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Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

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Domício Proença Filho Doutor em Letras e livre-docente em Literatura Brasileira

pela Universidade Federal de Santa Catarina

Professor titular e emérito da Universidade Federal fluminense

A linguagem literária

Edição revista e atualizada

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.

Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.

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© Domício Proença Filho

Diretor editorial Fernando Paixão

Editor Carlos S. Mendes Rosa

Editor assistente Frank de Oliveira

Preparador de texto Eliel Silveira Cunha

Coordenadora de revisão Ivany Picasso Batista

Revisão Lumi Casa de Edição

Estagiário Roberto Moregola

ARTE

Editora Cintia Maria da Silva

Capa e projeto gráfico Homem de Mello & Tróia Design

Editoração eletrônica Studio 3

EDIÇÃO ANTERIOR

Diretores Benjamin Abdala Júnior e Samira Youssef Campedelli

Preparador de texto Pedro Cunha Júnior

Coordenador de arte Antônio do Amaral Rocha

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

P9531.

8ª.ed.

Proença Filho, Domício, 1936-

A linguagem literária / Domício Proença Filho. — 8.ed. — São Paulo : Ática,

2007. 95p. — (Princípios; 49)

Inclui bibliografia comentada

ISBN 978-85-08-10943-2

1. Análise do discurso literário. I. Título. II. Série.

07-0594.

CDD 401.41

CDU 81'42

ISBN 978 85 08 10943-2 (aluno)

ISBN 978 85 08 10944-9 (professor)

2007

8ª edição

1ª impressão

Impressão e acabamento: Yangraf Gáfica e Editora Ltda.

Todos os direitos reservados pela Editora Ática, 2007

Av. Otaviano Alves de Lima, 4400 — São Paulo, SP — CEP 02909-900

Tel..:(11)3990-2100-Fax: (11)3990-1784

Internet: www.atica.com.br - www.aticaeducacional.com.br

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SSuummáárriioo

1. Introdução 5

Texto literário, texto não-literário 5

Literatura: conceitos 8

2. Literatura e linguagem 12

Mais um texto no percurso 12

Literatura e conhecimento 15

3. A linguagem 18

Conceitos 18

Sistema, comunicação e signo 20

Fatores do processo linguístico da comunicação e

funções da linguagem 21

Linguagem, língua e discurso 23

Discurso e estilo 25

Dimensões da linguagem 27

4. Arte literária, língua e cultura 30

Literatura, mímese e universalidade 30

Abertura e conotação 33

Cultura e arte literária 36

5. Características do discurso literário 40

Literatura e especificidade 40

Complexidade 41

Multissignificação 43

Predomínio da conotação 45

Liberdade na criação 46

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Ênfase no significante 47

Variabilidade 49

Modos de realização 50

Manifestações em prosa 50

As visões da narrativa, 51; Os personagens, 55; A ação, 56; O

tratamento do tempo, 57; O ambiente, 58; O estilo, 59

Manifestações em verso 62

O metro, 63; A rima, 67; As formas fixas, 69

Verso, prosa, gêneros literários 69

Questões em aberto 74

A questão do referente 74

Intertextualidade 75

Fechamento 78

6. Vocabulário crítico 80

7. Bibliografia comentada 85

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Pág. 05

11

IInnttrroodduuççããoo

TTeexxttoo lliitteerráárriioo,, tteexxttoo nnããoo--lliitteerráárriioo

Imaginemos que, na comunicação cotidiana, alguém nos diga a

seguinte frase:

— Uma flor nasceu no chão da minha rua!

Conforme as circunstâncias em que é dita, isto é, de acordo com a

situação de fala, entendemos que se refere a algo que realmente ocorreu,

corresponde a um fato anterior ao seu enunciado e de fácil comprovação.

Mesmo diante de sua transcrição escrita, o que nela se comunica

basicamente permanece.

Num ou noutro caso, para veicular essa informação, o nosso

interlocutor selecionou uma série de palavras do idioma que nos é comum

e, de acordo com as regras que presidem o seu funcionamento e que todos

conhecemos, as dispôs numa sequência. A seleção feita e a sucessão

estabelecida conferem à frase uma significação que pode ser submetida à

prova da verdade em relação à realidade imediata. Como é fácil concluir, é

isso que acontece ao nos comunicarmos no dia-a-dia do nosso convívio

social.

Retomemos a nossa frase inicial, agora ligeiramente modificada e

combinada com outros elementos:

Pág. 06

Uma flor nasceu na rua!

Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.

Uma flor ainda desbotada

ilude a polícia, rompe o asfalto.

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Façam completo silêncio, paralisem os negócios,

garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.

Suas pétalas não se abrem.

Seu nome não está nos livros,

É feia. Mas é realmente uma flor.

Percebemos, desde logo, que estamos diante de uma utilização

especial da língua que falamos. O ritmo que caracteriza o texto, a natureza

do que se comunica e, ao chegar até nós por escrito, a distribuição das

palavras no espaço do papel justificam essa conclusão. A nossa frase-

exemplo depende também, como ato linguístico que é, da gesticulação e da

entoação que a acompanharem ao ser enunciada; por força, entretanto, de

sua situação nesse conjunto e da associação com as demais afirmações que

a ela se vinculam, abre-se para um sentido múltiplo, ganha marcas de

ambiguidade: no contexto do fragmento transcrito e da totalidade do poema

de que faz parte "A flor e a náusea", de Carlos Drummond de Andrade1,

podemos entender essa flor como esperança de mudança, por exemplo. Mas

esse sentido que o texto a ela confere não reproduz nenhuma realidade

imediata; nasce tão-somente do próprio texto. A flor dessa rua deixa de ser

um elemento vegetal para alçar-se à condição de símbolo, ganha uma

significação que vai além do real concreto e que passa a existir em função

do conjunto em que a palavra se

Pág. 07

encontra. É claro que os versos remetem a uma realidade dos homens e do

mundo, mas para além da realidade imediatamente perceptível e traduzida

no discurso comum das pessoas, li o que acontece com essa modalidade de

linguagem, a linguagem da literatura, tanto na prosa como nas

manifestações em verso.

Na prosa, por exemplo, podemos encontrar a palavra flor em outro

1 ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In:______. Nova reunião: 19 livros de poesia. Rio de

Janeiro/Brasília: J. Olympio/INL, 1983. v. 1, p. 112-3.

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contexto linguístico e com outro sentido, que lhe c conferido exatamente

por essa nova circunstância: trata-se do romance Memórias póstumas de

Brás Cubas, em que o termo aparece numa afirmação vinculada a um

famoso personagem criado pelo escritor: "Uma flor, o Quincas Borba"2.

Aí está um conteúdo inteiramente distinto do que se configura no

poema drummondiano e que só pode ser percebido de maneira plena

quando a frase é considerada na totalidade do romance em que se insere. É

possível perceber a estreita relação entre a dimensão linguística e a

dimensão literária que envolve a significação das palavras quando estas

integram o sistema semiótico que é o texto literário.

Os três exemplos que acabamos de examinar permitem algumas

conclusões.

A fala ou discurso é, no uso cotidiano, um instrumento da informação

e da ação. A significação das palavras, nesse caso, tem por base o jogo de

relações configuradoras do idioma que falamos. Vincula-se a uma verdade

de correspondência.

O mesmo não acontece com o discurso literário. Este se encontra a

serviço da criação artística. O texto da literatura é um objeto de linguagem

ao qual se associa uma representação de realidades físicas, sociais e

emocionais mediatizadas pelas palavras da língua na configuração de um

objeto estético. O texto repercute em nós na medida em que revele marcas

profundas de

Pág. 08

psiquismo, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres

sociais. O artista da palavra, co-partícipe da nossa humanidade, incorpora

elementos dessa dimensão que nos são culturalmente comuns. Nosso

entendimento do que nele se comunica passa a ser proporcional ao nosso

repertório cultural, enquanto receptores e usuários de um saber comum.

O discurso literário traz, em certa medida, a marca da opacidade: abre-

se a um tipo específico de descodificação ligado à capacidade e ao universo

2 MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ______. Obra completa.

Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1959. v. 1, p. 433.

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cultural do receptor.

Já se percebe o alto índice de multissignificação dessa modalidade de

linguagem que, de antemão, quando com ela travamos contato, sabemos ser

especial e distinta da modalidade própria do uso cotidiano. Quem se

aproxima do texto literário sabe a priori que está diante de manifestação da

literatura.

LLiitteerraattuurraa:: ccoonncceeiittooss

A literatura é tradicionalmente entendida como uma arte verbal. A arte

da palavra, segundo Aristóteles. Mas isso diz pouco. Mesmo porque,

durante longo tempo, limitava-se às composições poéticas.

Considerado o termo, em sentido restrito, a partir de uma perspectiva

estética, isto é, como o equivalente à criação estética, o conceito de

literatura, como acontece com outros fatos culturais, não é matéria pacífica

entre os estudiosos que a ela se dedicam. Resiste ao rigor de uma

conceituação. Assim situado, tem vivido, ao longo da história, variações

significativas. Foge ao propósito deste volume rastrear tal percurso;

indicam-se, entretanto, na bibliografia do final do volume, algumas obras

ampliadoras de esclarecimentos nessa direção.

Tais circunstâncias não impedem, porém, que sejam deslocadas

concepções que a têm identificado, com maior relevo,

Pág. 09

no âmbito da cultura ocidental, em que pese a crise vivida, há algum tempo,

pela teoria da literatura.

Há os que entendem que a obra literária envolve uma representação e

uma visão do mundo, além de uma tomada de posição diante dele. Tal

posicionamento centraliza, assim, suas atenções no criador de literatura e

na imitação da natureza, compreendida como cópia ou reprodução. A

linguagem é vista como mero veículo de comunicação, e, como assinala

Maurice-Jean Lefebve, "a 'beleza' da obra resulta, então, de um lado, da

originalidade da visão, e, de outro, da adequação de sua linguagem às

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coisas expressas"3. E a chamada concepção clássica da literatura.

No século XIX, os românticos acrescentam algo a esse conceito: à luz

da ideologia que os norteia, entendem que ao artista cabe a visão das coisas

como ainda não foram vistas e como são profunda e autenticamente em si

mesmas. Associa-se ao texto literário, desse modo, a valorização da

subjetividade. O que não impede que teorizadores como Mme. de Staël, no

seu De la Lit-térature considerée dans ses rapports avec les institutions

sociales, livro de 1800, ainda entendam que, em sentido amplo, como

assinala Luiz Costa Lima, a literatura englobe "todos os escritos filosóficos

e as obras de imaginação, 'tudo o que, enfim, concerne ao exercício do

pensamento nos escritos, com exceção das ciências físicas'"4.

A segunda metade da mesma centúria assiste a uma mudança

significativa: o núcleo da conceituação se desloca para o como a literatura

se realiza. Sua especificidade, segundo essa nova visão, nasce do uso da

linguagem que nela se configura.

Pág. 10

Em texto de 1972, Algirdas-Julien Greimas acentua a relatividade do

conceito, ao vincular a interpretação da "literariedade", ou seja, das

características que tornam "literário" um texto, "a uma conotação

sociocultural e sua consequente variação no tempo e no espaço humanos"5.

E, no ano seguinte, Michel Arrivé, reitera o posicionamento, ao

afirmar que "a literatura é o conjunto dos textos recebidos como literários

numa sincronia sociocultural dada"6.

Paralelamente, o caráter ficcional que, durante largo tempo, foi

considerado uma das características básicas do texto de literatura, entendida

a ficção como fingimento, resultante do ato de fingir, tem sido posto em

3 LEFEBVE, Maurice-Jean. Structure du discours de la poésie et du récit. Montreux: Éditions de La

Baconnière, 1971. p. 14.

4 Cf. LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 326-27.

V. STAËL-HOLSTEIN, L. G. de Necker. De la littérature considerée dans ses rapports avec les institutions

sociales. G. Gengembre e J. Goldxink (eds.). Paris: Flammarion, 1991.

5 GREIMAS, Algirdas-Julien et al. Essais de sémiotique poétique. Paris: Larousse, 1972. p. 6.

6 ARRIVÉ . Michel. La sémiotique littéraire. In. POTTIER, Bernard (Dir.). Le langage. (Les dictionnaires du

savoir moderne). Paris: Bibliothèque du CEPL, 1973. p. 271.

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questão. Para alguns especialistas contemporâneos, o ficcional não se

confunde com o falso: nele se abriga alguma coisa captada da realidade.7

A conceituação da literatura, assim, permanece em aberto, na medida

em que acompanha o dinamismo da cultura em que se insere.

A questão fundamental, e que continua desafiando os especialistas, é a

caracterização da natureza das propriedades estéticas do texto literário e

quais as ligações entre ambas.

Se é difícil, entretanto, conceituar ou definir, por meio de palavras,

certas realidades do mundo, isso não significa que deixem de existir os

elementos que as singularizem.

É consenso ainda, na atualidade, que os aspectos estéticos da obra

literária podem ser alcançados por meio do texto e que todos eles têm uma

base linguística (sintática, semântica ou estrutural).

Pág. 11

Acredito que, se não podemos, até o momento, caracterizar

plenamente a especificidade da literatura, temos possibilidade, graças ao

desenvolvimento dos estudos e das pesquisas na área, de indicar traços

peculiares e identificadores do discurso literário enquanto tal. Sem a menor

pretensão ou a veleidade de decifrar o mistério da esfinge.

7 Cf. pro domo nostra, LIMA, Luiz Costa, op. cit., texto de Sérgio Alcides na orelha da 1ª capa e palavras

do autor, na p. 21. Observe-se que o livro estabelece limites en-tre história, ficção e literatura, data de

2006 e foi escrito entre 2002 e 2005.

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Pág. 12

22

LLiitteerraattuurraa ee lliinngguuaaggeemm

MMaaiiss uumm tteexxttoo nnoo ppeerrccuurrssoo

Vejamos agora um breve poema de Manuel Bandeira:

Irene no céu

Irene preta

Irene boa

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no Céu:

— Licença, meu branco! E São Pedro bonachão:

— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.1

O texto centraliza-se na exaltação da humildade e da simplicidade, à

luz do cristianismo. Remete também a uma realidade social brasileira, não

apenas na vinculação a tal dimensão de religiosidade mas ainda a uma

atitude paternalista em relação

Pág. 13

ao negro, revelada na caracterização de Irene, no comportamento a ela

atribuído diante de São Pedro bonachão e na reação do santo porteiro do

Céu à sua atitude.

O poema mobiliza elementos de nossa emoção relacionados com a

formação cristã e com certos comportamentos sociais que, como

1 LBERTINAGEM. In: ______. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1946. p. 125.

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brasileiros, nos são peculiares.

Observe-se que a humildade e a simplicidade depreendidas dos versos

não se configuram apenas na parte de sentido de cada palavra que

corresponde à representação do mundo, mas sobretudo na parcela de

significação que nelas corresponde à capacidade de manifestar estados de

alma e exercer uma atuação sobre o próximo. O sentido do texto emerge do

ambiente linguístico em que os termos se inserem. Estes, como ocorre com

os citados versos drummondianos, também não reenviam necessariamente

a uma realidade passível de ser comprovada de forma imediata. A

"verdade" que neles se consubstancia funda-se na coerência.

O poema, ainda que capte algo da realidade, é o que é porque foi feito

como foi feito. Irene, essa Irene, passa a "viver" a partir de sua presença

nesse texto, por força da linguagem de que este último se faz, onde alguns

procedimentos se destacam em relação ao uso da língua portuguesa. O

autor valeu-se de termos do falar cotidiano; reproduziu formas da fala

coloquial despreocupada: ao atribuir ao santo o emprego da forma entra,

em lugar de entre, exigida pelo tratamento você, afastou-se da norma culta

da língua, em nome do efeito expressivo. Por norma, nesse sentido,

entenda-se, como registra o Dicionário de filologia e gramática de Joaquim

Mattoso Câmara Jr., "o conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar

ou na classe social mais prestigiosa do país". De forma mais ampla, a

norma pode ser caracterizada, de acordo com Eugenio Coseriu, como "um

sistema de realizações obrigatórias consagradas do ponto de vista social e

culturalmente: não corresponde ao que

Pág. 14

se pode dizer, mas ao que já se disse e tradicionalmente se diz na

comunidade considerada".2

Em se tratando de Bandeira, o aparente "erro" ajuda a traduzir a

naturalidade e a afetividade que marcam as palavras de São Pedro. O

adjetivo "bonachão" e a simplicidade da expressão "— Licença, meu

branco!" — popular, típica, coloquial — como que autorizam a forma

2 COSERIU, Eugênio. Sincronia, diacronia e história: o problema da mudança linguística. Tradução de

Carlos Alberto da Fonseca e Mário Ferreira. Rio de Janeiro: Presença; São Paulo: Edusp, 1979. p. 50.

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"entra". Por outro lado, para dar maior autenticidade ao que revela, o poeta

recorreu ao diálogo; dividiu a composição em duas estrofes: a primeira

centrada na caracterização da figuração de Irene; a segunda, feita de elipses

e entoação, vinculada à caracterização de São Pedro e à ação de ambos,

exigindo maior participação do leitor para melhor captar o que no poema se

comunica. Os versos se fazem de emoção subjetiva, trazem elementos

narrativos e até traços típicos da linguagem dramática. Na sua feitura, nota-

se, além disso, o aproveitamento do falar simples da gente simples do

Brasil, que ganha condição de linguagem literária.

No texto de Bandeira, literário que é, inter-relacionam-se,

interdependem-se elementos fônicos, ópticos, sintáticos, morfológicos,

semânticos, formando um conjunto de relações internas, por meio das quais

se revela uma realidade que não preexiste ao poema, a não ser como

potencialidade. Caracteriza-se uma perspectiva existencial relacionada com

o complexo cultural de que essa manifestação literária é representativa, a

partir das vivências de um escritor brasileiro. Configura-se um

posicionamento ideológico na visão de mundo do autor.

Na abertura para a descodificação, essa matéria cultural, veiculada por

meio das palavras da língua aproveitadas no código literário, pode ser

apreendida pelo leitor ou ouvinte do poema,

Pág. 15

com maior ou menor grau de informação estética, na dependência, reitero,

do seu universo cultural.

No percurso dessa apreensão, situa-se a dimensão conotativa, chave

da plurissignificação do texto literário, como se explicitará adiante.

LLiitteerraattuurraa ee ccoonnhheecciimmeennttoo

Longe estamos de penetrar totalmente no mistério do processo criador

da poesia. As considerações feitas sobre o texto de Bandeira limitaram-se a

alguns aspectos da manifestação literária em verso. Elas permitem,

entretanto, algumas deduções e conclusões.

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Para revelar o que se consubstancia no poema, o autor, como é óbvio,

se valeu da língua portuguesa do Brasil e, a partir dela, buscou caracterizar

uma realidade apoiada em vivências humanas. O que depreendemos de

suas palavras, porém, ultrapassa os limites da mera reprodução ou

referência, para nos atingir com um tipo de informação que não

conseguimos mensurar ou traduzir plenamente, vai além dos limites

individuais do codificador e atinge espaços totalizantes. A linguagem

literária — concretização de uma arte, a literatura — é marcada por uma

organização peculiar.

A arte é um dos meios de que se vale o homem para conhecer a

realidade.

Esta última se efetiva na constante relação entre homem e mundo, vale

dizer, entre sujeito e objeto, como costumam lembrar os filósofos.

Nesse jogo dialético, o homem busca aceder à interioridade da sua

essência, para melhor saber de si e situar-se. E, no seu percurso existencial,

tem procurado conhecer a si mesmo, o mundo, a sua relação com os outros,

a sua relação com o mundo.

Pág. 16

Todo conhecimento se caracteriza como uma representação, como um

tornar de novo presente a realidade em que vivemos, para que dela

tenhamos uma visão mais clara e profunda, que escapa à nossa percepção

imediata. Toda representação, nesse sentido, configura uma interpretação.

"O homem é a presença de todas as determinações de uma interpretação.

Rejeitá-las seria negar a própria existência. Portanto, o homem é um

arranjo existencial definido, articulado, situado. É uma circunstância, dizia

Ortega y Gasset", e lembra Arcângelo Buzzi, na sua Introdução ao pensar.3

Esse interpretar se clarifica por meio de uma linguagem.

A linguagem converte-se, desse modo, como destaca Eduardo

Portella, na "fonte de toda e qualquer realidade; é precisamente a realidade

mais livre, a mais aberta".4 Claro está que a natureza do compromisso entre

3 BUZZI, Arcângelo R. Introdução ao pensar. 3. ed. Petrópolis. Vozes. 1973. p. 51.

4 PORTELLA, Eduardo. Fundamento da investigação literana. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1981. p.

74.

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a literatura e a cidadania reveste-se de traços ideológicos. Mas a reflexão

que propicia abre-se ao necessário questionamento. O oxigênio da arte é a

liberdade. E isso vale tanto para o escritor como para o leitor.

O texto literário repercute em nós, na condição de leitores ou ouvintes,

na medida em que revele traços profundos do nosso psiquismo,

coincidentes com o que em nós se abrigue como seres sociais. O artista da

palavra, co-partícipe de nossa humanidade, incorpora elementos dessa

dimensão que nos são culturalmente comuns. Nosso entendimento do que

no texto se comunica passa a ser proporcional ao nosso repertório cultural.

O texto literário como tal pode ser lido, criticamente, no nível de

superfície ou de profundidade, considerada a polissemia que o caracteriza,

com base em três enfoques: em função de sua relação com aspectos

existenciais, destacados processos

Pág. 17

cognitivos e éticos, e motivações nele configurados; podemos centrar a

leitura nas dimensões sociais ou psicossociais que nele se fazem presentes,

privilegiadas a relação entre a literatura e o social, a literatura e a história, a

literatura e a cultura; podemos nuclearizá-la no diálogo intertextual, que

privilegia influências. Alfredo Bosi, em livro de 2006 em que trata das

Memórias póstumas de Brás Cubas, aponta tais linhas de abordagem e

assinala que destacam respectivamente aspectos expressivos, miméticos e

construtivos.5

Uma leitura como a que o crítico propõe para a compreensão do olhar

machadiano resiste à limitação da perspectiva centrada num determinado

perfil do narrador, pautada numa autonomia compacta. Ela exige, como

melhor resposta, "uma combinação peculiar de vetores formais, existenciais

e miméticos, sem que uma instância monocausal tudo regule e

sobredetermine".6 O crítico defende, desse modo, uma visão múltipla e

integradora, que exige uma perspectiva hermenêutica, vale dizer,

interpretativa, perspectiva que tem se revelado das mais promissoras nos

5 Cf. Bosi, Alfredo. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos. São Paulo: Companhia das Letras,

2006.

6 BOSI, Alfredo. Op. cit. p. 50-1.

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espaços da crítica literária, o que não invalida outras focalizações, desde

que assumidas como setorizadas.

O texto de literatura pode ainda ser considerado como pretexto para a

compreensão da língua, seu ponto de partida, procedimento bastante

comum na realidade pedagógica brasileira. Costuma também ser associado

ao estudo de outras manifestações culturais.

Page 18: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Pág. 18

33

AA lliinngguuaaggeemm

CCoonncceeiittooss

Apesar do ceticismo com que alguns estudiosos encaram a

caracterização da linguagem, creio útil destacar, por pertinentes ao nosso

objeto de estudo, alguns conceitos com que se tem tentado configurá-la:

• A linguagem é uma das formas de apreensão do real. O ser humano

vive em permanente e complexa interação com a realidade e a apreende de

várias maneiras, por exemplo, através dos sentidos. Mas, como lembra o

linguista Iouri Lotman, as informações que o envolvem, os sinais que a

vida lhe envia exigem, para um melhor desempenho na luta pela

sobrevivência, que ele os decifre e os transforme em signos capazes de

permitir-lhe comunicar-se.1 Vale dizer, ele precisa transformar essas

informações e esses sinais em elementos de uma linguagem para assegurar-

lhes a perfeita compreensão de que decorre o pleno aproveitamento de

importantes oportunidades no seu percurso de vida.

Para certos teóricos, acrescento, a linguagem, ao converter a realidade

em signos, ultrapassa as limitações da apreensão

Pág. 19

sensorial para permitir um desvelamento (um "retirar de véus") do real em

relação ao sujeito. É, por outro lado, uma forma de organizar o mundo que

nos cerca.

• A linguagem é a faculdade que o homem tem de expressar seus

estados mentais através de um conjunto de sons vocais chamado língua,

que é ao mesmo tempo representativo do mundo interior e do mundo

1 Cf. LOTMAN, Iouri. La structure du texte artistique. Paris: Gallimard, 1973. p. 29.

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exterior, propõe a clássica lição de Ernst Cassirer que pode ser lida nas

páginas 91 e 92 da sua obra lançada na tradução espanhola com o título

Psicologia del lenguaje, pela Paidós, em Buenos Aires.

Sob essa visão, centrada de maneira óbvia no sujeito, a linguagem é

entendida como uma atividade que apresenta um aspecto psíquico

(linguagem virtual) e um aspecto propriamente linguístico (linguagem

realizada) que compreende, por sua vez, o ato linguístico (realidade

imediata) e o repertório dos atos linguísticos (material linguístico). No

âmbito desse posicionamento, a língua é uma abstração, um conjunto

organizado de aspectos comuns aos atos linguísticos, vale dizer, em termos

técnicos, um sistema de isoglossas.2

Cabe esclarecer que a linguística tem como objeto o estudo da

linguagem falada e articulada, ou seja, aquela que se concretiza nas línguas

naturais. Os demais sistemas são objeto de interesse da semiótica ou

semiologia, entre eles o sistema de comunicação usado pelos animais

(zoossemiótica), as comunicações táteis, os sinais olfativos, os códigos do

gosto, os códigos musicais, o sonho, a pintura, a literatura e outros.

• A linguagem, como acentua Tatiana Slama-Casacu, na página 20 de

seu Langage et contexte (Haia, 1961), é um conjunto complexo de

processos — resultado de uma certa atividade psíquica profundamente

determinada pela vida social — que

Pág. 20

torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer.

Eis-nos de novo ante um conceito restrito. Essa dimensão se amplia, ainda

na palavra de Lotman, quando afirma que "por linguagem entendemos todo

sistema de comunicação que utiliza signos organizados de modo

particular".3

SSiisstteemmaa,, ccoommuunniiccaaççããoo ee ssiiggnnoo

2 Cf. COSERIU, E. Teoía del lenguaje y linguística general. 2. ed. Madri: Gredos, 1969. p. 91-2.

3 LOTMAN, Iouri. Op. cit. Paris: Gallimard, 1973. p. 34-5.

Page 20: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Esse último conceito de linguagem nos conduz didaticamente à

explicitação de sistema, comunicação e signo.

Sistema é um conjunto organizado. Dizer "organizado" pressupõe

princípios organizatórios que conferem singularidade ao conjunto. Diante

das múltiplas modalidades de linguagem, cumpre, pois, conhecer esses

princípios, se desejarmos dela nos assenhorear e assegurar a eficácia da

comunicação que por seu intermédio se processa.

Por comunicação compreende-se, ainda em sentido restrito, a troca de

mensagens ou informações entre seres humanos. Se se pensa na etimologia

da palavra, pode ser entendida como a faculdade que o homem tem de

tornar comum a outrem seus pensamentos, sentimentos e desejos e as coisas

do mundo que o cercam. Em sentido amplo, envolve também a realidade

técnica da relação entre o homem e as máquinas (por exemplo, os

computadores) e das máquinas entre si, além de estender-se ao mundo

animal e aos sistemas próprios do interior do indivíduo, como, por

exemplo, os sinais transmitidos pelos feixes de nervos do organismo.

Claro está que, quando alguém "fala consigo mesmo", está

representando simultaneamente dois falantes.

Signo é outro termo de conceituação ampla e complexa, mas, de

maneira geral, e em sentido lato, pode ser entendido, se-

Pág. 21

gundo Charles Sanders Peirce, como qualquer elemento que, sob certos

aspectos e em certa medida, representa outro.

À luz das posições do mesmo estudioso, podemos identificar três

modalidades de signo, em relação àquilo que designam: o signo índice ou

índex, que mantém relação direta com o que representa (é o caso de uma

impressão digital, por exemplo); o signo ícone, que tem analogia ou

semelhança com o que representa (uma fotografia, uma estátua, um

esquema); o signo símbolo, que se baseia numa convenção (as palavras de

uma língua, as bandeirolas usadas na comunicação marinheira, os sinais de

trânsito etc). Essas modalidades admitem superposições: a cruz, por

exemplo, enquanto instrumento de flagelação, é um ícone; enquanto

representação do cristianismo, é um símbolo; a impressão digital pode

Page 21: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

envolver dimensões de ícone e de índice, e ganha caráter simbólico quando,

por exemplo, passa a representar uma entidade ou uma empresa; as

palavras onomatopaicas são símbolos-ícones: farfalhar (de sedas), cacarejar

(de galinhas) etc.4

FFaattoorreess ddoo pprroocceessssoo lliinngguuííssttiiccoo ddaa ccoommuunniiccaaççããoo ee

ffuunnççõõeess ddaa lliinngguuaaggeemm

O processo da comunicação implica fatores e funções que têm sido

objeto de preocupação de vários estudiosos, entre eles Roman Jakobson,

para ficarmos apenas numa perspectiva linguística. Para esse especialista,

cada ato de comunicação verbal envolve, na linguagem comum, um

remetente que envia uma mensagem por meio de um código a um

destinatário, estabelecido entre os interlocutores um contato que envolve

um canal físico e a necessária conexão psicológica. A mensagem enviada é

compreendida por-

Pág. 22

que se refere a um contexto extra verbal e a uma situação efetivamente

existente anteriores e exteriores ao ato da fala.

Remetente ou emissor, mensagem, código, destinatário ou receptor,

contato e contexto são, portanto, os seis fatores do processo linguístico da

comunicação.

A partir deles, o citado linguista aponta as conhecidas seis funções da

linguagem:

a) função referencial ou denotativa — pela linguagem nós nos

referimos às coisas do mundo que nos cerca e às do nosso mundo interior; a

linguagem denota, representa o mundo;

b) função expressiva ou emotiva — a linguagem é um meio de

exteriorização psíquica; as interjeições são um exemplo marcante dessa

função;

4 Cf. PIGNATARI, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. p.

28-9.

Page 22: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

c) função conativa (de conação, que significa tendência consciente

para atuar) ou apelativa — quando falamos ou escrevemos, exercemos

maior ou menor influência sobre o nosso interlocutor. A linguagem

funciona como atuação social ou como apelo. Os verbos no imperativo

acentuam bem a presença dessa função, e, sob esse aspecto, é significativa

a sua utilização tão frequente nas mensagens da propaganda e da

publicidade;

d) função fática — caracteriza-se quando a mensagem busca

estabelecer ou interromper o que se está comunicando. São exemplos frases

como "Alô!", "Estão me entendendo?", "Certo?", "Está tudo claro?";

e) função metalinguística — ocorre quando o emissor e o destinatário

verificam se estão usando o mesmo código, quando explicitamos termos da

própria linguagem usada: Literatura é a arte da palavra;

f) função poética ou fantástica — evidencia-se quando, através dos

signos, se "cria" intencionalmente uma realidade, configurada sobretudo

numa obra de arte literária.5

Pág. 23

As três primeiras funções apontadas por Jakobson — a representativa,

a emotiva e a conativa — foram anteriormente caracterizadas por Karl

Buhler, à luz da psicologia. Para esse estudioso alemão, a linguagem é um

meio precípuo de exteriorização de estados de alma (manifestação

psíquica), exerce uma atuação sobre o próximo na vida comum (atuação

social ou apelo) e estrutura a nossa experiência mentada (função

representativa).

Nos atos de linguagem, várias dessas funções se apresentam

concomitantemente e estabelece-se entre elas uma certa hierarquia.

LLiinngguuaaggeemm,, llíínngguuaa ee ddiissccuurrssoo

Linguagem nos faz voltar ao conceito de língua, tal a relação que as

5 Cf. JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1966. V. também______.

Linguística e comunicação. 2. ed. rev. São Paulo: Cultrix, 1979.

Page 23: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

vincula.

A língua é um sistema de signos, ou seja, é um conjunto organizado de

elementos representativos. Como tal, é regida por princípios organizatórios

específicos e marcados por alto índice de complexidade: envolve

dimensões fônicas, morfológicas, sintáticas e semânticas que, além das

relações intrínsecas peculiares a cada uma, são também caracterizadas por

um significativo inter-relacionamento. A rigor, mais do que um sistema, a

língua é um conjunto de subsistemas que se integram.

Tomemos, por exemplo, a palavra rua: o seu significado tem a ver

com o jogo de oposições que marca o sistema fônico da língua portuguesa,

o que se aclara quando a comparamos com termos como lua, nua ou sua e

lembramos que o fonema se caracteriza por marcar a distinção de

significado entre as palavras de uma língua. A forma nasceu, no jogo

morfológico dos verbos, termina por um fonema que nos indica pessoa,

tempo, aspecto e modo da ação nela expressa; é a terceira pessoa do

singular do pretérito perfeito do indicativo, diz a gramática: nasceu, por

oposição a nasceram, nascemos, nascem, nascesse, indicadores

Pág. 24

de outras pessoas, outros tempos, modos, aspectos, no sistema morfológico

da língua portuguesa; os aspectos sintáticos se fazem presentes na

combinação de umas palavras com as outras na frase de que fazem parte. A

significação global emerge, portanto, das relações fono-morfo-sintático-

semânticas que estão na base da organização desse complexo sistema.

Já que estamos tratando de significação, vale lembrar que, em termos

de palavra, esta resulta fundamentalmente, na sua condição de signo, da

relação entre o significante e o significado, dois aspectos que o identificam:

o primeiro, perceptível, audível; o segundo, produto dele, nele contido. E

isso é ponto pacífico, desde os estudos pioneiros de Ferdinand de Saussure.

Não nos esqueçamos também de que a língua, além de ser um

conjunto organizado de valores, é, simultaneamente, uma instituição social,

é a linguagem de urna sociedade. É constituída de elementos que têm um

valor em si e um valor em relação aos demais; o signo linguístico, como

explicita Barthes nos seus Elementos de semiologia, é como uma moeda:

Page 24: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

cada peça vale pelo seu poder aquisitivo, mas vale também em relação às

outras moedas de valor maior ou menor.

A língua pode ser entendida ainda como a realização de uma

linguagem, um sistema de signos que permite configurar e traduzir a

multiplicidade de vivências caracterizadoras do ser de cada um no mundo.

Em sentido restrito, alguns linguistas a consideram um sistema de sons

vocais peculiares ao uso da linguagem pelo ser humano.

Outros, como Celso Cunha, por exemplo, em sua Gramática do

português contemporâneo, a definem como "um sistema gramatical

pertencente a um grupo de indivíduos" e, como expressão da consciência

de uma coletividade, como o meio pelo qual esta concebe o mundo que a

cerca e age sobre ele.6

Pág. 25

Podemos, ainda mais, entender saussurianamente com o citado

Barthes que a língua (langue) é "a linguagem menos a fala (parole), é, ao

mesmo tempo, uma instituição social e um sistema de valores. Como

instituição social, ela não é absolutamente um ato; escapa a qualquer

premeditação: é a parte social da linguagem"7. Língua e fala, diz ainda o

semiólogo francês, "retiram sua definição do processo dialético que as une:

não existe língua sem fala, não há fala fora da língua".8

Criação social, a língua vive em permanente mutação, acompanha as

mudanças da sociedade que a elege como instrumento primeiro de

comunicação.

Nesse processo, o exercício da linguagem produz uma espécie de

depósito sedimentário que ganha valor de instituição e se impõe ao falar

individual por meio do dicionário e da gramática.

6 CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970. p.

15.

7 BARTHES, Roland. Le degré zero de l'écriture suivi de éléments de sémiologie. Paris: Gonthier, 1964. p.

85-6.

8 Id., ibid.

Page 25: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

DDiissccuurrssoo ee eessttiilloo

Se a língua envolve uma dimensão social e se caracteriza por ser

sistemática, a utilização individual que dela fazemos, ou seja, a fala ou

discurso, é um conglomerado de fatos assistemáticos e, em relação a ela,

"um ato individual de seleção e atualização", para ficarmos com as palavras

do mesmo Barthes. Em outra perspectiva, entende-se o discurso como um

enunciado ou um conjunto de enunciados ditos e escritos por alguém na

direção de um destinatário. Enunciado, segundo alguns linguistas, é, em

função da significação, a unidade elementar da comunicação verbal, uma

palavra ou sequência de palavras dotadas de sentido.9

Pág. 26

Cada pessoa tem o seu ideal linguístico. A língua coloca à disposição

de cada um, um múltiplo repertório de possibilidades. Ao assumir o

discurso, o indivíduo busca escolher os meios de expressão que melhor

configurem suas idéias, pensamentos e desejos. Essa escolha é que

caracteriza o estilo.

Explicitando um pouco mais, podemos entender o estilo, em sua

dimensão individual, e a partir de conceito de Helmut Hatzfeld 10

, como o

aspecto particular que caracteriza a utilização individual da língua e que se

revela no conjunto de traços situados na escolha do vocabulário, na ênfase

nos termos concretos ou abstratos, na preferência por formas verbais ou

nominais, na propensão para determinadas figuras de linguagem, tudo isso

estreitamente vinculado à organização do que se diz ou escreve e a um

intento de expressividade.

O estilo admite também uma dimensão coletiva, vinculada aos

denominados estilos de época, vale dizer, ainda adaptando definição do

mesmo Hatzfeld, à atitude de uma cultura que surge com tendências

análogas nas manifestações artísticas, na religião, na psicologia, na

sociologia, nas formas de polidez, nos costumes, vestuários, gestos etc.

9 Os conceitos de discurso e enunciado variam em função do enfoque.

10 Apud COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: São José, 1966. p.

24.

Page 26: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

No que diz respeito à literatura, essa modalidade só pode ser avaliada

"pelas contribuições dos estilos individuais, ambíguas em si mesmas,

constituindo uma constelação que aparece em diferentes obras e autores da

mesma era e parece informada pelos mesmos princípios perceptíveis nas

artes vizinhas".11

São esses traços que aproximam os textos examinados de

Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade e os situam

Pág. 27

como representativos do Modernismo na literatura brasileira, o que não

impede que se diferenciem por força dos caracteres próprios do estilo

individual de cada um, entre outros aspectos. Vale ressaltar: ambos os

textos se valem da língua portuguesa do Brasil; a partir dela, criam-se

realidades, num uso especial da linguagem, a arte literária; ao fazê-lo, os

autores evidenciam atitudes individuais que singularizam os seus textos e,

ao mesmo tempo, apresentam traços comuns que os aproximam como

representativos de um determinado momento da cultura e da arte literária

do Brasil.

DDiimmeennssõõeess ddaa lliinngguuaaggeemm

O texto literário, como se percebe, envolve dimensões universais,

individuais, sociais e históricas, mas de forma peculiar. Já a propósito da

linguagem em si, cabe a significativa afirmação de Coseriu: "A linguagem

é uma atividade humana universal, que se realiza individualmente, mas

sempre segundo técnicas historicamente determinadas (línguas)".12

Exemplificando: se nos referimos à linguagem como uma atividade,

quando, por exemplo, se diz de uma criança que ela ainda não fala, ou seja,

não utiliza a linguagem como meio de comunicação, estamos no âmbito do

nível universal; se sabemos que alguém, ao falar, está usando o português,

o italiano, o espanhol, o inglês etc, referimo-nos ao nível histórico; se

conseguimos identificar quem fala, estamos no âmbito do nível individual.

11 HATZFELD, Helmut. In: COUTINHO, Afrânio. Op. cit, p. 211. A dinâmica do processo cultural, a diluição

das fronteiras da literatura, tem tornado complexa, ao longo do século XX e do atual, a configuração dos

estilos epocais.

12 Lições de linguística geral. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980. p. 91.

Page 27: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Podemos também considerar a linguagem, em cada um desses níveis,

como atividade criadora (ou simplesmente atividade), como saber (ou fato

de técnica) ou como produto.

Pág. 28

Desses critérios, resulta a caracterização de nove seções na estrutura

geral da linguagem. Vejamo-las num quadro resumidor da lição de

Coseriu:

Atividade Saber Produto

Universal A linguagem é "o

falar (em geral)

não determinado

historicamente".

A linguagem é "o

saber falar em

geral".

A linguagem é "o

'falado', a totalidade

do que se disse ou

ainda do que se

pode dizer, sempre

que se considere

coisa feita".

Individual A linguagem é o

discurso, "o ato

linguístico (ou a

série de atos

linguísticos

conexos) de um

determinado

indivíduo numa

dada situação".

A linguagem é "o

saber relativo à

elaboração dos

'discursos'".

A linguagem "é um

texto (falado ou

escrito)".

Histórico A linguagem "é a

língua concreta,

tal qual se

manifesta no falar,

como

determinação

histórica deste".

A linguagem é o

saber "idiomático",

"a língua enquanto

saber tradicional

de uma

comunidade".

A linguagem "não

se apresenta nunca

de modo concreto,

uma vez que tudo o

que nesse nível se

'produz' (se cria)

'ou redunda numa

expressão dita uma

única vez' ou se

adota e se fixa

historicamente,

passa a fazer parte

do saber

tradicional".

Níveis

Pontos

de vista

Page 28: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Pág. 29

Aos três níveis citados correspondem três tipos de "conteúdo"

linguístico que se apresentam simultaneamente nos textos: a designação, o

significado e o sentido.

A designação é a referência à "realidade", isto é, a relação cada vez

determinada entre o signo e a "coisa" designada.

O significado, nosso velho conhecido, é, ainda na palavra do linguista,

"o conteúdo de um signo ou de uma expressão enquanto dado numa

determinada língua e exclusivamente por intermédio dessa mesma língua".

Por sentido, Coseriu entende "o conteúdo próprio de um texto, o que o

texto exprime além e através da designação e do significado". Um exemplo

clarificador: o sentido que, por força do ludismo, as palavras adquirem no

texto de uma anedota.

O plano de sentido e o plano do significado diferem, mas tanto o

significado pode coincidir com a designação como o sentido pode coincidir

com o significado; esta última coincidência se dá na linguagem comum

informativa, o que não acontece com o sentido no texto literário.

Page 29: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Pág. 30

44

AArrttee lliitteerráárriiaa,, llíínngguuaa ee ccuullttuurraa

LLiitteerraattuurraa,, mmíímmeessee ee uunniivveerrssaalliiddaaddee

Toda criação artística exige um suporte material. Como, entre outros,

a tinta e a tela, na pintura; o mármore, a pedra, a madeira, o metal, na

escultura. Trata-se, no caso, de produtos naturais. A literatura tem como

suporte uma língua, um produto cultural.

A realidade imediata não se diz em plenitude.

A língua, na sua condição de concretização da linguagem da

comunidade, restringe-se à simples representação de fatos ou situações

particulares, observados ou inventados. A literatura se configura,

tradicionalmente, quando, ao tratar desses fatos ou situações, dimensiona-

lhes elementos universais.

Se a linguagem verbal caracteriza uma "desrealização" da realidade ao

transformá-la em signos-símbolos, a mímese poética leva ainda mais longe

esse desrealizar-se, quando, a partir do fingimento do particular, atinge

espaços da universalidade.

O texto literário veicula uma forma específica de comunicação que

evidencia um uso especial do discurso, colocado a serviço da criação

artística reveladora.

Por revelação compreenda-se a configuração mimética do real. Tal

afirmação leva a um dos mais importantes conceitos ligados à arte literária:

mímese.

Pág. 31

O conceito, importante para a compreensão do fato literário, também

Page 30: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

não é pacífico, e tem sido objeto da preocupação e do questionamento de

inúmeros estudiosos, desde a sua caracterização pelos gregos. Notadamente

por Platão e Aristóteles. Entendido como "imitação", levou, nesse sentido,

a várias interpretações. Para os pitagóricos, por exemplo, correspondia à

expressão ou representação de estados de alma, e o produto dela resultante

teria função terapêutica, pois possibilitaria ao artista ou ao consumidor a

liberação de suas próprias emoções. Para Platão, a arte envolveria a

representação do mundo das aparências e das opiniões; a mímese, na

concepção platônica, corresponde à imitação da aparência da realidade.

Para ele, a realidade é "imagem" ("fantasma") de idéias eternas; a obra de

arte seria "imagem de imagem", simulacro da realidade, e não

caracterizaria conhecimento do real. Já para Aristóteles, a mímese

corresponde à imitação das "essências"; imitar não é duplicar o referente;

implica conhecimento da natureza profunda do ser humano e do mundo. O

produto artístico que se concretiza a partir dela conduz ao efeito de

"purgação" liberadora (catarse).

Inicialmente mal descodificado com o sentido de "fotografia" ou

"espelho" da realidade, o conceito atravessa os séculos e, com essa

acepção, domina, não sem alguma controvérsia, a literatura clássica

ocidental. A verdadeira natureza da teoria aristotélica sobre a arte em geral

e a literatura em particular só começa a ser compreendida depois de Kant,

de Hegel e de Croce, nos fins do século XIX, e, sobretudo, após os estudos

de Hölderlin e a tradução e interpretação que da Arte poética de Aristóteles

fez o escritor britânico S. H. Butcher. A partir de então, a mímese passou a

ser entendida como revelação da plenitude do real.

Se a linguagem verbal caracteriza uma "desrealização" da realidade ao

transformá-la em símbolos que a essencializam, a arte literária amplia

radicalmente essa "desrealização". A mímese poética, acentua Merquior,

atinge, por meio da representação

Pág. 32

de particulares, os espaços do universal.1 Como lembra Eduardo Portella,

"devemos ao poeta Hölderlin a moderna revitalização do conceito de

1 Cf. MERQUIOR, J. Guilherme. A astúcia da mímese. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. p. 8.

Page 31: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

mímesis. Ele faz ver que imitar não é copiar; é descer ao plano de

articulação das possibilidades subjacentes na coisa. A arte supre a natureza

e, desse modo, se relacionam sem se confundirem".2 Em síntese, mímese

implica imitação da natureza (physis para os gregos), no que esta tem de

capacidade criadora.

Ao conceito de mímese vincula-se imediatamente a noção de catarse.

Aristóteles não deixou muito claro o sentido do termo. Como esclarece a

"Introdução" da Arte poética na edição de que me valho, emprega-o "na

Política (1341, livro VIII, cap. VII, 4) anteriormente à composição da Arte

poética" e o entende como "purificação", "purgação"; "uma expulsão

provocada de um humor incômodo por sua superabundância. Do mesmo

modo que a música apaixonada, a tragédia bem concebida deve determinar

no auditório, que se deixou empolgar pelas paixões expressas, um gozo

que, no final do espetáculo, dá impressão de libertação e de calma, de

apaziguamento, como se a obra tivesse dado ocasião para o escoamento do

excesso de emoções".3

Ao lado da tradição como imitação das essências, a mímese envolve

ainda, na estética do Ocidente, conforme assinala Stefan Morawski, uma

tradição platônica (imitação das aparências) e uma tradição democrítica

(imitação das ações da natureza).4

Pág. 33

Como quer que seja, é consenso, entretanto, que, no texto literário, se

configura uma situação que passa a "existir" a partir dele como tal e que

caracteriza uma apreensão profunda do ser humano e do mundo, a partir de

tensões de caráter individual, como ocorre, por exemplo, em A paixão

segundo G. H., romance de Clarice Lispector, ou coletivo, como em O

cortiço, de Aluísio Azevedo, e que podem ainda configurar-se juntamente

num mesmo texto, com prevalência de uma ou de outra, ou de equilíbrio

entre ambas.

2 PORTELLA, Eduardo. Teoria da comunicação literária. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973. p. 34.

3 ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética [Art rhétorique et art poétique]. São Paulo: Difel, 1964. p.

258-59. Cf., para o conceito de mímese, PROENÇA FILHO, DOmício. Estilos de época na literatura. 15. ed.

5ª reimpressão. São Paulo: Ática, 2002, p. 23-4.

4 Cf. Mimesis. Semiótica, Ncuchâtel, 2(1); 36, 1970.

Page 32: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Isso se dá num processo de constante diferenciamento, que permite

perceber dimensões de visões de mundo e a presença de ideologias. O

fenômeno literário se efetiva na inter-relação autor/texto/leitor. Já se

percebe por que a obra literária sempre admite diferentes interpretações. A

linguagem que a caracteriza é necessariamente ambígua e em permanente

atualização e abertura, vinculadas estreitamente ao caráter conotativo que a

singulariza.

AAbbeerrttuurraa ee ccoonnoottaaççããoo

A conotação, à luz do processo linguístico da comunicação e das

funções da linguagem, é, como registra Mattoso Câmara Jr., "a parte do

sentido de uma palavra que corresponde à sua capacidade de funcionar para

uma manifestação psíquica ou um apelo".5 Em outros termos, a conotação

se centraliza na parte do sentido das palavras ligadas às funções emotiva e

conativa.

Assim entendida, ainda de acordo com o mesmo linguista, a conotação

depende de fatores vários:

a) de aspectos fônicos do vocábulo, que podem "impressionar pela

harmonia ou pela cacofonia";

Pág. 34

b) "da associação com outras palavras, num dado campo semântico ou

em frases usuais e frequentes";

c) da própria denotação, que evoca sensações agradáveis ou

desagradáveis;

d) "de pertencer a palavra a uma dada língua especial, como uma

língua profissional, a língua literária ou a gíria";

e) "de se situar entre os arcaísmos ou os regionalismos";

f) "de impressões emocionais coletivas ou mesmo individuais,

caracterizando o estilo individual, como as coletivas caracterizam o estilo

5 CÂMARA Jr., J. Mattoso. Dicionário de filologia e gramática referente à língua portuguesa. 2. ed. Rio de

Janeiro: J. Ozon, 1964. p. 88.

Page 33: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

coletivo de uma dada época".6

Numa forma linguística, a conotação se distingue da denotação, com a

qual se combina para dar a significação integral da referida forma.

Por denotação compreende-se a parte da significação linguística

ligada à função representativa ou referencial da linguagem.

Esclarecedoras, a propósito, são as palavras de Georges Kassai:

Uma importante distinção do ponto de vista do sentido é a feita entre a função referencial e a função emocional dos signos. Ela está na base das pesquisas estilísticas recentes e se vincula à oposição denotação/conotação já empregada pela lógica escolástica, mas admitida desde algum tempo na terminologia da Linguística moderna. Designada como "valor suplementar", a conotação seria "a definição em compreensão" ou "definição intensiva", enquanto a denotação é uma definição em extensão.7

Se considerarmos, em termos de estrutura, que, em todo sistema de

significação, esta resulta da relação entre um plano de expressão e um

plano de conteúdo, teremos, nesse nível, a

Pág. 35

denotação. Já na conotação, o plano de expressão é constituído de um

sistema de significação já dado. Explicito melhor, à luz de Hjelmslev e

Roland Barthes, que, a partir dessa terminologia, ampliam as noções

saussurianas de significante e significado. Para tanto, volto ao nosso

exemplo inicial: "Uma flor nasceu no chão da minha rua". Observe-se,

ainda uma vez, que o que se informa nesse enunciado se centraliza

basicamente no referente, numa orientação para a representação mental

ligada aos signos que o constituem, ou seja, para a denotação. Não nos

esqueçamos de que consideramos o exemplo no espaço da comunicação

cotidiana. 6 Id., ibid

7 Le sens. In: MARTINET, André (Dir). La linguistique. Paris: Denoël, 1969. p. 342.

Page 34: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Se nessa mesma frase a palavra "flor" deixasse, por força da situação

de fala e do contexto verbal, de corresponder a um elemento vegetal, para

indicar, por exemplo, um estabelecimento de ensino, uma sede de sindicato,

já algo se acrescentaria à relação plano de expressão/plano de conteúdo. O

novo sentido da palavra flor corresponderia, então, à relação significação 1

(nascida da relação plano de expressão/plano de conteúdo no discurso

comum) / plano de conteúdo (que já não conduz simplesmente à idéia de

elemento vegetal). O algo mais que se acrescentou ao signo situa-se, como

já observamos, no âmbito da conotação. No caso, esta se vincula à criação

de uma metáfora, uma figura de linguagem que, como tal, torna mais

expressivo o uso da língua, mesmo no discurso cotidiano. As figuras assim

utilizadas se aproximam da linguagem literária, mas, se não integram um

texto literário, não ganham a especificidade de representantes plenas desse

tipo de linguagem que marca, por exemplo, a frase quando no texto

drummondiano ou no romance de Machado de Assis.

A conotação implica um universo cultural. A propósito, José

Guilherme Merquior lembra que "Martinet considera conotativos os

elementos do sentido que não pertencem a toda a comunidade utilizadora

de determinada língua", e acrescenta:

Pág. 36

"a conotação das palavras, mais do que a sua denotação, varia entre os

grupos etariais, as classes sociais etc; ela é uma função das múltiplas

estratificações da comunidade linguística".8

Por via da conotação, pode-se, pois, partir do texto para o social, uma

vez que a literatura é, antes de tudo, um objeto de linguagem. E não nos

esqueçamos de que o texto literário envolve dimensões históricas e

ideológicas. E, portanto, sobretudo por força de sua dimensão conotativa

que a obra literária se abre às mais variadas interpretações.

8 Cf. MERQUIOR, J. Guilherme. Do signo ao sintoma. In:______. Formalismo e tradição moderna: o

problema da arte na crise da cultura. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense/Edusp, 1974. p. 129.

Page 35: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

CCuullttuurraa ee aarrttee lliitteerráárriiaa

A literatura é, pois, um sistema semântico em que se destaca a

conotação, e esta é estreitamente vinculada às diferenças sociais.

É preciso considerar ainda que só há literatura onde existe um povo e,

consequentemente, o desenvolvimento de uma cultura.

A matéria literária c cultural. O artista da palavra retira do mundo

elementos que, convenientemente organizados, podem representar

totalidades e constituir uma afirmação cuja força e coesão não se

encontram ao alcance dos profanos. Em outros termos, de acordo com

Edward T. Hall, uma das mais relevantes funções do artista é ajudar o leigo

a estruturar o seu universo cultural.9

Cultura é outro vocábulo multissignificativo; envolve cerca de

duzentos e cinquenta conceitos ditados pelas diferentes posições dos

estudiosos; destaco três deles:

Pág. 37

Uma cultura constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos

e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os

instintos, orientam as emoções.10

À luz do pensamento católico,

pela palavra "cultura" em sentido geral, indicam-se todas as coisas com as quais o homem aperfeiçoa e desenvolve as variadas qualidades da alma e do corpo; procura submeter a seu poder pelo conhecimento e pelo trabalho o próprio orbe terrestre; torna a vida social mais humana, tanto na família como na comunidade civil, pelo progresso dos costumes e das instituições; enfim, exprime, comunica e conserva, em suas obras, no decurso dos tempos, as grandes experiências espirituais e as aspirações, para que sirvam ao proveito de muitos e ainda de todo o gênero humano.11

9 Cf. HALL, Edward. La dimension cachée. Paris: Seuil, 1966. p. 105.

10 MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX. o espírito do tempo. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense; São

Paulo: Universitária, 1977. p. 15.

11 A Igreja no mundo de hoje. In: Concilio Vaticano II. Gaudium et spes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1966.

Page 36: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Finalmente, à luz da antropologia, podemos também entender cultura

como

o conjunto e a integração dos modos de pensar, sentir e fazer adotados por uma comunidade, na busca de soluções para os problemas da vida humana associativa.

Cultura, como se depreende dessas acepções, implica sociedade.

Em função dessa circunstância, cabe considerar, em sentido restrito, a

cultura "já feita", isto é, as maneiras de pensar, de sentir e de fazer que o

consenso comunitário referendou como

Pág. 38

tal e como representativas do modo de ser da comunidade; em sentido

amplo e aberto, há que se ter em conta a cultura que se está fazendo, a cada

momento, no cotidiano do homem, sobretudo na atualidade, quando o

mundo se constitui numa imensa aldeia global e os meios de comunicação

de massa se convertem em eficientíssimos agentes culturais.

A caracterização cultural, em termos sociais, admite ampliações e

setorizações que permitem tratar, entre outras, de cultura ocidental, cultura

européia, cultura grega, cultura romana, cultura brasileira etc.

Consequentemente, de literatura ocidental, literatura européia, literatura

grega, literatura romana, literatura brasileira etc.

Obviamente, como fato cultural que é, a literatura acompanha o

desenvolvimento da cultura de que é parte integrante.

Cada ser humano encontra, desde que nasce, um mundo de

conhecimentos que lhe vão sendo transmitidos pela sociedade, por sua vez

herdeira de conhecimentos anteriores e aberta e novas interpretações. "A

vida é um constante fluir. Ninguém se banha duas vezes nas mesmas águas

do rio", disse Heráclito, filósofo grego. Ao que podemos acrescentar: sai

impregnado das águas em que se vai molhando.

Tais conhecimentos veiculam-se por meio de linguagens, entre a

Page 37: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

língua que falamos e que pode ser entendida como um conjunto organizado

de valores e que é, simultaneamente, uma instituição social e linguagem de

uma sociedade.

A literatura se vale da língua e revela dimensões culturais. Cultura,

língua e literatura estão, portanto, estreitamente vinculadas.

Reiterando noções e ampliando a explicitação: a linguagem literária é

eminentemente conotativa. A conotação se pluraliza em função do universo

cultural dos falantes; prende-se, portanto, às diferenças de camadas

socioculturais e ao processo de desenvolvimento da cultura. Fácil é

concluir que a literatura,

Pág. 39

apoiada num sistema de signos linguísticos que representam o mundo e

revelam dimensões profundas do ser humano, traduz o grau de cultura de

uma sociedade. E mais: por força de sua natureza criadora e fundadora,

pode configurar-se como espelho ou como denúncia, como conservadora

ou como transformadora.

Essas dimensões têm marcado a história da arte literária ocidental, em

que se desenvolvem movimentos ora assinalados por atitudes regressivas,

ora por procedimentos de vanguarda.

Sendo a obra de arte literária matéria ficcional, claro está que a

realidade nela revelada não se confunde com a realidade socialmente dada.

A linguagem literária, lembra Lefebvre, abre-se sobre o mundo e coloca

diante dele "uma questão que não é daquelas que podem ser respondidas

pela ciência, pela moral ou pela sociologia [...] Ela interroga o mundo sobre

sua realidade e a linguagem sobre sua obsessão de uma adequação perfeita

ao ser do mundo. Não é uma solução, uma fuga para fora da linguagem e

do humano: ela encarna uma nostalgia".12

12 LEFEBVE, Maurice-Jean. Structure du discours de la poésie et du récit. Neuchâtel: La Baconnière,

1971. p. 28-9.

Page 38: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Pág. 40

55

CCaarraacctteerrííssttiiccaass ddoo ddiissccuurrssoo lliitteerráárriioo

LLiitteerraattuurraa ee eessppeecciiffiicciiddaaddee

Se a literatura é uma arte, nessa condição ela é um meio de

comunicação de tipo especial e envolve uma linguagem também especial.

Esta última, como já foi visto, apóia-se numa língua e se configura em

textos em que se caracteriza uma determinada modalidade de discurso.

O código em que se pauta o discurso literário guarda íntima relação

com o código do discurso comum, mas apresenta, em relação a este,

diferenças singularizadoras.

Diante do mistério do fenômeno literário, o grande desafio dos

estudiosos e pesquisadores tem sido caracterizar plenamente essa

especificidade.

Identificar, entretanto, certos traços peculiares do discurso literário

tem sido possível; o que ainda não se conseguiu definir, mesmo à luz

desses traços, é o índice da chamada literariedade, busca mobilizadora

sobretudo da crítica formalista e estruturalista.

Essas limitações não impedem que assinalemos uma série de

caracteres distintivos do discurso literário em relação ao discurso comum.

Vamos a eles.

Pág. 41

CCoommpplleexxiiddaaddee

O discurso da literatura se caracteriza por sua complexidade. No

discurso não-literário, há um relacionamento imediato com o referente;

Page 39: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

caracteriza-se, na maioria dos casos, a significação singular dos signos,

como vimos na frase-exemplo "Uma flor nasceu no chão da minha rua". Já

o que depreendemos do texto literário ultrapassa, como já foi assinalado, os

limites da simples reprodução. A natureza das informações que, por seu

intermédio, são transmitidas, vai além do nível meramente semântico para

se converter em algo tal que sua comunicação se torna impossível por meio

das estruturas elementares do discurso cotidiano.

No dispositivo verbal configurador da obra de arte literária, revelam-

se realidades que, mesmo vinculadas a elementos de natureza individual ou

de época, atingem espaços de universalidade.

O texto literário realmente significativo ultrapassa os limites do

codificador para nos atingir, por força ainda do mistério da criação em

literatura, com mensagens capazes de revelar muito da condição humana.

Caracteriza um mergulho na direção do ser individual, do ser social, do ser

humano.

Dom Casmurro, para destacar um exemplo, romance de Machado de

Assis, é, sob tais aspectos, obra exemplar. Diante do que nela se revela e do

modo de realização que nela se configura, reveste-se de atualidade e abre-

se, na sua polissemia, a inúmeras e variadas leituras. Que nos permitem

depreender, entre outros, aspectos individuais metonimizados nos

personagens; multiplicidade de temas, como o ciúme; o adultério; a dúvida;

o ressentimento; a fratura do resgate; o fazer do romance; a dissimulação

do erotismo feminino; o desvendamento da prática jurídica; projeções do

social, também metonimizados no microcosmo familiar dos Santiago e dos

Pádua; visões de mundo; visões da vida no Rio de Janeiro do Segundo

Reinado, configurações da complexidade da vida humana.

Pág. 42

A condição de habitante de uma cidade apresenta-se exemplarmente

nas Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida,

que nos leva "ao tempo do rei", e o rei era Dom João VI. Pode ainda ser

lida em Feliz Ano Novo, livro de contos de Rubem Fonseca, feito de

metonímias hiperreais da violência urbana na Cidade Maravilhosa.

A cidadania associa-se à nacionalidade na síntese que é Macunaíma,

Page 40: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

de Mário de Andrade, centrada nas aventuras e desventuras de um anti-

herói feito da fusão de características do brasileiro, seus defeitos, suas

virtudes, suas aspirações. Um texto-paródia da história do Brasil.

Dimensões psicológicas, geográficas, sociais, históricas, religiosas,

míticas, metafísicas integram-se na linguagem singularíssima do Grande

sertão: veredas.

Em certo sentido, a linguagem literária produz; a não-literária

reproduz.

O fato literário caracteriza-se, entre inúmeras outras marcas, por uma

dupla dimensão articulada: a dimensão semiótica, ligada aos signos de que

se faz o texto, e a dimensão transfiguradora do real. Uma e outra,

integradas, estão, por seu turno, na base da dimensão estética que o

caracteriza. O texto literário é, ao mesmo tempo, um objeto linguístico e

um objeto estético.

Nessa situação, configura-se um sistema de signos secundário em

relação à língua de que se vale, esta funcionando, no caso, como o sistema

1. Entenda-se o adjetivo secundário vinculado sobretudo à natureza

complexa que está sendo assinalada e não somente ao fato de que o sistema

1 é uma língua natural.

A obra de arte literária, valho-me ainda uma vez de Lefebve, é sempre

"O lugar e como a intersecção de dois movimentos de sentidos opostos que

envolvem, por um lado, um dobrar-se da literatura sobre si mesma num

puro objeto de linguagem e, por outro lado, um abrir-se "ao mundo

interrogado na sua realidade e na sua presença essencial [...] movimentos

contraditórios

Pág. 43

e entretanto solidários, pólos ao mesmo tempo complementares e

antagonistas, criadores de um campo dinâmico que só ele permite

compreender os diversos aspectos do fenômeno literário"1.

1 LEFEBVE, Maurice-Jean. Op. cit. p. 29.

Page 41: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

MMuullttiissssiiggnniiffiiccaaççããoo

Ao caracterizar-se no texto literário um uso específico e complexo da

língua, os signos linguísticos, as frases, as sequências assumem, em função

do contexto em que se integram, significado variado e múltiplo. Assim,

afastam-se, por exemplo, da monossignificação típica do discurso

científico, para só citar um caso.

É nesse sentido que alguns estudiosos situam o distanciamento que a

linguagem literária assume em relação ao que chamam grau zero da

escritura.

Entenda-se, a princípio, grau zero como o discurso preocupado

sobretudo com a plena clareza da comunicação nele veiculada e com a

obediência às normas usuais da língua. (Para uma visão mais minuciosa do

conceito, pode-se ver o livro de Roland Barthes Novos ensaios críticos

seguidos de O grau zero da escritura, edição da Cultrix de 1974.)

A multissignificação ou polissemia não é marca exclusiva do texto de

literatura. Pode configurar-se em qualquer outra manifestação verbal. As

diferentes interpretações das leis, por exemplo, que frequentam o discurso

jurídico o evidenciam. No texto não-literário a ambiguidade dela decorrente

prende-se necessariamente "a uma preocupação de imediata e utilitária

funcionalidade".2

O texto de literatura, em função do contexto que o

caracteriza, repele qualquer imposição coercitiva. Esse preocupar-se nele

não se faz presente. O que o leva a possibilitar ao destinatário, leitor ou

Pág. 44

ouvinte, a depreensão de uma multiplicidade de sentidos. Tal depreensão

vincula-se ao seu universo cultural e ao seu saber linguístico, na medida em

que, como assinala Umberto Eco, "o estimula a interrogar a flexibilidade e

a potencialidade do texto que interpreta, tal como a do código a que se

refere".3

A literatura, na verdade, cria significantes e funda significados. 2 REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos literários. Coimbra: Almedina,

1995. p. 126.

3 Eco, Umberto. Trattato di semiótica generale. 6. ed. Milão: Bompiani, 1978. p. 380. V., a propósito,

REIS, Carlos. Op. cit. p. 126 e EMPSON, W. Seven types of ambiguity. Nova York: New Directions, 1966.

Page 42: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Apresenta seus próprios meios de expressão, ainda que se valendo da

língua, ponto de partida. Superposto ao da língua, o código literário, em

certa medida, caracteriza alterações e mesmo oposições em relação àquele.

É um desvio mais ou menos acentuado em relação ao uso linguístico

comum. Em termos literários, por exemplo, assegurada a coerência do

conjunto em que inseríssemos a afirmação, teriam sentido frases como "a

flor de nossa rua comeu todos os medos" ou "a flor expulsou todos os

monstros" e, fora desse âmbito sintático-vocabular, lembro versos como

"Um supremíssimo cansaço/íssimo, íssimo, íssimo,/cansaço", de Fernando

Pessoa, em que, como se vê, se fere, em nome da expressividade poética, a

norma morfológica do idioma no seu uso cotidiano.

E mais: para a plurissignificação do texto contribuem, como acentua

Paul Ricoeur, fatores de ordem sincrônica e de ordem diacrônica. Vale

dizer, os primeiros se vinculam à carga significativa ligada às relações entre

as palavras no conjunto do texto de que fazem parte; já o plano da diacronia

envolve tudo o que de significação e evocação o tempo agregou aos

vocábulos, no decurso de sua história, incluídas nessa totalidade as

dimensões resultantes do uso das palavras na tradição literária.

Num ou noutro caso, a plurissignificação pode associar-se ao âmbito

sociocultural, como quer, por exemplo, Delia Volpe,

Pág. 45

ou a espaços míticos e arquetípicos, como pretende Northrop Frye; situo-

me, no caso, entre os que acreditam que tais dimensões não se excluem,

antes se complementam.

A multissignificação é, pois, uma das marcas do texto literário como

tal. É o traço que permite, entre outras, as múltiplas leituras existentes da

obra de João Cabral de Melo Neto, de Carlos Drummond de Andrade, de

Guimarães Rosa; que possibilita a Roland Barthes a sua apreciação da obra

de Racine e que nos autoriza ler, em Iracema, de José de Alencar, uma

síntese simbólica do processo civilizatório da América, entre outras

interpretações. A permanência de determinadas obras se prende ao seu alto

índice de polissemia, que as abre às mais variadas incursões e possibilita a

sua atemporalidade.

Page 43: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

PPrreeddoommíínniioo ddaa ccoonnoottaaççããoo

A linguagem literária é eminentemente conotativa. O texto literário

resulta de uma criação, feita de palavras. E do arranjo especial das palavras

nessa modalidade de discurso que emerge o sentido múltiplo que a

caracteriza.

Os signos verbais, no texto de literatura, por força do processo criador

a que são submetidos, à luz da arte do escritor, revelam-se carregados de

traços significativos que a eles se agregam a partir do processo

sociocultural complexo a que a língua se vincula. O texto literário pode

abrigar a presença de elementos identificadores de um real concreto, quase

sempre garantidor de verossimilhança, como costuma também, nessa

mesma dimensão, apresentar uma imagem desse real ligada estreitamente a

outros elementos que fazem o texto. Essa presença, que pode trair uma

dimensão denotativa, não é, entretanto, seu traço dominante. Este reside na

conotação, conceito fundamental para os estudos de literatura, e de tal

maneira que especialistas como André Martinet, Georges Mounin e, entre

nós, José Guilherme

Pág. 46

Merquior chegam a admitir que nas conotações reside "o segredo do valor

poético de um texto".4

LLiibbeerrddaaddee nnaa ccrriiaaççããoo

As manifestações literárias podem envolver adesão, transformação ou

ruptura em relação à tradição linguística, à tradição retórico-estilística, à

tradição técnico-literária ou à tradição temático-literária às quais

necessariamente está vinculado o trabalho do escritor. A literatura se abre,

então, plenamente, à criatividade do artista. Em seu percurso, ela envolve a

constante invenção de novos meios de expressão ou uma nova utilização

4 Cf. MERQUIOR, J. Guilherme. Do signo ao sintoma. In: Formalismo e tradição moderna: o problema da

arte na crise da cultura. Rio de Janeiro/São Paulo: Forense/ lidusp, 1974. p. 129.

Page 44: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

dos recursos vigentes em determinada época. Mesmo nos momentos em

que a obediência a determinados princípios pareceu regular os

procedimentos literários, a literatura, por sua própria natureza, levou à

abertura de caminhos renovadores.

Não existe uma "gramática normativa" para o texto literário. Seu

único espaço de criação é o da liberdade.

Se a norma, em alguns instantes, regulou a "arte", o "engenho" sempre

foi além, com maior ou menor evidência. E os movimentos de vanguarda, a

constante exigência e busca do novo continuam sendo suas marcas mais

patentes, num curso que segue paralelo à dinâmica do processo cultural em

que se integra. Nesse processo, ora o acompanha, ora se antecipa,

transformadora, porta-voz do devir. Veja-se o Ulisses, de Joyce, por

exemplo. O artista da palavra tem uma sensibilidade mais apurada do que a

do comum das gentes, e essa acuidade mobiliza-lhe a criação progressora.

Pág. 47

Na maioria dos casos, é a própria obra que traz em si suas próprias

regras. A obra de arte literária se faz, fazendo-se.

Observe-se que as normas reguladoras do texto não-literário, aquelas

que se impõem ao indivíduo por corresponderem àquilo que habitualmente

se diz, precisam ser obedecidas, sob pena de sérios ruídos na comunicação

e, em certas circunstâncias, até de total obliteração do que se pretende

comunicar. No texto literário a criação estética autoriza qualquer

transgressão nesse sentido. E em termos de história literária, múltiplos e

vários têm sido os percursos nessa direção, seja em termos individuais, seja

em termos de movimentos de época.

ÊÊnnffaassee nnoo ssiiggnniiffiiccaannttee

Enquanto o texto não-literário confere destaque ao significado, ou

seja, ao plano de conteúdo, o texto literário tem o seu sentido apoiado no

significado e no significante, com especial relevo concedido a este último.

A questão, entretanto, não é pacífica. Sobretudo quando pensamos que, ao

situar significante e significado no âmbito da semiótica, estes ganham

Page 45: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

dimensões que, embora relacionadas com a visão da linguística, adquirem

matizes diferentes e contribuem efetivamente para o sentido do texto,

principalmente em termos da informação estética que nele se configura.

Num poema como o "Soneto de separação", de Vinícius de Moraes, por

exemplo, os fonemas bilabiais de certos vocábulos parecem contribuir para

o sentido dominante no texto, centrado na separação entre dois seres:

SSoonneettoo ddee sseeppaarraaççããoo

De repente do riso fez-se o pranto

Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

Pág. 48

De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.5

Textos há em que o significante sobressai de maneira ainda mais

5 In:______. Livro de sonetos. 3. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1967. p. 30-1.

Page 46: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

acentuada, como neste poema concreto de Ronaldo Azeredo6:

Pág. 49

A questão é facilmente compreensível: basta substituir os vocábulos

de um texto por sinônimos, para aquilatar a relevância do significante.

Pensemos na fala famosa do Hamlet, de Shakespeare:

To be or not to be: that is the question

(Ser ou não ser: eis a questão)

Veja-se o efeito de substituições:

Am I or am I not: that is the question

(Sou ou não sou: eis a questão)

ou

To be or not to be: that is what worries me

(Ser ou não ser: é isso que me preocupa)

6 Apud CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos

e manifestos críticos — 1950-1960. São Paulo: Duas Cidades, 1975. p. 92.

V V V V V V V V V V

V V V V V V V V V E

V V V V V V V V E L

V V V V V V V E L O

V V V V V V E L O C

V V V V V E L O C I

V V V V E L O C I D

V V V E L O C I D A

V V E L O C I D A D

V E L O C I D A D E

.

Page 47: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Evidentemente, perde-se muito do efeito estético com as expressões

substitutas, levando-se em conta, obviamente, o contexto em que as

palavras do teatrólogo se inserem.

No "Soneto de separação", de Vinicius de Moraes, é bastante trocar

algumas palavras para verificar a força do significante, colocando, por

exemplo, "repentinamente" em lugar de "de repente"; "juntas", onde está

"unidas", ou "tranquilidade" onde se encontra "calma".

VVaarriiaabbiilliiddaaddee

O texto literário se vincula, como foi assinalado, a um universo

sociocultural e a dimensões ideológicas; sua natureza envolve mutações no

tempo e no espaço; ele tem uma língua como

Pág. 50

ponto de partida e de chegada; as línguas acompanham as mudanças

culturais; mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, mudam as pessoas,

os povos, a linguagem: a literatura, manifestação cultural, acompanha as

mudanças da cultura de que é parte, integrante e altamente representativa.

A literatura traz a marca de uma variabilidade específica, seja em relação

aos discursos individuais, seja em termos de representatividade cultural. E

não nos esqueçamos de que, na base da literatura, está a permanente

invenção.

MMooddooss ddee rreeaalliizzaaççããoo

O texto literário — eis um traço óbvio e imediatamente comprovável

— se faz de manifestações em prosa e de manifestações em verso.

MMaanniiffeessttaaççõõeess eemm pprroossaa

As manifestações em prosa envolvem as modalidades da narrativa de

ficção.

Ficção — do latim fictionem, cognato do verbo fingere, "dar forma a

Page 48: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

qualquer substância plástica e, por extensão, representar, imaginar,

inventar", que em português deu "fingir" — significa invenção, construção

da imaginação, fingimento, simulação, imaginação. A narrativa de ficção se

caracteriza por fazer-se de histórias fictícias ou simuladas, nascidas da

imaginação.

As principais modalidades desse tipo de narrativa são o conto, o

romance e a novela.

Tarefa das mais complexas tem sido determinar os limites de tais

formas. As definições mais usuais as caracterizam como a seguir:

O conto oferece uma amostra da vida, por meio de um episódio, um

flagrante ou instantâneo, um momento singular e representativo. Constitui-

se de uma história curta, simples, com

Pág. 51

economia de meios, concentração da ação, do tempo e do espaço. Ex.:

"Noite de almirante", de Machado de Assis.

O romance prende-se a uma vasta área de vivência, faz-se geralmente

de uma história longa e apresenta uma estrutura complexa. Ex.: Dom

Casmurro, do mesmo Machado de Assis; São Bernardo, de Graciliano

Ramos; Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, A república dos

sonhos, de Nélida Pinou.

A novela se situa como forma intermediária entre o romance e o

conto. Ex.: Léguas da promissão, de Adonias Filho.

Essas variedades envolvem certa visão do mundo e uma determinada

maneira de captar as questões que nos textos se apresentam, caracterizando

um sistema que se faz de vários elementos integrados: uma narração

vinculada a personagens em ação (ou não) num tempo e num espaço em

torno de um ou mais temas, traduzindo-se num estilo e por meio de

determinados ângulos de visão.

AAss vviissõõeess ddaa nnaarrrraattiivvaa

Segundo os moldes consagrados pela tradição, a narração pode ser

Page 49: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

conduzida por um narrador não participante ou por um personagem que

convive com os outros na história narrada. Isso nos leva ao modo como esta

última se apresenta e se constrói: o ângulo de visão, ponto de vista, foco ou

enfoque narrativo, também conhecidos como visão da narrativa.

Em princípio admitem-se, entre outras possibilidades, a história

contada em primeira pessoa por um dos personagens que toma parte nos

acontecimentos ou a história contada em terceira pessoa por um narrador

que se situa fora dos acontecimentos e pode: a) saber tudo a respeito de

tudo (visão totalizadora); b) conhecer plenamente apenas um dos

personagens (visão limitada); c) conhecer superficialmente os personagens

(visão restrita).

Essas modalidades de visão são bastante encontradiças na literatura

ocidental. Acrescente-se a elas o monólogo interior, téc-

Pág. 52

nica inventada pelo escritor francês Edouard Dujardin (1861-1949), que a

utilizou no seu romance Les lauriers sont coupés (1887). Esse

procedimento difere do monólogo tradicional, pois reproduz pensamentos

íntimos como vão surgindo do inconsciente sem nenhuma preocupação

com um encadeamento lógico: deixando fluir livremente as idéias e

sentimentos em frases diretas, com a sintaxe reduzida a um mínimo de

recursos. Um excelente exemplo se encontra num dos mais famosos textos

da moderna literatura do Ocidente, o citado Ulisses, de James Joyce;

transcrevo uma passagem, na primorosa tradução de Antônio Houaiss:

Sim porque ele nunca fez uma coisa como essa antes como pedir pra ter seu desjejum na cama com um par de ovos desde o hotel City Arms quando ele costumava fingir que estava de cama com voz doente fazendo fita para se fazer interessante para aquela velha bisca da senhora Riordan que ele pensava que tinha ela no bolso e que nunca deixou pra nós nem um vintém tudo pra missas para ela e para alma dela grande miserável que era com medo até de soltar 4x. para seu espírito metilado me contando todos os achaques dela com aquela velha de falação dela sobre política e tremores de terra e o fim do mundo que a

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gente tenha um pouco de distração pelo menos antes Deus ajude o mundo se todas as mulheres fossem como ela contra roupa de banho e decotes é claro que ninguém queria ver ela com isso eu creio que ela era piedosa porque nenhum homem havia de olhar para ela duas vezes eu espero que não vou ser nunca como ela não admirava se ela quisesse que a gente escondesse a cara mas ela era uma mulher bem educada e sua fala tagarela sobre o senhor Riordan praqui e o senhor Riordan pralá eu penso que ele ficou contente de se ver livre dela e do cachorro dela que cheirava meu casaco de pele e se metia sempre debaixo de minhas saias.7

Pág.53

Outro bom exemplo está no conto "Monólogo de Tuquinha Batista",

de Aníbal Machado:

Não Mundinha pra Zona Sul eu não vou já disso que não vou pra lá não Betsy que não quero me perder e cá no meu subúrbio eu sou Tuquinha Tuquinha Batista T.B. meu nome em toda parte que eu quase choro agradecida T.B. nos muros T.B. no tronco das árvores no mamoeiro na porta da igreja como largar minha gente ficar longe das letras de meu nome não não Mundinha não me tentes mais estou quase noiva isto é não estou mas meu noivo vem vindo já apareceu na bola de cristal a cartomante disse que por enquanto ele aparece só pra ela todo dourado nadando num fundo azul e que é parecido com Clark Gable mas eu queria que ele parecesse com aquele que viajou no pingente uma vez na véspera do Ano-Bom ele me olhava de fora pela vidraça e o trem dava cada solavanco e ele se equilibrava a cara bonita atrás rindo tentando a gente rindo e cantando parecia até um demônio eu de repente fiquei apaixonada e até hoje quando vejo vidraça olha aquele findo me tentando querendo se apossar da gente nunca mais apareceu só a lembrança do rosto dele sorrindo sempre vai ver é um pilantra feito aquele "fala-macio" que levou Raimunda pra Copacabana dizendo que lá sabiam apreciar uma morena feito ela que ela ia virar girl e

7 JOYCE, James. Ulisses. Trad. de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966. p. 792-3.

Page 51: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

arranjava um bom contrato que o subúrbio era triste...8

A diferença entre o monólogo interior e o monólogo tradicional é

flagrante: este último admite a participação do narrador e até comentários

sobre o que o personagem está pensando, sentindo ou fazendo, o que não

acontece com o primeiro.

Pág. 54

O crítico francês Jean Pouillon, no seu O tempo no romance, ao tratar

dos "modos de compreensão" em relação ao romance, admite três

modalidades básicas de visão: a visão "com" (vision "avec"), a visão "por

trás" (vision "par derrière ") e a visão "de fora" (vision "du dehors").

Na visão "com", tudo se centraliza num personagem e é a partir dele

que nós vemos e "vivemos" os acontecimentos narrados e percebemos

também o que com ele se passa no âmbito da ação do romance. Memórias

póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis, estão

nesse caso.

Na visão "por trás", o autor não se situa no interior de um personagem,

mas procura afastar-se dele para considerar objetiva e diretamente sua vida

psíquica.

A diferença entre a visão "com" e a visão "por trás" é a que se verifica

entre a pura e simples consciência e o conhecimento à luz da reflexão. Num

romance de visão "com", esta tem por centro, do qual se irradia, um foyer

que faz parte do próprio romance; é na obra que encontramos a fonte de luz

que a ilumina. No romance de visão "por trás", a fonte não está no

romance, mas no romancista, melhor dito, no narrador não nomeado, na

medida em que ele sustenta a sua obra sem coincidir com um de seus

personagens. Observe-se que, nesse caso, o leitor faz sua a visão do

narrador.

A visão "de fora" envolve a observação material da conduta do

personagem, seu aspecto físico e o meio em que vive. Claro está que a

8 MACHADO, Aníbal. A morte da porta-estandarte e outras histórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.

p. 106.

Page 52: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

exterioridade assim caracterizada é situada pelo autor e captada pelo leitor

como reveladora de interioridade. O "dehors" dos personagens nos é

apresentado de tal modo que ele nos revela progressivamente seu caráter.

Essas divisões e classificações não esgotam a matéria, e as visões

admitem os mais variados arranjos e combinações. Nem se pense na

exclusividade necessária desse ou daquele enfoque. Há narrativas em que

convivem harmonicamente várias visões, como, por exemplo, em Corpo

vivo, romance de Adonias Filho,

Pág. 55

caracterizado por um especialíssimo tratamento do ponto de vista. Por

outro lado, em muitos romances contemporâneos, no-tadamente no

nouveau roman francês, o expositor se converte em cameraman e apenas

apresenta personagens e ações, como se a narrativa fosse uma película

cinematográfica. Como exemplo, pode-se ler Le voyeur (A espreita), de

Alain Robbe-Grillet.

OOss ppeerrssoonnaaggeennss

Os personagens dão condição de existência ao enredo e "vivem" nele

como participantes da história.

As múltiplas classificações, nascidas das mais variadas posições

críticas, se apóiam no que os personagens "são", no que "representam" ou

no que "fazem", privilegiando, assim, dimensões aspectuais. Daí a variada

tipologia que os considera:

a) por sua natureza — quando podem ser: seres humanos (exs.: Paulo

Honório, do romance São Bernardo, de Graciliano Ramos; Augusto

Matraga, do conto "A hora e vez de Augusto Matraga", de Guimarães

Rosa); coisas (ex.: a propriedade, no mesmo São Bernardo); animais (exs.:

a cachorra Baleia, em Vidas secas, romance de Graciliano Ramos; Quincas

Borba, o cão, no romance do mesmo nome, de Machado de Assis; o

burrinho pedrês, no conto do mesmo nome, de Guimarães Rosa) e, por

extensão, elementos da natureza (ex.: o vento, no conto "O iniciado do

vento", de Aníbal Machado);

Page 53: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

b) pela variedade — quando podem ser: individuais, ao se

identificarem com seres nitidamente caracterizados em sua personalidade

(exs.: Capitu, em Dom Casmurro, romance de Machado de Assis; o citado

Augusto Matraga); típicos, quando trazem características que os

identificam com um grupo social, nacional, regional, profissional etc. (ex.:

Fabiano, no referido Vidas secas); caricaturais, quando têm

exageradamente acentuadas certas características marcantes e definidoras,

como a comadre,

Pág. 56

de Memórias de um sargento de milícias, romance de Manuel Antônio de

Almeida. Certos personagens típicos acabaram tornando-se universais,

como o usurário, o soldado fanfarrão, o criado hábil, o agregado, entre

muitos, encontrados a cada passo na literatura de ficção;

c) pela função que desempenham — quando podem ser:

protagonistas, as figuras principais da história (ex.: Cajango, em Corpo

vivo, romance de Adonias Filho); antagonistas, os que se opõem à figura

principal, ou seja, com ela entram em tensão direta no desenvolvimento da

trama (ex.: Manuel Pescada, no romance O mulato, de Aluísio Azevedo).

Nessa área funcional há que considerar ainda o narrador, caracterizado

como tal.

A tendência estruturalista é centrar a classificação na participação dos

personagens em suas inter-relações.

A caracterização dos personagens pode apoiar-se também no nome

que levam, em certos tiques, no tipo físico e no tipo antropológico.

AA aaççããoo

A narrativa, que integra ação e narração, caracteriza uma sequência,

simples ou complexa, de conflitos ou tensões que se resolvem ou não. A

ação se situa, assim, no nível da trama, intriga ou enredo, que envolve o

que ocorre com os personagens, o conjunto de seus atos ou reações, os

acontecimentos ligados entre si, tudo isso comunicado pela narrativa.

Page 54: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

O desenvolver-se da trama leva ou ao desaparecimento das situações

conflituais ou à criação de novos conflitos.

Por narração compreende-se a sucessão de fatos, imagens ou

acontecimentos que, numa sequência ordenada, se configura num texto

literário; é o modo como a narrativa se organiza.

É na articulação da ação com a narração que se instaura o processo da

ambiguidade peculiar ao texto literário.

Pág. 57

OO ttrraattaammeennttoo ddoo tteemmppoo

O homem é um ser temporal. O tempo, como quer Percy B. Shelley,

"é a nossa consciência da sucessão das idéias em nossa mente".9

O tempo cronológico, isto é, o tempo convencional das horas, dos

dias, dos meses, das estações e dos anos é a medida exterior da duração.

Admite padrões fixos de medida, vinculados ao movimento de rotação e

translação da Terra. É um tempo objetivo, que se opõe à subjetividade do

tempo psicológico, interior e relativo, situado no âmbito da experiência

individual, que avalia a partir de padrões variáveis.

Remonta a Bergson a concepção do tempo psicológico. Como

explicita Dirce Riedel, "a realidade está na relatividade subjetiva da durée

(duração), no que permanece no fluir do tempo, apesar de toda a sua

irreversibilidade, e não no conceito objetivo da física que falsifica a

natureza essencial do tempo"10

.

A duração (durée) é anacrônica.

O pensamento bergsoniano, notadamente a teoria da durée, está na

base de uma nova concepção de personagem, em grande parte da ficção

moderna, especialmente no romance que se faz de fluxo de consciência.

Abandona-se, por falso, o fixar da personalidade por meio da descrição

externa, por intermédio de rótulos, definições e listas de características: a

personalidade passa a ser caracterizada à luz de sua renovação momento a

9 Queen Mab. Apud MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Porto Alegre: Globo, 1972. p. 135.

10 RIEDEI., Dirce. O tempo no romance machadiano. Rio de Janeiro: São José, 1958. p. 15.

Page 55: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

momento, com o passado sempre presente, variável de acordo com a

ampliação do seu campo temporal em movimento.

A mesma teoria conduziu a uma nova concepção da trama e da

estrutura, à limitação progressiva da duração ficcional do

Pág. 58

romance, à ampliação da duração psicológica dos personagens: "toda a vida

num dia, toda a vida num momento", como lembra Mendilow na página

167 da obra citada, passa a ser o objetivo dos romancistas. Os citados

Ulisses, de Joyce, e A Paixão segundo G. H., de Clarice Lispector, são

excelentes exemplos da adoção dessa técnica.

A duração se identifica com a vida interior.

A literatura moderna busca exprimir não apenas a irreversibilidade do

tempo que se escoa mas ainda uma distância interior, um tempo subjetivo,

como resume Dirce Riedel na obra citada, em que acrescenta: "A memória

poética funde passado e presente, numa sucessão psicológica, já que a

realidade não é um estado estável; o presente é constante transição,

perpétuo vir-a-ser [...] Enquanto a narrativa linear exprime a continuidade

do tempo exterior, a associação dinâmica pode revelar a continuidade

emocional, numa literatura que quer surpreender o processo do

subconsciente".

Esse posicionamento envolve necessariamente as relações da

narrativa, instalando-se no âmbito da consecução e da consequência,

substituindo na ordem de apresentação ficcional a sequência cronológica

pela sequência psicológica.

O moderno tempo ficcional se faz da sucessão psicológica, mede-se

pela distância interior, variável segundo a melodia do mundo interior de

cada indivíduo. Caracteriza-se uma duração aberta. Se o comparamos com

o tempo da história, vemos que este se faz de uma perspectiva exterior,

mede-se cronologicamente e apresenta unidade de ação.

Page 56: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

OO aammbbiieennttee

Também chamado meio, localização, envolve as condições materiais

ou espirituais em que se movimentam os personagens e se desenrolam os

acontecimentos. Por meio dele podem-se

Pág. 59

configurar traços dos personagens e mesmo a própria história. Ex.: O

mulato e O cortiço, de Aluísio Azevedo; Eurico, o presbítero, de

Alexandre Herculano; Senhora, de José de Alencar.

OO eessttiilloo

Apesar de já termos tratado desse traço da linguagem, cabem ainda

algumas observações. Os estudos relacionados com o estilo envolvem, em

síntese, dois posicionamentos: há aqueles que o consideram como

resultante de um conjunto de escolhas em relação à língua; outros

entendem que se trata de um desvio em relação à norma gramatical. Entre

os primeiros, encontra-se, por exemplo, Charles Bally, o criador da

estilística como disciplina cuja tarefa consiste na busca dos elementos

expressivos que, num dado momento, servem para produzir os movimentos

do sentimento e da razão. É a chamada corrente saussuriana ou positivista.

Ao segundo grupo, pertencem estudiosos da chamada corrente da escola

alemã de Karl Vossler, como os críticos Leo Spitzer, Dámaso Alonso,

Helmut Hatzfeld e outros, que, embora aceitando inicialmente as teses de

Ferdinand de Saussu-re, mestre de Bally, se preocupam com depreender da

fala o que nela existe de individual, de criação pessoal, que, na busca da

expressão adequada à situação de fala, foge da automatização na

formulação linguística. Vossler compara a forma que usamos ao falar com

a forma que vestimos: segundo ele, o modelo nos é imposto pela vida

prática, mas a decisão sobre o corte e a cor depende do gosto de cada um.

As duas correntes, a saussuriana e a idealista de Vossler,

fundamentam a crítica literária de base estilística, que vê o estilo a serviço

da criação artística.

Cabe lembrar que a tese de Vossler se inspira nas teorias de Benedetto

Page 57: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Croce, filósofo italiano para quem o objetivo dos estudos de estética é a

função expressiva que caracteriza o ser humano, sobretudo aqueles que

possuem uma psique mais apta,

Pág. 60

mais rica, e que são chamados artistas, porque expressam plenamente

estados de alma. Quando tais expressões conseguem manifestar-se com

excelência, são chamadas obras de arte.

Mais uma vez, estamos diante de uma questão longe de ser tranquila.

Aline Lévavasseur, por exemplo, nota que os adeptos do primeiro

grupo correm o risco de confundir estilo com fala ou discurso, uma vez

que, na linguagem, tudo é consequência de uma escolha, consciente ou não,

por parte do falante. Acrescenta ainda que, para aumentar a confusão na

área, o termo estilo aparece para designar "certos tipos de formulação

rigorosamente ditados pela tradição", como estilo telegráfico, estilo

administrativo, estilo jurídico, estilo judiciário, estilo diplomático etc.

Lembra que o estilo se situa no lado oposto desse extremo, pois, hoje em

dia, todo o esforço do escritor consiste justamente em buscar a

originalidade a qualquer preço e em quebrar os moldes da expressão

tradicional ou mesmo apenas um pouco mais usuais.11

O estilo, ainda de acordo com tal posicionamento, tende a se confundir

com o idioleto, ou seja, com aquilo que o próprio Bally definiu como "o

sistema de expressões de um indivíduo isolado" ou, como esclarece

Mattoso Câmara, no seu Dicionário de filologia e gramática, "o nome dado

pelos linguistas americanos à língua tal como é observada no uso de um

indivíduo".

Como se percebe, o conflito entre estilo, idioleto e discurso não prima

pela solução mais simples.

A conceituação adotada pelo segundo grupo também é passível de

restrições. Desvio em relação à norma implica que esta última seja definida

e estabelecida. E aí é que enfrentamos um dilema, pois a norma é entendida

11 LÉVAVASSEUR, Aline. Style et stylistique. In: MARTINET, A. (Org.). La linguistique. Paris: Denoël,

1969. p. 359.

Page 58: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

como uma soma de abstrações, como se depreende da citada definição de

Coseriu.

Pág. 61

Um último conceito nos leva à teoria que entende o estilo como

"fenômeno de elaboração, que consiste em substituir a natural linearidade

da linguagem por uma certa profundidade, em razão de um objetivo mais

ou menos intuitivo ou inconsciente do enunciado global que deve resultar

das escolhas sucessivas", conforme as palavras de Aline Lévavasseur.

Eis um ponto de vista que ainda uma vez se centraliza na intenção do

falante, que deve transformar sua fala em fato estilístico.

Cabe, a este passo, trazer à apreciação, por oportuna, a relação entre

estilo e escritura (écriture). Deixemos a palavra com Roland Barthes, que,

preliminarmente, diz:

[...] a língua está aquém da literatura. O estilo está quase além: imagens, uma elocução, um léxico, nascem do corpo e do passado do escritor e se tornam pouco a pouco os próprios automatismos de sua arte. Assim, sob o nome de estilo, se forma uma linguagem autárquica, que não mergulha senão na mitologia pessoal e secreta do autor, nessa hipofísica da fala, onde se forma o primeiro par das palavras e das coisas, onde se instalam de uma vez por todas os grandes temas verbais da existência.

E esclarece a seguir:

[...] entre a língua e o estilo, há lugar para uma outra realidade formal: a escritura. [...] Língua e estilo são forças cegas; a escritura é um ato de solidariedade histórica. Língua e estilo são objetos; a escritura é uma função: ela é a relação entre a criação e a sociedade, é a linguagem literária transformada por sua destinação social, ela tem sua forma apreendida na sua intenção humana e ligada assim às grandes crises da História.12

Pág. 62

12 Le degré zéro de l'écriture suivi des éléments de semiologie. Paris: Gauthier [s.d.]. p. 14, 16 e 17.

Page 59: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Como quer que seja, para efeito operacional, entenda-se o estilo na

definição adaptada de Hatzfeld, apresentada na página 25, a partir da qual

se percebe que, no caso do texto literário, se vincula a uma organização

específica: o estilo, no caso, passa a integrar um objeto estético e assume

dimensão relevante nesse âmbito.

O mais se situa no espaço de muitos problemas ainda não resolvidos

plenamente na área dos estudos da linguagem e da literatura.

MMaanniiffeessttaaççõõeess eemm vveerrssoo

Por verso entende-se, tradicionalmente, como registra Mattoso

Câmara, "a frase ou o segmento frasal em que há um ritmo nítido e

sistemático".13

Se nos limitarmos apenas à área fônica, podemos dizer, como

Todorov, que um verso é formado por uma sequência métrica de sílabas.

Na língua portuguesa, por exemplo, a métrica ou medida do verso é

constituída da combinação da regularidade do número de sílabas e da

disposição dos acentos tônicos. O ritmo do verso é consequência dessa

regularidade (ritmo silábico) e dessa disposição (ritmo intensivo).

O final do século XIX assiste ao aparecimento de um novo tipo de

verso, o verso livre, que deixa de ter na sílaba a sua unidade; caracteriza-se

pela sucessão de grupos fônicos valorizados pela entoação, pelas pausas e

pela maior ou menor rapidez da enunciação: tem, pois, seu ritmo apoiado

na combinação da entoação e das pausas. Vejamos o exemplo:

Pág. 63

Não adules o poema. Aceita-o

como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada

no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.

13 CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário de filologia e gramática referente à língua portuguesa. 2. ed. Rio

de Janeiro: J. Olympio, 1964. p. 349.

Page 60: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?14

Por entoação entende-se a linha melódica que caracteriza o enunciado:

é a escala de elevação da voz com que se enuncia uma frase.

Três elementos interdependentes costumam ser apontados como

relevantes na caracterização tradicional do verso: o metro, a rima e as

formas fixas. Na base deles, um ponto comum fundamental para a distinção

entre verso e prosa: a repetição (ou ritmo, ou periodicidade, ou paralelismo,

ou simetria). Por outro lado, essa interdependência também está presente

nas relações que vinculam o verso a outros traços linguísticos de um

enunciado: a versificação caminha junto com a significação.

OO mmeettrroo

O metro apóia-se na repetição de três fatos linguísticos: a sílaba, o

acento, a quantidade.

A sílaba se constitui de um fonema-núcleo, chamado silábico,

acompanhado ou não de outros fonemas, chamados não-silábicos. Em

termos de verso, a sílaba só se converte em realidade linguística na leitura

particular que se chama metrificação ou escansão, como se vê no exemplo

da página seguinte.

Pág. 64

A / mor / é / fo / go / que ar / de / sem / se / ver /;

É / fe / ri /da / que / dói / e / não / se / sen / te

(Camões)

14 ANDRADE, Carlos Drummond de. A rosa do povo. In: Reunião. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1969. p. 77.

Page 61: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Já há algum tempo, têm surgido colocações mais amplas: além dos

procedimentos firmados pela tradição, procura-se utilizar as sílabas no

verso em função de aspectos visuais que envolvem cortes, desintegração e

duplicação de palavras etc. As vanguardas brasileiras dos anos 50 e 60

oferecem bom exemplo dessa técnica.

Escandir ou metrificar o verso é destacar as sílabas métricas de que ele

se compõe. Essa escansão envolve algumas normas que apresentam

pequenas alterações de idioma para idioma. Em português, a divisão

silábica do verso é semelhante à divisão silábica da prosa, com as seguintes

especificidades:

1ª) contam-se as sílabas somente até a última tônica, como nesse verso

de Cecília Meireles:

Ai / pa / la /vras / ai / pa / la / vras (sete sílabas métricas)

2ª) o encontro de duas vogais idênticas obriga o uso da crase, como

nesse outro verso de Cecília Meireles, sequência do exemplo anterior:

Que‡es / tra / nha / po / tên / cia‡a / vos /sa! (crases: e + e = e; a + a =

a)

3ª) o encontro de vogai átona com vogai átona ou de vogal átona com

vogai tônica entre vocábulos leva a uma única sílaba métrica, numa relação

que se chama sinalefa; o exemplo a seguir é do mesmo poema de Cecília

Meireles, "O romance LIII"

Pág. 65

— Das palavras aéreas, do Romanceiro da Inconfidência, que cito

pela edição da Livros de Portugal:

O / mel / do‡a / mor / cris / ta / li / za (sinalefa: do‡a) seu / per / fu /

me em / vos / sa / ro / sa

4ª) também se considera uma só sílaba a elisão, ou seja, no encontro

de vogais átonas ou de vogai átona com vogai tônica entre vocábulos, a

primeira deixa de ser pronunciada:

Page 62: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

sois / o / so / nho‡e / sois / a au / dá / cia (elide-se o final de sonho e

lê-se sonhe sois)

5ª) em alguns casos, no encontro de uma vogai nasal com uma vogai

oral entre vocábulos, desnasaliza-se a primeira, para efeito de metrificação.

É o que ocorre, por exemplo, no verso de Antônio de Castro Alves:

Eu quero marchar com os ventos,

Com os mundos... co'os firmamentos!!! (co'os = com os)

E Deus responde: — "Marchar!"

De acordo com o Dictionnaire encyclopédique des sciences du

langage, de Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov, "o acento consiste na

ênfase que se confere à duração, à altura ou à intensidade de um fonema

silábico e que o diferencia dos seus vizinhos"; a quantidade corresponde

"às diferenças de duração fonêmica que, em certas línguas, assumem

função distintiva". A quantidade é, por exemplo, a base do metro dos

versos da literatura latina clássica, apoiado na combinação de sílabas

breves e longas.15

Pág. 66

A princípio, é possível distinguir três tipos de metro: o silábico, o

acentuai e o quantitativo, cada um apoiado, respectivamente na repetição

regular do número de sílabas, de acentos, de quantidades.

Normalmente, um verso associa mais de uma dessas dimensões.

O verso admite tantas medidas ou pés quantas forem as sílabas que

comporta o elemento que se repete.

O final do verso é caracterizado por uma pausa métrica.

Quando o final do verso caracteriza discordância sintática ou

separação de palavras de um grupo fônico, estamos diante do recurso

15 Cf. DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage. Paris:

Seuil, 1972. p. 240 e ss.

Page 63: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

estilístico chamado cavalgamento ou "enjambement". Eis um exemplo

nestes versos de João Cabral de Melo Neto:

Do alpendre, o tempo pode ser

sentido: e na substância física

A propósito, vale lembrar as palavras de Maurice Grammont:

Não é exato que o enjambement suprima, como dizem alguns, a pausa

do fim do verso, nem que ele suprima ou mesmo enfraqueça o último

acento rítmico do verso; longe disso, a pausa final do verso que cavalga é

tão nítida e tão longa como as outras, e o seu último acento rítmico é

também forte. Tudo se reduz ao seguinte: enquanto nos versos comuns

abaixamos a voz no fim de cada verso, deixamo-la interrompida e suspensa

no fim daqueles que cavalgam. Daí resulta um aguçamento da atenção do

auditor, que fica em ansiosa expectativa durante a pausa. E como a voz não

baixou, ela deve, na parte excedente, aumentar de intensidade ou mudar de

entoação.16

Pág. 67

Em outros termos, o enjambement é a não-coincidência entre a pausa

métrica e a pausa verbal (gramatical ou semântica). Admite, portanto, duas

leituras: uma, métrica; outra, semântica.

AA rriimmaa

A rima é outro elemento que contribui para o ritmo do verso.

Rima é a coincidência de fonemas em determinados lugares do verso.

Tradicionalmente essa coincidência se dá no final do verso, mas pode

aparecer também no meio ou no início. Exs.:

Eu te amo, Maria, te amo tanto

16 Petit traité de versification française. 3. ed. Paris: Armand Colin, 1916. p. 92-3.

Page 64: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Que o meu peito me dói como em doença

E quanto mais me seja a dor intensa

Mais cresce na minha alma o teu encanto

(Vinícius de Moraes)

São Paulo! comoção de minha vida...

Os meus amores são flores feitas de original ...

Arlequina!!... Traje de losangos... Cinza e ouro...

Luz e bruma ... Forno e inverno morno...

(Mário de Andrade)

Se há identidade ou semelhança de todos os fonemas a partir da vogai

tônica, diz-se que a rima é soante, também conhecida como rima consoante

ou consonância. Ex.: tanto / encanto.

Se coincidem apenas as vogais tônicas ou as vogais a partir da tônica,

incluída esta, tem-se a chamada rima toante ou assonante ou assonância.

Ex.:

Por ódio, cobiça, inveja,

vai sendo o inferno traçado.

Pág. 68

Os reis querem seus tributos,

— mas não se encontram vassalos.

Mil bateias vão rodando,

mil bateias sem cansaço,

(Cecília Meireles)

Há também a coincidência das consoantes no início dos termos; é a

chamada rima aliterada ou aliteração. Ex.:

Page 65: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Auriverde pendão da minha terra,

Que a brisa do Brasil beija e balança,

Estandarte que a luz do sol encerra,

E as promessas divinas da esperança...

(Castro Alves)

Versos que não rimam são chamados soltos ou brancos. Ex.:

Aqui, além pelo mundo,

ossos, nomes, letras, poeira...

onde os rostos, onde as almas?

nem os herdeiros recordam

rastro nenhum pelo chão.

(Cecília Meireles)

A rima é um fenômeno fonético. Por essa razão, admitem-se rimas entre

palavras como catedrais/paz; nus/azuis:

Nunca mais, oh bomba atômica

Nunca, em tempo algum, jamais

Seja preciso que mates

Onde houver morte demais:

Fique apenas tua imagem

Aterradora miragem

Pág. 69

sobre as grandes catedrais:

Guarda de uma nova era

Arcanjo insigne da paz!

(Vinícius de Moraes)

Livre filho das montanhas,

Eu ia bem satisfeito,

Page 66: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Da camisa aberta o peito

— Pés descalços, braços nus

— Correndo pelas campinas

A roda das cachoeiras,

Atrás das asas ligeiras

Das borboletas azuis!

(Casimiro de Abreu)

A caracterização das rimas que se estende ainda por ampla

terminologia, não atende, entretanto, ao consenso dos estudiosos e está a

exigir reformulações.

AAss ffoorrmmaass ffiixxaass

No âmbito das formas fixas chama-se estrofe a sucessão de dois ou

mais versos. Tais formas resultam da combinação de estrofes, que nos

levam a exemplos como o soneto, a balada, a lira etc.

Com o advento da modernidade, essas formas passaram a conviver

com outras e inúmeras modalidades, nascidas da liberdade criadora dos

artistas da palavra.

VVeerrssoo,, pprroossaa,, ggêênneerrooss lliitteerráárriiooss

As manifestações em verso envolvem dimensões líricas, épicas e

dramáticas, no sentido que lhes confere o crítico Emil Staiger. Já o

romance, a novela e o conto são manifestações literárias em que predomina

o épico. Essa lembrança nos leva a um

Pág. 70

dos mais complexos problemas da teoria literária, objeto de controvérsias e

múltiplas interpretações: os gêneros literários.

A problemática começa na delimitação da área semântica abrangida

pelo termo: a designação gênero ora se restringe a três grandes divisões

Page 67: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

tradicionalmente fixadas — lírica, épica e drama e, logo, gênero lírico,

épico e dramático —, ora envolve manifestações literárias conhecidas como

tragédia, comédia, romance, conto, ode e outras.

Os estudiosos do assunto têm oferecido variadas explicações e

caracterizações, e alguns chegam a negar a importância de qualquer

classificação e até a existência dos gêneros como tal.

O assunto é inicialmente tratado pelos filósofos gregos Platão e

Aristóteles.

O primeiro, embora não trate sistematicamente da literatura, escreve

sobre tragédia, comédia, ditirambo e poesia épica, fazendo referências, nos

seus Diálogos, que permitem depreender uma preocupação com a unidade

e a universalidade da arte e uma propensão para abolir divisões.

Aristóteles, com o qual nasce a preceptiva, estabelece em sua Poética

princípios ainda hoje válidos. Em relação à matéria, refere-se à épica, ao

drama e à poesia lírica como gêneros poéticos fundamentais. Estabelece

distinções apoiadas na natureza dos assuntos tratados e nos elementos

formais, como a métrica e a linguagem figurada.

Em Platão e Aristóteles já aparece a distinção entre poesia lírica, épica

e dramática baseada no '"modo de imitação' (ou de 'representação'): a

poesia lírica é a 'pessoa' do próprio poeta; na poesia épica, o poeta fala em

primeira pessoa, como narrador, e em parte faz falar seus personagens em

estilo direto (narração mista); no teatro, o poeta desaparece através da

distribuição de papéis".17

Pág. 71

O poeta Horácio codifica e leva para Roma as teorias gregas,

inspirando-se notadamente em Platão e cm Aristóteles. Quando trata dos

gêneros, caracteriza-os a partir de traços estilísticos e de variedades

métricas; propõe uma rigorosa separação para os gêneros que não permitia,

por exemplo, misturar, num mesmo texto, tragédia e comédia: cada uma

teria o tom adequado.

17 Cf. WELLEK, René; WARRF.N, Austin. Teoria literária. Madri: Credos, 1953. p. 397-8.

Page 68: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

As teorias aristotélicas e platônicas horacianamente codificadas é que

informarão basicamente a literatura e a crítica literária do Ocidente nos

séculos XVI, XVII, XVIII e boa parte do XIX.

No século XVI, predomina, não sem polêmica, a adoção de critérios

rígidos e fica estabelecido, entre outros princípios, que: lírica é a poesia

feita das reflexões do poeta; dramática é a poesia em que a pessoa do poeta

não intervém; épica é um conglomerado das duas atitudes anteriores. Os

gêneros, concebidos como algo estático que não admite desenvolvimento,

classificam-se em maiores e em menores: entre os primeiros, situavam-se a

tragédia e a epopéia; entre os menores, a comédia e a fábula, por exemplo.

Na base da divisão, o assunto, os personagens: a tragédia e a epopéia

envolvem figuras de reis, heróis e grandes personalidades; a comédia se

centraliza, geralmente, em personagens e problemas burgueses; a farsa tem

como núcleo de interesse elementos populares.

Na mesma época surge, ao lado dessa posição, uma atitude mais

aberta, segundo a qual novas formas literárias distintas das preconizadas

por gregos e romanos são consideradas legítimas; os gêneros tradicionais

admitem modalidades novas; admite-se que a literatura "moderna" pode ser

superior à greco-latina.

A polêmica permanece durante os séculos XVII e XVIII, fortalecidas

as teses "modernas" ainda mais com o desenvolvimento de novas

manifestações na arte literária, como o romance e o drama burguês.

A posição do século XIX destaca a liberdade e o ecletismo. São

representativas as palavras de Victor Hugo no prefácio de

Pág. 72

sua peça Cromwell, de 1827: "Metamos o martelo nas teorias, nas poéticas

e nos sistemas. Abaixo este velho reboco que mascara a fachada da arte.

Não há regras nem modelos; ou melhor, não há regras além das leis da

natureza que planam sobre toda arte e das leis especiais que, para cada

composição, derivam das condições próprias de cada assunto. As primeiras

são eternas, interiores, e permanecem; as outras, variáveis, exteriores, e

Page 69: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

servem apenas uma vez".18

Outra tese do mesmo século entende que os gêneros nascem, crescem,

desenvolvem-se, transformam-se e desaparecem, como defende Ferdinand

Brunetière.

Mais radical é a posição do filósofo italiano Benedetto Croce, que

confere à teoria dos gêneros significação secundária, como um elemento

extrínseco da obra; para ele, esta deve ser estudada em si mesma, como

expressão única de realidades. A validade estética da obra de arte literária

independe, segundo Croce, de sua subordinação a este ou àquele gênero

arbitrariamente caracterizado.

Já o citado Staiger admite a existência de um estilo lírico, um estilo

épico e um estilo dramático caracterizadores das obras literárias,

expressões a que dá preferência, por serem mais dinâmicas. Para ele,

qualquer obra autêntica participa dos três gêneros literários, e a sua

classificação é ditada pela predominância das características deste ou

daquele estilo; a idéia do que seja lírico, épico ou dramático ocorre em cada

indivíduo a partir de algum exemplo que pode ou não ser uma obra

literária: "Posso ter vindo a conhecer a significação ideal — para falar com

Husserl — do 'lírico' por meio de uma paisagem, e do 'épico' talvez por

uma leva de imigrantes; uma discussão pode ter-me incutido o sentido do

'dramático'", esclarece aquele estudioso nos seus Conceitos fundamentais

da poética.

Pág. 73

Outras perspectivas para o estudo dos gêneros literários colocam o

centro das atenções na estrutura linguística da obra; é o caso da posição de

Roman Jakobson.

Em resumo, os estudos sobre a matéria envolvem duas teorias:

a) a teoria clássica, que considera os gêneros a partir de critérios

rígidos, como entidades nitidamente caracterizadas em sua estrutura:

estabelece normas (embora não tão autoritárias como à primeira vista se

poderia supor), preconiza uma diferença entre os diversos gêneros em

18 VICTOR HUGO. Théâtre complet. Paris: Bibliothèque de la Pléiade, 1963. p. 434. v. 1.

Page 70: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

termos de natureza e hierarquia c determina sua separação;

b) a teoria moderna, que se vale de critério aberto, admitindo os

gêneros como realidades dinâmicas que possibilitam mudanças, variações e

imbricações. É descritiva e não normativa.

Como quer que seja, apontam-se tradicionalmente três gêneros — o

lírico, o épico e o dramático —, que se configuram em formas ou

manifestações como o poema, o romance, o conto, a novela, a tragédia, a

comédia etc, admitindo-se variantes, formas mistas e o aparecimento de

novas realizações artísticas, a cada passo evidenciadas nas rupturas dos

movimentos de vanguarda.

Vale registrar que as tradicionais modalidades da narrativa de ficção,

bem como as manifestações em verso, vêm modernamente perdendo

contornos; as formas vêm-se descaracterizando como tal, e novos modelos

surgem desafiando a argúcia e a ciência dos estudiosos. E se a teoria dos

gêneros já vem sofrendo, há muito, contestações, essas mudanças acentuam

ainda mais a problemática que as envolve.

Essa, entretanto, já é outra história.

Fecho essas considerações sobre as manifestações em prosa e em

verso lembrando uma modalidade que assumiu notável desenvolvimento na

realidade brasileira: a crônica.

Navegando entre o literário e o não-literário, a crônica, como o nome

indica, retira sua configuração da dinâmica do tempo dos

Pág. 74

limites do qual se libera, por força da linguagem estética em que se

concretize. Faz-se de fatos e comentários do autor sobre a realidade

próxima ou distante, mas sempre a partir de uma óptica atualizada. Trata-se

de uma forma literária que encontrou nos veículos de comunicação de

massa, notadamente nos jornais e revistas, seu principal e dominante

instrumento de divulgação, embora, em segundo plano, venha frequentando

também os espaços do livro. Os bons exemplos vêm desde Machado de

Assis e passam por autores como Rubem Braga, Carlos Drummond de

Andrade, Antônio Maria, Sérgio Porto, Henrique Pongetti, Raquel de

Page 71: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Queirós, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Carlos Eduardo

Novaes, Luís Fernando Veríssimo, João Ubaldo Ribeiro, Zuenir Ventura e

alguns outros que asseguraram a instauração e a permanência dessa

modalidade de texto ao que parece essencialmente brasileiro.

QQuueessttõõeess eemm aabbeerrttoo

Além desses traços característicos do discurso literário que já

desfrutam de razoável consenso (embora alguns permaneçam marcados de

alguma polêmica), outros há que, até o momento em que escrevo,

permanecem como questões ainda não plenamente equacionadas. Entre eles

assinalo alguns:

AA qquueessttããoo ddoo rreeffeerreennttee

O assunto divide os estudiosos. Para alguns, o texto literário não tem

referente.19

O referente se liga ao contexto extraverbal; se situaria, portanto, fora

da linguagem; o sentido das palavras, no texto literário, emerge do próprio

texto e se apóia sobretudo na dimensão co-

Pág. 75

notativa. A tese parece sustentar-se, mais ainda se pensamos em termos de

mímese das aparências e só essa ausência de referente quiser significar que

ele é, no caso, fictício ou imaginário.

A posição, no entanto, não resiste à consideração de alguns fatos: se

acreditamos que o texto literário é uma desrealização do real que remete à

profundidade desse real; se aceitamos o texto como concretizador de uma

mímese das essências; se pensamos em textos autobiográficos, ou em certas

narrativas hiper-realistas contemporâneas, em que as fronteiras do real e do

imaginário parecem diluir-se; se entendemos que os traços literários

envolvem não apenas a totalidade do texto de literatura mas podem ser

configurados em fragmentos e passagens — aí então o referente se 19 Cf. TODOROV, T. Note sur le langage poétique. Semiótica 1. Paris: 1969. p. 323-8.

Page 72: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

evidencia, embora esteja sempre presente a dimensão conotativa.

A propósito, vale lembrar a posição de Jakobson, para quem "a

supremacia da função poética sobre a função referencial não oblitera a

referência (a denotação) mas a torna ambígua".

A problemática permanece, com acentuada tendência de muitos a

considerar que o texto literário é um simulacro de referente e de outros a

entender que algo da realidade abriga-se nos espaços do ficcional.

IInntteerrtteexxttuuaalliiddaaddee

O termo "intertextualidade" foi proposto por Mia Kristeva como

substituto de dialogismo, conceito lançado pelo teórico soviético Mikhail

Bakhtin (1895-1975).20

Em oposição ao pensamento saussuriano, que privilegia a língua em

sua dimensão ideal, Bakhtin concentra suas atenções

Pág. 76

na fala (ou discurso), que considera intrinsecamente ligada às condições da

comunicação, por seu turno vinculadas às estruturas sociais.

Considera também a consciência individual como um fato sócio-

ideológico c entende que a linguagem implica um contexto histórico-social:

o homem se transforma num ser histórico e social, segundo ele, a partir dos

signos que lhe comunicam o mundo. E esses signos são sempre

impregnados de ideologia, uma vez que esta reflete as estruturas sociais.

As palavras de um enunciado estariam assim carregadas de

significação vinculada a inúmeros contextos vividos, e toda comunicação

envolveria a interação de um falante, um destinatário e um "personagem"

(de que se fala), envoltos por um horizonte comum que possibilita a

compreensão dos elementos ditos e não-ditos.

Ainda segundo sua teoria, a realização de qualquer comunicação ou

20 Cf. KRISTEVA, Julia. Présentation. In: BAKHTIN, M. La poétique de Dostoievski. Paris: Seuil, 1970;

TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtin: le príncipe dialogique suivi de écrits du cercle de Bakhtine. Paris:

Seuil, 1981.

Page 73: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

interação verbal envolve uma troca de enunciados, situa-se na dimensão de

um diálogo.

Por consequência, como resume Todorov, para ele, "o estilo é, pelo

menos, dois homens, ou mais exatamente, o homem e seu grupo social,

encarnado por seu representante acreditado, o ouvinte, que participa de

maneira ativa da fala interior e exterior do primeiro".

A luz desses posicionamentos, o discurso literário envolve um

cruzamento, um diálogo de vários textos, que se dá em nível horizontal e

em nível vertical: em termos de horizontalidade, a palavra, no texto,

pertence, ao mesmo tempo, a quem escreve e ao destinatário;

verticalmente, é orientada na direção do corpus literário anterior ou do

contemporâneo.

Bakhtin chama a esses dois níveis de diálogo e ambivalência, achado

a que Kristeva prefere denominar intertextualidade.

Pág. 77

Todo texto se converteria assim num mosaico de citações e absorção e

transformação de outros textos, consciente ou m conscientemente

aproveitados pelo escritor.

A questão, entretanto, é mais uma que não é simples e se encontra

aberta a amplas discussões, ampliações, contestações, avaliações, até

porque os textos de Bakhtin envolvem problemas: seus primeiros trabalhos

foram, até mesmo, assinados por seus discípulos Volochinov e Medvedev.

A caracterização da intertextualidade, porém, permite "ler", por

exemplo, em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, a presença de

Os sertões, de Euclides da Cunha, e do discurso da Bíblia; o texto bíblico,

aliado ao texto da mitologia clássica e ao texto da história do Brasil,

aparece em Esaú e Jacó, de Machado de Assis (a propósito, pode-se ler, de

Affonso Romano de Sant'Anna, estudo publicado em Análise estrutural de

romances brasileiros); a mesma Bíblia, a história da conquista da América

e o mito edipiano cruzam-se em Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia

Márquez, como demonstra Selma Calasans Rodrigues em tese de doutorado

apresentada à Faculdade de Letras da UFRJ, em 1985, só para citar três

Page 74: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

exemplos significativos.

O fértil conceito bakhtiniano deixa perceber ainda limites do plano de

conotação que envolvem desde dimensões individuais até as dimensões dos

gêneros literários. Em que pese a complexidade que o marca, é fora de

dúvida que se presentifica com relevância no discurso literário. A tal ponto

que tem merecido ampliações e aprofundamentos de vários estudiosos21

e

frequentado inúmeros estudos críticos de textos.

A noção de dialogismo se liga à de paródia revitalizada por Bakhtin e

esta à de carnavalização. Mas já se trata de assuntos que fogem aos limites

deste livro.

Pág. 78

FFeecchhaammeennttoo

O texto literário se caracterizaria por um começo, um meio e um fim.

Seria, portanto, marcado por um fecho. A questão, porém, é outra, longe de

ser pacífica.

Considerada a história narrada, o texto pode não se fechar e deixar em

aberto à imaginação do leitor ou ouvinte a solução ou as soluções para as

tensões ou os conflitos nele apresentados, É o caso, por exemplo, de Dom

Casmurro, de Machado de Assis, que chega a converter-se num enigma a

propósito de Capitu, personagem feminina central, e do romance A grande

arte, de Rubem Fonseca, cujo término, no espaço da trama, é

marcadamente ambíguo.

Em termos estruturais, a partir do entendimento de que o texto

literário se constitui de relações recíprocas entre discurso c narrativa,

Michel Arrivé, por exemplo, conclui, apoiado era considerações e conceitos

de Julia Kristeva, que pode haver abertura ou fechamento, à luz desses dois

níveis.

O discurso, no caso, será fechado quando ele mesmo manifestar seu

próprio finalizar-se, através de signos do tipo "agora aplaudam", ou quando

21 V., a propósito, GENETTK, Gerard. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982;

MOISÉS, Leila Perrone. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Ática, 1978.

Page 75: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

sua própria natureza o indicar, como acontece, por exemplo, com os

poemas de forma fixa, como o soneto. Discurso, nessa perspectiva, é

compreendido como o encadeamento ou a concatenação das unidades

propriamente linguísticas (do fonema à frase) que tornam o texto

manifesto. Vale esclarecer que, na literatura moderna, é raro esse tipo de

fechamento formal explicitado.

O fechamento da narrativa se dá "quando o conjunto de suas

sequências está implícito na primeira sequência dentre elas" (exemplo: a

tragédia clássica), ou quando se explicita na última sequência. Ocorre

também quando, em alguns casos, a ação central desta última sequência

não pode seguir além de um

Pág. 79

termo implícito na própria estrutura do conteúdo da ação, como é o caso

dos romances policiais, por exemplo. Nos textos em que a ação da última

sequência admite o prosseguimento para além do discurso acabado, a

narrativa permanece aberta.22

22 ARRIVÉ, Michel. La sémiotique littéraire. In: POTTIER, Bernard (Org.). Le langage. Paris: La

Bibliothèque du CEPL, 1973. p. 276-8.

Page 76: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Pág. 80

66

VVooccaabbuulláárriioo ccrrííttiiccoo

Comunicação: em sentido restrito, é a troca de mensagens ou

informações entre seres humanos. Se pensamos na etimologia da palavra,

pode ser entendida como a faculdade que tem o homem de tornar comum a

outrem seus pensamentos, sentimentos e desejos e as coisas do mundo que

o cercam. Em sentido amplo, envolve também a realidade técnica da

relação entre o homem e as máquinas (por exemplo, os computadores) e

das máquinas entre si, além de estender-se ao mundo animal e aos sistemas

próprios do interior do indivíduo, como, por exemplo, os sinais

transmitidos pelos feixes de nervos do organismo.

Conotação: pode ser compreendida como a parte do sentido de uma

palavra centralizada na sua capacidade de funcionar para a manifestação

psíquica ou a atuação social, ou seja, centralizada nas funções emotiva e

conativa da linguagem.

Cultura: trata-se de um termo que admite centenas de conceituações.

À luz da antropologia, podemos entendê-lo como o conjunto e a integração

dos modos de pensar, sentir e fazer adotados por uma comunidade, na

busca de soluções para os problemas da vida humana associativa. (Ver

outras definições no corpo do livro.)

Pág. 81

Designação: referência à "realidade", isto é, na terminologia

linguística proposta por Eugênio Coseriu, a relação cada vez determinada

entre o signo e a "coisa" designada.

Estilo (individual): a partir do conceito de Helmut Hatzfeld, é o

aspecto particular que caracteriza a utilização individual da língua e que se

revela no conjunto de traços situados na escolha do vocabulário, na ênfase

Page 77: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

nos termos concretos ou abstratos, na preferência por formas verbais ou

nominais, na propensão para determinadas figuras de linguagem, tudo isso

vinculado à organização do que se diz ou se escreve e a um intento de

expressividade. Os estudos relacionados com o estilo envolvem, em síntese,

dois posicionamentos: há aqueles que o consideram como resultante de um

conjunto de escolhas em relação à língua; outros entendem que se trata de

um desvio em relação à norma gramatical.

Estilo de época: ainda com apoio no mesmo Hatzfeld, é a atitude de

uma cultura que surge com tendências análogas nas manifestações

artísticas, na religião, na psicologia, na sociologia, nas formas de polidez,

nos costumes, vestuários, gestos etc. No que diz respeito à literatura, essa

modalidade só pode ser avaliada "pelas contribuições dos estilos

individuais, ambíguas em si mesmas, constituindo uma constelação que

aparece em diferentes obras e autores da mesma era e parece informada

pelos mesmos princípios perceptíveis nas artes vizinhas".

Fala ou discurso: é a utilização individual da língua; é um

conglomerado de fatos assistemáticos e, em relação à língua, "um ato de

seleção e atualização", como explicita Barthes. O conceito tem merecido

reformulações.

Língua: entre outras acepções, é a realização de uma linguagem por

um grupo social, um sistema de signos que permite configurar e traduzir a

multiplicidade de vivências caracterizadoras do ser de cada um no mundo.

Pág. 82

Linguagem: o termo admite múltiplas conceituações, entre elas: a

linguagem é uma das formas de apreensão do real. Para Ernst Cassirer, é a

faculdade que o homem tem de expressar seus estados mentais por meio de

um conjunto de sons vocais chamado língua que é, ao mesmo tempo,

representativo do mundo interior e do mundo exterior. Tatiana Slama-

Casacu a considera "um conjunto complexo de processos — resultado de

certa atividade psíquica profundamente determinada pela vida social — que

torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer".

Lotman a entende como "qualquer sistema de comunicação que utiliza

signos organizados de maneira particular".

Page 78: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Mímese: o termo pode ser descodificado, à luz de Aristóteles, como

imitação. Imitar, no caso, significa muito mais do que a simples reprodução

ou "fotografia" do real, embora com essa acepção a palavra tenha

atravessado os séculos e dominado, não sem alguma controvérsia, a

literatura ocidental. A partir dos fins do século passado, após um novo

entendimento da teoria aristotélica, passou a ser compreendido como

revelação da essência do real. Ao lado dessa tradição como imitação das

essências, envolve ainda, na estética do Ocidente, conforme assinala Stefan

Morawski, uma tradição platônica (imitação das aparências) e uma tradição

demo-crítica (imitação das ações da natureza). Admite também a pronúncia

como paroxítono, embora alguns estudiosos prefiram reservar essa forma

para a figura de retórica homônima e usar a forma proparoxítona (mímese)

para marcá-la na condição de conceito de poética e de estética, como

propõe José Guilherme Merquior.

Norma: por norma, em sentido restrito, compreende-se, segundo

Mattoso Câmara, "o conjunto de hábitos linguísticos vigentes no lugar ou

na classe social mais prestigiosa do país".

Pág. 83

Mais amplamente, pode ser entendida, de acordo com Coseriu, como

"um sistema de realizações obrigatórias consagradas social e culturalmente

que não corresponde ao que se pode dizer mas ao que já se disse e

tradicionalmente se diz na comunidade considerada".

Sentido: em termos amplos, é a significação da palavra no texto, o

conteúdo próprio de um texto.

Significado: é, para ficarmos apenas com Coseriu, "o conteúdo de um

signo ou de uma expressão enquanto dado numa determinada língua e

exclusivamente através dessa mesma língua".

Significante: é, numa dada língua, a parte fônica do signo que, na

relação com o significado, garante a significação. O significante envolve

aspectos físicos, ou seja, vibrações sonoras, e aspectos psicológicos, a

saber, que implicam comando cerebral. É claro que ao termo se estende a

mesma complexidade dos seus correlatos, signo e significado.

Page 79: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Signo: é, segundo a conceituação de Charles Sanders Peirce, qualquer

elemento que, sob certos aspectos e em certa medida, representa outro. Na

lição clássica de Saussure, corresponde à combinação de significante

(imagem acústica) e significado (conceito). A conceituação do termo é,

entretanto, bastante ambígua e complexa.

Sistema: é um conjunto organizado, isto é, integrado por elementos

que se interdependem.

Verso: por verso entende-se, tradicionalmente, a frase ou o segmento

frasal em que há um ritmo nítido e sistemático. De acordo com Mattoso

Câmara, na língua portuguesa, o ritmo desse tipo de verso é "consequência

da regularidade do número de sílabas (ritmo silábico) e da disposição dos

acentos tônicos (ritmo intensivo). Essas duas regularidades combinadas

constituem a medida ou a métrica do verso". A par-

Pág. 84

tir do final do século XIX, floresce uma nova modalidade de verso, o

chamado verso livre; caracteriza-se por deixar de ter na sílaba a sua

unidade rítmica; seu ritmo se apóia na combinação da entoação e das

pausas, ou seja, na sucessão de grupos fônicos valorizados pela entoação,

pelas pausas e pela maior ou menor rapidez da enunciação.

Page 80: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

Pág. 85

77

BBiibblliiooggrraaffiiaa ccoommeennttaaddaa

ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética [Art rhétorique et art

poétique]. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964. Obra de

importância básica para a teoria e a crítica literárias. É com Aristóteles que

nasce a preceptiva. Com base na análise do legado artístico de seu povo, o

filósofo grego elabora a sua Arte poética, de importância fundamental para

a história não só da crítica literária mas do próprio pensamento humano. A

Arte retórica trata da eloquência, de notável presença na Atenas de seu

tempo. Nela, o autor aponta os procedimentos que o orador deve adotar

para conduzir os ouvintes à persuasão que objetiva, a partir de processos

dialéticos. A Arte poética, também centrada no bem dizer, apresenta

inúmeras idéias fundamentais sobre a arte e a literatura. Diante da natureza

da matéria que envolve e da linguagem utilizada, deve-se consultar, de

preferência, uma edição comentada.

AUERBACH, Eric. Mimésis: la représentation de la réalité dans la

littérature occidentale. Paris: Gallimard, 1968. O livro estuda a

interpretação da realidade histórica e social em textos representativos,

desde o Gênesis e a Odisséia até obras de Proust, Joyce e Virgínia Woolf.

Trata-se de obra já

Pág. 86

clássica sobre a questão da mímese. Pode ser consultada a edição brasileira

da Perspectiva: Mímesis.

BARTHES, Roland. Le degré zero de l'ecriture suivi de éléments de

sémiologie. Paris: Gonthier [s.d.].

O livro se faz, como o título indica, de dois estudos. O primeiro, Le

degré zéro de l'ecriture, procura responder a duas questões básicas: o que é

Page 81: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

literatura e que ligações se estabelecem entre ela e a história. Nesse

percurso, o autor situa os diferentes domínios da fala, da língua, do estilo e

trata do problema geral das condições necessárias de uma linguagem.

Apresenta também o conceito de escritura, como complementar das

conceituações de estilo e de língua, situando-o em sua relação com o

engajamento do escritor na sociedade de que participa. O segundo trata, de

forma didática, do objeto de estudo da semiologia e de pesquisas na área.

Podem ser consultadas edições brasileiras, da Cultrix: Elementos de

semiologia e Novos ensaios críticos / O grau zero da escritura.

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix/ Edusp,

1977.

O livro engloba seis ensaios marcados pela percuciência crítica e pela

profundidade das considerações: "Imagem e discurso", "O som no signo",

"Frase, música e silêncio", "O encontro dos tempos", "Poesia resistência" e

"Leitura de Viço". Trata desde a essência da poesia até as formas de sua

atualização histórica, como se pode depreender do título da obra.

________. Brás Cubas em três versões: estudos machadianos.

São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Uma proposta exemplar de leitura crítica, centrada na polissemia do

texto machadiano. Destacadas as reflexões sobre

Pág. 87

as Memórias póstumas de Brás Cubas, objeto dos três primeiros ensaios.

Os demais focalizam a política nas crônicas do autor e a visão de

Raymundo Faoro sobre a obra do Bruxo do Cosme Velho. Estudos

convergentes. No percurso, um diálogo do crítico com outras leituras

críticas. Na conclusão, a proposta fundamentada de uma leitura do romance

fundada numa visão integradora, de caráter hermenêutico, apoiada na

"combinação de vetores formais, existenciais e miméticos, sem que uma

instância monocausal tudo regule e sobredetermine".

Buzzi, Arcângelo. Introdução ao pensar. 3. ed. rev. e aum. Petrópolis:

Vozes, 1971.

Num texto didático e bastante acessível, mesmo para os não iniciados

Page 82: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

em filosofia, o autor discorre sobre o ser, o conhecer e a linguagem e suas

relações.

CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. Dicionário de filologia e gramática

referente à língua portuguesa. 2. ed. ref. Rio de Janeiro: J. Ozon, 1964.

Nova edição enriquecida da obra anteriormente denominada

Dicionário de fatos gramaticais. Com a segura fundamentação do autor,

pioneiro dos estudos de linguística no Brasil, o livro objetiva, em suas

próprias palavras, "dar em ordem alfabética, para consultas ocorrentes, as

noções gramaticais, como base para a compreensão estrutural, funcional e

histórica da língua portuguesa".

CARVALHO, J. G. Herculano de. Teoria da linguagem: natureza do

fenômeno linguístico e análise das línguas. Coimbra: Atlântida, 1967. v. I e

II.

Situa didática e claramente, à luz de um rigoroso espírito crítico,

problemas como a natureza da linguagem e do sinal,

Pág. 88

a análise do saber linguístico e do ato da fala, a funcionalidade e a mudança

na linguagem.

COSERIU, Eugênio. Lições de linguística geral [Lezioni di linguística

generale]. Trad. de Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico,

1980.

O livro reúne as lições que o renomado linguista contemporâneo

ministrou nos cursos de atualização para professores de literatura e de

línguas estrangeiras, na Itália, de 1968 a 1971. Obra marcada pela

originalidade de várias propostas, estuda questões relacionadas com as

teorias linguísticas modernas a partir de uma "consideração estrutural e

funcional, numa concepção dinâmica da língua". Coseriu identifica e

explicita ainda os três níveis de linguagem referidos: o universal, o

histórico e o individual. Texto fundamental para uma visão atualizada de

importantes questões ligadas à linguagem.

DUCROT, Oswald; TODOROV, Tzvetan. Dictionnaire encyclopédique

des sciences du langage. Paris: Seuil, 1972. Trata-se de um dicionário que

Page 83: Domício_Proença_Filho_-_A linguaagem literária(2)

busca explicitar termos da linguística, da literatura e de disciplinas afins.

Compõe-se de cinquenta e sete artigos que envolvem cerca de oitocentas

definições, o que possibilita, por força do índice final que o integra, a

consulta pela ordem alfabética e a leitura corrida. Artigos e conceitos são

acompanhados de indicações bibliográficas complementares que permitem

aprofundamento e ampliação de conhecimentos sobre a matéria tratada.

Possibilita conhecer um dos vários e distintos posicionamentos

relacionados com a linguagem, a literatura e a teoria literária.

ESCARPIT, Robert (Dir.). Le Uttéraire et le social: éléments pour une

sociologie de la littérature. Paris: Flammarion, 1970.

Pág. 89

A obra envolve, em diferentes ensaios, apreciações originais sobre a

sociologia da literatura, mais bem aproveitadas pelo leitor que já tenha um

convívio com o tema. Há no livro um documento assinado por Robert

Escarpit — denominado "La définition du terme 'littérature'. Project d'un

arti-cle pour un dictionnaire international des termes littéraires" — que

permite, entretanto, uma visão da etimologia do termo e do percurso

histórico de sua significação.

FRYE, Northrop. Anatomie de la critique [Anatomy of criticism].

Paris: Gallimard, 1969.

O livro é, desde 1957, um dos mais importantes textos da crítica

literária anglo-saxônica. Nele, o autor procura definir a literatura e a crítica

literária e, no âmbito desta última, tece considerações sobre quatro tipos: a

crítica histórica, a crítica etológica, a crítica retórica e a crítica dos

arquétipos. Leitura de grande interesse, sobretudo na área das relações entre

literatura e mito. Pode ser lido na edição brasileira, da Cultrix: Anatomia da

crítica.

JAKOBSON, Roman. Essais de linguistique générale. Paris: Minuit,

1966.

Em onze ensaios, o autor trata, com percuciência, da maioria das

questões fundamentais da linguística estrutural, no âmbito da fonologia, da

semântica, da retórica e da poética. Importante para os interessados nos

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estudos da linguagem literária é o já clássico "Linguística e poética", que

examina, entre outros aspectos, os fatores do processo linguístico da

comunicação e as funções da linguagem.

LEFEBVE, Maurice-Jean. Structure du discours de la poesie et du récit.

Neuchâtel: La Baconnière, 1971. Livro centralizado numa tese pessoal do

autor a propósito da estrutura e do funcionamento do discurso literário,

converte-

Pág. 90

se, por outro lado, num texto didático mobilizador de reflexões sobre uma

série de noções e questões relevantes relacionadas com as características da

linguagem da literatura.

IÉVAVASSEUR, Aline. Style et stylistiquc. In: MARTINET, André (Dir.).

La linguistique. Paris: Denoël [1969]. A autora rastreia o conceito de

estilística desde o seu aparecimento e questiona e discute as várias posições

dos estudiosos a propósito do conceito de estilo.

LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo:

Companhia das Letras, 2006.

Teórico da literatura, o autor discute a especificidade dos termos que

dão título à obra, seus limites, suas fronteiras. Aponta distinções entre

ficcional e literário. Rastreia percursos conceituais, notadamente o da

literatura. Propõe reformulações, mobilizadoras da reflexão do leitor, num

texto rigorosamente fundamentado.

LOTMAN, Iouri. La structure du texte artistique. Paris: Gallimard,

1975.

A obra envolve uma síntese e uma retomada crítica dos trabalhos dos

formalistas russos e dos estruturalistas, com referências às contribuições de

Tynianov, Bakhtin, Roman Jakobson, Roland Barthes e Christian Metz,

entre outros. Centrada na especificidade da informação artística, inclui

amplo e importante estudo sobre a arte como linguagem e sobre a

linguagem poética.

MANHEIM, Karl. Ideologia e utopia [Ideology and utopia]. 3. ed. Rio

de Janeiro: Zahar, 1976.

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Obra importante para o entendimento da mudança social e sua relação

com a ideologia, cuja complexa conceituação é objeto do capítulo II.

MAKTINET, André (Dir.). La linguistique. Paris: Denoël, 1969.

Pág. 91

Obra coletiva, é um guia alfabético que reúne 51 artigos relacionados

com as principais noções da linguística moderna. Segura introdução ao

conhecimento de conceitos básicos vinculados à linguagem.

MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da mímese: ensaios sobre

lírica. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1972. Merquior, com a segura

fundamentação e a inteligência que marcam seus escritos, reúne nove

ensaios sobre temas teóricos e sobre textos de autores como Rilke, Carlos

Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José Carlos Capinan e

Francisco Alvim. O primeiro deles, sobre a natureza da lírica, é uma

excelente introdução ao entendimento da mimese em literatura.

OLSEN, Stein Haughom. A estrutura do entendimento literário [The

structure of literary understanding]. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

A obra tem, como propósito, a "tentativa de explicar a natureza da

reação do leitor à obra literária". Nesse sentido, descreve e questiona as

teorias que consideram a literatura expressão de emoção, revelação de um

tipo especial de verdade e modalidade específica de linguagem, e também

busca fazer a "anatomia" dos julgamentos literários. Em que pese o caráter

polêmico do texto, é uma leitura informativa, rica e instigadora.

PENUELAS, Marcelino C. Mito, literatura y realidad. Madrid: Gredos,

1965.

O livro situa o mito e suas relações com a linguagem e a literatura.

Excelente ponto de partida para um conhecimento dessa rica área de

estudos, com aprofundamento possibilitado pela bibliografia que apresenta.

Pág. 92

Pignatari, Décio. Informação. Linguagem. Comunicação. São Paulo:

Perspectiva, 1968.

Trata, de forma clara e didática, de questões ligadas à comunicação e à

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linguagem. O capítulo 2 é uma excelente introdução à teoria dos signos.

PORTELLA, Eduardo et al. Teoria literária. Rio de Janeiro: Tempo

Brasileiro, 1975.

A obra se faz de sete ensaios instigadores de reflexão: "Limites

ilimitados da teoria literária", de Eduardo Portella; "Crítica e história

literária", de Manuel Antônio de Castro; "Os estilos históricos na literatura

ocidental", de José Guilherme Merquior; "Os gêneros literários", de Helena

Parente Cunha; "Análise da narrativa", de Maria do Carmo Pandolfo;

"Semiologia e literatura", de Muniz Sodré e "A paraliteratura", de Anazildo

Vasconcelos da Silva.

POUILLON, Jean. Temps et roman. 3. ed. Paris: Gallimard [s.d.].

Estudo básico sobre o romance; com apoio em textos representativos, trata

da questão do tempo e de outras questões teóricas relevantes, como a

intenção romanesca, a imaginação, a autobiografia, os diferentes modos de

conhecimento do "eu", os personagens etc. Pode-se ler a edição brasileira,

da Cultrix/Edusp: Tempo e romance.

PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de época na literatura. 14. ed., 5.

reimpr. São Paulo: Ática, 2002.

Este livro pretende ser, em princípio, uma introdução aos estudos de

literatura, a partir de textos comentados, com ênfase numa visão ampla dos

movimentos literários desenvolvidos no mundo ocidental. Incluídas

considerações sobre o chamado Pós-modernismo. Nele apresento,

notadamente nos quatro primeiros dos treze capítulos que o constituem e

em inúmeras notas, considerações e informações sobre lin-

Pág. 93

guagem e arte literária, além de uma extensa bibliografia de apoio.

Acredito que possa ser utilizado com algum proveito por quem se inicie

nesses assuntos.

REIS, Carlos. O conhecimento da literatura: introdução aos estudos

literários. Coimbra: Almedina, 1995. A obra apresenta e examina

exaustivamente conceitos operacionais relevantes no âmbito da teoria da

literatura. Analisa e discute o conceito de literatura, o texto literário, a

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periodologia literária, modos e gêneros do discurso. Tece, entre outras,

considerações sobre a poesia lírica, sobre o diálogo entre a literatura e a

História, sobre a criação poética, sobre o diálogo intertextual. Na

fundamentação, ampla e atualizada bibliografia.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística general [Cours de

linguistique générale]. Publicado por Charles Bally y Albert Sechehaye con

la colaboración de Albert Riedlinger. 2. ed. Buenos Aires: Losada, 1955.

Livro pioneiro e fundamental, leitura imprescindível para quem quer

que se preocupe com os estudos da linguagem. Além da edição citada,

preparada pelos discípulos do mestre genebrino, deve-se consultar a edição

feita por Túlio de Mauro, lançada pela Payot, 1972.

SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da literatura. São Paulo:

Martins Fontes, 1976.

Obra nascida dos cursos da disciplina que o autor ministrou na

Faculdade de Letras de Coimbra, oferece um amplo leque de aspectos da

problemática do fenômeno literário rigorosa e exaustivamente examinados.

Uma ampla bibliografia possibilita maior aprofundamento nos estudos da

área. Leitura básica para um conhecimento de conceitos fundamentais da

teoria literária.

Pág. 94

STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética [Grundbe-griffe

des poetik]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. O livro envolve uma

compreensão renovada e original do que se entende por épico, lírico e

dramático e, até certo ponto, por trágico e cômico. Leitura importante para

uma visão atualizada desses conceitos, ainda objeto de posições polêmicas

e não raro contraditórias.

THÉORIE de la litterature. Textes des formalistes russes. Paris: Seuil,

1965.

O livro se faz de quatro partes que tratam, respectivamente, das linhas

mestras da metodologia formalista, de estudos sobre ritmo e verso, de uma

teoria da prosa e suas manifestações (o conto, a novela e o romance) e de

um apêndice com uma exposição dos temas principais ligados à teoria da

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literatura. Não é uma obra de iniciação nos estudos de literatura; sua leitura

exige conhecimento prévio dos conceitos básicos da teoria literária; vale

lembrar, entretanto, que o trabalho dos formalistas repercutiu

marcadamente nos estudos linguísticos e literários contemporâneos, seja

entre os participantes do Círculo Linguístico de Praga, como Jakobson por

exemplo, seja entre estudiosos que defendem posições modernas da teoria

da informação, passando por estruturalistas como Roland Barthes, Claude

Lévy-Strauss e Michel Foucault, entre outros. Pode-se ler a edição

brasileira organizada por Dionísio de Oliveira Toledo e publicada pela

Editora Globo, Porto Alegre, 1976.

WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da Literatura [Theory of

Literature]. Lisboa: Europa-América, 1962. Obra já clássica no âmbito dos

estudos de teoria literária, propõe-se, como explicitam os autores no

prefácio, "unir a

Pág. 95

'poética' (ou teoria literária) e o 'criticismo' (valoração da literatura) à

'erudição' (investigação') e à 'história literária' (a 'dinâmica' da literatura em

contraste com a 'estática' da teoria e do criticismo)". É mais um

posicionamento, entre tantos, a propósito de conceitos básicos da teoria da

literatura e permite comparações esclarecedoras.

http://groups.google.com.br/group/digitalsource

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