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1 A IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA THE IMPORTANCE OF CULTURAL HERITAGE IN CONTEMPORARY SOCIETY PAULO FERNANDO DE BRITTO FEITOZA 1 IDELCLEIDE RODRIGUES LIMA CORDEIRO 2 RESUMO Na atualidade, o valor do patrimônio cultural cresce em importância diante de uma sociedade globalizada, que sugere uniformidade de padrões, reunindo condutas e estabelecendo standards de comportamentos e valores. Por isso, a fim de ser preservada a característica individual de cada grupo social, necessário avivar sempre os elementos identificadores desta cultura e a sua importância para esta sociedade. O tema, assim posto, tem como objetivo específico realçar o significado da cultura na sociedade contemporânea e como objetivos gerais definir aspectos correlatos ao tema, como bem cultural, patrimônio cultural, a cultura na ótica constitucional, e a cultura de bens representativos da nacionalidade. Conclui-se, o texto, realçando a necessidade da cultura, como um acervo de práticas sociais valorativas em específico tempo e espaço por uma sociedade, que, em unidade, conserva suas características históricas, não obstante a modernidade. Trata-se de um reflexo do processo civilizatório, que será transmitido à geração vindoura, fazendo permanente a tradição social. Palavras-Chave: Sociedade; Patrimônio Cultural; Bem Cultural; Cultura ABSTRACT Currently, the value of cultural heritage grows in importance in the face of a globalized society, suggesting uniformity of standards, gathering pipelines and establishing standards of behavior and values. Therefore, in order to be preserved the individual characteristics of each social group, must always enliven the identifying elements of this culture and its importance for society. The theme, so rank, specifically aims to highlight the significance of culture in contemporary society and how overall objectives set related aspects to the topic, as well as cultural, cultural heritage, culture in the constitutional perspective, and culture representative of nationality goods. It follows the text, stressing the need of culture as a collection of 1 Juiz de Direito, Mestre em Direito Ambiental (UEA), Doutor em Direito das Relações Sociais (PUC/SP) 2 Advogada, Mestra em Direito Ambiental (UEA). Pós-graduada em Administração Pública pela Faculdade da Amazônia Ocidental. Graduada em Direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental e em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Acre. Pesquisadora DCR/FAPEAM/CNPq

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A IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA

THE IMPORTANCE OF CULTURAL HERITAGE IN CONTEMPORARY SOCIETY

PAULO FERNANDO DE BRITTO FEITOZA1

IDELCLEIDE RODRIGUES LIMA CORDEIRO2

RESUMO

Na atualidade, o valor do patrimônio cultural cresce em importância diante de uma sociedade

globalizada, que sugere uniformidade de padrões, reunindo condutas e estabelecendo

standards de comportamentos e valores. Por isso, a fim de ser preservada a característica

individual de cada grupo social, necessário avivar sempre os elementos identificadores desta

cultura e a sua importância para esta sociedade. O tema, assim posto, tem como objetivo

específico realçar o significado da cultura na sociedade contemporânea e como objetivos

gerais definir aspectos correlatos ao tema, como bem cultural, patrimônio cultural, a cultura

na ótica constitucional, e a cultura de bens representativos da nacionalidade. Conclui-se, o

texto, realçando a necessidade da cultura, como um acervo de práticas sociais valorativas em

específico tempo e espaço por uma sociedade, que, em unidade, conserva suas características

históricas, não obstante a modernidade. Trata-se de um reflexo do processo civilizatório, que

será transmitido à geração vindoura, fazendo permanente a tradição social.

Palavras-Chave: Sociedade; Patrimônio Cultural; Bem Cultural; Cultura

ABSTRACT

Currently, the value of cultural heritage grows in importance in the face of a globalized

society, suggesting uniformity of standards, gathering pipelines and establishing standards of

behavior and values. Therefore, in order to be preserved the individual characteristics of each

social group, must always enliven the identifying elements of this culture and its importance

for society. The theme, so rank, specifically aims to highlight the significance of culture in

contemporary society and how overall objectives set related aspects to the topic, as well as

cultural, cultural heritage, culture in the constitutional perspective, and culture representative

of nationality goods. It follows the text, stressing the need of culture as a collection of

1 Juiz de Direito, Mestre em Direito Ambiental (UEA), Doutor em Direito das Relações Sociais (PUC/SP)

2 Advogada, Mestra em Direito Ambiental (UEA). Pós-graduada em Administração Pública pela Faculdade da

Amazônia Ocidental. Graduada em Direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental e em Ciências Econômicas

pela Universidade Federal do Acre. Pesquisadora DCR/FAPEAM/CNPq

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evaluative social practices in specific time and space by a company that, in unity, preserve its

historic features, despite modernity. It is a reflection of the civilizing process, which will be

transmitted to the next generation, making permanent the social tradition.

Keywords: Society; Cultural heritage; Cultural well; Culture

INTRODUÇÃO

O norte do presente trabalho situa-se entre o patrimônio cultural e a

contemporaneidade, perpassado pelo valor ou significado da cultura.

Consequentemente, estabelecidas as diretivas do texto, considera-se oportuno volver-

se para o significado da expressão cultura ou recordar alguns fatos que lhe dão significado e

importância.

Assim e por começo recorda-se, com o propósito de exemplificar, que a cultura – no

sentido histórico ou de civilização – sempre se constituiu em práticas sociais de integração,

em determinado tempo e espaço, quando projetava a identidade daquele grupo.

Logo, por identificar a cultura um caráter muito próprio àquele agrupamento,

representava, também, uma resistência aos dominantes e vitoriosos nas guerras de conquistas

de reinos na antiguidade. Nenhum grupo abdicava da sua civilização, para aderir a outros

conceitos e valores, não houvesse muita luta e um hegemonia que aniquilava o dominado.

Dedutível, assim, que a cultura era uma projeção ou uma identificação grupal,

inalienável ou irrenunciável, salvo o uso da força intensificada pelo temor imposto de um mal,

que poderia destruir bens valiosos e exterminar vidas em massa.

Na atualidade, a hegemonia econômica de países desenvolvidos industrial e

tecnologicamente tem apresentado mudanças e influenciado culturas.

1. JUSTIFICAÇÃO DA PREMISSA LIMINAR

Exemplo muito claro da assertiva introdutória é o processo romano, que subsidia os

juristas pátrios até os dias de hoje. Com a queda de Roma no ano de 476, e a ocupação dos

seus territórios pelos germanos, constatou-se que o processo adotado por estes era primitivo, a

começar pela jurisdição que era exercida pelo provo (assembleias populares dos homens

livres (Ding), sob a presidência de um conde feudal, com um procedimento inteiramente oral.

O sistema probatório, também, rudimentar, denominado de ordálias ou juízos de

Deus, sob a função de experimentos dolorosos impostos àqueles que provariam um

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determinado fato, com o pressuposto do auxílio divino em favor do provável inocente.

Igualmente eram presentes os duelos com a mesma ideia da proteção superior àquele que

tivesse seu direito violado.

Mesmo assim, apesar da momentânea substituição do processo romano pelo

germânico, o anterior se manteve intacto em Roma e Revena, podendo-se concluir que “se é

certo que a ascendência do processo dos invasores, em razão da situação destes, se fez

sensível e predominante, não é menos o é que a cultura romana acabou por exercer manifesta

influência, dando lugar à formação de um processo misto de germânico e romano, em que as

instituições germânicas se recompunham sob a influência dos princípios do direito

romano”(SANTOS, 2010: 45). Desta junção de processos adveio o processo romano-

barbárico, com evolução na Lombardia, por isso também denominado de ramono –

longobardo.

Vê-se com este início e informação muito conhecida dos juristas, que o direito está

impregnado de cultura, sendo por isso mesmo assaz valorativo e capaz de não cooptar com

normas e procedimentos anacrônicos, como se deu com o processo romano frente ao

germano.

O exemplo trazido evidencia o valor da cultura e a resistência que uma determinada

sociedade impõe para resguardar o seu processo cultural. Por outro lado, mostra a forma ínsita

que congrega o direito com a personalidade, em processo interativo e simultaneamente

valorativo. Neste caso em particular, pode-se pensar na cultura do ordenamento social e dos

valores de uma sociedade, que produzem a pauta de conduta social.

Na Antiguidade terá sido assim. Na Idade Média, com início em 476 que se estende

até a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453, existem aspectos culturais

registrados pela história, como a possibilidade de ter ocorrido um retrocesso artístico,

intelectual, filosófico e institucional.

Na Idade Moderna, período compreendido entre 1453 até 1789 (ano da Revolução

Francesa), são destacados os seguintes acontecimentos, que orientaram a cultura da época: a

expansão marítima europeia; a revolução comercial e o mercantilismo; colonialismo europeu

na América; renascimento cultural; a reforma protestante e a contrarreforma; o absolutismo e

o iluminismo.

Na sequência das fases da história, adveio a Idade Contemporânea, com início em

1789 e extensão até o presente, quando sucederam muitos acontecimentos políticos,

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econômicos e sociais, sob a influência da Revolução Francesa, como são possíveis destacar a

Independência do Brasil e a Revolução Industrial.

As divisões da história, enunciadas antes, foram com o propósito de salientar que a

cultura, proveniente de um processo histórico, civilizatório, social e com muitos outros

aportes, vai demarcando o percurso da humanidade e registrando sua evolução e construção

de vida valorada de conformidade com o tempo e o espaço. Erige-se, desse modo, a

civilização.

É certo que os processos civilizatórios ou culturais não passaram incólumes, mas

sempre sob a investida alienígena que desejava eliminar ou dissuadir esta ou aquela cultura.

Na recente história do Brasil, sempre houve por parte do seu descobridor a ideia do

predomínio da sua cultura, a imposição de práticas sociais existentes na corte portuguesa, a

aculturação indígena e a escravidão de negros, com a imposição do menoscabo a africano

A dominação da cultura da fé imposta pelos portugueses aos africanos fez com que

estes instituíssem o sincretismo, como forma de salvaguardar a sua fé, sem o risco dos

castigos impostos pelos seus senhores.

O sincretismo dá-se pela absorção de um sistema de crença por outro. O Natal é um

exemplo, pois de uma festa pagã que comemorava o solstício de inverno e o Deus do Sol, a

Igreja Católica, a transformou no nascimento de Jesus Cristo.

Na época da escravidão no Brasil, os escravos inteligentemente invocavam seus

deuses africanos sob a forma de santos católicos. Assim, Oxóssi teria forma de São Sebastião,

Ogum como São Jorge, Oxalá como Jesus Cristo, Ibejis como Cosme e Damião, Iansã como

Santa Bárbara, os fios de contas como Nossa Senhora do Rosário, dentre outros. Aqui estão

exemplos claros de uma cultura que se defende do predomínio da outra – brancos

colonizadores contra negros africanos

Com estes breves exemplos, busca-se estimular o consulente a percorrer o texto,

quando se pondera sobre a relação entre o patrimônio cultural, um conceito maior de cultura,

e a sua importância na sociedade contemporânea para preservar as identidades e os valores de

cada sociedade.

Tenha-se, pois, que o patrimônio cultural brasileiro é a melhor representação da

brasilidade e da sua sociedade, sobretudo num mundo globalizado. Na globalização

intensifica-se a unidade, com o predomínio das supremacias econômicas ordenando a gestão

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dos valores, que devem prevalecer num determinado grupo social, em específica localidade

territorial.

Diante deste poderio internacional é necessário acautelar os valores internos, como

forma de manter o sentimento nacional altivo e sua cultura fortalecida.

O intuito do tema é exatamente este. Destacar a importância do patrimônio cultural

na sociedade atual, de forma que haja sempre entusiasmo pelas lembranças e uma

identificação coletiva com a cultura constituída, seja ela predecessora ou em formação.

A propósito, a Convenção sobre a salvaguarda do patrimônio mundial, cultural e

natural, editada na 17ª. Conferência Geral da Unesco, em Paris aos 16 dias novembro de

1972, contém em seu preâmbulo as seguintes manifestações:

a) tanto o patrimônio cultural quanto o natural estavam cada vez mais ameaçados

de destruição, por força da presumível degradação, mas, do mesmo modo, por

causas que modificaram a vida econômica e social; b) do mesmo modo considerou

que a destruição de patrimônio de qualquer natureza, representava perda

irreparável para todos os povos do mundo; c) alertou para a necessidade de

providências coletivas capazes de resguardarem o patrimônio cultural e natural,

pelo valor universal que contêm (IPHAN, 2000: 177/178).

2. O VALOR DA CULTURA

O presente trabalho ratifica a importância da cultura e realça o valor que o

patrimônio cultural merece ter, porquanto lhe cabe identificar ou caracterizar de forma

especial os diversos grupos sociais, que compõem o Brasil, e a diversidade cultural existente.

Numa heterogeneidade múltipla, que se difunde pelos quadrantes do planeta,

encontram-se características muito próprias em grupos específicos, que os fazem

identificados, por serem únicos na cultura que exteriorizam. Cada cultura, gradualmente vai

evoluindo e formando um patrimônio diferenciado, que integra seus membros e os vincula a

práticas e costumes comuns. É a cultura, que em contínua transformação produz o patrimônio

cultural.

Com fundamento jurídico na heterogeneidade, veja-se que a Constituição Federal no

seu preâmbulo reconhece o cenário plural da sociedade que integra o Estado Democrático de

Direito, em que se constitui a República Federativa do Brasil. Portanto, liminarmente, propôs

atenção, aos valores supremos – liberdade, segurança, bem-estar, desenvolvimento,

igualdade e justiça – de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

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Desse preâmbulo constitucional, que observa os valores supremos da sociedade

pluralista, converge o sentimento de uma sociedade que conserva uma diversidade social e

consequentemente cultural, que são aspectos necessários à compreensão do conceito do

multiculturalismo.

Este conceito precisa ser assimilado para dar eficácia à pacificação, vista como uma

das finalidades do direito, sobretudo entre povos de diversificadas condutas culturais.

Por isso mesmo, a Declaração dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional,

proclamada pela Conferência das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura

(UNESCO), na sua 14ª. sessão, ocorrida em 4 de novembro de 1966, reconheceu que a

ignorância quanto ao modo de vida e aos costumes dos povos representava um obstáculo para

a amizade entre as nações, à cooperação pacífica e ao progresso da Humanidade, o que fazia

distante a paz e o bem-estar de todos.

Assim, a proclamação dos Princípios da Cooperação Cultural Internacional aludida,

fixou no artigo I, os seguintes enunciados:

1.Cada cultura tem uma dignidade e um valor que deverão ser respeitados e

preservados.

2.Cada povo tem o direito e o dever de desenvolver a sua cultura.

3.Na sua rica variedade e diversidade, e nas influências, recíprocas, que exercem

entre si, todas as culturas fazem parte do patrimônio comum de toda a humanidade.

A Convenção sobre a Salvaguarda do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural,

considerou que a degradação ou o desaparecimento de um bem do patrimônio cultural e

natural constituiria um empobrecimento nefasto do patrimônio de todos os povos. Do

mesmo modo foi ponderado preliminarmente que “bens do patrimônio cultural e natural

apresentavam interesse excepcional e, portanto, deveriam ser preservados como elementos

do patrimônio mundial da humanidade inteira” (UNESCO, 1972).

A Convenção sobre a Diversidade Cultural prenunciou em seus princípios diretores,

sob o n. 3, o princípio da igual dignidade e do respeito por todas as culturas, por meio do

qual ficou certo que “a proteção e a promoção da diversidade das expressões culturais

pressupõem o reconhecimento da igual dignidade e o respeito por todas as culturas,

incluindo as das pessoas pertencentes a minorias e as dos povos indígenas” (UNESCO,

2005).

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Precedente pela originalidade como documento primaz da Organização das Nações

Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) subscreveu em seu artigo 27

“que toda a pessoa tem direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade,

de gozar das artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que dele resultam, e

toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais que lhe correspondem por

razões das produções científicas, literárias ou artísticas de que seja o autor.”

Outras convenções existem a favor do patrimônio cultural, as quais revelam a

importância da sua preservação, seja pelo excepcional valor, seja pela lembrança que contém

de fato significativo, ou ainda, pela representação do modo de vida de certa comunidade.

Assim, acrescentam-se as referências feitas as que seguem:

a) Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (art. XIII,1948).

b) Carta da Organização dos Estados Americanos, OEA/1948, em seu art. 48, dispôs

que os Estados-membros “assegurarão a toda a população o gozo dos bens culturais e

promoverão o emprego de todos os meios para o cumprimento desses propósitos”.

c) Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ((1966), em seu

art. 1º., assegura a autoderminação dos povos, com a garantia do desenvolvimento econômico,

social e cultural, e no art. 15, n. 2, confere a cada indivíduo a oportunidade de participar da

vida cultural do seu país;

d) Pacto de São José da Costa Rica (1969), em seu art. 26, obriga os Estados-partes a

darem executoriedade às medidas contidas na Carta da OEA, de tal forma que haja

progressivamente a plenitude dos direitos econômicos, sociais, educacionais, científicos e

culturais.

Oportuno dizer, que o patrimônio cultural revela um conjunto material ou imaterial

de bens e valores próprios de um grupo social, preservado e mantido por toda a vida.

Quando, substituído ou em desuso, ainda assim, este patrimônio será uma lembrança e

objeto de veneração.

A lei protege e estimula a preservação da cultura, considerando-a uma derivação

da natureza, o resultado da ação humana, o produto da sua inteligência ou da razão, que deve

ser visto e contemplado pelas gerações vindouras.

Para o presente texto objetiva-se analisar a importância do patrimônio cultural na

sociedade contemporânea o considerando-se o prestígio da economia e o processo de

globalização.

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3. O BEM CULTURAL

A questão patrimonial cultural tem peculiaridades. A primeira delas reporta-se à

situação da titularidade, posto que sobre o mesmo bem se pode dar uma superposição de

pessoas nele interessadas, todas com direitos distintos, mas com autoridade para intervir sobre

a coisa, caso sobrevenha ameaça à sua integridade. Uma obra de arte, por exemplo, assegura

direitos ao seu autor, bem como ao proprietário que a adquiriu. Ademais, se ela for erigida a

um bem socioambiental, a coletividade pode exigir a preservação daquela propriedade, caso

lhe sobrevenha iminente deterioração por descuido do seu dono/proprietário.

Sendo assim, do ponto de vista do interesse, o bem socioambiental, seja natural ou

cultural, apresenta a característica de abrigar sobre ele interessados diversos, com tutelas

próprias, que assegurem o legítimo interesse sobre a coisa em litígio.

A par desse fato, outros podem ser mencionados, dando notícia da peculiar situação

do bem socioambiental. Assim, diga-se agora que o bem cultural, além de múltipla

titularidade, tem, do mesmo modo, um componente físico e um outro anímico.

Para que melhor se explique, considere-se que somente pode ser considerado bem

cultural aquele que simbolizar uma evocação, representação ou lembrança, sendo conclusivo

que, tirante a materialidade da coisa erigida à condição de bem cultural, outra existe por uma

vertente, que não é palpável nem material, mas imaterial ou mesmo psicológico, que emana

de cada ser e converge para promover especial importância para determinado bem, alçando-o

à condição de cultural. A importância maior do bem está, na maioria das vezes, não na coisa

em si, mas na lembrança que ocasiona.

Além do mais, “[...] num bem socioambiental existe sempre um direito de

propriedade material e outro imaterial, da coletividade” (SOUZA FILHO, 1999: 53), estando

certo que a importância da preservação não será pelo valor material do bem em si, mas pelo

significado imaterial que ele possa despertar ou a emoção que oferecerá à coletividade.

Esse valor imaterial associa-se a um suporte que lhe dá vida, materializando a

lembrança, a evocação ou mesmo o registro que aquele bem cultural traduz. Por sua vez,

considere-se que a tutela jurídica foi constituída grandemente para proteger o suporte, tanto

assim que a Seção IV, que trata dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio

cultural, representada pelos arts. 62 a 65 da Lei dos Crimes Ambientais, inflige pena a quem

destrói, inutiliza, deteriora, altera o aspecto ou a estrutura, promove a construção em solo não-

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edificável ou no seu entorno, ou, ainda, picha ou grafita, condutas que representam agressão à

coisa ou ao objeto que dá sustentação ao bem cultural.

Na esfera administrativa, o tombamento também tem a característica de proteger o

suporte que é a representação de um determinado bem cultural, tanto que o art. 2.o do

Decreto-Lei n. 25, de 30 de novembro de 1937, diz que sua aplicação é feita às coisas

pertencentes às pessoas naturais, às jurídicas de direito privado e às de direito público interno.

Considere-se, por seu turno, a existência de outros bens, igualmente culturais, que

não estão assentados em um suporte nem se revestem de matéria para a respectiva

identificação. São eles da categoria dos bens intangíveis ou imateriais.

O patrimônio foi um conceito instituído com base em um conjunto afim de coisas

corpóreas, tanto que o Direito e seus Códigos, sobretudo o Civil, tratam das pessoas, das

coisas e dos vínculos que os unem. A propriedade sempre esteve representada por algo físico,

tal como uma coisa móvel, semovente ou imóvel.

Mas a vigente Carta Constitucional definiu como patrimônio cultural brasileiro os

bens de natureza material e, do mesmo modo, os de natureza imaterial, dentre os quais se

incluem as formas de expressão e os modos de criar, fazer e viver, desde que fossem

referências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos que constituíram a

sociedade brasileira.

A proteção não será deferida ao suporte, mas ao seu conteúdo. Mesmo assim, é

necessário o espaço cultural, porque o avanço urbano vai minando os espaços e solapando as

manifestações populares, de forma que práticas populares ficam sem apresentações públicas e

findam por desaparecer diante da perda da memória ou da lembrança social.

4. A EXPRESSÃO PATRIMÔNIO CULTURAL

A idéia de patrimônio na forma de um acervo ou conjunto representativo de bens é

recente.

Primeiramente a natureza, sucessivamente uma estreita relação entre a natureza e a

cultura, para sobrevir, após, a separação delas em elementos distintos. Por derradeiro, surge a

noção do patrimônio cultural, também por volta do século XVIII, quando a cultura passa a

significar civilização.

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É certo que a idéia de patrimônio antecede este momento. Não se trata de uma

invenção da modernidade, pois encontrado no período clássico e na Idade Média. O

colecionamento é um modo de constituir patrimônio específico a respeito de determinados

bens, sendo de se observar que as sociedades, de uma forma ou de outra, sempre acumularam

bens, para redistribuí-los ou para destruí-los.

Todavia a modernidade especificou o tipo de patrimônio, qualificando-o como

econômico e financeiro, ou cultural ou, ainda, genético, o que não esgota a extensa lista de

bens, que pode ser acumulada e formar um patrimônio.

Quase que ao mesmo tempo, o Estado se transmuda da forma liberal para a social,

instituindo direitos que são próprios desta nova fase, ao tempo em que a cultura passa ser

identificada como instrumento da história da civilização.

Importante, ainda ressaltar que o valor do patrimônio cultural viveu seu destacado

começo com a Revolução Francesa. A partir deste evento o patrimônio privado sob o domínio

da nobreza recebeu o conceito de bem social, ou seja, indistintamente de todos, sobretudo

aqueles bens que representavam a riqueza moral e material da nação.

O período pós-revolução trouxe consigo a importância da preservação de obras,

monumentos, castelos e paisagens, que deveriam ter fruição por toda a sociedade.

A difusão destes novos valores sobre bens até então particulares teve a dimensão de

uma lei moral, preconizada por Victor Hugo, que em 1832 clamava pelo resguardo do

patrimônio histórico em prol de todos os membros da sociedade nacional francesa.

A noção de patrimônio é vasta e complexa, mas particularmente identificadora da

sociedade, da história que a envolve e das práticas sociais vigentes à época. É precisa a idéia

de que o “patrimônio cultural tem uma carga identitária como testemunho da formação de um

povo ou de um país, ou seja de sua existência coletiva, pois, como lembra Fernando Ainsa,

‘cada época histórica tende a criar sua própria singularidade, seu modo de viver e pensar, seu

sistema fechado de referências, sua cláusula protetora diante das mudanças” (CUREAU,

2005: 728).

Por isso mesmo a ideia de patrimônio cultural consigna uma grandeza que supera as

demais percepções, que os demais patrimônios possam inspirar. Patrimônios são diversos,

variados em grandeza e mensurados pelo valor patrimonial ou financeiro que possam

presumir. Contudo, o patrimônio cultural tem uma importância social, até mesmo quando

imaterial, que traz à lembrança o seu respectivo valor.

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Cada sociedade vai fazer a devida opção pelo patrimônio que deseja conservar ou

extinguir, prestigiando-o ou banindo-o daquele contexto. Nesta tomada de posição estará o

sentido da história e do valor de cada sociedade pela óptica individual. Cada grupo dirá o que

deseja preservar como reflexo da sua identidade, constituindo, desse modo, o seu acervo

identitário patrimonial.

O patrimônio cultural é composto de imensos conjuntos, muitos materiais outros

imateriais, que são apresentados usualmente pelo método da tradição por sucessivas gerações.

O que qualifica estes acervos de bens é a identidade com a memória de um povo.

Consequentemente, faz-se indispensável que a matéria que os representa tenha importância

evocativa à ação e à história de uma específica sociedade.

Assim, forma-se o patrimônio cultural, ou numa feliz acepção “são trabalhos e

produtos de todos os conhecimentos e modos de vidas dos homens, como expressão de sua

memória viva (CUREAU, 2005: 730).

A opção social pelo patrimônio cultural é dinâmica, tanto que “bens que não são,

propriamente cultuais – como por exemplo, uma paisagem – podem ser considerados

importantes para a representação e para a memória de uma sociedade e, assim, passar a

integrar a grande família do patrimônio cultural. Isto é, um patrimônio não propriamente

cultural pode vir a sê-lo, através da intervenção voluntária de uma pessoa ou de uma

comunidade” (CUREAU, 2005: 730).

Os rios da Amazônia dentro do Direito Ambiental constituiriam o patrimônio

ambiental natural por suas próprias constituições, pela forma como se apresentam, livres de

qualquer intervenção humana. No entanto, a paisagem que oferecem, associada a uma

historicidade das comunidades tradicionais, faz presumir que o conceito não se restrinja

apenas ao ambiente natural, porque se está diante de valor de fisionomia cultural.

5. A CULTURA NA ORDEM CONSTITUCIONAL

Antecede o Estado a nação. Nação é um agrupamento social, constituído por pessoas

que interagem por meio da unidade linguística; distribuem iguais costumes; partilham

idênticos sentimentos e tem a mesma origem em específico espaço territorial, constituindo,

verdadeiramente, uma relação cultural. Quando a nação se organiza jurídica e politicamente

tem-se o Estado (PAUPÉRIO, 1978:37-38).

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Por isso, é presumível que a nação seja o berço da cultura, ou, numa linguagem

também adequada, a origem de toda a civilização.

Quando a nação tem sua organização jurídica instituída, está facilitado o trabalho de

reconhecimento e proteção do seu patrimônio cultural. A Semana de Arte Moderna em 1922,

sugeriu a necessidade de legislação favorável ao patrimônio artístico e histórico nacional.

Neste mesmo ano foi criado do Museu Histórico Nacional (Dec. 1596, de 2 de agosto de

1922), destinado a reunir objetos que tivessem relação com a história da pátria e fazê-los em

exposição ao público. Em 1933 a elevação da cidade de Ouro Preto à condição de monumento

nacional, foi mais um registro, embora precário, da importância que o patrimônio nacional

vinha gradualmente despertando nos governantes brasileiros.

A Carta Constitucional de 1934 prescreve aos entes estatais o estímulo às artes,

letras, ciência e cultura em geral, bem como a proteção aos objetos de interesse histórico e

artístico. No ano de 1937 veio a lei de tombamento e na atualidade a proteção se estende aos

bens imateriais por meio do Decreto n. 3.551, de 4 de agosto de 2000.

Especificamente, quanto a Carta Constitucional em vigor, são protegidas todas as

obras materiais e imateriais, que reflitam a formação do povo brasileiro e tenham relação com

a sua história e civilização. Textualmente o caput do art. 216 da Constituição Federal, ordena

o seguinte enunciado:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e

imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira.

Incluem-se neste patrimônio:

a) formas de expressão;

b) modos de criar, viver e fazer;

c) criações artísticas, científicas e tecnológicas;

d) obras, objetos, documentos e edificações;

e) espaços destinados a manifestações artístico-culturais;

f) conjuntos urbanos e sítios (históricos, paisagísticos, artísticos, arqueológicos,

paleontológicos, ecológicos e científicos (Brasil, 1988)).

6. A CULTURA DE BENS REPRESENTATIVOS DA NACIONALIDADE

Ana Lúcia G. Meira, ao prefaciar a obra Bens culturais e proteção jurídica, realçou

que “[...] o tema dos bens culturais cada vez se torna significativo nesses tempos de

globalização. Sua preservação passa a significar a valorização das diferenças que constituem

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as nossas identidades – base da nossa capacidade transformadora e de nossa resistência”

(SOUZA FILHO, 1999: 11).

Em abono à assertiva, considere-se que, no mundo globalizado, onde todos podem

estar em toda parte ao mesmo tempo, o patrimônio cultural é um referencial identificador da

história dos homens e das sociedades em um determinado quadrante do planeta.

Esse é o valor da cultura. A história do homem no planeta Terra. Suas referências e

laços com o passado.

Esse elo, unindo o presente ao passado, está representado pelo patrimônio cultural. O

valor que ele tem pode ser deduzido com base na reflexão que se faz do que seria o presente,

sem o registro pretérito, que tanto pudesse justificar a trajetória humana.

Por outro lado, a cidadania pressupõe uma identidade com a cultura. O cidadão, para

sê-lo, deve ser constituído com os valores e as peculiaridades da sociedade que o originou.

Por isso mesmo, a cultura reporta-se à cidadania como o veículo que mantém o cidadão

jungido à sua história cultural. Diante disso, ressalta-se a importância da cultura de bens

representativos da nacionalidade.

CONCLUSÃO

A sociedade contemporânea considera importante reverenciar o patrimônio cultural,

ter zelo e guarda permanentes sobre o mesmo. Este sentimento se justifica, porque o elemento

cultural propicia a identificação do homem na unidade de tempo e de espaço onde ele vive.

Realça vidas anteriores e feitos memoráveis, que a posteridade consagrou como

significativos.

Além do mais é um registro do seu progresso social, científico, intelectual e do valor

moral que aquele grupo social apresenta.

Em um mundo globalizado, onde as economias e mercados tendem a impor uma

nova ordem valorativa, o patrimônio cultural resguarda a importância da história do homem e

a sua trajetória, além de nomear os seus vínculos pretéritos, que o habilitaram a viver o

presente e a planejar o futuro.

Por isso, a gama de referências que o patrimônio cultural concede ao homem deu

realce à memória coletiva. Esta mesma, que designa a impressão do grupo a respeito de

determinados bens por todos prestigiados, pela importância histórica e artística que eles têm.

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Individualmente, o homem tem um registro pessoal. É identificado pela família que

integra, com nomes ou patronímicos, além de serem próprios os bens considerados do seu

domínio. Afora isto, ele recebe uma série de informações sobre a ancestralidade, que o

precedeu e as transmite aos seus descendentes, constituindo assim o registro sucessivo da sua

linhagem.

Socialmente o grupo elege os valores, os dados históricos importantes, as obras

significativas e os feitos memoráveis. Todo este acervo passa a compor a memória coletiva ou

o conjunto de lembranças que deve prevalecer, como registro daquela civilização e da sua

historicidade. Este é, portanto, o patrimônio cultural - um conjunto de bens e lembranças

indissociáveis da existência humana, representativo de específica nacionalidade e que,

costumeiramente, não se repete em outro espaço e tempo. Por ser assim, é identificador da

nação e do grupo social que a integra.

Na atualidade os registros de um grupo social são importantes para conter a perda da

identidade dele. Este acontecimento se evidencia por economias dominantes e Estados

hegemônicas, os quais, subliminarmente, vão adentrando territórios com outros valores,

histórias e culturas, comprometendo toda a historicidade de sociedade previamente

constituída.

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Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa

15

Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em: <

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