35

A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a
Page 2: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

_ A ILHA DE JOYA_

Latitude 28º 05’ 36’’ NLongitude 17º 06’ 35’’ W

Page 3: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

9

CAPÍTULO

UM

Dizem que no dia em que o governador chegou também apareceram os corvos. Todos os pás-saros mais pequenos afastaram -se a voar na

direção do mar, e é por isso que não há aves canoras em Joya. Apenas corvos enormes e rudes. Eu observava -os empoleirados nos telhados como se fossem aves de mau agouro e tentava distingui -los entre os tentilhões e as car-riças que o pai desenhava de memória. Se puxasse muito pela imaginação, quase conseguia ouvi -los cantar.

— Porque é que as aves canoras partiram, pai? — per-guntei.

— Porque podiam, Isabella.— E os lobos? E os veados?O rosto do pai ficou sombrio.— Parece que o mar era melhor do que aquilo de que

fugiam.O pai contava -me então outra história, sobre a rapariga

guerreira Arinta, ou sobre o passado mítico de Joya como ilha flutuante, e recusava -se a dizer mais sobre os lobos e os pássaros do passado. Mas continuei a perguntar,

Page 4: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

10

até que chegou o dia em que descobri as minhas pró-prias respostas.

A manhã em que tudo começou era igual a tantas outras.Acordei na minha cama exígua, com o amanhecer

a começar a brilhar nas paredes de barro do meu quarto. Pairava no ar o cheiro a papas de aveia queimadas. O pai já devia estar a pé há horas, pois levava muito tempo a aquecer ao fogo o pesado tacho de argila. Eu conseguia ouvir a Menina La, a nossa galinha, a arranhar o chão do lado de fora do meu quarto, à procura de migalhas. Ela tinha 13 anos, tal como eu, mas, apesar de para uma pes-soa ainda se ser jovem, para uma galinha é muita idade. As penas dela eram cinzentas, o seu estado de espírito era sombrio e até o nosso gato Pep tinha medo dela.

A minha barriga protestou enquanto me espregui-cei. O Pep estava esparramado sobre as minhas pernas e miou bem alto enquanto me sentei.

— Já acordaste, Isabela? — perguntou o pai, a partir da cozinha.

— Bom dia, pai.— As papas de aveia estão prontas. Um pouco quei-

madas, na verdade…— Já aí vou! — Estiquei as pernas para fora da cama e

alisei o pelo áspero do gato, no sítio onde se desgrenhara durante a noite. — Desculpa, Pep.

Ele ronronou e fechou os seus olhos verdes.Lavei a cara no lavatório junto à janela e pus a lín-

gua de fora em frente ao reflexo no metal polido sobre a cama do Gabo, ajeitando ‑lhe os lençóis, a cada dia mais

Page 5: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

11

empoeirados mas ainda compostos. Junto à almofada dele, arqueava -se a linha de voz: uma cavidade comprida e estreita que o pai nos esculpira pelas paredes acima até ao telhado. Quando encostávamos os lábios lá e sussur-rávamos, transportava as nossas vozes para conseguir-mos falar mesmo quando estávamos um em cada ponta da cama das nossas camas separadas.

Já lá iam três anos. Três anos desde que me sentei lá, com a mão do meu gémeo a arder conforme ele se apaga-va na noite, tão depressa como um fósforo a ser soprado.

Mas ainda conseguia recordá -lo. Era tão fácil como respirar.

Não valia a pena começar o dia a sentir -me triste. Afas-tando aqueles pensamentos da mente, peguei no meu vestido da escola. Era tão grande como fora seis semanas antes. A minha melhor amiga Lupe iria rir -se. «Ainda a mais pequena da sala!», diria.

Entrancei rapidamente o meu cabelo por escovar e es-perei que o pai não reparasse que eu não o desemaranha-ra o verão inteiro. O Pep rebolava -se na cama, mas eu não estava autorizada a fazer -lhe festas com o meu uniforme vestido. A minha professora, a Señora Feliz, estava sem-pre a tirar pelos ruivos do meu vestido com dedos irrita-dos. Puxei a cortina que servia de porta para o meu quarto e cuidadosamente passei por cima da Menina La, que cacarejou quando espalhei o seu montinho de migalhas. Semicerrou os seus olhos enevoados e picou -me nos tor-nozelos, perseguindo -me até à sala principal, onde co-míamos, conversávamos e planeávamos aventuras.

Page 6: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

12

Uma grande taça de papas de aveia enegrecidas encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no meio de um mar de mapas. Havia mais mapas do pai presos às paredes, e agitaram -se quando passei, como se fosse uma brisa falante.

Percorri os mapas com o dedo, tal como fazia to-das as manhãs, a ver como os pigmentos de prata dos rios de Afrik se curvavam com os do Æigto; e como o Æigto se agarrava à curva da Baía da Europa, como uma mão a agarrar outra sobre o mar. Na parede em frente encontrava -se o esboço da costa da Amrica e das suas fortes correntes marítimas, etiquetadas com nomes es-tranhos e prodigiosos: o Círculo Gelado, o Triângulo do Desaparecimento, o Mar Cerúleo. O papel encontrava--se tingido de um belo azul e as correntes estavam real-çadas com fios. O pai usara uma agulha fina como um fio de cabelo para os fazer — dourado para o Cerúleo, preto para o Triângulo, branco para o Círculo Gelado. Mas, para lá da costa oriental, tudo parava. Apenas uma palavra irrompia na brancura.

Incognito. Desconhecido.Eu praticamente sentia a desilusão do pai na tinta há

muito seca do mundo. Correntes desfavoráveis na sua derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a Joya e o pai nunca mais conseguiu atravessar a extensão desconhecida antes da chegada do governador à nossa ilha. O governador Adori fechou os portos e transformou em fronteira a floresta que se estendia de costa a costa en-tre a nossa aldeia de Gromera e o resto da ilha, banindo

Page 7: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

13

para o outro lado quem quer que se opusesse à sua gover-nação. Gromera foi separada do resto de Joya e a floresta foi dotada de picos grossos e grandes sinos para avisar os guardas do governador caso alguém a atravessasse. Nunca ouvi tocar os sinos.

O pai sonhava em preencher os espaços nos seus ma-pas da Amrica, ao passo que o que eu queria, mais do que tudo, era cruzar a fronteira da floresta, embora nun-ca lho tenha dito.

Havia apenas um mapa que mostrava toda a nossa ilha e estava pendurado no gabinete do pai. Eu chamava -lhe «mapa da mãe» porque fora passado de geração em gera-ção na família dela, talvez desde os tempos da Arinta, há um milhar de anos. Sempre pareceu um sinal de que a mãe e o pai estavam destinados um ao outro, o facto de ele ser cartógrafo e de o único bem de família dela ser um mapa.

«Cada um de nós transporta na pele o mapa das nos-sas vidas, na forma como caminhamos, até no modo como crescemos», dizia muitas vezes o pai. «Olha, vês aqui, como o meu sangue não corre azul, no pulso, mas sim preto? A tua mãe sempre disse que era tinta. Sou cartógrafo de alma e coração.»

— Passas -me a caneca, por favor? — A voz do pai fez--me saltar, trazendo -me de volta à sala.

Arrastei uma cadeira até às prateleiras e retirei cuida-dosamente a caneca de lá do alto, pousando -a na mesa junto às papas de aveia. Era verde como a floresta, e espe-cial, porque foi a última coisa que a mãe fez. Usávamo -la apenas no primeiro dia de aulas, em aniversários e em

Page 8: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

14

dias de festa. O pai mantinha -a fora do alcance e lavava -a com extremo cuidado.

Às vezes, eu conseguia lembrar -me da mãe — olhos negros e quase sempre sorridente, a cheirar ao barro pre-to que ela trabalhava, a fazer tachos para os aldeões e pe-ças delicadas para o governador. Ou talvez a imaginasse, como às aves canoras.

— Bom dia, pequenina. — O pai veio a coxear desde a cozinha. Apressei -me a ir pegar na selha de leite e nas chávenas que transportava.

— Não devias andar sem a tua bengala — disse -lhe, franzindo o sobrolho.

O pai partira a perna em jovem, ao saltar do molhe de um porto æigípcio para um barco em movimento e agora usava uma bengala esculpida a partir de um pedaço do barco de pesca do bisavô dele. Era a minha coisa preferida de entre as muitas coisas preferidas da sala. Leve como papel, flu-tuava mesmo na mais leve camada de água, mas, o que era mais miraculoso, brilhava no escuro. O pai disse que era por causa da seiva, mas eu sabia que se tratava de magia.

Apressei -me a arranjar um espaço na mesa, passando as Montanhas Himalai para uma estante.

O pai verteu o leite para a chávena da mãe, depois sentou -se no banco ao pé de mim e sorriu abertamente.

— Escolhe um bolso.Revirei os olhos.— Esquerdo.Ele agitou as suas sobrancelhas como duas lagartas

pretas.

Page 9: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

15

— Resposta correta. — Retirou um frasco pequeno do bolso.

— Mel de pinho! — Desatarraxei a tampa e o cheiro encheu -me as narinas, fazendo -me crescer água na boca. — Obrigada, pai.

— No dia do teu regresso à escola, só podias ter o melhor.

Encolhi os ombros.— É só a escola…— Oh, bem, sendo assim, acho que tenho de comer

isto tudo sozinho… — Pegou no frasco aberto e fez de conta que despejava o mel na boca.

— Não! — Peguei -lhe de novo. — Tens razão, é um dia muito importante. Só fiquei surpreendida por não te-res trazido dois frascos.

O mel era tão bom que mal reparei que as papas de aveia estavam queimadas, mas, quando levantei os olhos, a comida do pai estava intacta. Encontrava -se sentado da-quele modo curvado que significava que refletia. Tinha a mão pousada na chávena de leite e apercebi -me da pulsa-ção no pulso. O seu olhar era distante.

O primeiro dia de escola era sempre difícil para nós.Afastei a minha tigela o mais silenciosamente possí-

vel e empurrei a dele para mais junto da sua mão.— Vemo -nos mais logo, pai.Vendo que não respondia, peguei na minha pasta da

escola e saí de casa, fechando suavemente atrás de mim a porta verde a descascar.

Page 10: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

16

CAPÍTULO

DOIS

A nossa rua estendia -se de forma reta e íngreme até ao Mar Ocidental, e todas as casas foram construí-das de modo semelhante: uma comprida fila de

cabanas de argila com telhados de palha que a Lupe achava que tinham um aspeto amoroso. Já eu achava que uma boa rajada de vento as enviaria a todas aos trambolhões até à água.

Eu, por norma, ia a correr para a praça do mercado, a patinar pela ladeira abaixo, porque os corvos gostavam de voar baixinho e, se corresse, livrava -me deles. Mas na-quele dia optei por passadas rápidas — afinal, eu já es-tava quase no topo da escola. Não me pareceu adequado correr como uma criancinha.

A Masha, que vivia do outro lado da rua, estava parada à sua porta. Acenei, tentando ver para lá dela.

— Estás à procura de alguém? — Sorriu, com a sua cara enrugada a engelhar como papel velho. — O Pablo já saiu. Já sabes que o governador gosta que eles vão tra-balhar antes do amanhecer.

O filho da Masha, o Pablo, nasceu quando ela já era velha, com a barriga a inchar, quando o cabelo já ficava

Page 11: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

17

grisalho e o rosto se enrugava com a idade. A Masha con-siderou aquilo um milagre e o Pablo era milagroso. Eu e o Gabo sempre nos espantámos com ele, tal como todos os aldeões, por causa da sua força. Com dez anos, conseguia pegar nos pais, um sobre cada ombro. Andar às cavalitas do Pablo era como voar, mas já há muito tempo que não o via.

Há dois anos, quando as costas da mãe dele pioraram muito, o Pablo deixou a escola e assumiu o lugar dela como trabalhadora, embora a Masha lhe tivesse implo-rado que não o fizesse. Agora com 15 anos, ele puxava carroças como se fossem de papel e também tratava dos cavalos do governador.

— Ele levou o presente da Lupe — acrescentou a Masha, franzindo o nariz. Eu sei que ela não compreen-dia o que me levara a ser amiga da filha do governador. — Disse -lhe que o escondesse, como pediste.

— Obrigada — disse. — Talvez o veja amanhã?— Talvez. — Mas a voz dela não era esperançosa. Ele

levantava -se sempre antes do amanhecer e chegava a casa depois de escurecer.

Acenei -lhe para me despedir, pus a pasta ao ombro e comecei a descer a encosta.

Dali do alto, Gromera parecia uma roda, ou a explo-são de uma estrela, com a praça do mercado ao centro e as ruas a parecerem raios a apontar para fora, algumas delas terminando no amplo e pacato porto que formava uma garganta na direção do mar, a abarrotar de peixe. Numa noite límpida, as estrelas instalavam -se à sua su-perfície como se fossem nenúfares.

Page 12: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

18

O barco do governador encontrava -se ali ancorado, como sempre. O pai disse que fora esculpido a partir de um único tronco de embondeiro de Afrik. O embondei-ro deve ser uma árvore enorme, porque o casco pratica-mente ocupava toda a largura do porto, com o mastro a apontar para o céu e as velas ferradas. Encontrava -se aninhado sobre a frota pesqueira como uma montanha, enorme e imóvel. Como tudo aquilo que o governador tinha, ocupava bastante mais espaço do que devia. Para leste, a casa dele reluzia sob a luz do sol. Construída com alcatrão preto e tão grande quanto cinco barcos, a man-são encontrava -se instalada entre o mar azul e a floresta verde, espalhando -se pelos campos como uma nuvem de tempestade. Mas, dali, parecia suficientemente pequena para ser apertada entre o meu indicador e o polegar. Mais abaixo ficava a aldeia, com a escola a meio caminho.

O edifício da escola antiga era pequeno mas lumino-so, e pintámos as paredes com as cores do arco -íris com umas tintas que o pai arranjou. Mas depois o governador mandou -a derrubar — a Lupe decidira que já estava farta de ter aulas sozinha em casa e exigiu ir para a escola da terra, como todos nós.

O governador Adori mandou que fosse reconstruída pedra a pedra, com o dobro do tamanho, porque, se a sua filha ia frequentá -la, tinha de parecer mais grandiosa.

— Não é por mim, vê se percebes — dissera a Lupe com um sorriso triste. Adotara uma voz ainda mais afe-tada, para acrescentar: — É para enaltecer a honra da fa-mília.

Page 13: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

19

Não nos foi permitido pintar as paredes da escola nova. Várias crianças foram indelicadas com a Lupe por causa disso, mas eu sabia que a culpa não era dela.

Para lá da casa do governador, mais perto da floresta, ficava o pomar, aonde eu nunca fora. Espreitei para as manchas dos trabalhadores lá presentes, que mais pare-ciam formigas, e imaginei qual deles seria o Pablo. Para oeste, a areia preta das praias encontrava -se quase toda coberta pela maré que subia. Não nos era permitido es-tar nas praias com maré alta e ninguém podia ir à água a não ser que lançassem um dos barcos do governador. Aquilo fazia -me comichão nos dedos dos pés. O pai tinha descrito como era estar no mar, mas não era a mesma coisa que experimentar sozinha.

Sobre as praias ficavam as minas de barro, para as quais tentava não olhar porque me fazia recordar uma das poucas memórias nítidas que tinha da mãe — «dão um nó assim e depois esfregam a seiva nas mãos para prender melhor» —, o dia em que ela me levou e ao Gabo até às minas. Ensinou ‑nos a atarmo ‑nos com tre-padeiras a um dragoeiro — e baixarmo -nos um a um pelo desfiladeiro. O Gabo assustou ‑se e retorceu ‑se de tal maneira que o nó cedeu. Quando aterrou na lama mole lá no fundo, fez um ruído rude, e estava nojento quando a mãe trepou com ele desde a escuridão. Ri -me tanto que até doeu.

Lembro -me disso, da dor na barriga. Como regressou dois meses mais tarde, quando a mãe morreu. Só que des-sa vez foi mais intensa e não houve ninguém a transportar

Page 14: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

20

ninguém para fora da escuridão. Três anos depois, o mesmo mal ‑estar de causar transpiração levou o Gabo. Três anos mais tarde, a recordação da mina de barro ain-da me provoca um aperto na garganta.

A Lupe encontrava -me sempre ao pé de um barril no limite da praça do mercado para caminharmos juntas até à escola, mesmo que isso implicasse ela ter de acordar quase tão cedo quanto os trabalhadores. Quando cheguei à praça, já se formava uma fila para o poço. Cada vez mais pessoas o usavam desde que o rio Arintara come-çara a secar.

As bancas já estavam abertas, a vender peixe, cereais e couro. A maioria delas pertencia ao governador, com os seus toldos azuis como se fossem pedaços de céu e as ban-cas cor de mel com um sol brilhante ao centro.

Quando me dirigia ao barril, alguém me agarrou pelo pulso. Saltei e dei um encontrão na banca mais próxima, fazendo com que os legumes caíssem ao chão poeirento.

— Ei! — resmungou o vendedor. — Que pensas que estás a fazer?

Virei -me para ver quem me agarrava. Era uma mu-lher de vestes verdes, o que significava que trabalhava nos pomares. Já deveria lá estar — os atrasados eram, por vezes, chicoteados.

— Desculpe — disse a mulher ao vendedor, sem tirar os olhos de mim. — Isabella Riosse?

Page 15: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

21

— Sim — respondi. — Quem…— Aconteceu algo. — A mulher apertou ainda mais o

meu pulso. Era tão pequena, o rosto dela quase ao nível do meu.

— Que pensas que estás a fazer? — repetiu o vende-dor, saindo de trás das suas pilhas de batatas.

— A Cata — silvou a mulher, ignorando -o. — Viste -a?Franzi o sobrolho.— A Cata Rodriguez? — A Cata andava na mesma

turma que eu na escola, mas só faláramos um par de vezes.

A mulher assentiu com vigor.— Sou mãe dela. Ela disse -me que eram amigas. Pen-

sei que talvez soubesses onde ela está.Mexi -me, desconfortável. Era verdade que eu era mais

simpática com a Cata do que o resto da turma, mas ela era muito sossegada e a maioria das pessoas ignorava -a.

— Desculpe — comecei a dizer —, eu não…— Procurei por toda a parte. Ela não estava em casa

quando acordei, eu… — A mulher largou -me, respirando com dificuldade. Levou a mão ao peito, a tremer, como se não conseguisse encher os pulmões.

— Tu! Que estás a fazer aqui?A mãe da Cata deu um salto. Um dos homens do go-

vernador avançava em passos rápidos na nossa direção, com a multidão a afastar -se como trigo à passagem da sua túnica azul.

— Se a vires, manda -a para casa — disse -me a mu-lher, apressada, com a cara contorcida de preocupação.

Page 16: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

22

E desapareceu, correndo na direção da propriedade do governador.

— Mas que confusão — disse o vendedor num tom desaprovador, começando a apanhar os vegetais do chão. — Não, não ajudes. Já causaste danos suficientes.

Confusa, caminhei em direção ao canto da praça do mercado onde eu e a Lupe nos encontrávamos sempre. Havia algo no rosto da mulher que me abalara profunda-mente. Esperei que a Cata estivesse bem.

— Isa!Virei -me mesmo a tempo de ver a Lupe a correr

pela praça, com a pasta a esvoaçar. Os outros aldeões encolheram -se para se desviar dela. A filha do governa-dor não tinha muitos amigos. Não que a Lupe se impor-tasse muito com isso.

— Quero lá saber — dissera ela a uma das raparigas que gozara com as tranças elaboradas que a mãe dela insis-tia que usasse. — A Isabella gosta delas, e isso chega -me.

Fazíamos um par estranho, eu e a Lupe: ela, tão alta quanto um rapaz quase adulto, e eu, quase sem lhe chegar aos ombros. Parecia ainda mais alta depois de um mês sem a ver. A mãe dela não iria ficar agradada. A Señora Adori era uma mulher de poucas formas, ele-gante, de olhos tristes e um sorriso frio. A Lupe dizia que ela nunca se ria e que achava que as raparigas não deveriam correr nem ter o direito de ser tão altas quanto a Lupe estava a ficar.

Deu -me um abraço apertado e depois afastou -se, para me olhar de cima a baixo.

Page 17: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

23

— Continuas baixinha! — disse ela, com inveja, fa-zendo uma careta. — Que se passa? Estás tão pálida! O teu pai não te deixou andar ao sol durante o verão? A mamã faz isso, mas às vezes eu escapo -me…

— A Cata desapareceu — despejei, de repente. — Acabei de ver a mãe dela.

— A Cata?Revirei os olhos, impaciente.— A rapariga que se senta na fila de trás.A Lupe passou o peso de um pé para o outro. Estava

com aquele olhar no rosto, como o Pep a bambolear -se para longe de um prato partido.

Olhei fixamente para ela.— Que foi?— O quê, o quê? — disse a Lupe, puxando a pasta

ainda mais para cima do ombro.— Tu sabes de alguma coisa — disse eu, dando um

passo em frente.— Não, não sei — respondeu ela, dando um passo

atrás.Ergui a sobrancelha como o pai me ensinara.A Lupe encolheu -se.— Tenho a certeza de que não aconteceu nada. É só

que, este verão, ela esteve a trabalhar na cozinha, e on-tem pedi -lhe que fosse ao pomar, para me ir buscar umas…

— Ao pomar?! — Aquela sensação de enjoo regres-sara ao meu estômago. — Lupe, tu sabes que não tens autorização!

Page 18: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

24

— É claro que sei, mas já não comia pitaias há séculos! E precisava de tê -las para o meu aniversário, certo?

Eu nunca comera pitaias e nem sequer sabia muito bem a que se assemelhavam, mas sabia que era a fruta preferida da Lupe e que a plantavam no pomar do go-vernador, ao fundo da floresta, fora do alcance de todos, exceto dos guardas e de alguns dos seus empregados.

— Lupe, tu sabes que, se a Cata foi apanhada, a esta altura já está no Dédalo, muito provavelmente.

A Lupe abanou a mão num gesto de desdém.— Continuas a falar nesse sítio? Nunca o vi, e moro lá!Era típico da Lupe não reparar em algo que estava

mesmo debaixo do nariz dela. E o Dédalo — o labirinto — estava mesmo debaixo do nariz dela, pois o governa-dor Adori construíra a sua casa diretamente por cima dos túneis naturais que eram agora a sua prisão. O marido da Masha cumprira lá uma pena de dez anos, antes de morrer.

A Lupe atirou os braços em volta dos meus ombros.— Vá lá, resmungona. A Cata vai ficar bem! — Co-

meçou a empurrar -me pelas ruas estreitas em direção aos campos. — Já deve estar na aula, provavelmente a empanturrar -se com as minhas pitaias. Deixo -te comer algumas, são tão deliciosas! E não te esqueças do fogo de artifício logo à noite!

A Lupe odiava o escuro, mas adorava fogo de artifício. Era, de facto, extraordinário, com as suas belas cores e brilho de estrelas cadentes, mas assustavam demasiado o Pep para eu o apreciar.

Page 19: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

25

— O papá deixou -me escolher as cores. Há dourados, um azul, dois vermelhos…

Deixei que a voz da Lupe me envolvesse enquan-to tomávamos o atalho através dos campos. Ela tinha razão, provavelmente. Mesmo que a Cata tivesse sido apanhada, certamente os homens do governador não iriam atirar uma miúda para o Dédalo por roubar fru-ta, pois não? Prometi a mim mesma ser supersimpática com a Cata na escola, talvez até convidá -la para ir ver o fogo de artifício do aniversário da Lupe a partir do meu jardim.

— Ah, e tu ainda não viste isto — disse a Lupe, paran-do de repente e detendo -me com um puxão.

— O quê?A Lupe tirou uma corrente de ouro grossa de dentro

do vestido e segurou -a na palma da mão. Um medalhão de ouro brilhava ao sol, gravado com uma forma que reconheci.

— É Afrik, de onde é o papá — disse a Lupe. — Deu--me como presente de aniversário. Era da minha avó.

— O que tem lá dentro?A Lupe encolheu os ombros.— O pai diz que só o posso abrir quando for mais

velha. Ele é o único que tem a chave.— É lindo.— É pesado — disse a Lupe. — Mas gosto dele. Mas

foi o único presente que recebi.Ficou a olhar para mim, à espera. Tentei fingir que

não sabia do que ela estava à espera, mas o sorriso dela

Page 20: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

26

era tão estúpido que não consegui aguentar. Tirei um pergaminho da minha pasta.

— Feliz aniversário — disse eu, sorrindo também.— Um mapa! Marcado com um X!Era um mapa bastante simples, sem linhas de estrelas

e com uma bússola que era apenas uma seta com um N na ponta. Não tinha tido tempo de organizar uma caça ao tesouro a sério, com várias pistas.

— Tesouro — disse eu, apertando -lhe os dedos.— Não vale a pena ficarmos aqui especadas — gritou

a Lupe, desatando a correr. — Vamos ver quem chega primeiro!

Com as suas longas pernas, a Lupe devia ser a favo-rita, mas era tão coordenada quanto um coelho perneta, por isso corremos juntas. Os meus pulmões encheram--se de ar enquanto corria pelo campo seco, com a pasta a bater -me nas ancas.

A Cata vai estar na escola, a Lupe vai ter as pitaias dela e tudo ficará bem.

Por fim, a Lupe chegou ao X, à toca de coelho abando-nada onde o Pablo escondera o meu presente. Lá dentro estava um embrulho de papel azul. A Lupe desfez o em-brulho, revelando uma pulseira de entrançado simples, feita de sobras de fio que implorara à Masha que me desse. Entrelaçado nos fios de várias cores encontrava -se um fio de ouro que roubara do escritório do pai. Ele já não fa-zia mapas especiais, por isso achei que não iria reparar.

— Adoro -a! — A Lupe colocou -a à volta do pulso e eu atei o nó. — É o meu presente preferido!

Page 21: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

27

Só a Lupe iria preferir um pedaço de fio desfeito a um medalhão de ouro. Era outra das coisas que me faziam gostar dela.

— Vamos — disse eu, pegando -lhe na mão suada e puxando ‑a em direção ao retângulo baixo da escola. Che-gar atrasada no primeiro dia de aulas podia não ser um problema para a Lupe Adori, mas a Señora Feliz não iria perdoar a Isabella Riosse assim tão facilmente.

Voltámos a correr, esperando não ouvir a campainha, e chegámos com um calor de morte, a resfolegar e a rir--nos, até nos doer a barriga.

— Eu… ganhei! — disse a Lupe, a arfar.— Não… eu. Eu… venci… venci -te.— Meninas! — A Senõra Feliz apareceu à porta da

escola, com o rosto tão azedo quanto um limão. Quando reconheceu a Lupe, o rosto dela ficou tão azedo quanto dois limões. — Menina Adori! Deviam -na ter avisado; mandei alguém ir ter diretamente com o seu pai…

— O quê? — disse a Lupe, franzindo o sobrolho. — Porquê?

— Houve um… Bom, o seu pai irá contar -lhe, certa-mente. A escola hoje está fechada.

— Fechada? — disse eu, estupidamente. — Mas por-quê?

— Já chega de perguntas! — respondeu a professora, irritada. E foi então que o rosto dela empalideceu, quan-do o seu olhar se fixou em algo atrás de nós.

Virámo -nos para observar uma carruagem puxada por um par de garanhões pardos avançando, lentamente,

Page 22: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

28

pelo caminho esburacado da aldeia. Os cavalos pareciam agitados, a dar passos para o lado e a atirar as crinas para trás. Ao lado do condutor iam sentados dois homens, cujas espadas refletiam a luz do sol.

As cortinas azuis da carruagem estavam fechadas, protegendo os passageiros do calor. Mas, mesmo àquela distância, consegui discernir a silhueta larga do governa-dor e da sua pequena esposa através da seda.

Page 23: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

29

CAPÍTULO

TRÊS

A carruagem parou à porta da escola. O condutor saltou para o chão para abrir a porta, enquanto o governador Adori afastava as cortinas e saía

para o meio do pó. Dei um passo atrás, encolhendo -me na sombra da Lupe. Àquela distância, ele era mais baixo do que eu antecipara, mas tinha ombros largos e um pei-to redondo como um barril.

Nunca o conhecera, só o vira no seu cavalo durante a parada anual, quando toda a aldeia era obrigada a as-sistir e a dar vivas. Os homens do governador chegavam mesmo a distribuir bandeirinhas azuis para as pessoas acenarem e multavam quem sujasse o tecido. Perguntei--me se ele saberia que a Lupe era amiga da filha do car-tógrafo.

— Vamos — disse ele à Lupe.Ela olhou para mim, insegura. Eu larguei -lhe a mão.— Papá, o que…— Nada de perguntas. Entra na carruagem.— A Isabella pode vir connosco?Baixei a cabeça quando ele espreitou para trás dela.

Page 24: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

30

— Não — respondeu ele. — Vamos para casa.— Então podemos ao menos deixá -la na aldeia dela?

— perguntou a Lupe, hesitante. Eu sabia que ela não es-tava autorizada a convidar ninguém a ir a casa dela.

O governador fez um ruído com a língua, estalou os dedos na minha direção e disse:

— Despacha -te.A Señora Feliz tropeçou ao nosso lado.— Desculpe, governador Adori. Mandei alguém avi-

sar a menina, mas as meninas tinham atravessado o campo…

A professora calou -se quando o governador levantou a mão, impaciente. Fez -nos sinal para que entrássemos na carruagem.

As pernas tremiam -me ao subir para o interior macio e ao sentar -me em frente à Senõra Adori, que afastou as saias para longe das minhas sandálias poeirentas. Estava de lábios cerrados e a sua pele parecia ainda mais pálida do que o habitual, abanando o seu leque de seda azul com impaciência em volta do rosto. O pai dissera que ela vinha da Europa, e vestia -se certamente em con-formidade. Apesar do calor, envergava um vestido de seda azul com saia comprida e via -se uma gota de suor a escorrer -lhe pela maçã do rosto. Ela não se mexeu para a secar.

Partimos. Era a minha primeira vez numa carrua-gem, mas era -me difícil sentir -me entusiasmada. Porque teriam fechado a escola? E porque teria o governador vin-do buscar a Lupe? Ele nunca fazia isso.

Page 25: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

31

Arrisquei olhar para ele. Era imponente no espaço aper-tado da carruagem e a sua pele era mais escura do que a da Lupe, mais escura do que a do meu pai. Os olhos eram estreitos, de pupilas negras e rasgados como os de uma cobra, e também tão frios quanto os de uma. Enquanto o observava, uma libelinha amarela esvoaçou na têmpo-ra dele e ele apanhou -a em pleno voo, esmagando -a entre dois dedos e atirando -a para o chão atapetado. Estremeci.

Porque tinha vindo ele? Porque agia como se Joya lhe pertencesse e não ao povo que ali vivia há séculos? Por causa dele, eu nunca vira o resto da nossa ilha, quanto mais o resto do mundo, e as competências do pai como fazedor de mapas eram desperdiçadas. Por causa dele, já não havia aves canoras. A Masha dissera que a culpa de o rio estar a secar era dele também, mas o pai comentou que ela só estava a ser supersticiosa.

O ar revelava -se abafado e quente. O veludo dos as-sentos colava -se -me às pernas e eu ansiava por abrir a cortina, para ver o que se passava lá fora, mas mantive o olhar num molho de chaves pendurado no cinto do go-vernador. A Lupe também parecia desconfortável.

— O que se passa, papá?A mão do governador abria -se e fechava -se.— A mamã explica -te quando chegarmos a casa. —

Os olhos dele voltaram a piscar na minha direção.— Aconteceu alguma coisa má?O governador soltou uma risada oca, como um sino

baixo e desafinado. Fui assaltada pelo medo. Porque não podia ele explicar agora?

Page 26: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

32

Ninguém voltou a falar até o governador berrar «alto!» e terem parado os cavalos. A carruagem abanou quando o condutor saltou para o chão e abriu a porta. Afastei a cortina e o meu queixo gelou.

Estávamos de volta à praça do mercado, mas estava deserta. Todas as bancas estavam fechadas e vazias, ex-ceto pela massa de penas formada pelos corvos que lu-tavam pelos restos deixados para trás. Não compreendi o que se passava. Normalmente, aquela era a altura de mais movimento do dia, quando os aldeões faziam as suas compras antes que a hora de maior calor varresse as ruas de Gromera.

A voz do governador era baixa e sombria.— Vai para casa, rapariga. Não te posso deixar mais

perto.— Vemo -nos na escola amanhã? — disse a Lupe en-

quanto eu saía, em jeito de pergunta.— Nada de escola — vociferou o governador. — Pelo

menos não durante uns dias.O meu coração começou a bater como um tambor.

Quis perguntar o que se passava, mas a minha garganta parecia cheia de areia. A mulher do governador voltou a afastar as saias dos meus pés. Fiz questão que a minha sandália roçasse no sapato de seda dela ao sair da carrua-gem.

O governador inclinou -se para fechar a porta, mas a Lupe saltou e abraçou -me com força.

— Vou tentar descobrir o que se passa — sussurrou ela para o meu pescoço. — Encontramo -nos no barril

Page 27: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

33

amanhã? Ao anoitecer? E não te esqueças do fogo de ar-tifício!

Acenei enquanto o condutor açoitava os cavalos para que trotassem e ela voltava a entrar na sombra por detrás das cortinas.

Quando cheguei a casa, mal podia respirar. A porta estava completamente aberta e o vaso de flores da entra-da encontrava -se caído para um lado, com terra e marga-ridas espalhadas pelo chão. Ao ver aquilo, parei.

O pânico que me fizera correr colina acima puxava‑-me agora para trás.

— Pai?Nada.Dei um passo em frente.— Pai!A luz do sol lançou padrões de redemoinhos nos meus

olhos quando entrei no escuro. Pisquei os olhos até que parassem.

O pai não estava no quarto principal. Estava tudo igual a quando eu saíra de casa, a taça de papas de aveia queimadas por comer no seu leito de mapas. As paredes abanaram ligeiramente — se era por causa dos mapas ou da minha cabeça a andar à roda, eu não sabia. Apenas a caneca verde -floresta tinha voltado a ser colocada no seu lugar na prateleira.

Ouvi um restolhar no escritório do pai e enchi--me de alívio, como se fosse ar. Era tão típico do pai, estar tão atarefado com o trabalho que nem me ou-via chegar. Provavelmente, nem sabia o que se estava

Page 28: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

34

a passar lá fora. Avancei em direção à cortina grossa e afastei -a.

— Pai…As persianas estavam abertas, deixando entrar uma

brisa que levantava levemente os papéis que lhe cobriam a secretária. Devia ter sido aquilo que eu ouvira, pois o banco dele estava vazio. Via -se uma mancha brilhante no pergaminho pousado na secretária dele.

Incapaz de me deter, aproximei a mão para lhe tocar.Estava molhado. Os meus dedos ficaram vermelhos.Senti a divisão a andar à roda e a minha mente a

encher -se de trevas.

Cada um de nós transporta na pele o mapa das nossas vidas…

A voz do pai. Porque falava ele assim — frio, devagar?Vês aqui, como o meu sangue não corre azul, no pulso,

mas sim preto?E porque sabia eu exatamente o que ele ia dizer a se-

guir?A tua mãe sempre disse que era tinta. Sou cartógrafo de

alma e coração.O pai ia à minha frente, a caminhar por um canal es-

curo de casas que abanavam como árvores ao vento. Ago-ra eram efetivamente árvores e o pai esticava a mão na minha direção, com uma vermelhidão a escorrer -lhe da palma da mão. O peito dele era uma confusão sangrenta

Page 29: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

35

de pele e penas, penas pretas, como as do corvo que o Pep apanhou.

O meu coração…Eu estava a sonhar. O pai do sonho caminhava na mi-

nha direção, de rosto vazio. Arranquei o peito do chão es-caldante, puxando -me para trás, para longe dele, ao longo da linha de árvores, que se estendia, para fora do sonho.

Algo me estava a puxar o cabelo.A Menina La. Quando abri os olhos, ela guinchou com

indignação e começou a correr aos círculos. Eu estava no chão do escritório. O Pep estava sentado à porta, a olhar para mim com cautela. Mas o pai… onde estava ele?

A minha cabeça latejava enquanto eu olhava para os meus dedos. Ainda tinham aquela mancha de um ver-melho escuro. Levantei -me devagar. O quarto parecia inclinado e doía -me o ombro sobre o qual caíra. Cami-nhei pela casa ainda a tremer, verificando a cozinha e o jardim, onde a tabaibeira do Gabo começava a despontar com flores em forma de estrela. A Menina La e o Pep seguiram -me, mas o pai não estava em lado nenhum.

Na frente da casa, a rua continuava deserta. Agarrei--me à maçaneta da porta como se o chão fosse um ocea-no e largá -la significasse que me afogaria. O bater nos meus ouvidos regressara, abafando o som dos insetos e dos corvos que os caçavam.

— Aqui. — A voz fez -me dar um salto. — Isa, aqui.A Masha espreitava por entre uma frincha das persia-

nas. Larguei a maçaneta e atravessei a rua, com as pernas ainda a tremer.

Page 30: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

36

A Masha fechou a porta atrás de mim, apressadamente.— O que estavas ali a fazer sozinha?As palavras saíram da minha boca a correr.— É o pai, ele não está em casa e não o consigo

encontrar, e há sangue — disse eu, mostrando -lhe a mão. Esta tremia, embora eu lhe tivesse dito para não o fazer.

— Isa, respira.A Masha enxugou -me as lágrimas com o punho da

blusa e conduziu -me a uma cadeira. Abriu -me os dedos da mão e trouxe uma tigela de água quente do fogão. Começou a esfregar a mancha com um pano áspero. A porta das traseiras estava aberta e corria uma brisa va-garosa vinda do pátio de terra.

— Isto não é sangue. — O rosto dela estava franzido com a concentração.

— O quê?— Não é sangue. Vês? Vês como não sai, por mais que

esfregue?A mancha continuava de um vermelho vivo.— Mas então o que é?A Masha encolheu os ombros.— Imagino que seja tinta.— Mas onde está o pai?Ouviu -se uma voz vinda do degrau das traseiras. Se-

micerrei os olhos e discerni a forma de umas costas lar-gas em contraluz. O Pablo.

— Vi -o a ir em direção à praça do mercado, há pouco — disse ele. — Não me parecia ferido, apenas assustado.

Page 31: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

37

— Já não tinha voz de rapaz, falava num tom grave que quebrava ligeiramente.

A Masha estalou a língua.— Porque não disseste isso antes?Engoli em seco.— Aonde ia ele?— Calculo que te fosse buscar à escola, depois de ter

sabido o que aconteceu.— Mas o que aconteceu?— Quer dizer que não sabes? — disse a Masha, num

fio de voz.Abanei a cabeça, desesperada.A Masha e o Pablo falaram ao mesmo tempo.— Talvez seja melhor esperar que o teu pai chegue…— Encontraram um corpo …— Pablo! — disse a Masha, abruptamente.— O que foi? Ela quer saber. De qualquer forma, vai

acabar por saber.— Tu só queres assustá -la.— Eu não fico assustada — disse, esticando o queixo

para lhes mostrar que já não estava a chorar. — Podem contar -me.

A Masha largou o pano que segurava entre os dedos.O Pablo hesitou e depois levantou -se, entrando para

a sombra.— Esta manhã, encontraram uma rapariga no pomar

— disse ele, por fim.Tomando o meu silêncio por incompreensão, a Masha

pegou na minha mão com suavidade.

Page 32: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

38

— O que ele quer dizer é que encontraram uma rapa-riga morta. Assassinada.

Seguiu -se silêncio até eu me forçar a falar.— Quem?A Masha fez uma pausa, olhando para o Pablo. Ele es-

tava muito mais alto. Dois anos tinham -no esticado tanto que já tinha a altura de um homem. Perguntei -me se o Gabo teria crescido como eu ou mais rápido.

— Uma rapariga chamada Cata. Cata Rodriguez.Olhei para ele durante um bom tempo, sem sentir

nada, a ouvi -lo através do pulsar nos meus ouvidos. En-costei a palma da mão, com força, à minha testa para travar a crescente torrente de perguntas. A Masha pegou na minha mão e manteve -a entre as suas.

— Isabella, precisas de descansar.Abri a boca para falar, mas a Masha levantou um dedo

de aviso.— Nem mais uma palavra. Eu sei que estás preocu-

pada com o teu pai, mas ele é um homem inteligente e deve estar bem.

Consenti silenciosamente.— O governador impôs um recolher obrigatório até

encontrarem… até resolverem isto tudo.— «Recolher obrigatório»?— Temos de ficar dentro de casa. O teu pai deve estar

preso em qualquer lado à espera de que levantem o reco-lher obrigatório. Ele nunca me perdoaria se eu te perdesse de vista. Não depois de um assassínio.

Um arrepio percorreu -nos aos três.

Page 33: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

a r apariga que lia as estr elas

39

— Vou para casa esperar. — Levantei -me, mas a Masha empurrou -me para baixo com firmeza.

— Vais descansar.A anciã levantou -se e empurrou o filho para o lado

para ir ao jardim. Conseguia vê -la a colher algo de um arbusto ao lado da porta.

O Pablo virou -se para mim. O rosto dele era largo, mas já não era redondo, e sim recortado em ângulos à volta das maçãs do rosto e do maxilar. No entanto, os olhos dele continuavam do mesmo tom castanho -escuro. Olhei para o meu colo, subitamente tímida.

A Masha voltou e encheu uma taça com água do balde.— Bebe isto e come isto — disse ela, estendendo-me

duas bagas pequenas e escuras. — Vão -te ajudar a ador-mecer.

— Eu não preciso de…— Apanhaste um grande susto. Come qualquer coisa

e depois podes deitar -te no quarto do Pablo até o teu pai voltar.

— Ele não vai saber onde estou!— Eu fico à espreita pela janela a ver se ele chega. Não

tiro os olhos da rua.A Masha pousou as bagas na mesa, observando -me a

pegar nelas e a mastigá -las. As bagas provocaram peque-nas explosões de sabor amargo que me picaram a língua.

Depois de me forçar a comer algum pão, segui a Masha até ao quarto do Pablo e deitei -me. A almofada era fofa e os lençóis cheiravam a lavanda. À medida que o meu corpo começava a pesar devido às bagas, os meus

Page 34: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a

kir an milwood hargr ave

40

pensamentos perseguiam -se como os cães perseguem a sua própria cauda.

A Cata, morta.O pomar. As pitaias. A Lupe.A Cata, morta.

Page 35: A ILHA DE JOYA - Booksmile tão grande como fora seis semanas ... encontrava -se pousada na mesa de pinho, perdida no ... derradeira viagem implicaram um regresso prematuro a