de águas” na solução deeventuais conflitos havidos entre a filiação biológica e a nãobiológica; “a Constituição de 1988 e a Convenção sobre osDireitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral da ONU,em 20.11.1989, e com força de lei no Brasil”4 .

Dessa forma, a Constituição realça a igualdade entreas filiações, repelindo qualquer discriminação, quando dizque “todos os filhos são iguais, independentemente de suaorigem” (art. 227, § 6º C.F.) e mais; “o direito à convivênciafamiliar, e não a origem genética, constitui prioridadeabsoluta da criança e do adolescente” (art. 227, caput, C.F.).

No mesmo raciocínio emerge o direito àpersonalidade e à origem genética.

Sobressai-se da Convenção dos Direitos da Criançao dever da observação ao princípio do melhor interesse dofilho.

Consoante Belmiro Pedro Welter, a CartaConstitucional de 1988 sublevou o direito de família,procedendo-se “a uma verdadeira desbiologização dapaternidade, pois se equipararam os filhos de sangue aosfilhos adotivos, vedando-se qualquer discriminação entreeles quanto a direitos e qualificações”5 .

Já o artigo 1596 do Código Civil prevê a filiação nãobiológica, advinda da adoção regular ou em face do pai ouda mãe que adotou exclusivamente filho.

Também o artigo 1597, “V”, do Código Civil prevê a

4 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 135.5 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica esocioafetiva. São Paulo: RT, 2003, p. 69.

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filiação não biológica, advinda do pai que autorizou ainseminação artificial heteróloga, que consiste em umatécnica de reprodução humana onde os espermatozóidesou óvulos, utilizados na fecundação, provém de um doadorestranho ao casal.

Nos dois exemplos acima citados, os estados defiliação são irreversíveis, ou seja, não podem sercontraditados através de ação negatória de paternidade oumaternidade, porém o filho poderá investigar a paternidadeou maternidade para fins de ver garantido seus direitos depersonalidade, de pesquisar sua origem.

Destarte, é que a família moderna edificou-se em localpropício à comunhão do afeto e realização da dignidade dapessoa humana, funcionando como campo de atuação deprincípios constitucionais, como da liberdade, igualdade,solidariedade, integridade física e psíquica e direito àpersonalidade.

Diante dessa nova realidade é que se consubstanciao raciocínio de que o afeto é o alicerce da relação familiar eque a lei não deve “fechar os olhos” ante a evolução naturalpor que passam as estruturas familiares. É necessário, sim,o reconhecimento de outras uniões, assim como aconteceucom a união estável, que também seja reconhecida a uniãoentre pessoas do mesmo sexo, pois estas muitas vezes seencravam em relacionamentos duradouros, edificados sobo manto do respeito mútuo, produzindo patrimônio poresforço comum e laços que não podem nem devem serignorados pelo nosso direito.

Desse modo, os filhos oriundos de uma família

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estabelecida sob o véu do matrimônio eram ditos legítimose a eles a lei era irretorquível. Já os filhos advindos de uniõesestáveis ou mesmo de relacionamentos extramatrimoniaiseram vistos com olhos de preconceito. Aliás, o própriosistema jurídico validava a distinção entre os filhos legítimose ilegítimos, elevando sobremaneira os primeiros porque,para a lei, a família era um grupo baseado em laçossangüíneos estabelecidos por meio do matrimônio.

2.1 O Afeto como valor jurídico

O afeto é uma manifestação de carinho ou cuidadoque se tem por alguém que se ama. No âmbito da psicologia,o afeto toma forma de apego, caracterizando-se pelo vínculodesenvolvido pelo indivíduo em relação a outro, tornando-ospróximos. A afetividade é algo inerente ao ser humano,tornando-o capaz de exteriorizar suas emoções vividas emsociedade.

Já é possível identificar o afeto como princípio. MariaBerenice Dias enuncia que “o Estado impõe-se de direitose obrigações para com seus cidadãos. Por isso elenca aConstituição um rol imenso de direitos individuais e sociais,como forma de garantir dignidade a todos. Isso nada mais édo que o compromisso de assegurar o afeto”6 .

A filiação social, muitas vezes vencida pela filiaçãobiológica, passa a ter reconhecimento pela doutrina e pelajurisprudência, as quais já não balizam o exame de

6 DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 59.

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pareamento genético como única forma de se identificar afiliação, cedendo espaço para a valorização dos laços deafeto construídos. Nessa linha de raciocínio analisa Rodrigoda Cunha Pereira: “a idéia não é excluir o laço biológico,mas incluir a paternidade socioafetiva”7 , pois a filiaçãosocioafetiva é fruto de uma relação de afeto construídadiariamente.

O que identifica uma família é o afeto. Não qualquerafeto, mas aquele que se presencia nos lares, fruto doconvívio diário entre duas ou mais pessoas ligadas pelaprocedência comum, como diz Sérgio Resende de Barros:“é o afeto que enlaça e comunica as pessoas, mesmoquando estejam distantes no tempo e no espaço, por umasolidariedade íntima e fundamental de suas vidas”8 .

Destarte, para a existência de uma família não énecessário que haja marido e mulher, pai e mãe, uma vezque há famílias constituídas somente de homens, somentede mulheres, de irmãos, enfim, há uma entidade familiarquando presente a qualidade que lhe é inerente e que uneseus entes independentemente de sexo, mas por umacondição sine qua non para sua existência: a presença doafeto que estreita os laços e os faz fortes.

Nos últimos anos houve uma modificação significativana família, que antes era acentuadamente patriarcal e

7 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios Fundamentais norteadoresdo Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 350.8 BARROS, Sérgio Resende de. Ideologia do afeto. Revista Brasileirade Direito de Família. Porto Alegre: SÍNTESE, IBDFAM, v. 4, n. 14, jul/set., 2002, p. 08.

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estruturada em torno do patrimônio familiar. O homem era ochefe da família, pesando sobre ele várias responsabilidadese poderes, como a administração dos bens do casal, afixação do domicílio e a manutenção da família.

A mulher, por outro lado, era dita “do lar”, vivia paraos filhos e para cuidar da casa, ficando adstrita aos afazeresdomésticos. Ocorre que, com a evolução da sociedade edos costumes, paulatinamente a mulher foi introduzida nomercado de trabalho e a família sofreu modificações em suaestrutura pois, com a saída da mulher para o mercado detrabalho, as tarefas domésticas precisaram ser divididascom o homem, refletindo também em mudanças no exercícioda paternidade.

Com efeito, a mulher deixou de se vincular ao maridopor questões econômicas, passando as relações homem-mulher a se constituírem por elos de afeto, carinho esolidariedade mútua.

Assim sendo, quando a Constituição Federal de 1988igualou homens e mulheres em direitos e obrigações, afamília ganhou destaque no aspecto afetividade, desta feitaporque não mais era construída sob bases econômicas, massedimentada em laços afetivos, como destaca Paulo LuizNetto Lobo (apud PEREIRA):

A realização pessoal da afetividade e da dignidadehumana, no ambiente de convivência e solidariedade, é afunção básica da família de nossa época. Suas antigasfunções econômica, política, religiosa e procracionalfeneceram, desapareceram, ou desempenham papelsecundário. Até mesmo a função procracional, com a

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secularização crescente do direito de família e a primaziaatribuída ao afeto, deixou de ser sua finalidade precípua9 .

Com o desenvolvimento da estrutura familiar nosmoldes hoje apresentados, já se pode afirmar com convicção,consoante ensinamento de Rodrigo Pereira da Cunha, que“o afeto é um elemento essencial de todo e qualquer núcleofamiliar, inerente a qualquer relacionamento conjugal ouparental”10 , posto que deve ser sempre relevado quando acontrovérsia se refere às relações familiares.

A sociedade vem-se renovando diariamente e comisso restauram-se os valores. Desse modo, já é possível,atualmente, observar o afeto como valor jurídico, uma vezque muitos tribunais brasileiros, seguindo o pensamentodoutrinário e acompanhando a evolução natural dasociedade, procuram aproximar as decisões queinternalizam tal princípio.

Consoante recente julgado do magistrado MárioRomano Maggioni, de Capão Canoa, Rio Grande do Sul,

“Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda eeducação dos filhos (art. 22, da Lei nº 8069/1990). Aeducação abrange não somente a escolaridade, mastambém a convivência familiar, o afeto, amor, carinho, ir aoparque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecerparadigmas, criar condições para que a presença do paiajude no desenvolvimento da criança”11 .

9 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 180.10 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 18011 Trecho da Sentença do Processo nº .1.030.012.032-0, Revista ConsultorJurídico

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Verifica-se que o “endeusamento” da perícia médicajá se encontra em fase de superação, uma vez que ajurisprudência contemporânea de alguns tribunais já tem sefirmado no sentido de relevar a paternidade socioafetiva emprejuízo da paternidade biológica, como pode ser percebidodo seguinte julgado:

EMENTA: AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DEPATERNIDADE - EXAME DE DNA - PATERNIDADE SÓCIOAFETIVA. - Apesar do resultado negativo do exame de DNA,deve ser mantido o assento de PATERNIDADE no registrode nascimento, tendo em vista o caráter sócio afetivo darelação que perdurou por aproximadamente vinte anos,como se pai e filha fossem. APELAÇÃO CÍVEL N°1.0105.02.060668-4/001 – Publicação 05/07/2007 -COMARCA DE GOVERNADOR VALADARES -APELANTE(S): O.B.C. - APELADO(A)(S): C.S.C.REPRESENTADO(A)(S) P/ MÃE M.D.S.P.O.C.S.P. -RELATORA: EXMª. SRª. DESª. TERESA CRISTINA DACUNHA PEIXOTO. 12

Tem-se, portanto, que se a paternidade biológicademonstra-se insatisfatória na determinação da filiação, apaternidade socioafetiva nasce umbilicalmente ligada àimagem atual de família, ou seja, de família socioafetiva,integrada pelo amor, respeito mútuo, convivência, nãopodendo os julgadores desconhecer tais aspectos nomomento da prolação da decisão. Desta forma é que se

12 _______. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS.Disponível em <https://www.tjmg.gov.br>. Acesso em 22 jan. 2009.

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implementará a verdadeira proteção conferida à família eprevista pela Constituição Federal.

Decisões proferidas por tribunais da região Sul eSudeste do Brasil já proclamam a importância do afeto emdecisões que interfiram ou mesmo decidam vidas decrianças e adolescentes, como é o caso de ações de guarda,tutela, negatória de paternidade ou maternidade, bem comoações de reparação de dano moral em face do abandonoafetivo do pai, como se exemplifica:

EMENTA: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE.APELAÇÃO CÍVEL. CARACTERIZAÇÃO DA FILIAÇÃOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA. Sendo a filiação um estadosocial, comprovada a posse do estado de filho, não sejustifica a anulação de registro de nascimento. Existênciade vínculo afetivo entre as partes. Contexto dos autosdemonstra a existência de relação parental, e análise dasdemais provas é desfavorável à tese do demandante.NEGADO PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº70021847603, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça doRS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 19/12/2007).13

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃOCÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAMEDE DNA. ANULAÇÃO DO REGISTRO.POSSIBILIDADE.1- Nas ações de investigação de paternidade, o critériosócio-afetivo deve se sobrepor ao biológico, pois há outrosvalores a serem preservados, tais como o bem estaremocional da criança.

13 _______. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL.Disponível em <https://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 22 jan. 2009.

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2- A teor do art. 1.604 do Código Civil, há que se apurar aexistência, ou não, de vício de consentimento no ato deperfilhação que se pretende desconstituir.3 - A irrevogabilidade surge em virtude de se tratar de direitoindisponível, desrespeitado este direito também restarãoviolados, in thesi, os princípios fundamentais da dignidadeda pessoa humana, pois os pais, biológicos ou assumidoscomo tal, não podem dispor ao seu bel prazer do nome e dadignidade da criança.4 - No que se refere à preservação dos interesses do menor,a declaração da inexistência de paternidade não terá ocondão de prejudicá-los, pois poderá buscar a verdade realem ação investigatória de paternidade.5 - Recurso provido. (20060510093889APC, Relator MARIO-ZAM BELMIRO, 3ª Turma Cível, julgado em 13/02/2008, DJ08/04/2008 p. 79). 14

Já não se pode ignorar que o afeto é um elementoessencial nas relações que envolvem a família e deimportância em particular para a pessoa envolvida, deixandode fazer parte somente da vida pessoal dos envolvidos epassando a ingressar no mundo jurídico como atesta MariaBerenice Dias (2006, p.61): “[...] amplo é o espectro do afeto,mola propulsora do mundo e que fatalmente acaba por gerarconseqüências que necessitam se integrar ao sistemanormativo legal”15 .

14 _______. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL ETERRITÓRIOS. Disponível em <https://www.tjdf.gov.br>. Acesso em 13jan. 2009.15 DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 61.

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Ademais, é uma tendência atual a consideração doafeto como valor jurídico pois sua presença é substancialpara que o operador do direito possa decidir uma causa deforma mais equânime, haja vista as mudançasexperimentadas pela entidade familiar, atentando para queos costumes inerentes a ela também se modificaram,permitindo-se uma aproximação maior dos relacionamentoscom a redução significativa do número de filhos, admitindo-se uma maior amplitude do afeto, estreitando-se as relaçõesfamiliares e rompendo com a família tradicional, baseadana autoridade paterna.

Acrescente-se a isto as transformações ocorridas naprópria família, que antes era essencialmente patriarcal eagora recepciona outras formas, como a constituída pelaunião estável, concubinato, monoparentais, refletindo-se aimportância igualitária de cada indivíduo como membro dafamília, valorizando-se assim cada integrante com seusinteresses e anseios.

A compreensão do afeto como valor jurídico pode sermotivada também em virtude da Constituição Federal terelegido valores sociais importantes como princípiosfundamentais, daí figurando a dignidade da pessoa humanacomo consequência de toda decisão advinda do Judiciário,que deve viabilizar o alcance desse princípio como formade proferir decisões mais justas e não meramente formais,positivistas.

Finalmente, não é que o ordenamento jurídico, adoutrina e a jurisprudência imponham o amor, mas já sepautam no sentido de apreciá-lo como valor nas decisões

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que envolvam “família”, uma vez que a entidade familiarmoderna perdeu características antigas que somentevalorizavam o homem.

Na nova versão familiar, que tem como sustentáculoo amor, enquanto amor tiver naquela família, só se admitemcomo justificação da mesma sentimentos como o afeto,respeito, paz e liberdade do indivíduo na busca da felicidadeplena, como muito bem se manifestou Luiz Edson Fachin noconto intitulado “A Filha das Estrelas em busca do artigoperdido”: “[...] não pode mais caber o esquecimento do afetono ‘leasing’ da ‘coisificação’ e da indiferença; não pode termais lugar o ‘upgrade’ plutocrático dos bens e coisas, e sim,deve haver a minimalização do patrimônio e maximizaçãoda afetividade” 16 .

2.2 Verdade biológica: verdade real de filiação?

Não há como negar a importância do exame de DNApara assegurar com quase 100% (cem por cento) de certezaa imputação ou não de uma paternidade ou maternidade aalguém. Não se pode negar que em virtude da nova feiçãoda família brasileira, com a liberalidade dos relacionamentos,a liberdade de escolha, enfim, com a democratização dafamília, as mudanças foram inevitáveis, porém, uma situaçãopermanece inalterada; o direito da pessoa de conhecer seuverdadeiro pai, traduzindo-se na realização de um direitofundamental que é o da dignidade da pessoa humana.

16 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 372

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Ocorre que, como em todo processo inovador, oexame de DNA surgiu como referencial único em apontar overdadeiro pai ou mãe biológicos, afinal, a possibilidade deerro era minúscula e ainda podia ser refeito, com o objetivode se constituir ou desconstituir maternidade ou paternidade.

A Justiça passou a determinar suas sentenças e seusacórdãos com base no referido exame, em face darelevância da prova.

Contudo, muitos estudiosos do Direito, diante dasdemandas que lhes eram apresentadas, insurgiam-se contraessa “biologização” da Justiça. Era necessário um estudomais aprofundado, sendo imperativo escrever e debater asidéias, surgindo daí a ideologia do afeto como valor de pesonuma decisão, sejam monocráticas ou advindas dostribunais.

O exame de DNA constitui importante instrumento emse estabelecer a paternidade/maternidade biológicos,porém, não se pode negar a existência da filiaçãosocioafetiva, aquela edificada no dia a dia, em momentossingulares para a vida dos “filhos do amor”. Faz-se imperiosoque aqueles que operam com o Direito caminhem mais alémna busca da identificação do verdadeiro pai, pois, muitasvezes, o pai biológico não alimenta nenhum vínculosocioafetivo com o filho, foi apenas um procriador que cedeumaterial genético, às vezes em uma só relação sexual.

No mesmo sentido, não há como negar que a verdadebiológica nem sempre corresponde à verdade real dafiliação. Assim, é que se faz necessário traçar uma dimensãomaior na busca da verdadeira filiação, numa proporção que

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alcance aspectos sociais, culturais e afetivos oriundos dafiliação efetivamente construída, independentemente doslaços sanguíneos, como bem ressaltou Gerard Cornu (apud,Netto Lôbo):

A verdade biológica não reina absoluta sobre o direitoda filiação, porque esta incorpora, necessariamente, umconjunto de outros interesses e valores. Para ele, confundirverdade real da filiação como verdade biológica, é umentendimento ‘reducionista, cego, demagógico edecepcionante’, engendrando ‘um direito biológico,totalitário, além de um pseudo-direito subjetivo ilusório enefasto’. ” 17 .

Não obstante a contribuição da ciência naidentificação quase absoluta do pai ou mãe biológicos,atestado através do exame de pareamento genético, aciência jurídica não pode quedar-se à análise puramentebiológica. É necessária a análise do papel social do pai emãe, verificando aspectos relevantes como a convivênciafamiliar e a afetividade, construídas em razão do convívio,pois afinal, “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afetoe de solidariedade derivam da convivência familiar”18 .

Dessa forma, cabe aos operadores do direitorepensar o verdadeiro significado da paternidade,observando que nem toda paternidade socioafetiva éresultado da consagüinidade e, assim sendo, aplicar-se-á odireito de forma mais justa, atendendo sobremaneira ao

17 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 114918 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 141

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princípio da dignidade da pessoa humana, que no dizer deAna Carolina Brochado Teixeira “se constitui no núcleofundamental do sistema brasileiro dos direitos fundamentais,significa que o ser humano é um valor em si mesmo, e não omeio para alcançar outros fins” 19 .

3. Espécies de filiação socioafetiva

A filiação socioafetiva é aquela que tem comoestrutura basilar o afeto, o carinho, independentemente daorigem do filho.

Segundo a doutrina pode ser decorrente da adoçãojudicial e da filiação eudemonista (reconhecimento voluntárioou judicial da maternidade ou paternidade) e ainda daadoção à brasileira.

3.1 Filiação afetiva na adoção

Consoante dispõe o Estatuto da Criança e doAdolescente, qualquer pessoa com plena capacidade,independentemente do seu estado civil, pode adotar. Dessemodo, na visão de Maria Berenice Dias, “pode adotar aqueleque tem condições de oferecer sustento, educação e afetoa uma criança. O seu bem-estar e o seu interesse significamos elos fundamentais da filiação adotiva” 20 .

19 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridadeparental. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 61.20 DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 185..

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A adoção é um evento jurídico e depende de um atode vontade dos interessados em promovê-la. Destarte, aadoção é judicial, onde um órgão eleito pela Lei apreciaráos elementos trazidos aos autos culminando com a adoçãoou não daquele a que se pretende. Este tipo de filiaçãoremonta aos tempos antigos, a respeito disso ponderouEduardo de Oliveira Leite (apud WELTER):

Este instituto não foi criado recentemente, constandodo art. 185 do Código de Hamurabi (1728-1686 a.C), pois averdade sócio afetiva ‘é tão real como o que une o pai aoseu filho de sangue, e os efeitos que do primeiro emergemsão tão reais como os que decorrem do segundo’21 .

3.2 Filiação sociológica do filho de criação

Verifica-se também a filiação afetiva nos casos emque uma família cria uma criança ou adolescente semnenhum vínculo biológico, sem registro no cartório, mas ofaz por mera liberalidade ou por circunstâncias denecessidades.

Muito comum era este tipo de filiação nas cidadesdo interior, onde muitas vezes a criança tinha os adultos queo criavam como “pais de criação”, em razão do vínculo afetivoconstituídos entre os mesmos. Não obstante à existência deafetividade, de carinho e da relação patrimonial que seestabelecia entre a criança e/ou adolescente e a família que

21 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica esocioafetiva. São Paulo: RT, 2003, p. 148.

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geralmente o criava como “filho”, uma vez que este vivia sobas expensas daquela, mesmo assim, este tipo de filiaçãonão é reconhecida pelo nosso ordenamento jurídico e nãogera efeitos jurídicos (parentesco) e patrimoniais(sucessão). Nesse sentido manifesta-se Belmiro PedroWelter, citando dois julgados do Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul:

a) No sistema jurídico brasileiro não existe a adoçãode fato, e o filho de criação não pode ser tido como adotadoou equiparado aos fins biológicos para fins legais, tais comoo direito à herança (TJRS –AC 96038091 – 8ª C.Cív – Rel.Sérgio Gischkow Pereira – J. 25.04.1996). b) A despeito daausência de regulamentação em nosso direito quanto àpaternidade sociológica, a partir dos princípiosconstitucionais de proteção à criança (art. 227 da CF), assimcomo da doutrina integral de proteção, consagrada na Lei8.069/1990 (especialmente arts. 4º e 6º), é possível extrairos fundamentos que, em nosso direito, conduzem aoreconhecimento da paternidade sócio-afetiva, relevada pelaposse do estado de filho, como geradora de efeitos jurídicoscapazes de definir a filiação (TJRS –AC 599296654 – 7ªC.Cív – Rel. Luiz Felipe Brasil Santos – DOJ 1.716, em18.08.1999) 22 .

Dessa forma, é que se constata a existência dafiliação afetiva quando alguém, por opção própria, educauma criança, acolhendo-a no seu lar, sendo a relação havidaentre eles consolidada na afetividade e no amor.

22 WELTER, Belmiro Pedro. Igualdade entre as filiações biológica esocioafetiva. São Paulo: RT, 2003, p. 149.

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3.3 Filiação Eudemonista

Trata-se dos casos em que pessoas comparecemperante um Cartório de Registro Civil e de forma espontâneasolicitam registro de uma pessoa como seu filho ou filha,não necessitando de constatação genética, estabelecendo-se aí o estado de filho afetivo, sendo irrelevante se o filho éou não biológico, instituindo-se a partir do registro direitosatinentes à filiação, como o direito ao nome, à personalidade,ao parentesco, bem como direitos patrimoniais.

A filiação eudemonista perfilha-se nas relaçõesafetivas, identificadas no amor, na solidariedade, naigualdade, na responsabilidade mútua, perdendo espaço dehierarquia e ganhando contornos de democratização.Seguindo esta linha de raciocínio, Maria Berenice Diasafirma:

Surgiu um novo nome para essa nova tendência deidentificar a família pelo seu envolvimento afetivo: famíliaeudemonista, que busca a felicidade individual vivendo umprocesso de emancipação de seus membros. Apossibilidade de buscar formas de realização pessoal egratificação profissional e a maneira que as pessoasencontram de viver, convertendo-se em seres socialmenteúteis, pois ninguém mais deseja e ninguém mais pode ficarconfinado à mesa familiar. 23

Assim sendo, é que constatamos a existência dafiliação afetiva quando alguém, por opção própria, educa

23 DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 45.

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uma criança, acolhendo-a no seu lar, sendo a relação havidaentre eles consolidada na afetividade e no amor.

3.4 Filiação socioafetiva na adoção à brasileira

Questão sensível esta que alude à “adoção àbrasileira”, pois nela se verifica que uma pessoaconscientemente faz falsa declaração de maternidade epaternidade de criança concebida de outra mulher, semobservar as regras legais para adoção. Como lembra RolfMadaleno:

É a posse do estado de filho, exteriorizada pela livree desejada assunção do papel parental, em uma adoçãonascida dos fatos e que se convencionou chamar de‘verdade sociológica ou de adoção à brasileira’ quando háo prévio registro de filho de outrem por quem não é o seudescendente biológico. 24

Na verdade, os declarantes são motivados porsentimentos nobres, com a intenção de fazer com que aquelacriança comece a fazer parte daquela família. Embora talconduta não seja adequada, sendo contrária à legislação,por não atender as condições nela especificadas, asociedade não rechaça tal conduta, mas a abraça, comoressalta Paulo Luiz Netto Lôbo:

Nessas hipóteses, ainda que de forma ilegal, atende-se ao mandamento contido no art. 227 da constituição, de

24 MADALENO, Rolf. Paternidade Alimentar. Revista Brasileira de Direitode Família. Porto Alegre: SÍNTESE, IBDFAM, v. 8, n. 37, ago./set., 2006,p. 142

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ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar àcriança o direito ‘à convivência familiar’, com ‘absolutaprioridade’, devendo tal circunstância ser levada em contapelo aplicador, ante o conflito entre valores normativos (deum lado o atendimento à regra matriz de prioridade daconvivência familiar, de outro lado os procedimentos legaispara que tal se dê, que não foram atendidos). 25

Assim sendo, é que, na adoção à brasileira, osparâmetros de aferição da “verdade” devem se despir dosolhos biológicos, do caráter eminentemente genético e lançarolhos de afetividade e de laços familiais na observaçãodaquele ato registral falso, como acentua João BaptistaVillela (apud, NETTO LÔBO): “a verdade e falsidade noregistro civil e na biologia têm parâmetros diferentes”26 ,argumentando que um registro será sempre verdadeiroquando estiver imbricalmente ligado a um fato jurídico quelhe deu origem e será falso quando não houver esse elo” ecomplementa: “um cidadão que compareceespontaneamente a um cartório e registra, como seu filho,uma vida nova que veio ao mundo, não necessita qualquercomprovação genética para ter sua declaração admitida.”Ressalte-se que em certos casos de adoção à brasileira háa presunção da existência de atitudes eivadas de vícios quee a torna, do ponto de vista jurídico, inapropriada, é o caso,por exemplo, quando a obtenção de uma criança se dá por

25 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Direito ao estado de filiação e Direito àorigem genética. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre:SÍNTESE, IBDFAM, v. 5, n. 19, ago./set., 2003, p. 14026 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 140.

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meio fraudulento, sem o conhecimento dos pais biológicos,dando a esse tipo de adoção um caráter de ilegalidade,mesmo que haja afetividade familiar.

Ademais, quando se estabelece o estado de filhoafetivo, passa-se a exteriorizar uma condição de filho, comoexplicita Orlando Gomes (apud, WELTER ): “ostentar umestado de filho é ‘ter de fato o título correspondente, desfrutaras vantagens a ele ligadas e suportar seus encargos. Épassar a ser tratado como filho’. 27

Por fim, não obstante a ausência de regulamentaçãoclara em nosso ordenamento, em relação à filiaçãosociológica, é possível alcançá-la alicerçando-se emprincípios constitucionais como o da proteção à criança (art.227, CF) e na doutrina da integral proteção à criança,consubstanciada em especial nos arts. 4º e 6º do Estatutoda Criança e do Adolescente, conduzindo à relevância dapaternidade socioafetiva, revelada pela posse do estado defilho, como se extrai do julgado do Tribunal de Justiça do RioGrande do Sul :

APELAÇÃO-ADOÇÃO – Estando a criança noconvívio do casal adotante há mais de 9 anos, já tendo comeles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebívelretirá-la daqueles que reconhece como pais, mormentequando os pais biológicos demonstraram por ela totaldesinteresse. Evidenciado que o vínculo afetivo da criança,a esta altura da vida, encontra-se bem definido na pessoados apelados, deve-se prestigiar a paternidade socioafetiva

27 WELTER, Belmiro Pedro. Op. cit., p. 151.

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sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entreambas, assim apontar o superior interesse da criança. (TJRS–AC 70003110574 – 7ª C.Cív – Rel. Des. Luiz Felipe BrasilSantos – J. 14.11.2001). 28

3.5 Filiação derivada de inseminação artificialheteróloga

O planejamento familiar é livre, inclusive confirmadopor ditame constitucional. Acontece que muitas vezes anatureza retira da pessoa a prerrogativa de ter filhos,podendo neste caso optar-se pela adoção ou pelainseminação artificial heteróloga.

Por esta técnica, utiliza-se material genético de outrohomem, no caso sêmen, em regra doado por pessoaanônima, com a finalidade de fecundação do óvulo da mulher,verificando-se a inseminação artificial heteróloga, previstano art. 1597, “V” do Código Civil que diz: “Presumem-seconcebidos na constância do casamento os filhos: V –havidos por inseminação artificial heteróloga, desde quetenha prévia autorização do marido”.

Nesse contexto surgiram os “bancos de sêmen” como objetivo de conservação no tempo do material genéticomasculino.

28 _______. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL.Disponível em <https://www.tj.rs.gov.br>. Acesso em 12 jan. 2009.

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4. Conceito de estado de filho afetivo

Exibir um estado de filho é ter de fato o título, édesfrutar da exteriorização da condição de filho, é,invertidamente falando, quando uma pessoa assume o papelde filho perante outros que assumem o papel de pais,independentemente do liame biológico.

4.1 Elementos que caracterizam o estado de filho afetivo(posse de estado de filho)

O estado de filho é um conjunto de circunstânciascapazes de exteriorizar para alguém sua condição de filholegítimo de uma pessoa ou de um casal que o cria e o educa.Carvalho Santos (apud BOSCARO,) diz que ”é um conjuntode fatos que estabelecem por presunção, o reconhecimentoda filiação do filho pela família à qual pretende pertencer”29 .Incorre no mesmo pensamento Orlando Gomes, quandoafirma que ostentar um estado de filho é “ter de fato o títulocorrespondente, desfrutar as vantagens a ele ligadas esuportar seus encargos. É passar a ser tratado como filho” 30 .

Trata-se na verdade da exteriorização do estado defilho, o qual, na contramão do afeto, tem-se o pai ou os pais.O reconhecimento do estado de filho é de vital importânciapara o estabelecimento da paternidade, como muito bem

29 BOSCARO, Márcio Antônio. Direito de filiação.. São Paulo: RT, 2002,p. 141.30 GOMES, Orlando. Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 1968,p. 220-221.

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se manifesta Luiz Edson Fachin, “apresentando-se nouniverso dos fatos, à posse de estado de filho liga-se àfinalidade de trazer para o mundo jurídico uma verdadesocial. Aproxima-se, assim, a regra jurídica da realidade” 31

Seguindo o mesmo raciocínio afirma Belmiro PedroWelter que “no reconhecimento voluntário ou judicial dapaternidade ou da maternidade é estabelecido o estado defilho afetivo (posse de estado de filho), não importando sebiológico ou não”. Deste modo, a noção da posse de estadode filho é aquilatada quando se busca uma vinculação entrea verdade biológica e a socioafetiva, pois, “em matéria defiliação, a decisão judicial deve estar mais próxima daverdade biológica ou sociológica, afastando-se, emdecorrência, cada vez mais da verdade meramente formal,ficção jurídica”. 32

Desse modo, é somente com a exaltação legislativada noção de posse de estado de filho que iremos alcançara plenitude da igualdade entre as diversas espécies defiliação. Com o objetivo de aclarar os vínculos socioafetivosperante a sociedade, porque o estado de filho é irrenunciávele imprescritível, estabeleceram-se elementosidentificadores, tais como o nome, o tratamento e a fama.Assim sendo, apesar do Código Civil Brasileiro silenciarsobre as hipóteses em que se verifica o estado de filho, adoutrina colacionou elementos de salutar importância paraidentificação dos mesmos. Na mesma direção, posiciona-se Paulo Luiz Netto Lôbo:

31 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 15732 WELTER, Belmiro Pedro. Op. cit., p. 153-155.

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As presunções ‘veementes’ são verificadas em cadacaso, dispensando-se outras provas da situação de fato. OCódigo brasileiro não indica, sequer exemplificadamente,as espécies de presunção, ou a duração, o que nos parecea orientação melhor. Por seu turno, o Código Civil francês,art.311-2, na atual redação, apresenta as seguintes espéciesnão taxativas de presunção de estado de filiação, não sendonecessária a reunião delas:

a) quando o indivíduo porta o nome de seus pais;b) quando os pais o tratam como seu filho, e este,

àqueles como seus pais;c) quando os pais provêem sua educação e seu

sustento;d) quando ele é assim reconhecido pela sociedade

e pela família;e) quando a autoridade pública o considere como tal”. 33

Destarte, cabe salientar a importância atribuída acada elemento, por exemplo: a) o nome, que se dá quandoo indivíduo leva o nome daqueles a quem considera seusgenitores; b) o tratamento, que equivale ao receber de formacontinuada o tratamento de filho, tratando também a estescomo pais; c) a fama, é ser reconhecido pelos pais e pelasociedade como filho, é a notoriedade da relação paterno-filial.

Frise-se que o estado de filho afetivo é umaagregação de valor, no caso, o valor afetivo, tão característicoe corriqueiro às relações de filiação consubstanciadas no

33 NETTO LÔBO, Paulo Luiz. Op. cit., p. 138-139.

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amor. Assim, é que nestas relações a fundamentação maioré a construção de laços emocionais, edificados nocrescimento social e cultural do indivíduo, como sustentaBelmiro Pedro Welter:

É por isso que se deve ter muito cuidado ao falar emDireito de Família, especialmente quanto à filiação, porque‘atinge a pessoa nas fímbrias do seu coração e mexe com oque ela tem de mais íntimo e mais precioso em sua vida. Éum terreno que devemos sempre percorrer comextraordinário cuidado, como quem estivesse mexendo emcristais, para não criar fraturas’. 34

Finalmente pode-se dizer que a posse de estado defilho é uma maneira pela qual se pretendeu abrigar aimportância da verdade socioafetiva da filiação,transcendendo os limites ditados pela engenharia genética.

Afigura-se, assim, a possibilidade de o julgador,diante de um caso concreto, compreender a complexidadee ramificações da filiação socioafetiva estabelecida,possibilitando uma decisão judicial que declare a verdadeirafiliação socioafetiva, desvinculada de aparências, ficções epresunções, acolhendo verdades além da autoria genéticada descendência, pois “pai também é aquele que se revelano cotidiano, de forma sólida e duradoura” 35

34 WELTER, Belmiro Pedro. Op. cit., p. 154.35 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 168.

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4.2 O direito do filho afetivo em investigar a maternidadee/ou paternidade biológica

Embora a Constituição Federal tenha assegurado aigualdade entre as filiações biológica e socioafetiva, quandoenuncia no § 6º do artigo 227 que “os filhos havidos ou nãoda relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmosdireitos e qualificações, proibidas quaisquer designaçõesdiscriminatórias relativas à filiação”, vê-se que não seconseguiu transpor a conflituosa busca da verdadeirapaternidade.

Enquanto algumas ciências procuram esclarecer aimportância da paternidade através dos liamessocioemocionais construídos na busca de apontar a filiaçãoapresentada, as ciências jurídicas ainda perfilham seuscaminhos na procura do parentesco, em exames depareamento genético, olvidando os prejuízos que umadecisão mal interpretada pode acarretar na preservação dosvínculos da filiação.

Muitos de nossos tribunais, quando chamados adecidir sobre a determinação da paternidade, ainda acolhemo critério biológico como determinante para incluir ou excluiruma paternidade, argumentando que deve ser estabelecidaa realidade biológica em face do exame de DNA.

Consoante Leila Maria Torraca de Brito aqueles quecompartilham essa visão consideram possível adesconstituição do vínculo parental em virtude de o pairegistral ter feito falsa declaração, ocorrendo erroevidenciado de forma induvidosa através do exame de DNA.

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Há grande controvérsia nas decisões proferidaspelos tribunais brasileiros. Destarte, em ações que versamsobre a desconstituição da paternidade há os que sãofavoráveis de forma induvidosa ao exame, como Leila MariaTorraca de Brito:

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – EXAMEDE DNA – PROCEDÊNCIA DO PEDIDO – REGISTRO CIVILDE NASCIMENTO – RETIFICAÇÃO.

Ação negatória de paternidade. Prova irrefutável daveracidade da negativa de paternidade. Cancelamento deregistro de nascimento. O sistema de registro públicoadotado no Brasil é regido pelo princípio da veracidade, peloque todos os assentos efetivados nos cartórios do registrocivil das pessoas naturais devem ser fiéis à realidade fática.No caso dos registros de nascimento, os assentos devemretratar a realidade biológica. Prova inquestionável dafalsidade do registro de nascimento da menor. Soluçãojurídica sustentada por diversos precedentes desta Corte deJustiça. Improvimento do recurso. (TJRJ, Apelação Cível nº2005.001.17670, 17ª C.Cív., Des. Edson Vasconcelos, J.08.09.2005)

AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – AÇÃO DENULIDADE DE REGISTRO DE FILHO – EXAME DE DNANEGATIVO – INSCRIÇÃO NO REGISTRO CIVIL –IRRELEVÂNCIA

Ação negatória de paternidade. Exclusão dapaternidade. Exame de DNA. Irrelevância doreconhecimento da paternidade. Excluída a paternidade, porvia do exame de DNA, não tem qualquer relevo o fato de ter

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o suposto pai registrado como seu filho o autor. Impõe-se aconcessão da gratuidade de justiça ao réu, em face daafirmação de pobreza feita nos autos. Decisão parcialmentereformada. (TJRJ, apelação Cível nº 2003.001.33357, 4ªC.Cív., Des. Jair Pontes de Almeida, J. 24.08.2004). 36

E há os que se manifestam contrário ao exame deDNA, relevando outros fatores consubstanciados no convíviosocial, no estabelecimento da filiação socioafetiva, comoelenca Leila Maria Torraca:

APELAÇÃO CÍVEL – FAMÍLIA – NEGATÓRIA DEPATERNIDADE

Em que pese o exame pericial (DNA) seja conclusivoquanto à exclusão da paternidade, mister ressaltar que osvínculos parentais se definem muito mais pela verdade socialdo que pela realidade biológica. Para alcançar o pleitoanulatório, imperioso a demonstração de vício deconsentimento, o que não se verifica na hipótese.Prelimeinares rejeitadas. Apelação provida em parte. (TJRS,Apelação cível nº 70012438511, Des. Walda Maria MeloPierrô, J. 15.12.2005)

APELAÇÃO CÍVEL - NEGATÓRIA DEPATERNIDADE – ADOÇÃO À BRASILEIRA –PATERNIDADE SOCIOAFETIVA

Ainda que o exame de DNA aponte pela exclusão dapaternidade do pai registral, fato de resto, confirmado pelopróprio réu/filho, mantêm-se a improcedência da açãonegatória de paternidade, se configurada nos autos a

36 BRITO, Leila Maria Torraca de. Op. cit., p. 11

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adoção à brasileira e a paternidade socioafetiva.Precedentes. Apelação desprovida.( TJRS, Apelação cívelnº 70014089635, rel José ataíde siqueira Trindade, J.16.03.2006). 37

Tema de tantas polêmicas em que as verdades sealicerçam, devem-se estabelecer critérios de aproximaçãodos vínculos da parentalidade. Cabe ao aplicador do direitoo sopesamento dos fatos que lhe são levados, decidindosempre em favor do melhor interesse da criança. Assim, éque se deve analisar se houve a consolidação dos elos deestado de filho afetivo, pois esse não pode ser destruído oufraturado diante de uma prova genética, devendo a decisãoobservar os laços afetivos construídos, na busca de umadecisão justa.

Quando ausente a filiação afetiva, no dizer de MariaBerenice Dias “torna-se imperioso prestigiar a verdadebiológica” 38 .

Consoante dispõe o art. 27 do Estatuto da Criança edo Adolescente, “o reconhecimento do estado de filiação édireito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendoser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, semqualquer restrição”. Assim é, que cabe a análise atenta dessedireito de investigar sua origem biológica, considerando asconsequências advindas deste ato.

Não obstante uma pessoa ter pai e mãe registral,tomando conhecimento de que eles não são seus pais

37 BRITO, Leila Maria Torraca de. Op. cit., p. 13-1438 DIAS, Maria Berenice. Op. cit., p. 320

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biológicos, pode, a qualquer tempo, ingressar com ação depaternidade contra seus supostos pais biológicos no intuitode descobrir suas origens.

Saliente-se que o direito do filho ao reconhecimentode quem são seus pais biológicos não implica napreponderância da filiação biológica em face da filiaçãosocioafetiva, mormente porque o direito de investigar aorigem genética não implica na desconstituição dapaternidade dos pais constantes no registro de nascimento,os socioafetivos.

Ademais, o reconhecimento da origem genética podetambém auxiliar casos somente elucidados através dacompatibilidade sangüínea, como ocorre com a leucemia etransplante de órgãos.

Ressalte-se que a referida demanda versa sobre oestado da pessoa, que emana do direito à personalidade,não podendo o julgador arvorar-se em desconstituir apaternidade socioafetiva construída entre a pessoa e afamília registral, tomando por base apenas o exame de DNA.

É necessário aprofundar mais a questão, devendoprevalecer a decisão que melhor tutele a dignidade dapessoa humana, pois o histórico de vida e condição socialda pessoa que foi registrada de forma irregular (adoção àbrasileira), não pode ser “apagado”, cedendo diante daprova de pareamento genético. Se dessa maneira agir oaplicador do direito, sob nenhuma forma estará realizandoa justiça, pois, quando se analisam casos através de critériosmeramente formais, deixa-se de relevar aspectosimportantes, como a história de vida pautada por laços de

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afetividade, carinho, desvelo e educação.Ademais, em relação à adoção à brasileira, já toma

corpo em nossos tribunais a ideia de que ela é irrevogável,pois não seria concebível que uma criança ou adolescente,que não participou em nenhum momento do ato praticadopelos pais, que de livre e espontânea vontade a registraramcomo filho(a), venha a ser prejudicada social eemocionalmente, geralmente por fatores de cunhopatrimonial.

Cabe ao operador do direito não se deixar manipularpor pretensões descabidas que lhe são apresentadas. Citoo caso de pai que registra como seu o filho de suacompanheira. Durante a união estabelecida entre o casal, acriança desenvolve-se e tem aquele homem como seu pai,sendo todos conhecedores de tal fato, verificando-se entreos mesmos relação de afeto, carinho e atenção. Com opassar dos anos, a união do casal se desfaz e ocompanheiro, com o intuito de não pagar pensão alimentíciaao filho, ingressa com ação negatória de paternidade,cumulada com anulação de registro.

Ocorre que, muitas vezes, a própria mãe, conscientede que o filho registrado pelo companheiro não é filhobiológico do mesmo, concorda com o pedido de exclusãodo autor da paternidade que lhe é atribuída, acatando omagistrado muitas vezes o “acordo” celebrado.

E como fica a criança ou adolescente no meio dissotudo? A criança não solicitou que lhe registrassem como filho,mas teve durante muito tempo uma pessoa a que chamavade “pai”, que lhe desvelava amor, carinho e participava de

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momentos importantes da sua vida. De repente, por umadecisão judicial, acorda e vê que não é mais filho do fulano,constando na sua certidão de nascimento as estrelinhas,citadas no conto de Luiz Edson Fachin, em “A filha dasestrelas em busca do artigo perdido”. 39

No mesmo sentido, excluem-se os nomes dos avóspaternos, o parentesco com a família paterna, enfim, a maiorprejudicada é a criança.

Deste modo, se foi o próprio pai registral quecompareceu ao cartório e procedeu ao registro do filho, nãopode anulá-lo com o objetivo de beneficiar-se em detrimentodaquele que não participou do ato, sendo agora ameaçadode perder sua identidade, sua família, seu sobrenome, suaparentalidade, além de todo prejuízo moral e psicológico.

Ora, não pode a Justiça albergar esse tipo deconduta, porque o reconhecimento espontâneo dapaternidade (adoção simulada ou à brasileira), uma vezaperfeiçoado, torna-se irretratável, podendo a invalidaçãose dar em virtude apenas de dolo, erro, coação, simulaçãoou fraude. Torna-se imprescindível a análise de direitosessenciais como o da dignidade da pessoa humana, direitoao nome, a uma família, considerando-se sempre o melhorinteresse da criança.

Alguns tribunais têm-se manifestado no sentido deser irretratável o reconhecimento espontâneo da paternidade,como cita Rolf Madaleno:

I – Paternidade. 1. Reconhecimento. Quem, sabendonão ser o pai biológico, registra, como seu, filho de

39 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 369-373

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companheira durante a vigência de união estável, estabeleceuma filiação socioafetiva que produz os mesmos efeitos quea adoção, ato irrevogável. Ação negatória de paternidade eação anulatória do registro do nascimento. O pai registralnão pode interpor ação negatória de paternidade e não temlegitimidade para buscar a anulação do registro denascimento, pois inexiste vício material ou formal a ensejarsua desconstituição. Embargos rejeitados, por maioria.

Ação de anulação de reconhecimento de filhoextramatrimonial. Prevalência da .paternidade socioafetiva.Não ofende a verdade o registro de nascimento que espelhaa paternidade socioafetiva, mesmo que não corresponda apaternidade biológica. Acolheram os embargos.

Negatória de paternidade. Exclusão da paternidade.Exame de DNA. Irrelevância do reconhecimento dapaternidade. Excluída a paternidade, por via do exame deDNA, não tem qualquer relevo o fato de ter o suposto pairegistrado como seu filho o autor. Impõe-se a concessão dagratuidade de justiça ao réu, em face da afirmação depobreza feita nos autos. Decisão parcialmente reformada.(TJRJ, apelação Cível nº 2003.001.33357, 4ª C.Cív., Des.Jair Pontes de Almeida, J. 24.08.2004). 40

Diante do exposto, verifica-se imperioso que o direitobrasileiro acolha o princípio do atendimento do melhorinteresse da criança, uma vez que na Carta Magna inexistequalquer dispositivo que enalteça a filiação de origemgenética em prejuízo da filiação socioafetiva.

40 FACHIN, Luiz Edson. Op. cit., p. 369-373

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5. Conclusão

Durante muito tempo a família manteve-se através doslaços do patriarcalismo e do patrimonialismo, consideradaa família tradicional, na qual as uniões nem sempre seconstituíam pelo amor e pelo afeto, mas por conveniência,por motivos patrimoniais ou políticos e institucionalizadossob o manto do casamento. Neste contexto, a família eraconstituída de pai, mãe e filhos, sob a chefia do pai. Aentidade familiar assim concebida asfixiava a ideologia doafeto que, mergulhada no caráter patrimonial, mascaravasuas dores e quedava-se inerte em aceitar astransformações já vistas àquela época, como os filhos“ilegítimos”, as “amantes” e as “concubinas” que faziam partede muitas realidades, embora de forma hipócrita e à margemda sociedade patriarcal que desejava manter seusinteresses, sufocando, fraturando e até substituindo asligações de afeto.

Com a evolução social, foi preciso descortinar omanto da hipocrisia que encobria a família, superando opatriarcalismo com a aceitação de que para haver famílianão é necessário ter pai, mãe e filhos, afinal existem famíliasformadas somente por um pai ou mãe e filhos (monoparental),havendo também aquelas formadas somente por irmãos(anaparental), mas conjugando afeto, amor e solidariedadena convivência e sobrevivência diárias.

O advento de novas relações familiais, baseadassimplesmente no afeto entre seus entes, não levando emconsideração o elo biológico, fez surgir reflexões quanto ao

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modelo tradicional da família natural. Desta forma, aConstituição Federal de 1988 foi um marco histórico aoigualar os filhos havidos ou não do casamento, proibindoquaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Destarte, muita controvérsia existiu e continuaexistindo quando se trata de sopesar as duas filiações, auma, porque o exame de DNA atesta de forma quase queabsoluta a inclusão ou exclusão de pessoa como pai ou mãebiológicos; a duas, porque se existe a filiação socioafetiva,em que sua essência é constituída na afetividade, naconvivência diária e nos laços de amor, por que considerarsomente o aspecto genético na solução de uma demanda?

A doutrina e a jurisprudência muito avançaram nosentido de demonstrar que a Carta Magna já continha emsua essência diretrizes para a valorização de tão importanteelo que vinculava as famílias, no caso, o afeto. Assim, a CFde 1988 pontificou como direito fundamental a dignidadeda pessoa humana, a qual reflete valores como o direito aonome, à personalidade, à família, não sendo mais possívelque a Justiça permanecesse com o pensamento de que nadaera mais substancial, mais verdadeiro que um exame deDNA. A evolução social está mostrando o contrário, poisnada é mais verdadeiro que relações nascidas, vivenciadase legitimadas no amor, no afeto, no respeito mútuo e nasolidariedade, pois seus laços são bem mais fortes eprofundos que uma prova genética.

Portanto, não se quer de maneira alguma desmerecera importância do exame de pareamento genético na buscade identificar o pai ou mãe biológicos, mas há que se

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acautelar nas situações em que a essa consagüinidadematerna ou paterna não se correlaciona com a funçãoprimordial do verdadeiro pai, o pai do amor.

Diante disso, se é verdade que o avanço científicotornou seguro, prático e convincente a determinação paternaltambém o é que as relações sociais, simultaneamente,desenvolveram-se para demandar uma lógica maiscuidadosa para a solução dos conflitos de gênese parental.

Disso resulta a relativação da filiação biológica emface da filiação socioafetiva, na busca incessante de valoresalçados na dignidade da pessoa humana, que é formasuprema de valorização do indivíduo, pois enquanto houverdignidade, haverá chance de redimensionamento da pessoahumana.

Por fim o desenvolvimento da pesquisa permitiuconcluir que a evolução das formas de família e de filiação,a partir das quais se evidencia mais destacadamente ocaráter de identidade socioafetiva, alterou a consideraçãodo critério biológico como único, até então reinante nadefinição da paternidade e maternidade.

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