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38 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 38-53, jan./jun. 2013 38 Luiz Alexandre Solano Rossi** Resumo:a vocação profética não nasce no vazio. Ao contrário, suas raízes estão firma- das no chão da história. São palavras que preenchem e acompanham o espaço público. Nesse sentido o espaço privilegiado do discurso profético é o tempo da monarquia ou, poderíamos dizer, a desconstrução da monarquia a partir de uma vocação que se faz a partir dos conceitos de justiça e direito como instrumentos de defesa dos mais vulneráveis. Palavras-chave: Vocação. Profetismo. Justiça. Direito. Monarquia. A emergência do movimento profético em Israel aconteceu na presença e como resposta ao poder real. É digno de nota registrar que o profetismo é um evento com hora e lugar muito próprios. Não se localiza antes e muito menos depois do evento monárquico. Na verdade, a simultaneidade entre esses dois eventos indica, desde a origem de ambos, os grandes embates que aconteceriam. A função dos profetas, como intérpretes da realidade, era a de tratar com modelos dominantes de poder e definições dominantes de realidade. As palavras deles invadiam e desmascaravam a realidade bem ordenada do ponto de vista daqueles que se mantinham em posições de poder, mas que não possuíam uma séria referência a Iahweh. É correto afirmar que os profetas continuamente fizeram da justiça e do direito a chave para o bem-estar. Koch (1984, p. 33) chega mesmo a afirmar que “justiça e direito são os pilares que dão sustentação a uma sociedade”. São amplamente conhecidas, famosas e abundantes as advertências proféticas que expressam o fato de Israel ter violado o mandamento fundamental de Javé A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE JUSTIÇA E DIREITO NA CONSTRUÇÃO DA VOCAÇÃO PROFÉTICA* ––––––––––––––––– * Recebido em: 05.12.2012. Aprovado em: 10.01.2013. ** Professor-adjunto no Mestrado em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: [email protected] . Site: www.luizalexandrrossi.com.br

A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO DE JUSTIÇA E DIREITO NA

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38 , Goiânia, v. 11, n. 1, p. 38-53, jan./jun. 201338

Luiz Alexandre Solano Rossi**

Resumo:a vocação profética não nasce no vazio. Ao contrário, suas raízes estão firma-das no chão da história. São palavras que preenchem e acompanham o espaço público. Nesse sentido o espaço privilegiado do discurso profético é o tempo da monarquia ou, poderíamos dizer, a desconstrução da monarquia a partir de uma vocação que se faz a partir dos conceitos de justiça e direito como instrumentos de defesa dos mais vulneráveis.

Palavras-chave: Vocação. Profetismo. Justiça. Direito. Monarquia.

A emergência do movimento profético em Israel aconteceu na presença e como resposta ao poder real. É digno de nota registrar que o profetismo é um evento com hora e lugar muito próprios. Não se localiza antes e muito menos depois do evento monárquico. Na verdade, a simultaneidade entre esses dois eventos indica, desde a origem de ambos, os grandes embates que aconteceriam. A função dos profetas, como intérpretes da realidade, era a de tratar com modelos dominantes de poder e definições dominantes de realidade. As palavras deles invadiam e desmascaravam a realidade bem ordenada do ponto de vista daqueles que se mantinham em posições de poder, mas que não possuíam uma séria referência a Iahweh. É correto afirmar que os profetas continuamente fizeram da justiça e do direito a chave para o bem-estar. Koch (1984, p. 33) chega mesmo a afirmar que “justiça e direito são os pilares que dão sustentação a uma sociedade”. São amplamente conhecidas, famosas e abundantes as advertências proféticas que expressam o fato de Israel ter violado o mandamento fundamental de Javé

A IMPORTÂNCIA DO CONCEITO

DE JUSTIÇA E DIREITO NA CONSTRUÇÃO

DA VOCAÇÃO PROFÉTICA*

–––––––––––––––––

* Recebido em: 05.12.2012. Aprovado em: 10.01.2013.

** Professor-adjunto no Mestrado em Teologia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). E-mail: [email protected] . Site: www.luizalexandrrossi.com.br

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relativo à prática da justiça e do direito: Am 5,7.24; 6,12; Os 6,6; 10,12; 12,6; Mq 6,8; Is 5,7; Jr 4,22; 5,20-29; 7,5-7; 22,3.13-17; Hb 2,9-14; Ez 18,5-9; Zc 7,9-10; Is 56,1. Os profetas têm como seu terreno de atuação a vida cotidiana de seu povo. Exercem em meio a vida uma missão política. Na verdade, o profeta é “um homem político” (CHOURAQUI, 1990, p. 215) e, consequentemente, suas palavras podem também ser compreendidas como teologia política. E, por conta disso, talvez seja impossível conceber a existência – e muito menos a interpretação – dos profetas fora do contexto histórico em que agem. É até mesmo interessante a maneira como Chouraqui (1990, p. 213) os profeta, isto é, como “loucos de Deus”.

De fato encontramos nas narrativas bíblicas textos que são antimonárquicos quanto àqueles que são pró-monarquia. A opinião pró-rei prevaleceu gerando, pos-teriormente, o estabelecimento da ideologia real davídica. Já em Juízes 8 percebemos o confronto entre partidos distintos: o sucesso político de Gideão como salvador militar o conduz à possibilidade de uma nova aventura política – a perpetuação no poder a partir de uma nova função, isto é, a de rei – que é resolvida em deferência ao reinado de Iahweh : “Eu não governarei sobre vocês e meu filho não governará sobre vocês; o Senhor é que governará sobre vocês” (Jz 8,23).

Talvez a principal disputa relativa à legitimidade da monarquia seja aquela que se encontra em 1 Samuel 8. Um texto que podemos considerar distintamente antimonárquico. Uma proposta pelo reinado é reivindicada pelos anciãos que percebem que o antigo sistema de juízes se apresenta como disfuncional e corrupto (v. 1-5). No entanto esse capítulo chave é contado a partir de uma perspectiva de resistência à monarquia, no qual Samuel – o líder do antigo sistema de poder - Iahweh e o narrador concordam que a monarquia é inacei-tável e que representa, por isso mesmo, um ato de rejeição de Iahweh (v.7).

No fim a monarquia prevalece talvez em face da influência daqueles que a defendiam. Mas a prevalência do sistema monárquico não acontece sem relutância ma-nifestada da parte de Samuel e de Iahweh. É famoso o texto que faz grandes advertências contra a monarquia, isto é, 1 Samuel 8, 11-18:

Este é o direito do rei que governará vocês: ele convocará os filhos de vocês para cuidar dos carros e cavalos dele, e correr à frente de seu car-ro. Ele os nomeará chefes de mil e chefes de cinquenta. Ele os obrigará a ararem a terra dele e fazerem a colheita para ele, a fabricarem para ele armas de guerra e as peças dos seus carros. As filhas de vocês serão convocadas para trabalhar como perfumistas, cozinheiras e padeiras. Ele tomará os campos, as vinhas e os melhores olivais de vocês, para dá-los aos ministros. Pegará a décima parte das plantações e vinhas de

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vocês, e as dará aos oficiais e ministros. Os melhores servos e servas, os bois e jumentos de vocês, ele os tomará para que fiquem a serviço dele, e cobrará, como tributo, a décima parte dos rebanhos. E vocês mesmos serão transformados em escravos dele. Quando isso acontecer, vocês se queixarão do rei que escolheram. Nesse dia porém, Javé não dará nenhuma resposta a vocês.

É possível dizer que esta tradição veja a monarquia com uma forte suspeita de con-centração de poder e antecipa as características de um governo centralizado a partir do princípio de exploração, usurpação e autobenefício. Este reco-nhecimento é fundamental para a crítica bíblica do poder principalmente a partir da emergência da vocação profética. É possível afirmar que a partir do momento em que a monarquia em Israel foi estabelecida a maneira de se conceber a monarquia sofrerá uma radical mudança, ou seja, depois de Davi a pergunta não mais será “Teremos um rei?”, mas sim “Quem será o rei?” (1 Rs 1,27). No fim, Israel opta irreversivelmente pela monarquia como sua expressão central de poder. Não há espaço para maiores contradições, pois o rei e sua ideologia estão bem à vontade na presença de Deus.

Na percepção do profetismo, portanto, a monarquia pode ser vista como negação da justiça e do direito. Não devemos nos esquecer que a relação entre monarquia e profetismo é, em sua maior parte, tomada de antagonismos. Considerada ao extremo constata-se que aos olhos dos profetas a consciência dominante deve ser criticada radicalmente da mesma forma que o grupo político domi-nante deve ser completamente desfeito. A análise de Lowery (2004, p. 13-4) ratifica a posição assumida nesse artigo:

A monarquia teve enorme impacto sobre a vida econômica e social da nação. O fornecimento de apoio material para a corte e seu culto empurrou os já vulneráveis agricultores israelitas até a beira do abismo e por ele abaixo. As políticas reais impuseram duplo fardo ao povo trabalhador. As exigências de impostos e trabalhos forçados acarretaram mudanças econômicas que deixaram um número cada vez maior de pessoas sem terras, alienando-as dos seus meios de subsistência.

Os profetas, por conseguinte, não viviam em um vácuo político, ao contrário, emergiam dele, eram influenciados e refletiam diferentes tradições teológicas e perspec-tivas sociais. Falavam concretamente para um tempo, lugar e circunstância particular. Nesse sentido suas palavras não tinham o caráter de universalida-de. Eles percebiam seu tempo e lugar como um espaço de crise. Na verdade, seria possível dizer que a crise para eles representava um contexto no qual

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os perigos eram grandes e as decisões entre a vida e a morte precisavam ser tomadas. Não é outra a compreensão de Clements (1988, p. 2) ao afirmar que “a profecia pode ser adequadamente compreendida e interpretada somente em relação aos eventos para os quais ela foi primeiramente endereçada”. Nesse espaço de vivência cotidiana eles respondiam às crises, mas também podiam e deviam ser entendidos como geradores de crises. Uma exigência de justiça absoluta habitava cada um deles e os conduzia em direção às contradições da sociedade em que viviam.

Consequentemente, no comportamento e na teologia dos profetas não havia espaço para a neutralidade! Era sempre uma teologia parcial e sempre dependente do momento. Uma teologia devedora da comunidade concreta e, por isso, corria o risco de contradizer o resto da realidade que se apresentava “ordenada”, isto é, o discurso dos profetas reagia contra a consciência real porque seu habitat natural é desde baixo enquanto a consciência real vinha desde cima, ou seja, do interior do palácio. É na esfera pública onde se afirma que Javé se dá a conhecer e é visível. O ambiente público é o locus principal onde podemos perceber que a vocação para o direito e para a justiça dá testemunho da opção preferencial de Javé pela ordenação de uma comunidade fraterna.

As palavras proféticas, portanto, se referem a uma perspectiva pública e concreta de paz, de justiça, de segurança e de abundância em meio a um mundo tomado pelo caos social em que “os mais ricos começaram a ‘juntar campo a campo e casa a casa’ (Is 5,8; Mq 2,2); os camponeses, endividados, eram trocados ‘por um par de sandálias’ (Am 8,6). O luxo desenfreado e a gastança impe-ravam” (GALLAZZI, 2011, p. 94). Época em que até mesmo a expressão “povo da terra” que até o século VIII indicava o camponês livre, começou a indicar os donos das terras compradas, isto é, passou a indicar os fazendeiros que a exploravam com o trabalho de seus escravos (Jr 34,8-11) e que sempre estiveram associados ao palácio do rei (Jr 1,18; 37,2; 44,21; Ez 7,7).

A perspectiva dos profetas se contrapõe às práticas públicas do poder, principalmente quando elas não se configuram de acordo com o propósito de Javé e, por isso, a fuga do concreto é impossível no discurso profético.

DISCURSOS PROFÉTICOS EM DEFESA DA VIDA

Na impossibilidade de pesquisar a totalidade da literatura profética procurarei perce-ber como esses dois importantes conceitos se apresenta no profeta Jeremias. É possível afirmar que a prática da justiça é a exigência básica que percorre o livro de Jeremias do começo ao fim; a denúncia social em seu discurso é fundamental e inquietante. Brueggemann (1983, p. 79) chega mesmo a afir-mar que o “ministério de Jeremias foi um modelo voltado totalmente para a

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crítica radical”. É como se o profeta dissesse: não há leis! não há limites! Em Jeremias buscar a Javé não significava visitá-lo informalmente no Templo, mas sim encontrá-lo na prática da justiça e do direito nas ruas da cidade. Seria no espaço público que a justiça e o direito se encontrariam e se beijariam. É no ambiente profano, justamente onde a vida se decide, é que se encontra a atividade profética. Jeremias não abre mão de dar um tratamento mais pro-fundo da falta de compromisso da monarquia com a justiça.

A importância, por exemplo, da exortação em Jeremias 7,1-11 – o famoso discurso no templo - insistindo na defesa das pessoas mais fracas e acrescentando a proi-bição de derramar sangue inocente é essencial para entendermos aquilo que considero a maior novidade de seu discurso, ou seja, a promessa de continuidade da dinastia davídica condicionada à prática da justiça. Jeremias não apresenta e muito menos ratifica uma promessa incondicional de acesso ao trono, mas sim uma promessa condicionada à prática da justiça. É importante lembrar que o compromisso com a dinastia se converteu na raiz fundamental do messianismo posterior. Coloca-se na boca do profeta Natã a promessa da dinastia vindoura (2 Samuel 7,15-15; Salmo 89,36-38).

Contudo, ao contrário de Jeremias, a população de Judá estava plenamente convencida de que a presença entre eles de um rei da casa real de Davi era um sinal seguro do favor e da proteção de Deus (BRIGHT, 1986, p. 58). Mais de três séculos de história pareciam provar esta crença, especialmente quando contrastada com o destino das curtas dinastias do reino do Norte. No entanto, Jeremias expõe essa perigosa falácia. Para ele, uma fé que tinha como seu objeto uma pessoa ou instituição e não o próprio Deus era incompleta e inadequada. Um rei que era indulgente na opressão e que abusava dos privilégios de sua posição não podia esperar receber a benção e a proteção divina. Nas palavras de Clements (1988, p. 128): “Ao invés de agirem como pai e guardião de seu povo, cada um dos reis de Judá tinham se mostrado como exploradores e opressores do povo”. Jeremias elabora uma teologia que nasce fora dos muros do palácio. Uma teologia que possuía como critério fundamental a defesa da vida humana, principalmente dos mais vulneráveis.

Pode-se perceber de imediato que a expressão “justiça e direito” não podem ser com-preendidos como substantivos abstratos. Ao contrário, como substantivos concretos eles denotam “justiça social” e, de forma consequente, devem ser percebidos principalmente em situações em que há uma quebra na ordem har-moniosa da comunidade. É possível afirmar que o critério fundamental para se elaborar qualquer teologia seja, necessariamente, a vida humana. Estamos de fato diante do coração da teologia política de Jeremias: o reinado davídico não era essencial para a eleição divina de Israel. Na verdade, esse mesmo reinado podia se tornar um obstáculo ao correto relacionamento entre o povo

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e Deus. Nos livros dos Reis, que relata a história oficial de Israel composta entre os exilados da Babilônia, Josias é louvado como um bom rei que andou nos caminhos de Davi (2 Rs 22,1-23,30). Esta afirmação provavelmente era partilhada pelos colecionadores de nosso livro, que não obstante nos permite saber que o profeta Jeremias não partilhava dessa concepção:

No tempo do rei Josias, Javé me disse: “Você viu o que fez Israel, essa rebelde? Ela andou por todos os altos montes e se prostituiu à sombra de toda árvore frondosa. Eu pensava que ela, depois de ter feito tudo isso, voltaria, para mim. Mas não voltou. Então sua irmã Judá, a infiel, viu tudo; viu que eu rejeitei a rebelde Israel exatamente por causa de todos os seus adultérios, entregando-lhe o documento de divórcio. Mas a infiel Judá, sua irmã, não teve medo: também ela caiu na prostituição. Com sua prostituição fácil desonrou o país, cometendo adultério com os ídolos de pedra e de madeira. Apesar de tudo isso, a rebelde Judá, irmã de Israel, não voltou para mim de todo o coração, mas apenas de mentira – oráculo de Javé (Jr 3,6-13).

A ideologia dos editores se faz presente. Sem dúvida que Josias liderava uma grande renovação litúrgica, que incluía purgar o templo de Jerusalém de imagens de outros deuses, mas pouco ou quase nada é dito a respeito dos esforços oficiais para combater a corrupção ou a exploração do pobre. Talvez fosse importante ler o sermão do templo no capítulo 7 como chave dessa situação, isto é, renovação religiosa sem justiça é falso, muito pior do que não renovar.

Outro texto em prosa de Jeremias é muito específico em sua abordagem da justiça econômica e do especial cuidado que se deve ter relativamente ao órfão, ao estrangeiro e à viúva, ou seja, na prática da justiça e do direito e permite continuar refletindo sobre as “funções sociais de Jeremias” para utilizar um termo de Wilson (1993, p. 220):

Você dirá ao palácio do rei de Judá: escute a palavra de Javé. Casa de Davi, assim diz Javé: Vocês, de manhã, administrem a justiça e libertem o oprimido da mão do opressor. Se não, a minha ira devorará como fogo; ela se acenderá, e nin-guém poderá apagá-la, por causa de todo o mal que vocês praticam. Eu estou chegando, Moradora do vale, Rochedo da planície – oráculo de Javé. Vocês dizem: “Quem poderá vir para nos atacar? Quem entrará em nossas casas?” Eu castigarei vocês conforme o fruto de suas ações – oráculo de Javé. Porei fogo na floresta de vocês e ele devorará tudo em volta. Assim diz Javé: Desça ao palácio do rei de Judá. Chegando aí, diga o seguinte: Rei de Judá, você que está sentado no trono de Davi, escute a palavra de Javé. Que seus funcioná-rios também escutem, como todo o povo que costuma entrar por estas portas.

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Assim diz Javé: Pratiquem o direito e a justiça. Libertem o oprimido da mão do opressor; não tratem com violência, nem oprimam o imigrante, o órfão e a viúva; e não derramem sangue inocente neste lugar. Se vocês obedecerem de verdade a esta ordem, os reis que se sentam no trono de Davi, e também os seus funcionários e todo o seu pessoal, continuarão entrando pelas portas deste palácio, montados em carros e cavalos. Mas se vocês desobedecerem a estas palavras, eu juro por mim mesmo - oráculo de Javé – que este palácio se transformará em ruína (21,11-22,.5).

A tarefa primordial do rei era a administração da justiça a partir do seu palácio. De fato, o palácio que deveria ser o local de irradiação do direito e da justiça, acabou se transformando numa fonte inesgotável de injustiça e de opressão. No antigo Oriente Próximo ressalta-se essa questão como fundamental para o equilíbrio das forças sociais. Na verdade, a proteção às viúvas, aos órfãos e aos pobres era uma prática já considerada em muitas regiões. Nas leis me-sopotâmicas, por exemplo, essa proteção está colocada logo no prólogo e de maneira estereotipada, a fim de servir de propaganda ao soberano, satisfazendo dessa forma a opinião pública. Percebe-se que da mesma forma que essas leis eram apresentadas sem nenhuma sanção legal, as probabilidades de aplicá-las no cotidiano pareciam excessivamente limitadas. Deve-se, portanto, ressaltar, que os soberanos esforçavam-se em direção à consolidação de seu império e do seu poder pessoal, mesmo que para isso precisassem explorar todos os meios que podiam servir para esta finalidade. Poderíamos denominar essa ação como a de uma construção da imagem pública do soberano.

Contudo, se permanecermos no ambiente das leis em si, notaremos que as leis de proteção seguem a mesma linha de administração da justiça que procuramos estabelecer no artigo. Se exemplificarmos somente com as leis mesopotâmicas, a fim de não estendermos em demasia com exemplos, notaremos situações interessantes. A deusa Nanshe, divindade sumeriana, é descrita como sensível à opressão do homem pelo homem, mãe dos órfãos, interessada pela sorte da viúva e ainda busca a justiça para os pobres e serve de amparo para os fracos. Sabemos ainda que a fonte do poder legislativo é de origem divina, mas seu exercício pertence ao rei; as leis humanas eram para eles reflexo das leis divinas. Num hino que elogia Dungi, rei de Ur, encontramos que ele é o guardião da cidade que instaura a justiça, protege o fraco e favorece o operário. Urukagina (2.400 a.C., aproximadamente), príncipe de Lagash, cidade-estado da Suméria conduz uma reforma que visa eliminar as injus-tiças cometidas por funcionários do palácio ou do templo, e pelos ricos em relação aos pastores, aos bateleiros, aos camponeses, aos devedores e suas famílias. Diz ainda que “mandou selar esta declaração por Ningirsu de que não entregaria ao rico as viúvas e os órfãos” (EPZTEIN, p. 23, 1990).

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De Gudea se diz que se empenhou em insistir que o homem rico e poderoso não prejudicasse o órfão e a viúva. De Ur-Nammu, ouvimos que sua realeza foi estabelecida pelos deuses para restabelecer a equidade e a justiça no país, tomando medidas eficazes para proteger os órfãos, as viúvas e os pobres. Se nos detivéssemos ainda nos códigos que vêem de Eshunna ou ainda no mais célebre dos códigos da Mesopotâmia, o de Hamurabi, continuaríamos com a mesma percepção de que a proteção dos mais fracos pela aplicação do direito e da justiça continuam presentes. Esse alto senso do que é certo e errado e as muitas medidas para se colocar um fim a várias espécies de injustiças – inclusive a exploração dos pobres – ilustram que o conceito de lei é muito antigo.

Pixley (2004, p. 70) é conclusivo ao afirmar que “os deuses do faraó legitimam seu governo, assim como os deuses de Canaã legitimam seus reis e em ambos os casos as demandas dos deuses tem pouco a ver com a defesa dos pobres. Mesmo quando seja possível observar em alguns textos egípcios e mesopotâmicos uma expressão de preocupação pelo bem-estar do pobre, eu não conheço nenhum texto que ameaça os governantes com punição se eles falharem nesse cuidado, como registrado em Jeremias”. Estamos, portanto, diante de uma novidade no que se refere à leis sociais no antigo Oriente Próximo. Poderíamos até mesmo intuir que nos textos bíblico nos deparamos com uma aproximação de leis sociais e evento teológico que poderíamos denominar de ‘dimensão teológico-social’. Uma dimensão que permitiria a vivência da fraternidade e da solidariedade para com os pobres e necessitados e a negação da opressão como se fosse pecado (Dt 24,15).

A justiça em relação àqueles que não conseguem fazer valer os seus direitos deve ser considerada imprescindível. Afinal, as leis serviam para proteger o povo contra as extorsões dos poderosos, prevenir contra a corrupção dos juízes e ainda ame-nizar a sorte das categorias desfavorecidas. Assim sendo, a ação preferencial da realeza deveria acontecer na defesa dos oprimidos e não para fomentar a injustiça. E o texto bíblico procura ser metódico na defesa dos enfraquecidos: a defesa precisa acontecer de manhã! Por quê? Exatamente porque é pela ma-nhã que os pobres comparecem ao tribunal público levando as suas causas (cfe 2 Sm 15,2-4). A administração da justiça foi um tema frequente nos profetas anteriores. Dela dependia em grande parte a existência da sociedade. Mas, até então, só encontramos exortações dirigidas a alguns grupos específicos, entre eles, os juízes, as autoridades, os chefes de Israel e de Judá e os sacerdotes. Todos esses eram responsáveis pela administração da justiça. Porém, o rei, como o responsável último, não era mencionado. Mas Jeremias muda essa situação e mostra que é de fato o rei que deve servir de intermediário entre o povo e Deus, administrando a justiça e o direito.

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Mas ao invés de solidariedade em relação aos pobres, o que se pode observar é a mais pura e nociva presunção dos que moram na cidade: “quem pode vir nos atacar? Quem poderá entrar em nossas casas?” Jerusalém sente-se inexpugnável e, por isso, não tem medo. E não tendo medo pode continuar com seus atos de opressão sem qualquer tipo de preocupação. Mas Javé está atento: o desrespeito pelos mais pobres pode implicar em ruína dos mais ricos causadores da opressão. Para a teologia bíblica a continuidade da vida depende da construção ou não de relações profundamente humanas e afetivas com aqueles que são transformados em objetos! Jeremias sentia que Iahweh lhe pedia para ir um passo além em sua elaboração e prática de uma teologia política, ou seja, “desafiar o próprio direito da elite de existir” (RUBENSTEIN, 2009, p. 80). Nessa mesma perspectiva, Kessler (2009, p. 141) afirma que em Amós, por exemplo, “a elite está intimamente relacionada com o poder estatal” criando uma possível forma de crise social, através da qual riqueza e pobreza são colocadas numa relação de causalidade, ou seja, “os ricos são ricos por causa da exploração dos pobres; os pobres são pobres porque são explorados pelos ricos” (KESSLER, 2009, p. 141). A conclusão parece-me óbvia: o espaço do palácio é privilegiador de grupos que dão sustentação ao projeto real; o palácio é um espaço privado por excelência e, consequente-mente, marginalizador dos grupos sociais minoritários. Aos que pertencem ao espaço privado – rei, funcionários e os que costumam frequentar o local – são contrapostos os habitantes do espaço público – ou seja – o imigrante, o órfão e a viúva.

E qual seria o princípio que dá sustentação à teologia de Jeremias? Trata-se justamente da prática do direito e da justiça. O texto inicialmente fala de modo gené-rico dos que sofrem a opressão e depois os discrimina. Genericamente são os oprimidos, que assumem o rosto do imigrante, do órfão e da viúva. Basta relembrar por enquanto que o profeta não está dizendo nada de novo. Ele simples e insistentemente invoca a legislação que protege os inocentes: “Não maltrate a viúva nem o órfão, porque, se você os maltratar e eles clamarem a mim, eu escutarei o clamor deles” (Ex 22,21-22) e “Não distorça o direito do estrangeiro e do órfão, nem tome como penhor a roupa da viúva” (Dt 24,17).

A viúva, órfão e estrangeiro são como símbolos daqueles mais vulneráveis, sem poder e marginalizados numa sociedade patriarcal e vivem sem proteção legal e influência econômica. Nessa tríade social o primeiro grupo com necessidade de atenção e cuidado é o estrangeiro. Frizzo (2011, p. 24) afirma:

O estrangeiro faz parte dos grupos socialmente fracos e tradicionalmente sem bens – terra, animais herança – e, embora sendo homem livre, está a mercê da colaboração da comunidade de Israel. Trata-se de despro-

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vido de qualquer sistema jurídico que possa defendê-lo, facilitando, assim, a exploração de seu trabalho e contribuindo para uma situação de extrema pobreza.

O povo de Israel sabia muito bem o que era ser estrangeiro oprimido, e mesmo assim, costumava deixar este grupo passar necessidade. Stigers (apud HARRIS, 1998, p. 256) assevera que estrangeiro:

É mencionado lado a lado com o pobre (Lv 19, 10; cf 23,22) e com os órfãos e as viúvas (Dt 14,29; 16,11 e 14; 24, 17; 26, 13; 27,19). Com eles partilhava dos feixes deixados no campo (24,19) e as respigas das oliveiras e videira (24, 20 e 21), junto com o dízimo a cada três anos (14,27; 26,12). Devia ser tratado com justiça nos julgamentos (1,16; 24,17; 27,19), e as seis cidades refúgios também eram cidades refúgios para ele (Nm 35,15). Em resumo, o Senhor ama o ger (Dt 10,18). Os israelitas não deviam oprimi-los porque eles próprios foram oprimidos e sabiam o que era experimentar isso (Ex 22,21; Dt 10, 19). Deviam amá-lo como a si mesmos (Lv 19,34).

Órfãos são aqueles que “tem uma sorte sobremodo infeliz no tempo dos profetas (Is 1,23; Jr 5,28; Ez 22,7). Assim abandonado, o órfão não pode esperar senão de Deus: este é seu pai e seu amparo (Sl 68,6; 10,14)” (MONLOUBOU, 1996 p. 572). É interessante compreender quem os israelitas consideravam órfãos, tendo em mente que a proteção familiar provinha do homem (uma sociedade patriarcal), assim, mesmo tendo mãe considerava-se o indivíduo como órfão.

Em uma sociedade antiga, onde a mulher dependia inteiramente dos homens e de sua família, ser viúva era o ápice da fragilidade para uma mulher. Considera-se viúva “a mulher que passou a viver sem a proteção do marido, após a sua morte, tenha filhos ou não, e se vê diante do desafio de procurar a proteção familiar sob as condições patriarcais” (FRIZZO, 2011, p. 30). Ao perder o esposo, além da dor emocional sentida, iniciava-se a pobreza e o desamparo. A existência de viúvas não era indicação de bons tempos, pois de acordo com Monloubou (1996, p. 822) indicava que a situação era precária. Junto com os estrangeiros e os órfãos, constituía-se uma classe de pessoas infelizes e desafortunadas. Ao atentar para estes grupos tão sofredores e oprimidos (estrangeiro, órfão e viúva) Frizzo (2009, p.34) ressalta:

Fala-se desses grupos sociais num sentido sempre restrito, definido e inserido numa determinada situação de demanda, de pessoas que se

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vêem envolvidas numa esfera de violação de seus direitos e, ao mesmo tempo, têm consciência de que, sem a proteção legal, se encontram à mercê da própria sorte, isto é, correm o risco de morte.

Nessa sociedade a justiça e o direito asseguram que o bem individual seja um sub-conjunto do bem-estar comunitário. Quando o forte e o poderoso mobilizam seus recursos e energias para o fraco e vulnerável a paz e a prosperidade são gerados para todos. Para eles tanto o presente quanto o futuro são condicio-nados pela prática da justiça e do direito. Nesse sentido, a única maneira de haver bem estar para o “establishment” de Jerusalém seria a condição de bem-estar de toda a comunidade.

Frizzo (2011, p. 36) reafirma:

Nota-se uma forte sensibilidade no gesto de denunciar a falta de nor-mas éticas, capazes de garantir a justiça e o direito a esses grupos, tidos como sem importância em suas respectivas épocas. Os oráculos proféticos favorecem a percepção do alto grau de opressão e flagelo imposto a esses grupos desamparados.

Há no ar uma percepção de que a humanidade não pode e não deve ser reduzida a um único indivíduo e, que, portanto, a linha limite que impede a construção de uma sociedade planetária e cidadã, devem ser alteradas. Para isso é fundamental entender que só podem existir basicamente dois relacionamentos fundamen-tais entre uma pessoa e outra entidade individual. O primeiro relacionamento poderia chamar de eu-coisa. É uma forma de relacionar algo como uma coisa, ou objeto, cujo valor é extrínseco ou instrumental. Quando se encontra em uma relação desse tipo com algo, valoriza-o apenas na medida em que este serve aos seus propósitos. Seria o caso de um relacionamento com um copo, cujo único valor consiste em sua capacidade de conter a água que se está be-bendo e de levar essa água de uma forma eficiente até a sua boca. O segundo relacionamento poderia chamar de eu-tu. É a atitude fundamental que um ser humano deveria tomar sempre para o outro, um relacionamento de respeito na qual o outro indivíduo é visto como tendo valor intrínseco, valor em e por si, independentemente de poder gerar qualquer outro valor para você. É uma postura de respeito e de dignidade, de valorização da vida do outro.

A negligência para com o que é genuinamente humano é o principal motivo pelo qual tantas pessoas na sociedade sentem-se mais vítimas do que beneficiá-rias dos avanços do progresso científico-tecnológico e econômico. Talvez seja necessário perceber que a deterioração da percepção do outro produz, consequente e inevitavelmente, uma negação ontológica que desemboca na

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violência. E esta negação descreve-se no fato de que o ente, sem desaparecer, se encontra em meu poder. Ora, toda negação – ainda que mesmo parcial – é desumana. Nega a independência do outro; torna-o dependente de mim. E, para Jeremias, nenhuma alternativa é possível: somente a prática da justiça e do direito poderá sustentar o trono. Sem a prática da justiça e do direito o palácio se transformará em um luxo-lixo inútil e perigoso.

Num outro texto de forte impacto, Jeremias faz uma descrição corajosa das ações do rei Joaquim. Um texto que certamente demonstra algo da “coragem heróica de Jeremias contra um rei tirânico que estava disposto a usar seu poder de forma inescrupulosa” (JENSEN, 2009, p. 180). O discurso de Jeremias cul-pabiliza o rei Joaquim por oprimir seus súditos com trabalhos forçados a fim de construir um palácio magnífico para si.

Ai daquele que constrói a sua casa sem justiça e seus aposentos sem di-reito, que faz o próximo trabalhar por nada, sem dar-lhe o pagamento, e que diz: “Vou construir uma casa grande, com imensos aposentos”. E faz janelas, recobre a casa com cedro e a pinta de vermelho. Você pensa que é rei porque tem mais cedro que os outros? O seu pai não comeu e não bebeu? Pois ele fez o que é justo e o que é direito, e no seu tempo tudo correu bem para ele. Ele julgava com justiça a causa do pobre e do indigente; e tudo corria bem para ele! Isto não é conhecer-me? – oráculo de Javé. Mas você não vê outra coisa e não pensa a não ser no lucro, em derramar sangue inocente e em praticar a opressão e a violência (22.13-17).

O país encontra-se sob o domínio do Egito. O faraó impôs pesado tributo sobre Judá.

Diz o texto bíblico em 2 Reis 23,33 a dimensão do tributo: “O faraó impôs ao país um tributo de três toneladas e meia de prata e trinta e quatro quilo de ouro”. E para ser “fiel” ao conquistador o rei Joaquim “para pagar a quantia exigida pelo faraó, teve que criar impostos no país” (2 Rs 23,35). Também não podemos nos esquecer da quantidade de ouro que aparentemente entrava no palácio de Salomão: “O ouro que Salomão recebia anualmente pesa vinte e três mil quilos” (1 Rs 10,14). Ou seja, o rei repassava a cobrança do tributo internacional para o povo, gerando uma exploração ainda maior. A corrupção andava solta. Mesmo nessa situação o rei achava normal construir seu luxuoso palácio enquanto o povo passava fome. A descrição do texto bíblico não dei-xa lugar para dúvidas: apesar da falta de dinheiro por causa do tributo, o rei gastou uma verdadeira fortuna na construção de um palácio de uso privado!

Uma lógica perversa começa a ser construída. Joaquim está contrariando o que diz Deuteronômio 24,14-15: “Não explore um assalariado pobre e necessitado, seja ele um de seus irmãos ou imigrante que vive em sua terra, em sua cidade.

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Pague-lhe o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e a sua vida depende disso. Assim, ele não clamará a Javé contra você, e em você não haverá pecado”. Mas, diga-se de passagem, Joaquim não apenas contraria o Deuteronômio, mas, também, contraria um ideal propagado pelo antigo Oriente Próximo, isto é, “ao agir contrariando a justiça e o direito está faltando à sua obrigação de rei” (SICRE, 1990, p. 486). O que se pede é que as relações sociais sejam baseadas na fraternidade e na solidariedade, e não na instrumentalização do outro como fonte de lucro. Uma inversão que até hoje, numa sociedade consumista, consagra o ter e degrada o ser.

A fim de que nada se extravie nessa descrição, o profeta compara Joaquim ao seu pai, Josias. É justamente na prática de cada um deles que encontramos a diferença básica. Julgar a causa do pobre e do necessitado é a substância do conhecimento de Iahweh (BRUEGGEMANN, 1983, p. 612). Quando o rei empreende estas práticas na administração do poder público, o conhecimento de Iahweh é me-diado na comunidade de Israel. Esta mesma expectativa do rei como mediação do papel de Iahweh é evidenciado em dois oráculos (um em Isaías 9,2-7 e outro em Jeremias 22,2-5) que talvez estejam relacionados à coroações reais. No texto de Isaías a antecipação de uma grande vitória militar davídica culmina na caracterização de um governo monárquico bem-estabelecido e seguro. As mesmas palavras “justiça e direito” são utilizadas para cobrar o rei a partir de uma radical administração do poder público nos interesses de toda a comunidade (cfe. 1 Reis 10,9 para o mesmo par de palavras). Iahweh estará presente através da dinastia davídica desde que tais práticas do poder público sejam exercitadas.

Em Josias encontramos um rei que através do seu governo procurava reformar a vida da nação. Mas em Joaquim, o próprio governo se transformou num centro de opressão, corrupção e de violência. É a própria concepção da realeza que está em jogo. Joaquim não somente infringe uma lei do Deuteronômio, mas falta com a sua obrigação de rei ao deixar a justiça e o direito distante de sua prática real. Que significa o próximo na vida do rei Joaquim? Absolutamente nada! O próximo é reduzido a mão de obra e a objeto de opressão. Ao reduzir o ser humano a menos do que ele é, o rei Joaquim sinaliza que ele mesmo já se desumanizou. Ao negar para o outro uma visão enriquecedora do ser humano, ele mesmo se identifica como o protagonista da anti-vida.

“Contra a gestão de poder” (LIVERANI, 2008, p. 229), Jeremias condena o luxo do rei Joaquim e da casa real por sua injustiça e sua corrupção. Joaquim vive na prática da injustiça e essa situação impede que ele conheça a Javé. Que signi-fica conhecer a Javé? O texto não deixa dúvidas: é reconhecer suas exigências éticas. Mas como poderia Joaquim viver a partir de um padrão ético se o seu coração estava totalmente entregue ao lucro? Se para atingir o lucro era capaz de fazer uso da violência e de assassinar o próprio povo? Os olhos e coração

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de Joaquim estavam transbordando de práticas injustas de tal maneira, que não há espaço para o cultivo da justiça e do direito. Quando há ausência de justiça e do direito multiplicam-se toda sorte de injustiças. Triste a situação do rei Joaquim: o dinheiro é o seu deus e, por isso, é incapaz de reconhecer o Deus verdadeiro, que não tolera qualquer tipo de adversário! Sicre (1990, p. 488) é categórico ao afirmar que para Joaquim o próximo não possuía significado algum: “Faltam os termos típicos para falar dos personagens mais fracos (‘ani, ebyon, dal, etc). Para o rei, o próximo (r’) vale só enquanto possível mão de obra e objeto de opressão”. A crítica social do profeta Jeremias é devastadora. Para ele violência e injustiça são conquistadas por meio de opressão política e exploração econômica, além de se apresentarem como o contraditório por excelência para a construção de uma sociedade fraterna e onde caibam todos.

CONCLUSÃO

No Antigo Testamento, o contrário dos pobres não são simplesmente os ricos, mas sim os orgulhosos e poderosos. Estes exploram, enganam, oprimem, es-magam e matam os pobres; são aqueles sujeitos que conservavam os pobres na pobreza e que se beneficiavam deles. A pobreza bíblica, nesse caso, não deve – de forma alguma – ser considerada uma situação resultante de uma lei natural ou como se fosse vontade de Javé. Não é lei natural e muito me-nos doutrina teológica. Mas sim o resultado da violência e da injustiça. Na literatura bíblica, principalmente nos profetas, a pobreza é sentida como um escândalo intolerável. Nos marginalizados reside, portanto, a singularidade dos profetas. Em suas palavras e em seus gestos eles se dirigem à todos aqueles que eram considerados como não-pessoas e que estavam permanentemente condenados a não terem história.

O bem-estar no mundo pode ser implementado e estabelecido a partir de dimensões políticas e sócio-econômicas concretas. A vocação dos profetas, fundamentada na prática da justiça e do direito e vivida publicamente, devem ser percebidas contemporaneamente como um antídoto contra a ideologia do individualismo que estabelece fronteiras determinadas e intransponíveis em relação aos mais vulneráveis. Nesse caso é correto afirmar que a vocação profética ilumina uma nova possibilidade histórica construída desde a periferia. Se apenas nos reunirmos ao redor de um deus da ordem e que protege apenas os inte-resses dos que tem, podemos ter a certeza de que os impérios da violência e da opressão não estarão longe. E, de certa forma, seria razoável salientar, seguindo a intuição de Brueggemann (1983, p. 146) “que o ministério pro-fético consiste em apresentar uma percepção alternativa da realidade e em levar as pessoas a ver a própria história à luz da liberdade de Deus e de sua

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vontade de justiça”. Como hermeneutas da realidade, os profetas, através de sua imaginação criativa conseguem diante da realidade que se impõe de forma injusta e opressora, construir uma contracultura a partir da justiça e do direito a fim de que laços de solidariedade unam o tecido social.

A política da opressão e da violência somente pode ser vencida pela prática da jus-tiça e do direito! Trata-se, portanto, de vocação como crítica ao sistema estabelecido. Justiça e direito são conditio sine qua non para a formação de um profeta tanto ontem quanto para a atual realidade eclesial. Nele, o conhecimento de Javé acontece a partir da defesa dos mais vulneráveis e do restabelecimento do direito dos pobres. O profeta faz do triunfo da justiça e do direito a condição de sobrevivência de sua nação, isto é, a medida de uma nação passa pelo modo como ela trata os mais vulneráveis. Nesse sentido, os profetas, através de seus discursos, buscam defender a justiça, o respeito pelos valores humanos de defesa dos pobres e dos fracos.

THE IMPORTANCE OF THE CONCEPT OF JUSTICE AND RIGHT IN THE CONSTRUCTION OF THE PROPHETIC VOCATION

Abstract: the prophetic vocation is not born in a vacuum. Rather, its roots are fas-tened on the ground of history. These words come and fill the public space. In this sense the privileged space of prophetic discourse is the time of the monarchy or we might say, the deconstruction of the monarchy from a voca-tion that makes the concepts of justice and law as instruments to defend the most vulnerable.

Keywords: Vocation. Prophecy. Justice. Law. Monarchy.

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