_A Infinita Fiandeira_ - Um Inesquecível Conto de Mia Couto - Revista Pazes

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  • 7/26/2019 _A Infinita Fiandeira_ - Um Inesquecvel Conto de Mia Couto - Revista Pazes

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    "A infinita fiandeira" - Um inesquecvel conto de Mia

    Couto - Revista Pazes

    A aranha, aquela aranha, era to nica: no parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e

    formas. Havia, contudo, um seno: ela fazia-as, mas no lhes dava utilidade. O bicho repaginava o

    mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela j amealhava uma poro

    de teias que s ganhavam senso no rebrilho das manhs.

    E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimbo gotejando, rendas e

    rendilhados. Tudo sem nem finalidade. Todo bom aracndeo sabe que a teia cumpre as fatias

    funes: lenol de npcias, armadilha de caador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em

    suas distraioeiras funes.

    Para a me-aranha aquilo no passava de mau senso. Para qu tanto labor se depois no se dava

    a indevida aplicao? Mas a jovem aranhia no fazia ouvidos. E alfaiatava, alfinetava, cegava os

    ns. Tecia e retecia o fio, entrelaava e reentrelaava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em

    nenhuma. Recusava a utilitria vocao da sua espcie.

    No fao teias por instinto.

    Ento, faz porqu? Fao por arte.

    Benzia-se a me, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofcio de infinita

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    teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. os pais, aps

    concertao, a mandaram chamar. A me:

    Minha filha, quando que acentas as patas na parede?

    E o pai:

    J eu me vejo em palpos de mim

    Em choro mltiplo, a me limpou as lgrimas dos muitos olhos enquanto disse: Estamos recebendo queixas do aranhal.

    O que que dizem, me?

    Dizem que isso s pode ser doena apanhada de outras criaturas.

    At que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genticos.

    Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moa seria at virgem, no tendo nunca

    digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.

    Vai ver que custa menos que engolir mosca disse a me.

    E aconteceu. Contudo, ao invs de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou

    enamorada. Os dois deram-se os apndices e danaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a

    teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?

    A aranhia levou o namorado a visitar sua coleo de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova

    de seu amor.

    A famlia desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricao daquele espcime.

    Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que

    poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a

    aranha foi convertida em pessoa. Qaundo ela, j transfigurada., se apresentou no mundo dos

    humanos logo lhe exigiram a imediata identificao. Quem era, o que fazia?

    Fao arte.

    Arte?

    E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? At

    que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que j se perdera

    memria, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha

    acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentveis produtos chamados de obras

    de arte tinham sido geneticamente transmutados em bichos. No se lembrava bem em que bichos.

    Aranhas, ao que parece.

    No livro O Fio das Missangas