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A Interpretação
das Escrituras
A. W. Pink
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2
Traduzido do original em Inglês
Interpretation of the Scriptures
By A. W. Pink
Via: PBMinistries.org
(Providence Baptist Ministries)
Tradução por William Teixeira, Camila Rebeca Almeida e Cesare Turazzi
Revisão por William Teixeira e Camila Rebeca Almeida
Capa por William Teixeira
1ª Edição: Fevereiro de 2017
Salvo indicação em contrário, as citações bíblicas usadas nesta tradução são da versão Almeida
Corrigida Fiel | ACF • Copyright © 1994, 1995, 2007, 2011 Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil.
Traduzido e publicado em Português pelo website oEstandarteDeCristo.com, com a devida
permissão do ministério Providence Baptist Ministries, sob a licença Creative Commons Attribution-
NonCommercial-NoDerivatives 4.0 International Public License.
Você está autorizado e incentivado a reproduzir e/ou distribuir este material em qualquer formato,
desde que informe o autor, as fontes originais e o tradutor, e que também não altere o seu conteúdo
nem o utilize para quaisquer fins comerciais.
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Agradecimentos
Nós editores do EC, William e Camila, queremos aproveitar a ocasião para externar os
nossos mais sinceros agradecimentos a...
Silas e Andrea Croce, um casal abençoado, que por seu amor e generosidade, tem
aberto a sua casa e seus corações para nós e nos ajudado em tudo nas horas que mais
precisamos.
Victor Corradi, generoso apoiador de nosso trabalho de traduções, cuja ajuda em
tempo oportuno manifestou o inefável amor e cuidado de Deus por nós.
Josué Sakurai, um homem bíblico, cujo temor a Deus e notória reverência à Sua
Palavra nos encorajam a estudar a sã doutrina e viver piedosamente.
Cesare Turazzi, abnegado irmão em Cristo, que de boa vontade foi nosso
cooperador nesta tradução e em outros trabalhos para nosso Deus.
Louvamos e glorificamos ao nosso Deus por todos vocês, amados irmãos, e oramos para
que vocês cresçam, cada vez mais, na graça e no conhecimento de nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo. Amém!
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Sumário
Prefácio ............................................................................................................... 5
Capítulo 1 ............................................................................................................ 7
Capítulo 2 .......................................................................................................... 14
Capítulo 3 .......................................................................................................... 22
Capítulo 4 .......................................................................................................... 28
Capítulo 5 .......................................................................................................... 36
Capítulo 6 .......................................................................................................... 43
Capítulo 7 .......................................................................................................... 50
Capítulo 8 .......................................................................................................... 57
Capítulo 9 .......................................................................................................... 64
Capítulo 10......................................................................................................... 71
Capítulo 11......................................................................................................... 78
Capítulo 12......................................................................................................... 85
Capítulo 13......................................................................................................... 92
Capítulo 14......................................................................................................... 99
Capítulo 15....................................................................................................... 107
Capítulo 16....................................................................................................... 114
Capítulo 17....................................................................................................... 122
Capítulo 18....................................................................................................... 128
Capítulo 19....................................................................................................... 136
Capítulo 20....................................................................................................... 143
Capítulo 21....................................................................................................... 149
Capítulo 22....................................................................................................... 156
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Prefácio
“As Sagradas Escrituras são a única, suficiente, correta e infalível regra de todo
conhecimento, fé e obediência salvíficos”.1 Esta frase é o grande prefácio e fundamento de toda
a Confissão Batista. Uma compressão correta desta gloriosa afirmação determinará a piedade
e veracidade da nossa fé e vida Cristãs.
Deus nos deu um Livro de Livros, obviamente Ele queria que o lêssemos, entendêssemos
e praticássemos o que entendemos. Devido a isso os Cristãos deveriam amar a leitura e estar
entre os melhores leitores. Mas quão diferente é a nossa realidade! O “Cristão comum” dos
nossos dias entende pouco ou quase nada de Bíblia, não gosta de ler, frequentemente não
consegue compreender o que lê, é um péssimo leitor. Irmãos, não convém que isso seja assim!
Precisamos nos arrepender e mudar. Urgentemente!
Há em nossa geração, como houve em todas as outras passadas, uma ignorância geral
a respeito do verdadeiro ensino das Escrituras, de sua verdadeira interpretação. Isso é
explicado, pelo menos em parte, pelo grande desinteresse e negligência, mesmo daqueles que
se dizem Cristãos, em saber a interpretação correta daquilo que “está escrito”. Porque
levaríamos a Palavra de Deus a sério se não levamos o próprio Deus a sério? A nossa atitude
para com a Palavra de Deus revela muito da nossa atitude para com o próprio Deus.
Assim como a doutrina é segundo a piedade, a piedade é segundo a doutrina bíblica. Sem
um conhecimento bíblico verdadeiro é impossível sermos Cristãos verdadeiros. Eu não posso
ser Cristão, se não conheço as “sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Timóteo 6:3).
Por outro lado, “muitos podem ter um conhecimento geral da Bíblia, porém há uma grande
falta no que diz respeito à capacidade de raciocinar a partir das Escrituras de uma forma
doutrinariamente consistente. Nós devemos conhecer a Bíblia doutrinariamente e devemos
conhecer nossa doutrina biblicamente. A menos que cheguemos a um conhecimento
doutrinário consistente das Escrituras, o nosso conhecimento da Palavra de Deus é tanto
deficiente quanto defeituoso”.2
Diante deste triste cenário nada podemos fazer senão nos juntarmos ao profeta Isaías em
seu clamor: “À lei e ao testemunho!” (8:20), voltemos às Escrituras Sagradas, voltemos à pura
Palavra de Deus! Mas somente ter as Escrituras nas mãos não é suficiente, é preciso saber
interpretá-las, e corretamente! E para isto esta obra magistral será de grande utilidade para o
1 Capítulo I, parágrafo I, Sobre As Sagradas Escrituras, de A Confissão de Fé Batista de Londres de 1689 (CFB1689). 2 William R. Downing. Um Catecismo de Doutrina Bíblica. Introdução: O Uso Prático de um Catecismo.
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leitor ávido por saber o real significado do que “está escrito” , para aquele que diante das
Escrituras abertas diz sinceramente em seu coração: “Fala, Senhor, porque o teu servo ouve!”
(1 Samuel 3:9). O autor dispensa apresentações, é provavelmente o melhor exegeta do século
XX. Quem está familiarizado com seus escritos sabe que as obras do amado A.W. Pink são
marcadas por profundo apego à Palavra de Deus e fidelidade às Sagradas Letras. O autor é
um exemplo vivo da doutrina que aqui ensina de forma maravilhosamente bíblica.
Havendo traduzido, revisado, lido e meditando sobre a obra, considero-me capaz de
afirmar que dificilmente encontraremos debaixo do céu — para usar as palavras do autor — um
“tratado sobre hermenêutica”, tão bíblico e completo, tão profundo e ao mesmo tempo tão
prático. Deixemos que o próprio autor fale sobre sua obra:
Nestes capítulos temos nos esforçado para colocar diante de nossos leitores quais as
regras que temos usado há muito tempo em nosso próprio estudo da Palavra. Elas foram
projetadas mais especialmente para os jovens pregadores, nós não poupamos esforços
para torná-los tão lúcidos e completos quanto possível, colocando em suas mãos esses
princípios de exegese que nos eram de grande proveito.
Se você é um pregador jovem, como eu, certamente receberá uma valiosíssima ajuda
para desenvolver seu ministério de pregação da Palavra; visto que se requer dos despenseiros
que cada um se ache fiel, as regras de Interpretação das Escrituras aqui propostas lhe ajudarão
a apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que
maneja bem a palavra da verdade (1 Coríntios 4:2; 2 Timóteo 2:15).
Finalmente permitam-me compartilhar com vocês um conselho que recebi de um senhor
norte-irlandês muito sábio cujo falar inspira temor reverente. Estávamos falando sobre
pregação e pregadores, ele me disse: “William, o grande pregador não é aquele que conhece
a Bíblia de capa a capa. O grande pregador não é aquele que domina a Palavra de Deus, mas
aquele que é dominado pela Palavra de Deus!”.
Que sejamos dominados pela Palavra de nosso Deus! Para a glória de Deus! Amém!
Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível,
Ao único Deus sábio, Salvador nosso — Pai, Filho e Espírito,
Seja glória e majestade, domínio e poder,
Agora, e para todo o sempre. Amém e Amém!
William Teixeira,
11 de setembro de 2016.
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Capítulo 1
________________________________________
O homem é notoriamente uma criatura de extremos, e em nenhum lugar esse fato se
faz mais evidente do que na atitude tomada por aqueles que diferem quanto a esse assunto.
Considerando que alguns têm afirmado que a Bíblia está escrita em uma linguagem tão
simples que não exige nenhuma explicação, um número muito maior suportou os papistas
buscando persuadi-los de que seu conteúdo é tão acima do alcance do intelecto natural,
que seus assuntos são profundos e elevados, que a sua linguagem é tão obscura e
ambígua que o homem comum é totalmente incapaz de compreendê-la por seus próprios
esforços, e, portanto, é um ato de sabedoria de sua parte trazer suas conclusões ao
julgamento da “santa mãe igreja”, que descaradamente afirma ser o único intérprete
divinamente autorizado e qualificado dos oráculos de Deus. É assim que o Papado retém
a Palavra de Deus dos leigos e impõe seus próprios dogmas e superstições aos mesmos.
A maior parte dos leigos está muito contente que isto seja assim, pois dessa forma eles
sentem-se livres da obrigação de examinarem as Escrituras por si mesmos. O caso também
não é muito melhor com muitos protestantes, pois na maioria dos casos são muito
indolentes por eles mesmos, e apenas acreditam no que ouvem nos púlpitos.
A principal passagem invocada pelos Romanistas, em uma tentativa de reforçar a sua
argumentação perniciosa de que a Bíblia é um livro perigoso — por causa de sua suposta
obscuridade — se posto nas mãos das pessoas comuns é 2 Pedro 3:15-16. É nessa
passagem que o Espírito Santo nos disse que o apóstolo Paulo, de acordo com a sabedoria
dada a ele, falou em suas epístolas de “pontos difíceis de entender, que os indoutos e
inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua própria perdição” (2 Pedro
3:16). Mas, como Calvino há muito tempo apontou, “não somos proibidos de ler as epístolas
de Paulo, pelo fato delas conterem algumas coisas difíceis de entender, pelo contrário, elas
são recomendadas para nós, pois podem nos proporcionar uma mente serena e ensinável”.
Deve-se notar também nesse verso que há “pontos” e não que há “muitos pontos”, e que
eles são “difíceis de entender” e não “impossíveis de serem entendidos”! Além disso, a
obscuridade não está neles, mas na depravação da nossa natureza que resiste às
exigências da parte de Deus e no orgulho de nossos corações, que despreza a busca da
iluminação provinda de Deus. O termo “indoutos” aqui se refere não ao analfabetismo, mas
ao ser ignorante a respeito de Deus; e “inconstantes” são aqueles que não possuem
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nenhuma convicção, os quais, como cata-ventos, viram-se à medida que um vento de
doutrina sopra sobre eles.
Por outro lado, existem algumas almas mal orientadas que suportam que o pêndulo
seja movido para o extremo oposto, negando que as Escrituras precisam de qualquer
interpretação. Eles asseveram que elas foram escritas para as almas simples, e que elas
dizem o que significam e significam o que elas dizem. Eles insistem que é necessário crer
na Bíblia, e não a explicar. Todavia, é errado colocar essas coisas em oposição uma à
outra: ambas são necessárias. Deus não requer de nós uma fé cega, mas uma fé
inteligente, e por isso três coisas são indispensáveis: que a Sua Palavra deva ser lida (ou
ouvida), compreendida e que nos apropriemos dela pessoalmente. Ninguém menos que o
próprio Cristo exortou: “Quem lê, entenda” (Mateus 24:15) — a mente deve ser exercitada
sobre o que é lido. Que uma certa quantidade de compreensão é imperativa é mais
claramente mostrado na parábola de nosso Senhor acerca do semeador e da semente:
“Ouvindo alguém a palavra do reino, e não a entendendo, vem o maligno, e arrebata o que
foi semeado no seu coração... Mas, o que foi semeado em boa terra é o que ouve e
compreende a palavra” (Mateus 13:19,23). Então não poupemos nenhum esforço para
chegarmos ao significado do que lemos, pois que uso podemos fazer do que é ininteligível
para nós?
Outros tomam a posição de que o único intérprete que eles precisam, o único que é
adequado para essa tarefa, é o Espírito Santo. Eles citam: “E vós tendes a unção do Santo,
e sabeis todas as coisas... E a unção que vós recebestes dele, fica em vós, e não tendes
necessidade de que alguém vos ensine” (1 João 2:20,27). Declarar que eu não preciso de
ninguém, senão do Espírito Santo para me ensinar pode soar muito honroso a Ele, mas
isso é de fato verdade? Todas as afirmações humanas devem ser testadas, pois nada deve
ser dado como certo à medida que as coisas espirituais estão em causa. Nós respondemos
que essa posição não é honrosa ao Espírito Santo, caso contrário, Cristo teria agido
inutilmente ao dar “pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a
obra do ministério” (Efésios 4:11-12). Devemos sempre ter em mente que há um passo
muito curto entre confiar em Deus e tentá-lO, entre a fé e a presunção (Mateus 4:6-7).
Também não devemos esquecer qual é o método comum e usual que Deus usa para suprir
as necessidades de Suas criaturas, a saber, de forma mediada e não imediatamente, por
causas secundárias e por agentes humanos. Isso diz respeito tanto ao reino espiritual
quanto ao natural. Aprouve a Deus dar a Seu povo instrutores capacitados, e em vez de
ignorá-los com altivez devemos (após testarmos o seu ensino – Atos 17:11) aceitar com
gratidão qualquer auxílio que eles possam nos conceder.
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Longe de nós escrevermos qualquer coisa que venha a desencorajar o jovem crente
de reconhecer e perceber sua dependência de Deus, e sua necessidade de estar
constantemente voltando-se para Ele em busca de sabedoria do alto, e isso particularmente
quando estiver engajado na leitura ou na meditação sobre a Sua Santa Palavra. No entanto,
ele deve ter em mente que o Altíssimo não obriga a Si mesmo a responder às nossas
orações de qualquer maneira ou forma particular. Em alguns casos, Ele tem o prazer de
iluminar nosso entendimento direta e imediatamente, porém mais frequentemente Ele nos
ilumina através da instrumentalidade de outros. Assim, Ele não somente nos afasta
individualmente do orgulho, mas também honra aquilo que Ele mesmo institui, pois Ele
nomeou homens qualificados para “alimentar o rebanho” (1 Pedro 5:2), e para “lhes falar a
palavra de Deus”; a fé dos quais somos convidados a imitar (Hebreus 13:7). É verdade que,
por um lado, Deus tem escrito Sua Palavra como um caminho santo, de modo que aquele
que nele caminha, mesmo que seja um tolo, não errará (Isaías 35:8); e ainda assim, por
outro lado, há “mistérios” e “as profundezas de Deus” (1 Coríntios 2:10); e enquanto há
“leite” adequado aos pequeninos há também “alimento sólido”, que pertence apenas
àqueles que são experientes (Hebreus 5:13-14).
Retornemos agora do geral para o particular; permita-nos evidenciar que existe uma
real necessidade de interpretação.
Em primeiro lugar, a fim de explicar as aparentes contradições, tais como: “Tentou3
Deus a Abraão, e disse-lhe... Toma agora o teu filho, o teu único filho... e oferece-o ali em
holocausto” (Gênesis 22:1-2 – tradução literal). Agora coloque ao lado dessa declaração o
testemunho de Tiago 1:13: “Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque
Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta”. Esses versos parecem claramente
contradizerem um ao outro, mas o crente sabe que esse não é o caso, embora ele possa
falhar em demonstrar que não há inconsistência nas mesmas. É, portanto, o significado
desses versos que deve ser verificado. E isso não é muito difícil. Claramente a palavra
“tentar” não é usada no mesmo sentido em ambas as passagens. A palavra “tentar” tem
tanto um significado primário quanto um secundário. Primariamente essa palavra significa
experimentar, provar, fazer teste. Em segundo lugar, significa desencaminhar, seduzir ou
incitar ao que é mal. Sem sombra de dúvida, o termo é usado em Gênesis 22:1 em seu
sentido primário, pois mesmo que não houvesse ocorrido a intervenção divina no último
3 Na versão ACF, Gênesis 22:1-2 traz a palavra “provou” em vez de “tentou”: “Provou Deus a Abraão, e disse-
lhe... Toma agora o teu filho, o teu único filho... e oferece-o ali em holocausto”. Este detalhe aparentemente
muito simples, fruto de uma tradução primorosa, evitaria toda a aparente contradição sobre a qual Pink
discorrerá a seguir.
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10
momento, Abraão não haveria cometido nenhum pecado em matar Isaque, uma vez que
Deus o havia ordenada a fazê-lo.
Pela tentação do Senhor a Abraão nessa ocasião devemos entender que Ele não
buscava incitá-lo a fazer o que é mal como Satanás faz, mas sim que Ele provou a lealdade
do patriarca, dando-lhe a oportunidade de mostrar o seu temor, sua fé e seu amor para com
Ele. Quando Satanás tenta, ele coloca uma sedução diante de nós com o objetivo de nos
levar à ruína; mas quando Deus nos tenta ou prova, Ele tem Seu coração o nosso bem-
estar. Toda provação é, portanto, uma tentação, pois ela serve para manifestar a disposição
predominante do coração — seja sagrada ou profana. Cristo foi “em tudo foi tentado, mas
sem (habitação) pecado” (Hebreus 4:15). Sua tentação era real, mas não houve conflito
dentro dEle (como há em nós) entre o bem e o mal — Sua santidade inerente repeliu as
ímpias sugestões de Satanás como a água repele fogo. Devemos “tende grande gozo
quando cairdes em várias tentações” ou “em várias provações” [Cf. Tiago 1:2], uma vez que
essas são meios para mortificar nossas concupiscências, testes de nossa obediência e
oportunidades para provar a suficiência da graça de Deus. Obviamente que não somos
chamados a ter grande gozo nos estímulos ao pecado em si!
Outrossim, “O Senhor está longe dos ímpios” (Provérbios 15:29), e ainda em Atos
17:27, somos informados de que Ele “não está longe de cada um de nós” — essas palavras
foram dirigidas a um público pagão! Essas duas declarações parecem se contradizer, sim,
e a menos que elas sejam interpretadas, de fato elas se contradizem. Deve-se, então,
verificar em que sentido Deus “está longe” e em que sentido Ele “não está longe” dos ímpios
— isto é o que quero dizer por “interpretação”. Uma distinção deve ser feita entre a presença
poderosa ou providencial de Deus e Sua presença favorável. No que diz respeito à Sua
essência espiritual ou onipresença Deus está sempre perto de todas as Suas criaturas (pois
Ele “enche os céus e a terra” – Jeremias 23:24) sustentando as suas existências,
conservando suas almas em vida (Salmos 64:9), concedendo-lhes as misericórdias de Sua
providência. Mas desde que os maus estão longe de Deus em suas afeições (Salmos
73:27), dizendo em seus corações: “Retira-te de nós; porque não desejamos ter
conhecimento dos teus caminhos” (Jó 21:14), desse modo a Sua presença graciosa está
longe deles: Ele não Se manifestará a eles, nem tem comunhão com eles, nem ouve suas
orações (“ao soberbo conhece-o de longe” – Salmos 138:6), nem lhes socorrerá no
momento da sua necessidade, e ainda vai ordenar-lhes: “Apartai-vos de mim, malditos”
(Mateus 25:41). Em relação àqueles a quem o justo Deus está graciosamente perto, está
escrito: “Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado, e salva os contritos de
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11
espírito. Perto está o Senhor de todos os que o invocam, de todos os que o invocam em
verdade” (Salmos 34:18, 145:18).
Vejamos mais um exemplo: “Se eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho não é
verdadeiro” e “Ainda que eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho é verdadeiro” (João
5:31, 8:14). Outro par de opostos! No entanto, não há nenhum conflito entre essas
passagens quando corretamente interpretadas. Em João 5:17-31, Cristo estava declarando
sete vezes Sua igualdade com o Pai: pela primeira vez em serviço, em seguida, na vontade.
O verso 19 significa que Ele não poderia fazer nada que fosse contrário ao Pai, pois Eles
eram de perfeito acordo (veja v. 30). Da mesma forma, Ele não podia dar testemunho de Si
mesmo independentemente do Pai, pois isso seria um ato de insubordinação. Em vez disso,
Seu próprio testemunho estava em perfeito acordo com isso — o próprio Pai (v. 37) e as
Escrituras (v. 39), davam testemunho de Sua Divindade absoluta. Mas em João 8:13-14,
Cristo estava dando uma resposta direta aos fariseus, os quais disseram que seu
testemunho era falso. Isso Ele negou enfaticamente, e apelou novamente para o
testemunho do Pai (v. 18). Agora, vemos um último exemplo: “Eu e o Pai somos um” e “Meu
Pai é maior do que eu” (João 10:30, 14:28). Na primeira passagem, Cristo estava falando
de Si mesmo de acordo com o Seu ser essencial; na última, Cristo se referia ao Seu caráter
de mediação ou posição oficial.
Em segundo lugar, a interpretação é necessária para evitar sermos enganados pelo
mero som das palavras. Muitíssimos têm formado concepções erradas da língua utilizada
em diferentes versos por causa de sua incapacidade de compreender seu sentido. Para
muitos, parece algo ímpio dar um significado diferente a um termo além daquele que parece
ser seu significado óbvio; e mais, uma advertência suficiente contra isso deve ser dada no
caso daqueles que tão fanática e teimosamente se apegam às Palavras de Cristo: “este
[pão ázimo] é o meu corpo”, a ponto de recusarem-se a permitir que essa expressão deva
significar: “isto representa o meu corpo” — Caso semelhante aparece em: “os sete castiçais,
que viste, são [ou seja, simbolizar] as sete igrejas” (Apocalipse 1:20). Essa advertência
estende-se ainda ao erro do Universalismo, o qual se baseia em termos indefinidos e lhes
dar um significado ilimitado. O Arminianismo erra no mesmo sentido. “Para que, pela graça
de Deus, provasse a morte por todos” (Hebreus 2:9), aqui Caim, Faraó e Judas não devem
ser incluídos na expressão “todo homem”. Essa expressão deve ser entendida à luz de
Lucas 16:16; Romanos 12:3 e 1 Coríntios 4:5; e a expressão “todos os homens” que
aparece em 1 Timóteo 2:4-6, não deve ser entendida no sentido de todos sem exceção,
mais do que quando expressões semelhantes aparecem em Lucas 3:15; João 3:26 e Atos
22:15.
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12
“Noé era homem justo e perfeito em suas gerações” (Gênesis 6:9). De Jó, também,
diz-se que ele era “perfeito e reto” (1:1 – trad. lit.). Quantos se deixaram ser enganados pelo
som dessas palavras. Quantos conceitos falsos têm sido formados acerca de seu próprio
significado! Aqueles que acreditam no que eles denominam “a segunda bênção” ou a
“inteira santificação” consideram que essas passagens confirmam a sua afirmação de que
a perfeição e a completa ausência de pecado é atingível nessa vida. No entanto, um erro
tal como esse é muito indesculpável, pelo fato de que o que está escrito em seguida mostra
claramente que esses homens estavam muito longe de serem sem defeito moral: um
embriagou-se e o outro amaldiçoou o dia do seu nascimento. A palavra “perfeito” na
passagem em questão e em passagens semelhantes significa “honesto, sincero”, que se
opõe à hipocrisia. “Todavia falamos sabedoria entre os perfeitos” (1 Coríntios 2:6). Em
Filipenses 3:15, a palavra “perfeito” significa “maduro” como distinto de infantil — o mesmo
acontece com outra ocorrência de “perfeitos” em Hebreus 5:14.
“Eu vou fazer bebido seus príncipes, e os seus sábios... e dormirão um sono perpétuo,
e jamais acordarão, diz o Rei, cujo nome é o Senhor dos Exércitos” (Jeremias 51:57). Essas
palavras são citadas por materialistas grosseiros, que acreditam na aniquilação das almas
dos ímpios. Eles não precisam que nos detenhamos por muito tempo, pois a linguagem é
claramente figurativa. Deus estava prestes a executar o juízo sobre o orgulho da Babilônia,
e como um fato histórico a cidade forte foi capturada enquanto o seu rei e seus cortesãos
estavam bêbados, sendo mortos, de modo que eles não mais acordaram na Terra. Que
“sono eterno” não pode ser entendido literalmente é absolutamente evidente a partir de
outras passagens que anunciam expressamente a ressurreição dos ímpios – Daniel 12:2;
João 6:29.
“Não viu iniquidade em Israel, nem contemplou maldade em Jacó” (Números 23:21).
Muitas vezes essas palavras têm sido consideradas separadamente, sem qualquer relação
com o seu contexto. Elas constituíam uma parte da explicação de Balaão a Balaque, do
motivo pelo qual ele não podia amaldiçoar a Israel para que esse fosse exterminado pelos
midianitas. Tal linguagem não significa que Israel estava em um estado sem pecado, mas
que até então eram livres de qualquer rebelião aberta ou apostasia contra Yahwéh. Eles
não haviam sido culpados de qualquer crime hediondo como idolatria. Eles haviam se
portado de modo a não serem considerados merecedores de maldições e extermínio. Mas
depois, o Senhor viu “perversidade” em Israel, e entregou a Babilônia para executar Seu
julgamento sobre ele (Isaías 10). É injustificável aplicar essa declaração em relação à Igreja
de modo absoluto, pois Deus “vê iniquidade” em Seus filhos, como Sua vara de correção
demonstra; embora Ele não o impute para condenação penal.
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13
Em terceiro lugar, a interpretação é necessária para a inserção de uma palavra
explicativa em algumas passagens. Assim: “Tu és tão puro de olhos, que não podes ver
[aprovar] o mal, e a opressão não podes [indulgentemente] contemplar” (Habacuque 1:13).
Alguns termos de qualificação como esses são necessários, caso contrário, devemos
considerá-los como contradizendo passagens como: “Os olhos do Senhor estão em todo
lugar, contemplando os maus e os bons” (Provérbios 15:3). Deus nunca contempla o mal
com indulgência, mas Ele o faz para castigá-lo. Mais uma vez. “Quem tem resistido à sua
vontade [segredo ou decretiva]?” (Romanos 9:19); “nem fez conforme a sua vontade
[revelada ou preceptiva]” (Lucas 12:47) — a menos que sejam feitas essas distinções a
Escritura iria contradizer a si mesma. Novamente: “Bem-aventurados os que
[evangelicamente, isto é, com desejo e esforço genuínos] guardam os seus testemunhos”
(Salmos 119:2), pois ninguém é capaz guardar os testemunhos de Deus de acordo com o
estrito rigor da Sua Lei.
Para concluir nossos exemplos acerca da necessidade de interpretação vamos citar
um verso muito familiar e simples: “Jesus Cristo é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente”
(Hebreus 13:8). Será que isso “quer dizer o que significa?”. Certamente, diz o leitor; e o
escritor concorda de coração. Mas você tem certeza de que realmente entende o significado
do que é dito? Cristo não sofreu nenhuma mudança desde os dias da Sua carne? Ele é
absolutamente o mesmo que foi ontem? Ele ainda experimenta fome, sede e cansaço
corporais? Ele ainda está na “forma de servo”, em um estado de humilhação, ainda é “o
homem das dores”? Obviamente, a interpretação torna-se aqui necessária, pois deve haver
um sentido em que Ele ainda permanece “o mesmo”. Ele é imutável em Sua pessoa
essencial, no exercício de Seu ofício de Mediador, em Sua relação e atitude para com Sua
Igreja — Ele a ama com um amor eterno. Contudo, Ele mudou em Sua humanidade, por
que essa foi glorificada; e também mudou em relação à posição que Ele ocupa agora
(Mateus 28:18; Atos 2:36).
Assim, os versos mais conhecidos e mais elementares exigem um exame cuidadoso
e meditação com oração, a fim de que cheguemos ao verdadeiro significado de seus
termos.
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14
Capítulo 2
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No capítulo anterior procuramos mostrar a necessidade da interpretação, nesse
buscaremos determinar a importância do que se entende por cada frase da Sagrada
Escritura. O que Deus disse para nós é de inestimável importância e valor, contudo, que
proveito podemos tirar disso, a menos que o seu significado seja claro para nós? O Espírito
Santo nos deu mais do que uma sugestão disto quando Ele explicou o significado de certas
palavras. Assim, no primeiro capítulo do Novo Testamento se diz de Cristo: “E chamá-lo-ão
pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco” (Mateus 1:23). E, novamente:
“Achamos o Messias (que, traduzido, é o Cristo)” (João 1:41). Outrossim: “E levaram-no ao
lugar do Gólgota, que se traduz por lugar da Caveira” (Marcos 15:22). Mais uma vez:
“Porque este Melquisedeque, que era rei de Salém primeiramente é, por interpretação, rei
de justiça, e depois também rei de Salém, que é rei de paz” (Hebreus 7:1-2). Essas
expressões deixam claro que é essencial que devemos compreender o sentido de cada
palavra usada nas Escrituras. A Palavra de Deus é composta de palavras, ainda que essas
não transmitam nada para nós enquanto permanecem ininteligíveis. Assim, determinar
precisamente a importância do que lemos deve ser a nossa primeira preocupação.
Antes de estabelecermos algumas das regras a serem observadas e os princípios a
serem utilizados na interpretação da Escritura, gostaríamos de salientar várias coisas que
necessitam ser encontradas naqueles que desejam ser intérpretes das Escrituras. Boas
ferramentas são realmente indispensáveis para um bom trabalho, mas mesmo as melhores
ferramentas possuem pouco proveito nas mãos de alguém que não é qualificado para usá-
las. Métodos de estudo da Bíblia possuem apenas uma importância relativa; mas o espírito
com que se estuda as Escrituras é totalmente importante. Não precisamos fazer nenhuma
argumentação para provar que um livro espiritual exige um leitor de mente espiritual, pois
“o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem
loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Coríntios
2:14). A Palavra de Deus é uma revelação de coisas que dizem respeito aos nossos mais
altos interesses e bem-estar eterno, e ela exige uma aceitação implícita e cordial. Algo mais
do que a formação intelectual é necessária: o coração e a cabeça devem ser retificados.
Somente onde há honestidade de alma e espiritualidade de coração haverá clareza de
visão para perceber a Verdade; só então a mente será capaz de discernir a importância
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completa do que é lido, e entender não somente o significado literal de suas palavras, mas
também os sentimentos que elas foram projetadas para transmitir, e qual é a maneira
adequada de reagir a essas percepções.
Vamos repetir aqui o que escrevi em Studies in the Scriptures há vinte anos atrás: “Há
uma séria razão para acreditar que muito da leitura e do estudo da Bíblia dos últimos anos
tem sido espiritualmente inútil para as pessoas envolvidas nele. Sim, nós vamos mais longe:
tememos muito que, em muitos casos, isso tem se mostrado mais uma maldição do que
uma bênção. Essa é uma linguagem forte, estamos bem conscientes disso, mas não é mais
forte do que aquela que o caso exige. Os dons de Deus podem ser usados indevidamente
e misericórdias divinas podem ser abusadas. Que isto tem acontecido assim no presente
caso é evidenciado pelos frutos produzidos. Mesmo o homem natural pode se dedicar (e
muitas vezes se dedica) ao estudo das Escrituras com o mesmo entusiasmo e prazer com
que se dedicaria a um estudo das ciências. Quando este for o caso, a quantidade de
conhecimento que obtém é maior, e assim também é o seu orgulho. Como um químico
envolvido na realização de experiências interessantes, o pesquisador intelectual da Palavra
fica muito eufórico quando ele faz uma nova descoberta, mas a alegria deste último não é
mais espiritual do que a do primeiro. Assim como o sucesso do químico geralmente
aumenta seu senso de autoestima e faz com que ele menospreze aqueles que são mais
ignorantes do que ele próprio, como, infelizmente, tem sido o caso daqueles que estudam
os números, as tipologias e as profecias encontrados na Bíblia...”.
Uma vez que a imaginação do homem, como todas as outras faculdades do seu ser
moral, é permeada e viciada pelo pecado, as ideias que ela sugere, mesmo quando
ponderando sobre os oráculos divinos, são propensas a serem enganosas e corruptas. O
fato de sermos incapazes, por nós mesmos, de interpretar a Palavra de Deus corretamente
revela parte da enfermidade que nosso pecado trouxe sobre nós; mas é parte do ofício
gracioso do Espírito Santo guiar os crentes à verdade, e lhes permitir apreender as
Escrituras. Essa é uma operação distinta e especial do Espírito nas mentes do povo de
Deus, na qual Ele comunica sabedoria espiritual e luz a eles, pois essas coisas são
necessárias para um correto entendimento da mente de Deus em Sua Palavra, e também
para que haja um apropriar-se das coisas celestiais que nela se encontram. Pela expressão
“uma operação distinta”, queremos dizer algo ab extra ou para além de Seu trabalho inicial
de vivificação; porquanto é um fato abençoado que na regeneração Ele “nos deu
entendimento para que conheçamos ao Verdadeiro” (1 João 5:20), mas é preciso mais para
que possamos “conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus” (1 Coríntios 2:12). Isto
é evidente a partir do caso dos apóstolos, pois acompanharam e conversaram com Cristo
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pelo período de três anos, no entanto, somos informados que em uma data posterior: “Então
abriu-lhes o entendimento para compreenderem as Escrituras” (Lucas 24:45).
Como o que já foi aludido deve impressionar o Cristão a respeito da necessidade de
santo cuidado ao ler a Palavra, para que ele não extraia conteúdos para o seu próprio
prejuízo! Como isso deve humilhá-lo diante do autor das Escrituras e fazê-lo perceber sua
total dependência dEle! Se o novo nascimento fosse suficiente por si só para capacitar o
crente a compreender as coisas divinas, o apóstolo nunca pediria, em relação aos santos
de Colossos, para que eles fossem “cheios do conhecimento da sua vontade [de Deus], em
toda a sabedoria e inteligência espiritual” (1:9), nem que ele teria dito a seu filho na fé,
“Considera o que digo, e o Senhor te dê entendimento em tudo” (2 Timóteo 2:7). Nunca
houve uma noção mais tola nem uma ideia mais perniciosa foi entretida do que aquelas
que sustentam que os santos mistérios do Evangelho de certo modo encontram-se dentro
dos limites da razão humana e que podem ser conhecidos de forma proveitosa e prática
sem a ajuda eficaz do bendito Espírito da Verdade. Não estou dizendo que o Espírito Santo
nos instrui de qualquer outra forma que não por e através de nossa razão e compreensão,
pois de outro modo seríamos reduzidos ao nível de criaturas irracionais; mas me refiro ao
fato de que Ele deve iluminar as nossas mentes, elevar e guiar os nossos pensamentos,
aquecer nossas afeições e mover as nossas vontades, a fim de, assim, capacitar os nossos
entendimentos para apreendermos as coisas espirituais.
O Espírito Santo não ensina individualmente o Cristão e nem por qualquer meio o
torna independente ou lhe impede de fazer uso diligente e consciente do ministério do
púlpito, pois esse é um importante meio designado por Deus para a edificação de Seu povo.
Existe um meio termo entre a atitude do eunuco etíope que, quando indagado: “Entendes
tu o que lês?”, respondeu: “Como poderei entender, se alguém não me ensinar?” (Atos
8:30-31) e o uso errado feito de “não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1
João 2:27). Existe um meio termo entre uma dependência servil mediante instrumentos
humanos e uma independência arrogante daqueles a quem Cristo chamou e qualificou para
apascentar Suas ovelhas. “Não obstante, a sua compreensão da Verdade, a sua apreensão
disto e a fé nela, não são coisas sobre as quais se deve descansar nem em que se deve
atribuir sua autoridade, eles não são designados por Deus para seres ‘dominadores da
vossa fé’, mas ‘cooperadores de vosso gozo’ (2 Coríntios 1:24). E é aí que depende todo o
nosso interesse naquela grande promessa de que seremos 'todos ensinados por Deus',
pois não somos assim, a menos que aprendemos com Ele as coisas que Ele revelou em
Sua Palavra” (John Owen).
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“E todos os teus filhos serão ensinados do Senhor” (Isaías 54:13, e cf. João 6:45).
Essa é uma das grandes marcas que distinguem o regenerado. Há multidões de religiosos
não-regenerados que são bem versados na letra da Escritura, e familiarizados com a
história e as doutrinas do Cristianismo, mas seu conhecimento só veio a partir de meios
humanos de informação — pais, professores de escola dominical, ou a sua leitura pessoal.
Há dezenas de milhares de professos que não possuem a graça divina, embora possuam
um conhecimento intelectual das coisas espirituais que é considerável, consistente e claro;
contudo, eles não são divinamente ensinados, como fica evidente pela ausência dos frutos
que sempre acompanham aqueles que são ensinados pelo Senhor. Da mesma forma, há
um grande número de pregadores que abominam os erros do Modernismo e batalham pela
Fé. Eles foram ensinados em institutos bíblicos ou treinados em seminários teológicos, mas
temos grande temor de que eles são estranhos a uma obra sobrenatural da graça em suas
almas, e que o seu conhecimento da verdade consiste meramente em noções
desacompanhadas de qualquer unção divina, poder salvífico ou efeitos de transformação.
Por aplicação diligente e esforço pessoal pode-se garantir uma vasta quantidade de
informação bíblica, e se tornar um hábil expositor da Palavra; mas não é possível obter
dessa mesma forma um conhecimento que afete e purifique seus próprios corações.
Ninguém, senão o Espírito da Verdade pode escrever a Lei de Deus em meu coração,
imprimir a Sua imagem na minha alma, e me santificar pela Verdade.
Em primeiro lugar, está a mais essencial qualificação para compreender e interpretar
as Escrituras, a saber, uma mente iluminada pelo Espírito Santo. Essa necessidade é
fundamental e universal. A respeito dos judeus nos é dito: “E até hoje, quando é lido Moisés,
o véu está posto sobre o coração deles” (2 Coríntios 3:15). Embora o Antigo Testamento
seja profundamente venerado e diligentemente estudado pelos “ortodoxos”, contudo seu
significado espiritual permanece imperceptível para eles. Esse também é o caso com os
gentios. Há um véu de má vontade sobre o coração do homem caído, pois “a inclinação da
carne é inimizade contra Deus” (Romanos 8:7). Há um véu de ignorância sobre a mente
deles. Como uma criança que soletra as letras e aprende a pronunciar palavras, contudo
não entende o significado das palavras que pronuncia, assim também nós podemos
conhecer o significado literal ou gramatical da Palavra e ainda não possuirmos nenhum
conhecimento espiritual da mesma e, portanto, pertencer àquela geração a respeito da qual
está escrito: “Ouvindo, ouvireis, mas não compreendereis, e, vendo, vereis, mas não
percebereis” (Mateus 13:14). Há um véu de preconceito sobre nossas afeições. “Nossos
corações estão envoltos por fortes afeições ao mundo, e por isso não podemos discernir
claramente a verdade prática” (Thomas Manton). O que entra em conflito com os interesses
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naturais e requer a negação de nós mesmos não é bem-vindo. Há um véu de orgulho que
efetivamente nos impede de vermos a nós mesmos no espelho da Palavra.
Entretanto, o véu não é completamente removido do coração na regeneração, por
causa disso a nossa visão é ainda muito imperfeita e nossa capacidade de lidar com a
verdade de forma espiritualmente proveitosa é pouco considerável. Em sua primeira
epístola à igreja de Corinto, o apóstolo disse: “se alguém cuida saber alguma coisa, ainda
não sabe como convém saber” (8:2). É uma grande misericórdia quando o Cristão é levado
a perceber esse fato. Enquanto ele permanece nesse mundo mal e o princípio corrupto da
carne continua nele, o crente precisa ser conduzido e ensinado pelo Espírito. Isso é muito
evidente a partir do caso de Davi, porquanto ele declarou: “Tenho mais entendimento do
que todos os meus mestres”, mas antes vamos encontrá-lo orando a Deus: “Abre tu os
meus olhos, para que veja as maravilhas da tua lei... Ensina-me, ó Senhor, o caminho dos
teus estatutos... Dá-me entendimento” (Salmos 119:18,33,34,99). Observe que o Salmista
não se queixou da obscuridade da lei de Deus, mas percebeu que a falha estava em si
mesmo. Nem pediu novas revelações (por sonhos ou visões), mas, em vez disso, pediu
uma visão mais clara daquilo que já havia sido revelado. Aqueles que são ensinados melhor
e por mais tempo estão sempre mais prontos para se sentarem aos pés de Cristo e
aprenderem com Ele (Lucas 10:39).
Deve ser devidamente observado que o verbo no Salmo 119:18, literalmente, significa
“descobrir, desvendar os meus olhos”, o que confirma a nossa frase de abertura no último
parágrafo. A Palavra de Deus é uma luz espiritual objetivamente, mas para discerni-la
corretamente é necessário que haja visão ou luz subjetivamente, pois é apenas por e em
Sua luz que “vemos a luz” (Salmos 36:9). A Bíblia é aqui denominada “Lei de Deus”, porque
está revestida de autoridade divina, proferindo os mandatos da Sua vontade. Ela contém
não somente bons conselhos, que somos livres para aceitar segundo bem nos agradem,
mas éditos imperiosos que rejeitamos por nossa conta e risco. Nessa Palavra há “coisas
maravilhosas”, as quais eu não posso atingir através da utilização da simples razão. Elas
são as riquezas da sabedoria divina, que estão muito acima da bússola do intelecto do
homem. Aquelas “coisas maravilhosas” o crente anseia para ser ou discernir claramente,
mas ele é incapaz de fazê-lo sem a ajuda divina. Por isso, ele ora para que Deus assim
desvende seus olhos que ele possa contemplá-las para uma boa finalidade, ou apreendê-
las para a fé e obediência, isto é, entendê-las prática e experimentalmente no caminho do
dever.
“Eis que Deus é excelso [eleva a alma acima do meramente natural] em seu poder:
quem ensina como ele”? (Jó 36:22). Ninguém; quando Ele instrui, Ele o faz eficazmente.
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“Assim diz o Senhor, o teu Redentor, o Santo de Israel: Eu sou o Senhor teu Deus, que te
ensina o que é útil, e te guia pelo caminho em que deves andar” (Isaías 48:17), isto acontece
por que Seu “ensino” consiste naquilo que produz uma conduta piedosa. Não é meramente
uma adição sendo feita à nossa capacidade mental, mas um mover da alma à atividade
sagrada. A luz com que Ele aquece o coração, inflama os afetos. Assim, longe de ufanar
seu destinatário, como acontece com o conhecimento natural, o ensino de Deus humilha.
Revela-nos a nossa ignorância e estupidez, nos mostra nossa pecaminosidade e
inutilidade, e faz com que o crente se considere pequeno aos seus próprios olhos. O ensino
do Espírito também nos leva a ver claramente a vaidade absoluta das coisas altamente
estimadas pelo não-regenerado, mostrando-nos a transitoriedade e a inutilidade
comparativa das honras, riquezas e fama terrenas, levando a segurar todas as coisas
temporais com uma mão frouxa. O conhecimento que Deus nos comunica é transformador,
que nos leva a um esforço sincero para negarmos à impiedade e às paixões mundanas, e
a viver sóbria, justa e piedosamente nesse mundo. Ao contemplarmos a glória do Senhor
somos “transformados de glória em glória na mesma imagem” (2 Coríntios 3:18).
O próprio caráter do ensino divino demonstra quão urgente é a nossa necessidade do
mesmo. Ele consiste em grande parte em superar a nossa antipatia natural e hostilidade às
coisas divinas. Por natureza, nós temos amor ao pecado e ódio à santidade (João 3:19), e
isto deve ser efetivamente subjugado pelo poder do Espírito antes que venhamos a desejar
o leite puro da Palavra — observe o que tem de ser deixado antes que nós possamos
receber com mansidão a Palavra enxertada (Tiago 1:21; 1 Pedro 2:1); ainda que isso seja
nosso dever, somente Deus pode nos permitir realizá-lo. Por natureza, nós somos
orgulhosos e independentes, autossuficientes e confiantes em nossos próprios poderes.
Esse espírito maligno se agarra ao cristão até o fim da sua peregrinação, e só o Espírito de
Deus pode operar nele aquela humildade e mansidão que são necessárias para que
tomemos o lugar de uma criança diante da Palavra. O amor pela honra e pelo louvor entre
os homens é outra afeição corrupta das nossas almas, um obstáculo insuperável para a
admissão da verdade (João 5:44, 12:43), que tem de ser purgado para fora de nós. A
oposição feroz e persistente feita por Satanás para impedir a nossa apreensão da Palavra
(Mateus 13:19; 2 Coríntios 4:4) é demasiado poderosa para que nós a resistamos por nossa
própria força; ninguém senão o Senhor pode nos libertar de suas sugestões malignas e
expor seus sofismas mentirosos.
Em segundo lugar, um espírito imparcial é necessário se quisermos discernir e
apreender o verdadeiro ensinamento da Sagrada Escritura. Nada mais obscurece o
julgamento do que o preconceito — ninguém é tão cego quanto àqueles que não querem
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ver. Particularmente essa é o caso com todos os que vêm para a Bíblia com o objetivo de
encontrar passagens que provam “nossas doutrinas”. Um coração honesto é a primeira
qualidade com que o Senhor caracterizou os ouvintes representados pela “boa terra” (Lucas
8:15), e onde isto existe não só estamos dispostos, mas desejosos de ter os nossos próprios
pontos de vista corrigidos. Não pode haver nenhum avanço feito pela nossa apreensão
espiritual da Verdade até que estejamos prontos a submeter as nossas ideias e sentimentos
ao ensino da Palavra de Deus. Enquanto nos agarramos às nossas opiniões preconcebidas
e parcialidades sectárias, em vez de estarmos prontos a abandonar todas as crenças não
claramente ensinadas nas Escrituras, nem nossas orações e nem nossos estudos poderão
ser proveitosos para a nossa alma. Não há nada que Deus odeia mais do que a falta de
sinceridade, e nós somos culpados disso, se enquanto Lhe pedimos para nos instruir, ao
mesmo tempo nos recusamos a abandonar o que é errôneo. Sentir sede da própria
Verdade, com uma determinação sincera de que ela molde todo o nosso pensamento e
dirija a nossa prática, é indispensável se quisermos ser espiritualmente iluminados.
Em terceiro lugar, uma mente humilde. “Essa é uma lei eterna e inalterável designada
por Deus, a saber, quem quiser conhecer Sua mente e vontade, como reveladas nas
Escrituras, deve ser humilde e modesto, renunciando à toda confiança em si próprio. O
conhecimento de um homem orgulhoso é o trono de Satanás em sua mente. Supor que as
pessoas sob o domínio de orgulho, vaidade e autoconfiança podem entender a mente de
Deus de uma forma correta é renunciar à Escritura, ou inúmeros testemunhos positivos em
contrário” (John Owen). O Senhor Jesus declarou que mistérios celestes estão ocultos aos
sábios e entendidos, mas revelou aos pequeninos (Mateus 11:25). Aqueles que assumem
uma atitude de prepotência, e são sábios em sua própria estima, permanecem
espiritualmente ignorantes e não esclarecidos. Qualquer conhecimento que pode ser
adquirido pelo homem através de suas habilidades e competências naturais não é nada
para glória de Deus, nem para o proveito eterno de suas almas, pois o Espírito recusa-se a
instruir os soberbos. “Deus resiste aos soberbos” (Tiago 4:6). “Deus se põe contra ele,
prepara-se, por assim dizer, com toda a Sua força para se opor ao seu progresso. Que
expressão formidável! Se Deus apenas nos entregar a nós mesmos, caímos em ignorância
e escuridão; sendo assim, qual deve ser o caso terrível daqueles contra quem Ele se opõe?”
(John Newton). Mas, bendito seja Seu nome, Ele “dá graça aos...”, aos que possuem uma
disposição como de criança.
Em quarto lugar, um coração dedicado à oração. Posto que a Bíblia é diferente de
todos os outros livros, ela faz exigências sobre os seus leitores que nenhum outro livro faz.
O que um homem tem escrito, outro homem pode dominar; mas apenas o inspirador da
Palavra é competente para interpretá-la para nós. É nesse exato momento que muitos
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falham. Eles se aproximam da Bíblia como fariam com qualquer outro livro, confiando que
uma cuidadosa atenção e diligência na leitura serão suficientes para compreender o seu
conteúdo. Devemos, primeiramente, nos colocar de joelhos e clamar a Deus por
entendimento: “Inclina o meu coração aos teus testemunhos... dá-me inteligência para
entender os teus mandamentos... ordena os meus passos na tua palavra” (Salmos
119:36,73,133). Nenhum progresso real pode ser feito em nossa apreensão da Verdade
até que percebamos nossa necessidade profunda e constante de termos os nossos olhos
ungidos por Deus. “Se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá
liberalmente” (Tiago 1:5). É porque fazem uso dessa promessa que muitos simples
lavradores e donas de casa Cristãos são ensinados pelo Espírito, enquanto estudiosos sem
oração não conhecem o segredo do Senhor. Não só precisamos orar: “o que eu não vejo,
ensina-me tu”, mas também pedir a Deus que escreva a Sua Palavra em nossos corações.
Em quinto lugar, um propósito santo. Muitos são enganados nesse assunto,
confundindo uma ânsia de adquirir conhecimento bíblico com o amor pela própria Verdade.
Alguns leem a Bíblia apenas por curiosidade para descobrir o que ela diz. Um sentimento
de vergonha de ser incapaz de descobrir o seu ensino é o que compele outros. O desejo
de estar familiarizado com o seu conteúdo de modo a sustentar sua própria argumentação
é o que motiva outros. Se não houver nada melhor que nos motiva a ler a Bíblia além de
um mero desejo de ser bem versado nos detalhes, é mais do que provável que o jardim de
nossas almas permanecerá estéril. O motivo inspirador deve ser o exame honesto. Eu
examino as Escrituras a fim de conhecer melhor o seu Autor e Sua vontade para mim? O
meu propósito dominante e que me motiva é que eu possa crescer na graça e no
conhecimento do Senhor? É que eu possa conhecer de forma mais clara e totalmente como
eu deveria ordenar os detalhes da minha vida de um modo que será mais agradável e
honroso para Ele? É meu proposito que eu possa ser levado a uma caminhada mais íntima
com Deus e a gozar de comunhão mais ininterrupta com Ele? Nada menos do que isso é
um objetivo digno para que seja conformado e transformado pelo seu ensino santo.
Nesse capítulo temos tratado apenas do lado elementar de nosso assunto, no entanto,
algo que é de fundamental importância, e para o que poucos atentam. Mesmo nos dias
prósperos dos Puritanos, Owen teve que queixar-se: “é muito pequeno o número daqueles
que diligente, humilde e conscientemente se esforçam para conhecer a verdade da voz de
Deus nas Escrituras, ou para se tornarem sábios nos mistérios do Evangelho se esforçando
desse modo, por meio do que somente a sabedoria é atingível. E é de admirar se muitos,
a maioria dos homens, vagarem após as imaginações vãs deles mesmos ou de outras
pessoas?”. Que não seja mais assim com aqueles que leem esse capítulo.
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Capítulo 3
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O capítulo anterior tratou de algumas das qualificações mais básicas, e ainda assim
essenciais, que devem necessariamente ser encontradas em qualquer um que buscar
conhecer o significado espiritual da Sagrada Escritura. Portanto, o capítulo anterior é
apropriado para o povo de Deus em geral. Mas nesse capítulo propomos tratar daquilo que
têm uma aplicação mais particular àqueles a quem Deus chamou para pregar e ensinar a
Sua Palavra: aqueles cuja integralidade de seu tempo e energias devem ser dedicados
para a busca do bem-estar espiritual e eterno das almas, e também à melhor capacitação
de si mesmos para esse trabalho mui abençoado, solene e importante. As suas tarefas
principais são (1) proclamar a verdade de Deus, e (2) exemplificar e recomendar a sua
mensagem por buscar diligentemente praticar o que prega, estabelecendo diante de seus
ouvintes um exemplo pessoal de piedade prática. Visto que eles devem pregar a Verdade,
nenhuma dor deve ser poupada no esforço para que nenhum erro esteja misturado à sua
pregação, posto que é o leite puro da Palavra que eles devem oferecer. Pregar o erro em
vez da verdade não é somente desonrar gravemente a Deus e a Sua Palavra, mas enganar
e envenenar as mentes dos ouvintes e leitores.
A tarefa do pregador é muito mais nobre e solene do que qualquer outro chamado, o
mais privilegiado e ao mesmo tempo o mais cheio de responsabilidade. Ele professa ser
um servo do Senhor Jesus Cristo, um mensageiro enviado pelo Altíssimo. Deturpar seu
Mestre, pregar outro Evangelho além do Seu, falsificar a mensagem que Deus tem confiado
a ele, é o pecado dos pecados, que o atrai sobre si o anátema do Céu (Gálatas 1:8), e será
visitado com o castigo mais doloroso que aguarda qualquer criatura. A Escritura evidencia
que a medida mais pesada da ira divina está reservada para pregadores infiéis (Mateus
23:14; Judas 13). Portanto, o aviso é dado: “muitos de vós não sejam mestres, sabendo
que receberemos mais duro juízo” (Tiago 3:1), isto é, se formos infiéis ao que nos é
confiado. Cada ministro do Evangelho ainda terá que prestar contas cabalmente de sua
mordomia Àquele a quem Ele alega tê-lo chamado para apascentar as Suas ovelhas
(Hebreus 13:17), a responder pelas almas que estavam confiadas ao seu cuidado. Se ele
falhar em alertar diligentemente o ímpio, e ele morrer em sua iniquidade, Deus declara: “o
seu sangue eu o requererei de ti” (Ezequiel 3:18).
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Assim, o dever principal e constante do pregador é conformar-se àquela injunção:
“Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar,
que maneja bem a palavra da verdade” (2 Timóteo 2:15). Em toda a Escritura não há
nenhuma exortação dirigida aos pregadores que seja de maior importância do que essa, e
poucas se igualam a ela. Sem dúvida, é por isso que Satanás tem sido tão ativo na tentativa
de obscurecer suas duas primeiras cláusulas, lançando uma grande nuvem de pó sobre a
última. A palavra Grega para “procura” aqui significa “seja diligente”, não poupe esforços,
mas faça de sua preocupação primordial e esforço constante o agradar ao seu Mestre. Não
procure os sorrisos e lisonjas de vermes de pó, mas a aprovação do Senhor. Isso deve ter
precedência sobre todo o restante; sem isso, a atenção para o segundo aspecto
mencionado será em vão. Subordine completamente todos os outros objetivos a fazer de ti
mesmo alguém agradável a Deus — teu próprio coração e caráter, as tuas relações e andar
diante dEle, ordenando todos os teus caminhos segundo a Sua vontade revelada. De que
valem os seus “serviços”, suas ministrações, se Ele desagradar-Se de ti?
“Obreiro que não tem de que se envergonhar”. Seja consciente, diligente, fiel, no uso
que você faz do seu tempo e os talentos que Deus lhe confiou. Dê atenção constante ao
preceito. “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças”
(Eclesiastes 9:10). Dê o seu melhor para Ele. Seja dedicado e assíduo, não descuidado e
desleixado. Ver o quão bem você pode fazer cada coisa, e não quão rápido. A palavra
Grega para “obreiro” é também traduzida como “trabalhador”, e no Inglês do século XX,
bem poderia ser traduzido como “operário”. O ministério não é lugar para frívolos e ociosos,
mas para aqueles que estão dispostos a gastarem-se e serem gastos na causa de Cristo.
O pregador deve trabalhar mais do que o mineiro, e passar mais horas por semana em seu
estudo do que o homem de negócios em seu escritório. Um obreiro é exatamente o oposto
de um preguiçoso. Se o pregador deve mostrar-se a Deus aprovado e ser um obreiro que
não tem do que se envergonhar, então ele terá que trabalhar enquanto os outros dormem,
e fazê-lo até que ele se canse mentalmente.
“Medita estas coisas; ocupa-te nelas, para que o teu aproveitamento seja manifesto a
todos. Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina. Persevera nestas coisas; porque, fazendo
isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que te ouvem” (1 Timóteo 4:15-16). Essa é
uma outra parte da ordem que Cristo colocou sobre Seus servos oficiais, ela é a mais
completa e exigente. Ele os obriga a ocuparem os seus corações com a obra, a aplicarem
todos os seus pensamentos a ela, a separarem-se completamente para ela e a dedicarem
todo o seu tempo e força para a obra. Eles devem manterem-se afastados de todos os
assuntos seculares e atividades mundanas, e mostrar toda a diligência na tarefa que lhes
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foi atribuída. O fato dessa ser uma tarefa árdua é consequência das diferentes designações
dadas a eles. Eles são chamados de “soldados” para denotar os esforços e fadiga que
estão envolvidos no bom desempenho de sua vocação; “vigias e sentinelas” para
demonstrar o cuidado e preocupação que acompanham o seu ofício; “pastores e mestres”
para mostrar as várias funções de liderar e apascentar aqueles que foram comprometidos
ao seu cuidado. Entretanto, em primeiro lugar, eles devem dar atenção ao seu crescimento
pessoal em graça e piedade, se eles desejam ministrar eficazmente aos outros.
Particularmente o ministro precisa prestar atenção a essa ordem, “tem cuidado de ti
mesmo”, em seu estudo das Escrituras, lendo-as devocionalmente antes que ele faça isso
profissionalmente; ou seja, buscando sua aplicação e bênção à sua própria alma antes de
procurar por temas para o sermão. Como o piedoso Hervey expressou: “Assim, nós
podemos sempre ser afetados quando estudamos os oráculos da Verdade. Estudá-los, e
não como críticos frios, que são apenas juízes do seu significado, mas como pessoas
profundamente interessadas em tudo o que eles contêm; que são particularmente
confrontados em cada exortação, e orientados por cada preceito; de quem são as
promessas, e a quem pertencem os privilégios preciosos. Quando somos habilitados a
assim conceber e apropriar-nos do conteúdo desse livro inestimável, então vamos saborear
a doçura e sentir o poder das Escrituras. Então, saberemos por feliz experiência que as
palavras do nosso Mestre Divino não são apenas sons e sílabas, mas espírito e são vida”.
Ninguém pode estar constantemente dando aquilo que é revigorante e temperado, a menos
que esteja tomando para si, continuamente. Aquilo que ele declara aos outros é o que os
seus próprios ouvidos já ouviram primeiramente, seus próprios olhos têm visto, e suas mãos
manuseado.
A simples citação da Escritura no púlpito não é suficiente, as pessoas podem tornar-
se familiares à letra da Palavra por lê-la em casa; é a exposição e a aplicação da mesma
que são tão necessárias. “E Paulo, como tinha por costume, foi ter com eles; e por três
sábados disputou com eles sobre as Escrituras, expondo e demonstrando que convinha
que o Cristo padecesse e ressuscitasse dentre os mortos...” (Atos 17:2-3). Mas, “abrir” as
Escrituras de modo a ajudar os santos, requer algo mais do que o treinamento de alguns
meses em um instituto bíblico, ou um ou dois anos em um seminário. Ninguém, senão
aqueles que foram pessoalmente ensinados por Deus na dura escola da experiência são
qualificados para “abrir” a Palavra, de modo que a luz divina seja lançada sobre os
problemas espirituais do crente, pois enquanto a Escritura interpreta a experiência, a
experiência é muitas vezes a melhor intérprete da Escritura. “O coração do sábio instrui a
sua boca, e aumenta o ensino dos seus lábios” (Provérbios 16:23), e esse “aprendizado”
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não pode ser adquirido em qualquer uma das escolas humanas. Ninguém pode saber o
que a humildade é por meio da concordância, nem crescer na fé através do estudo de certas
passagens das Escrituras. A humildade é adquirida através de descobertas dolorosas da
praga de nossos corações, e a fé é aumentada por um conhecimento profundo de Deus.
Nós mesmos devemos ser consolados, antes que possamos consolar outros.
“Buscar meras noções da verdade, sem um esforço por uma experiência de seu poder
em nossos corações, não é o caminho para aumentar nossa compreensão das coisas
espirituais. Somente está em condições de aprender de Deus, aquele que sinceramente
entrega a sua mente, consciência e afeições ao poder e governo do que é revelado a ele.
Os homens também podem ter outras finalidades em seus estudos das Escrituras, como o
benefício e edificação dos outros. Mas se essa conformação de suas próprias almas com
o poder da Palavra não for posta em primeiro lugar em suas mentes, eles não lutam
legitimamente, nem eles serão aperfeiçoados. E se em algum momento, quando nós
estudamos a Palavra, nós não temos esse propósito expresso em nossas mentes, mas se
após a descoberta de qualquer verdade nos esforçamos para não ter algo semelhante a
isso em nossos próprios corações, perdemos nossa principal vantagem nisso” (John
Owen). Há muito a temer que muitos pregadores terão motivos para lamentar no dia
vindouro: “Puseram-me por guarda das vinhas; a minha vinha, porém, não guardei”
(Cantares de Salomão 1:6); como um cozinheiro que prepara refeições para os outros,
enquanto ele mesmo fica com fome.
Enquanto o pregador deve meditar na Palavra devocionalmente, ele também deve lê-
la estudiosamente. Se ele deseja tornar-se capaz de apascentar o seu rebanho com “o mais
fino trigo” (Salmos 81:16), então ele precisa estudá-la de forma diligente e diária, e isso até
o fim de sua vida. Infelizmente muitos pregadores abandonam o seu hábito de estudo, logo
que eles são ordenados! A Bíblia é uma mina inesgotável de tesouro espiritual, e quanto
mais as suas riquezas são desveladas para nós (por árdua escavação), mais percebemos
o quanto há ainda não conquistado, e quão pouco nós realmente entendemos o que foi
recebido. “E, se alguém cuida saber alguma coisa, ainda não sabe como convém saber” [1
Coríntios 8:2].
A Palavra de Deus não pode ser compreendida sem um estudo constante e laborioso,
sem uma análise cuidadosa e em oração dos seus conteúdos. Isso não quer dizer que ela
é secreta e obscura. Não, ela é tão simples e inteligível como naturalmente outras coisas
podem ser, a Palavra está dada melhor forma possível para dar instrução a respeito das
coisas santas e profundas de que trata. Mas nada pode ser ensinado através dos melhores
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meios possíveis de instrução que não traga dores em si mesmo. A promessa de
entendimento não é feita ao procrastinador e indolente, mas ao diligente e zeloso, para
aqueles que procuram um tesouro espiritual (Provérbios 2:3,5). As Escrituras precisam ser
examinadas, buscadas diariamente, com persistência e perseverança, se o ministro deseja
tornar-se completamente familiarizado com a totalidade do que Deus revelou e se ele quiser
pôr diante de seus ouvintes “um banquete de coisas gordurosas”. Sobre o pregador sábio
é dito: “tanto mais ensinou ao povo sabedoria; e atentando, e esquadrinhando, procurou o
pregador achar palavras agradáveis” (Eclesiastes 12:9-10), aqui é como se toda a sua alma
estivesse envolvida na descoberta do melhor modo de instrução.
Nenhum pregador deveria se contentar em ser nada menos do que “um homem
poderoso nas Escrituras” (Atos 18:24). Mas, para atingir isso ele deve subordinar todos os
outros interesses. Um antigo escritor curiosamente disse: “O pregador deve ser com o seu
tempo como o avarento é com o seu ouro: Guardá-lo com cuidado, e gastá-lo com cautela”.
Ele também deve lembrar-se constantemente do Livro que ele está prestes a anunciar, de
modo que ele o manuseie com a maior reverência e possa declarar: “meu coração temeu
a tua palavra” (Salmos 119:161). Ele deve aproximar-se desse ofício com humildade de
espírito, pois é somente aos tais que o Senhor “dá maior graça” [Tiago 4:6]. Ele sempre
deve vir a ele em espírito de oração, clamando: “o que não vejo, ensina-me tu” (Jó 34:32);
a graça iluminadora do Espírito frequentemente desvela mistérios ao manso e necessitado,
os quais permanecem ocultos para os mais instruídos e eruditos. Um coração santo é
igualmente indispensável para a recepção da verdade sobrenatural, pois o entendimento é
esclarecido pela purificação do coração. Deixe haver também uma expectativa humilde do
auxílio divino, pois o “seja-vos feito segundo a vossa fé” [Mateus 9:29] é válido aqui também.
É somente por dar atenção às coisas que têm sido apontadas nos parágrafos
anteriores que são estabelecidos os fundamentos necessário para qualquer homem se
tornar um expositor competente. A tarefa diante dele é expor, com clareza e precisão, a
Palavra de Deus. Seu trabalho é inteiramente exegético: anunciar o verdadeiro significado
de cada passagem com a qual ele lida, que ela esteja de acordo com seus próprios
preconceitos ou não. Assim como o trabalho do tradutor é transmitir o verdadeiro sentido
do Hebraico e do Grego para o Português, assim também o trabalho do intérprete deve é
apreender e comunicar precisamente o significado das ideias a linguagem da Bíblia foi
concebida para transmitir. Como o renomado Bengel tão bem expressou: “Um expositor
deve ser como o construtor de um poço, o qual não coloca nenhuma água nele, mas faz de
seu objetivo permitir que a água flua, sem desvio, interrupção ou contaminação”. Em outras
palavras, ele não deve ter a menor liberdade com o texto sagrado, nem dar-lhe um
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significado que não seja legítimo, nem modificar a sua força, nem encobrir algo que esteja
nele revelado, mas buscar anunciar o que tal texto realmente significa.
Estar em conformidade com o que acaba de ser dito exige uma abordagem imparcial,
um coração honesto e um espírito de fidelidade, por parte do intérprete. “Nada deve ser
extraído a partir do texto, senão o que é cedido pela explicação justa e gramatical de sua
linguagem” (Patrick Fairbaim). É fácil concordar com esse dictum, porém muitas vezes difícil
de pôr em prática. A ausência dessa disposição mental torna o pregador condenável; uma
tendência mental sectária e o desejo de agradar os seus ouvintes fizeram com que não
poucos fugissem da evidente força de certas passagens, e se tornassem bastante
estranhos ao verdadeiro significado delas. Lutero disse: “Nós não devemos buscar fazer a
Palavra de Deus significar o que nós desejamos. Nós não devemos torcê-la, mas deixar
que a Palavra venha a nos moldar, e dar-lhe a honra por isto ser melhor do que nós
podemos fazer com ela”. Qualquer coisa diferente disso é altamente condenável. Grande
cuidado sempre deve ser tomado para não expormos nossas próprias mentes, em vez da
mente de Deus. Nada pode ser mais censurável do que um homem proclamar um: “Assim
diz o Senhor”, quando ele está apenas expressando os seus próprios pensamentos. Ainda
assim, quem, mesmo involuntariamente, ainda não fez isso?
Se em relação ao farmacêutico é exigido por lei que ele siga exatamente a prescrição
do médico, e se os oficiais militares devem transmitir as ordens de seus comandantes na
íntegra ou sofrerão penalidades severas, quanto mais compete a alguém que lida com as
coisas divinas e eternas, aderir estritamente ao texto do Livro! A tarefa do intérprete é
buscar o que é descrito em Neemias 8:8: “E leram no livro, na lei de Deus; e declarando, e
explicando o sentido, faziam que, lendo, se entendesse”. A referência é àqueles que da
Babilônia haviam retornado à Palestina. Enquanto no cativeiro, haviam gradualmente
deixado de usar o hebraico como língua cotidiana, e passaram a usar o aramaico. Portanto,
havia uma necessidade real de explicar as palavras hebraicas em que a lei foi escrita (cf.
Neemias 13:23-24). No entanto, o registro desse acontecimento sugere que ele é de
importância permanente e que tem uma mensagem para nós. Na boa providência de Deus
há pouca necessidade hoje que o pregador explique o hebraico e o grego, uma vez que já
existem traduções confiáveis dessas línguas para nossa própria língua materna; embora
ocasionalmente, e apenas muito moderadamente, o pregador possa traduzir e explicar
essas línguas originais. Mas a sua atividade principal é “explicar o sentido” da Bíblia em
Português e fazer com que os seus ouvintes “entendam” o seu conteúdo. Sua
responsabilidade é a de aderir estritamente à ordem: “Aquele que tem a minha palavra, fale
a minha palavra com verdade” (Jeremias 23:28).
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Capítulo 4
________________________________________
O pregador deve ser, acima de tudo, um homem do Livro, bem versado no conteúdo
da Palavra de Deus, alguém que é capaz de extrair de seu tesouro “coisas novas e velhas”
(Mateus 13:52). A Bíblia deve ser o seu único livro-texto e de suas águas vivas ele deve
beber profunda e diariamente. Pessoalmente, não uso nada mais do que a King James
Versão Autorizada Inglesa e a Concordância de Young, com uma referência ocasional à
Interlinear de Grego e a King James Versão Americana Revisada. Consulto os Comentários
apenas após fazer um inicial e exaustivo estudo de uma passagem. Recomendo fortemente
aos jovens pregadores que sejam muito vigilantes para não permitirem que os comentários
se tornem substitutos, em vez de um auxílio, ao seu próprio minucioso e pleno exame e
ponderação das Sagradas Escrituras. Assim como há um meio termo entre imaginar ou que
a Bíblia é tão clara e simples que qualquer um pode entendê-la ou tão difícil e profunda que
seria um desperdício de tempo para a pessoa mediana lê-la, assim também há entre ser
essencialmente dependente das obras dos outros e simplesmente ecoar as suas ideias, e
depreciar totalmente a luz e a ajuda que podem ser obtidas a partir dos antigos servos de
Deus.
É aos pés de Deus que o pregador deve posicionar-se, aprendendo com Ele o
significado de Sua Palavra, na esperança de que Ele desvele os Seus mistérios, buscando
nEle a sua mensagem. Em nenhum lugar, senão nas Escrituras ele pode discernir o que é
agradável ou desagradável ao Senhor. Somente ali são revelados os segredos da
sabedoria divina, sobre a qual o filósofo e o cientista não conhecem nada. Como o grande
Puritano holandês justamente salientou: “Tudo o que não é retirado das mesmas, o que
não é construído sobre elas, o que não está mui exatamente de acordo com elas, embora
possa recomendar-se pela aparência da mais sublime sabedoria, ou apoiar-se na antiga
tradição e no consenso dos homens eruditos, ou tenha o peso de argumentos plausíveis, é
inútil, fútil e, em suma, uma mentira. ‘À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo
essa palavra, é porque não há luz neles’. Que o teólogo se deleite nos oráculos sagrados;
que ele se exercite neles de dia e de noite, e medite neles, e extraia toda a sua sabedoria
deles. Que ele mantenha todos os seus pensamentos em torno deles, que, no que diz
respeito à religião, ele não aceite nada não possa ser encontrado ali” (Herman Witsius).
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1. Tratando agora daqueles princípios que devem orientar o estudante em seus
esforços para interpretar a Palavra de Deus, colocamos em primeiro lugar, a necessidade
de reconhecer a interrelação e interdependência entre o Antigo e o Novo Testamentos.
Fazemos isso porque o erro nesse ponto, inevitavelmente resulta em um mal-entendido
grave e em uma não pequena perversão nas últimas Escrituras. Não propomos introduzir
uma refutação da heresia moderna do “dispensacionalismo”, mas tratar dessa seção de
nosso assunto de forma construtiva. Após uma comparação longa e cuidadosa dos escritos
da escola Dispensacionalista com as Institutas de Calvino, e após observarmos o tipo de
fruto produzido por ambas, é nossa convicção que esse eminente reformador foi muito mais
profundamente ensinado pelo Santo Espírito do que aqueles que reivindicaram receber
uma grande “nova luz sobre a Palavra de Deus” há um século. Queremos, portanto, pedir
que cada pregador que possui as Institutas de Calvino empreguem a sua melhor atenção
aos seus dois capítulos sobre: “A Similaridade o Antigo e o Novo Testamento” e “A
Diferença Entre os Dois Testamentos”.4
A semelhança entre os dois Testamentos é muito maior e mais importante do que a
sua diferença. O mesmo Deus Triuno é revelado em cada um dos Testamentos, o mesmo
caminho da salvação é estabelecido, o mesmo padrão de santidade é anunciado, os
mesmos destinos eternos do justo e do ímpio são evidenciados. O Novo Testamento tem
todas as suas raízes no Antigo, de modo que muito em um torna-se ininteligível à parte do
outro. Não somente um conhecimento da história dos patriarcas e das instituições do
judaísmo são indispensáveis para a compreensão de muitos detalhes nos Evangelhos e
nas Epístolas, mas seus termos e ideias são idênticos. Que é inteiramente insustentável
para nós supormos que a mensagem proclamada pelo Senhor Jesus era algo novo ou
radicalmente diferente das primeiras comunicações de Deus fica evidente a partir de Sua
advertência enfática: “Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar,
mas cumprir” (Mateus 5:17) — isto é, para vindicá-los e fundamentá-los, para livrá-los das
perversões e deturpações humanas, e para fazer o bem que eles exigem e declaram.
Assim, longe de haver qualquer antagonismo entre o ensinamento de Cristo e o ensino dos
mensageiros de Deus que O precederam, quando anunciou a “regra de ouro” Ele afirmou,
“porque esta é a lei e os profetas” (Mateus 7:12).
Certamente não havia conflito entre o testemunho dos apóstolos e o testemunho de
seu Mestre, pois Ele expressamente ordenou-lhes a ensinarem os Seus convertidos “a
guardar todas as coisas que eu tenho mandado [não o que mandarei!]” (Mateus 28:20).
4 Capítulos X e XI, Livro II – N.T.
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Nem o sistema doutrinário de Paulo difere de algum modo daquele anunciado no Antigo
Testamento. No início da primeira epístola que leva seu nome, ele é específico em nos
informar que o Evangelho, para o que Deus lhe tinha separado, não era outro senão o único
“o qual antes prometeu pelos seus profetas nas santas escrituras” (Romanos 1:1-2), e
quando ele afirmou que a justiça de Deus foi revelada agora, sem lei, ele teve o cuidado de
acrescentar: “tendo o testemunho da lei e dos profetas” (3:21). Quando ele vindicou a sua
doutrina sobre a justificação pela fé sem as obras da lei, ele fez isso apelando para o caso
de Abraão e o testemunho de Davi (Romanos 4). Quando ele advertiu os Coríntios contra
se acomodarem com uma falsa sensação de segurança por causa dos dons espirituais que
haviam sido concedidos a eles, ele lembrou-lhes os israelitas que tinham sido altamente
favorecidos por Deus, ainda assim isso não os guardou de Seu desagrado quando
pecaram, ainda que “beberam todos de uma mesma bebida espiritual” (1 Coríntios 10:1-5).
E quando ilustrando importante verdade prática, ele cita a história dos dois filhos de Abraão
(Gálatas 4:22-31).
Em muitos aspectos, o Novo Testamento é uma continuação e um complemento para
o Antigo. A diferença entre a Antiga e Nova Alianças mencionadas em Hebreus é relativa e
não absoluta. O contraste não é realmente entre dois opostos, mas sim entre uma gradação
do mais baixo para o plano mais elevado; um preparando o outro. Embora alguns tenham
errado muito em judaizar o Cristianismo, outros têm entretido uma concepção muito carnal
do judaísmo, deixando de perceber os elementos espirituais nele, e que sob ele Deus tão
verdadeiramente administrou as bênçãos do Pacto Eterno para aqueles que Ele tinha
escolhido em Cristo assim como Ele o faz agora, sim, que Ele fez isso de Abel em diante.
Justamente, então, Calvino repreendeu a loucura dos nossos Dispensacionalistas
modernos — quando reprovando aqueles de seus precursores que apareceram em seus
dias — ao dizer: “Agora, o que seria mais absurdo do que Abraão ser o pai de todos os
fiéis, e ainda assim não possuir sequer o lugar mais baixo entre eles? Antes ele não pode
ser excluído do número, nem mesmo da posição mais nobre, sem a destruição da Igreja”.
Quando Cristo ou um dos Seus apóstolos falaram, em quase todos os pontos vitais
eles fundamentaram o seu argumento apelando às Escrituras do Antigo Testamento, a
partir do qual são encontrados textos-prova em quase todas as páginas do Novo. Inúmeros
exemplos podem ser apresentados para mostrar que ambas as ideias e a linguagem do
Antigo deram a sua impressão no Novo Testamento; mais de seis centenas de expressões
de um são repetidas no outro. Cada cláusula do “Magnificat” (Lucas 1:46-55) e até mesmo
da Oração da Família (Mateus 6:9-13) é extraída do Antigo Testamento. Por conseguinte,
cabe ao estudante dar igual atenção as duas principais as divisões da Bíblia, não somente
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para familiarizar-se completamente com a última, mas esforçando-se para beber
profundamente do espírito da primeira, a fim de capacitar-se para compreender o Novo
Testamento. A menos que ele faça isso, será impossível para ele apreender o corretamente
o verdadeiro significado tanto dos Evangelhos quantos das Epístolas. Não basta somente
ter um conhecimento dos tipos para compreender os antítipos, pois o que significaria que
“Cristo, nossa páscoa, foi sacrificado por nós”, a um ignorante de Êxodo 12 (1 Coríntios
5:7); e quanto de Hebreus 9 e 10 é inteligível à parte de Levítico 16? Porém, muitas palavras
importantes do Novo Testamento podem ser corretamente definidas apenas referindo-se à
sua utilização no Antigo Testamento, como “primogênito, resgate, propiciação”, etc.
Que deve haver uma harmonia fundamental entre o Judaísmo e o Cristianismo fica
evidente pelo fato de que o mesmo Deus é o autor de ambos, e é imutável em Suas
perfeições e nos princípios de Seu governo. O primeiro foi de fato dirigido mais ao homem
exterior, foi transacionado sob formas e relações visíveis, e dizia respeito principalmente a
um santuário e herança terrena; no entanto, todos eles foram uma “sombra das coisas
celestiais” (Hebreus 8:5, 10:1). “No Novo Testamento, temos uma maior, porém muito
intimamente relacionada exposição da verdade e do dever do que no Antigo, que envolve
tanto as similaridades quando as diferenças dos dois pactos. As similaridades são mais
profundas e relacionam-se aos elementos mais essenciais das duas economias; as
diferenças são de natureza mais circunstancial e formal” (Patrick Fairbairn). Pessoalmente,
gostaria de dizer que as principais variações aparecem quando observamos que em um,
nós temos a promessa e a previsão, no outro, a realização e o cumprimento; no primeiro
temos os tipos e sombras (a “lâmina”), depois a realidade e substância ou o “grão cheio na
espiga”. A dispensação Cristã supera a Mosaica por sua mais completa e mais clara
manifestação das perfeições de Deus (1 João 2:8), em um derramamento mais abundante
do Espírito (João 7:39; Atos 2:3), em seu mais amplo alcance (Mateus 28:19-20), e em
maior medida de liberdade (Romanos 8:15; Gálatas 4:2-7).
2. O segundo princípio que o expositor deve estudar muito cuidadosamente é o da
citação bíblica. É de não pequena ajuda afirmar que as leis da correta interpretação podem
ser obtidas a partir da observação diligência da maneira como e o propósito para o qual o
Antigo Testamento é citado no Novo. Deve haver pouca margem para dúvidas de que o
registro que o Espírito Santo forneceu a respeito da maneira que o nosso Senhor e os Seus
apóstolos entenderam e aplicaram do Antigo Testamento foi grandemente designada para
lançar luz acerca de como, geralmente, o Antigo Testamento deve ser usado por nós, bem
como fornecer instruções sobre os pontos específicos por meio daquelas passagens na Lei
ou nos profetas que eram mais imediatamente citadas. Ao examinar atentamente as
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palavras mencionadas e o sentido dado a elas no Novo Testamento, não somente seremos
libertos de um literalismo servil, mas também seremos melhor habilitados para perceber a
plenitude da Palavra de Deus e a aplicação variada que pode ser legitimamente feita dela.
Um campo amplo, mas geralmente negligenciado, está aberto para a exploração, mas em
vez de nos esforçarmos aqui para fazer um exame profundo do mesmo, vamos
simplesmente fornecer algumas ilustrações.
Em Mateus 8:16, somos informados de que em certa ocasião Cristo “curou todos os
que estavam enfermos”, e, em seguida, sob a orientação do Espírito Santo, o evangelista
adicionou: “para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta Isaías [a saber, em 53:4],
dizendo: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e levou as nossas enfermidades”.
Este uso daquela predição messiânica é muito esclarecedor, sugerindo que ela tinha um
significado mais amplo do que fazer expiação pelos pecados de Seu povo; ou seja, durante
os dias de Seu ministério público, Cristo compadeceu-se da condição dos doentes, e tomou
sobre Seu espírito os sofrimentos e as dores daqueles a quem Ele ministrou, de modo que
os Seus milagres de cura exigiram muito de Sua compaixão e resistência. Ele foi
pessoalmente atingido pelas aflições deles. Cristo começou a Sua obra mediadora de
remover o mal que o pecado tinha trazido ao mundo por curar aquelas doenças corporais,
as quais eram os frutos do pecado, e assim fazendo, prefigurou a maior obra que Ele
realizaria na cruz. A conexão entre o um e o outro foi mais claramente indicada quando Ele
respectivamente disse ao paralítico: “Os teus pecados estão perdoados” e “levanta-te, toma
o teu leito e vai para tua casa” (Mateus 9:2,6).
Considere a seguir, como Cristo usou o Antigo Testamento para refutar os
materialistas dos seus dias. Os saduceus sustentavam a noção de que a alma e o corpo
estão tão estreitamente unidos que se um morrer o outro morrerá também (Atos 23:8). Eles
viam o corpo morrer, e daí concluíram que a alma também morria. Muito notável, na
verdade, é ver a sabedoria encarnada arrazoando com eles em seu próprio terreno. Isso
Ele fez citando Êxodo 3, em que o SENHOR disse a Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, o
Deus de Isaque e o Deus de Jacó”. Mas em que essas palavras correspondem à questão?
O que havia nelas que expôs o erro dos saduceus? Nada explicitamente, mas muito
implicitamente. A partir delas, Cristo chegou à conclusão de que “Deus não é o Deus dos
mortos, mas dos vivos” (Mateus 22:32). Não é que Ele foi o Deus deles, mas que Ele
permanecia sendo assim: “Eu sou o Deus deles”, portanto eles permanecem vivos.
Havendo sido provado que os seus espíritos e almas ainda viviam, seus corpos seriam
ressuscitados no momento oportuno, pois, por ser o “Deus” deles, isso garantia que Ele
seria para eles e por eles tudo o que essa relação implica, e não deixaria parte de sua
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natureza ser detida pela corrupção. É nisso que Cristo estabeleceu o importante princípio
da interpretação de que podemos tirar alguma inferência clara e necessária a partir de uma
passagem, desde que não ela não se oponha a qualquer declaração definitiva das
Sagradas Escrituras.
Em Romanos 4:11-18, temos um exemplo notável de raciocínio apostólico de duas
curtas passagens de Gênesis, onde Deus fez a promessa a Abraão que ele seria o pai de
muitas nações (17:5) e que, em sua descendência seriam benditas todas as nações da
Terra (22:18). Uma vez que essas garantias foram dadas ao patriarca simplesmente como
um crente, antes da nomeação divina da circuncisão, Paulo fez a conclusão lógica de que
elas pertenciam a judeus e gentios igualmente, desde que cressem como Abraão e, assim,
teriam imputada a eles a justiça de Cristo, de modo que o bem dessas promessas pertencia
a todos os que “andam nas pisadas da sua fé”. É aí que somos claramente ensinados que
a “semente” da bênção mencionada nessas antigas profecias era essencialmente de
natureza espiritual (cf. Gálatas 3:7-9, 14:29), incluindo todos os membros da família da fé,
onde quer que sejam encontrados. Como Stifler pertinentemente observou: “Abraão é
chamado o pai não em um sentido físico, nem em sentido espiritual: ele é pai por ser o
chefe do clã da fé, e assim o modelo da mesma”. Em Romanos 9:6-13, o apóstolo foi
igualmente expresso em excluir dos benefícios dessas promessas os descendentes
meramente naturais de Abraão.
Romanos 10:5-9, fornece uma ilustração impressionante deste princípio na maneira
em que o apóstolo “abriu” Deuteronômio 30:11-14. Seu propósito era retirar dos judeus a
noção de obediência à lei como necessária para a justificação (Romanos 10:2-3). Ele fez
isso através de argumentar a partir dos escritos de Moisés, e, então, estabeleceu uma
distinção entre a justiça da Lei e a justiça da fé. Os judeus haviam rejeitado a Cristo porque
Ele não veio até eles de uma forma que atendesse as suas expectativas carnais, e,
portanto, eles recusaram a graça oferecida por Ele. Eles consideravam que o Messias
estava longe, quando na verdade Ele estava “perto” deles. Não havia necessidade, então,
que eles subissem ao Céu, pois Cristo tinha descido dali; nem descessem ao abismo, pois
Ele havia ressuscitado dos mortos. O apóstolo não estava apenas acomodando o seu
propósito à linguagem de Deuteronômio 30, mas mostrando o seu significado Evangélico.
Como disse Thomas Manton: “Todo esse capítulo é um sermão sobre arrependimento
evangélico” (veja vv. 1-2). Obviamente, a passagem em questão apontava para um
momento após a ascensão de Cristo, quando Israel seria disperso entre as nações, de
modo que as palavras de Moisés não eram estritamente aplicáveis a essa dispensação do
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Evangelho. A substância dos versos 11 a 14 é que o conhecimento da vontade de Deus é
livremente acessível, de modo que ninguém é obrigado a fazer o impossível para obtê-lo.
Em Romanos 10:18, é dado mais do que uma indicação das profundezas insondáveis
da Palavra de Deus e da grande amplitude de sua aplicação. “Quem creu na nossa
pregação? [Do Evangelho, pois eles não o obedeceram, v. 16]. “Mas digo: Porventura não
ouviram? Sim, por certo, pois por toda a terra saiu a voz deles, e as suas palavras até aos
confins do mundo”, citado a partir do Salmo 19:4. O anúncio do Evangelho não era restrito
(Colossenses 1:5-6), mas era tão geral e livre quanto as declarações divinas desde os céus
(Salmos 19:1). “A revelação universal de Deus na natureza era uma predição providencial
da proclamação universal do Evangelho. Se a primeira não fosse gratuita, ainda que
baseada na natureza de Deus, assim seria a última. A manifestação de Deus na natureza
é para todas as Suas criaturas a quem é feita, em sinal de sua participação nas revelações
mais claras e mais elevadas” (Hengstenberg). Não somente a profecia do Antigo
Testamento anuncia que o Evangelho deve ser dado a todo o mundo, mas o céu
misticamente declarou a mesma coisa. Os céus não falam a apenas uma nação, mas a
toda a raça humana! Se os homens não creram não foi porque não ouviram. Outro exemplo
da significação mística de certas Escrituras é encontrado em 1 Coríntios 9:9-10.
Em Gálatas 4:24, a pena inspirada de Paulo nos informa que certos acontecimentos
domésticos na casa de Abraão “são uma alegoria”, de forma que Agar e Sara
representavam “os dois pactos”, e que seus filhos prefiguravam os adoradores que esses
pactos eram adequados para produzir. Assim, por meio dessa revelação divina por meio e
através do apóstolo, nós soubemos Deus havia escondido um mistério profético nesses
fatos da história; que essas ocorrências domésticas profeticamente prefiguravam
transações de importância vital para o futuro; e que elas ilustravam grandes verdades
doutrinárias e exemplificavam a diferença na conduta de homens espiritualmente escravos
e homens espiritualmente livres. Esse foi o caso, segundo o que nos mostrou o apóstolo,
ao declararmos o sentido oculto desses eventos. Eles eram uma parábola em ação: Deus
moldou de tal forma as questões da família de Abraão a ponto de levar essas a tipificaram
coisas de grande magnitude. Os dois filhos foram ordenados a prenunciar aqueles que
seriam nascidos do alto e aqueles que nasceram da carne; que mesmo os descendentes
naturais de Abraão, eram apenas ismaelitas em espírito, mas estranhos à promessa.
Embora o exemplo de Paulo aqui certamente não abra nenhum precedente para o expositor
dar livre curso à sua imaginação e distorcer acontecimentos do Antigo Testamento levando-
os a ensinarem algo que lhe agrada; o apóstolo indica que Deus ordenou de tal modo as
vidas dos patriarcas tendo em vista conceder-nos lições de grande valor espiritual.
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Acima, nós propositalmente selecionamos uma variedade de exemplos, e a partir
deles, o estudante aplicado (mas não o leitor apressado) descobrirá algumas valiosas
indicações e auxílios divinos sobre como as Escrituras devem ser entendidas, e os
princípios pelos quais elas devem ser interpretadas. Que os exemplos sejam relidos e
cuidadosamente ponderados.
3. É necessário ser diligentemente e constante ao cuidar para que estritamente
conformemos todas as nossas interpretações à analogia da fé, ou como Romanos 12:6
expressa: “profetizamos de acordo com a proporção da fé”. Charles Hodge — que por
solidez doutrinária, erudição espiritual e capacidade crítica, é insuperável — afirma que o
significado original e próprio da palavra “profeta” é intérprete, aquele que declara a vontade
de Deus, que explica a Sua mente aos outros. Ele também diz que a palavra citada,
“proporção”, pode significar tanto proporção quanto medida, regra e padrão. Desde que a
“fé” nesse verso deve ser considerada objetivamente (pois, havia “profetas” como Balaão e
Caifás que estavam desprovidos de qualquer fé interior ou salvífica), então essa importante
expressão significa que o intérprete da mente de Deus deve ser mais específico e
escrupuloso em cuidar para que ele sempre o faça segundo o padrão revelado que Deus
nos deu. Assim, “fé” aqui é usada no mesmo sentido de passagens como “fé” em Gálatas
1:23; 1 Timóteo 4:1, etc.; ou seja — “uma só fé” de Efésios 4:5; “a fé que uma vez foi
entregue aos santos” (Judas 3) — a Palavra de Deus escrita.
A exposição feita de qualquer verso nas Sagradas Escrituras deve ser inteiramente
de acordo com a analogia da fé, ou, em outras palavras, aquele sistema da verdade que
Deus deu a conhecer ao Seu povo. Isso, é claro, exige um conhecimento abrangente do
conteúdo da Bíblia, esta é uma prova segura de que nenhum neófito é qualificado para
pregar ou tentar ensinar aos outros. Tal conhecimento abrangente só pode ser obtido por
uma leitura sistemática e constante da própria Palavra, e somente então qualquer homem
é capacitado para avaliar os escritos de outras pessoas! Visto que toda a Escritura é
inspirada por Deus, não há contradições na mesma; portanto, obviamente, segue-se que
qualquer explicação dada de uma passagem que se choca com o claro ensino de outros
versos é manifestamente errada. Para que qualquer interpretação seja válida, ela deve
estar em perfeita harmonia com o esquema total da Verdade divina. Uma parte da Verdade
é mutuamente relacionada e dependente das outras, e, portanto, há pleno acordo entre
elas. Como Bengel disse a respeito dos livros da Escritura: “Eles formam juntos um belo,
harmonioso e gloriosamente conectado sistema da Verdade”.
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36
Capítulo 5
________________________________________
Dizer que toda nossa interpretação deve obedecer estritamente à analogia da fé pode
parecer muito simples e óbvio, mas é surpreendente descobrir quantos homens, tanto
experientes quanto inexperientes, não seguem esse princípio. Naturalmente, aqueles que
cobiçam “originalidade”, e têm certa inclinação a querer mostrar algo novo ou
surpreendente (principalmente a partir de passagens obscuras), sem levar em conta esse
princípio básico, estão fadados ao erro. Mas, como John Owen observou: “Enquanto nós
honestamente observarmos essa regra, não correremos perigo de, pecaminosamente,
corromper a Palavra de Deus, mesmo sabendo que nunca obteremos a interpretação exata
de todas as passagens da bíblia”. Por exemplo, aprender que “Deus é espírito” (João 4:24),
incorpóreo e invisível nos impede de interpretarmos mal as passagens em que olhos e
ouvidos, mãos e pés são atribuídos a Ele; e quando somos informados de que nEle “não
há mudança nem sombra de variação” (Tiago 1:17), sabemos que Deus, ao dizer que “se
arrepende”, fala isso à maneira dos homens. Da mesma forma, quando o Salmo 19:11 e
outros versos exibem santos sendo recompensados por demonstrarem graça e boas obras,
outras passagens nos mostram que tal recompensa não provém de méritos, mas é
concedida pela graça divina.
Nenhum verso deve ser explicado de modo que entre em conflito com o que é
ensinado, clara e uniformemente, nas Escrituras como um todo, o qual está diante de nós
como única regra de fé e obediência. Isto exige do expositor não só um conhecimento amplo
da Bíblia, mas também que ele se dê ao trabalho de coletar e comparar todas as passagens
que tratam e têm relação direta com o tema proposto, para que ele possa obter a mente
completa do Espírito a respeito do assunto. Tendo feito isso, qualquer passagem ainda
obscura ou duvidosa deve ser interpretada à luz das mais claras. Nenhuma doutrina deve
ser fundada em uma única passagem, à semelhança dos mórmons, que utilizam 1 Coríntios
15:29 para embasar o batismo pelos mortos, ato praticado por essa seita; ou como os
papistas apelam para Tiago 5:14-15 ao defenderem a “extrema-unção”. Somente pela boca
de duas ou três testemunhas qualquer verdade é estabelecida, como nosso Senhor insistiu
em seu ministério (João 5:31-39, 8:16-18). Cuidados devem ser tomados para que nenhum
ensinamento importante seja baseado apenas em qualquer tipo de expressão figurada, ou
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mesmo parábola; em vez disso, tais estruturas devem ser utilizadas somente para ilustrar
passagens literais e claras.
Portanto, que fique claro ao expositor que nenhuma parte da Escritura deve ser
interpretada sem levar em conta sua relação com o todo. Ser fiel a essa regra fundamental
preservará o confronto entre diversas passagens. Assim, quando ouvimos Cristo dizer:
“Meu Pai é maior do que eu” (João 14:28), nos atentarmos à Sua declaração anterior, “Eu
e Meu Pai somos um” (João 10:31) excluirá qualquer ideia de que Ele era, em Seu Próprio
Ser, inferior ao Pai em qualquer sentido; por conseguinte, o testemunho [de Cristo] em João
14:28 necessariamente se refere ao Seu papel de Mediador [dos homens], no qual foi
submisso à vontade do Pai. “Necessariamente”, dizemos, porque o Filho não é outro senão
“o poderoso Deus” (Isaías 9:6), “o verdadeiro Deus” (1 João 5:20). Outra vez, palavras como
“batiza-te, e lava os teus pecados” (Atos 22:16) não devem ser entendidas de maneira que
contradigam “e o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado” (1 João
1:7), mas consideradas apenas como uma “lavagem” simbólica. “Para reconciliar consigo
mesmo todas as coisas” (Colossenses 1:20) não pode ensinar o universalismo, ou cada
passagem afirmando a punição eterna dos perdidos seria negada. 1 João 3:9 deve ser
entendido de modo consistente com 1 João 1:8.
4. A necessidade de se prestar muita atenção ao contexto é outra questão de suma
importância. Cada declaração das Escrituras não só deve ser explicada em plena harmonia
com a analogia da fé como também, mais especificamente, em completo acordo com o
sentido claro e com o significado da passagem da qual ela faz parte. O “sentido claro” deve
ser diligentemente buscado. Poucas coisas têm contribuído mais para interpretações
equivocadas do que a ignorância desse princípio óbvio. Com a separação de um verso de
seu contexto ou com a análise à parte desse se pode “provar” não só absurdos como
também mentiras disfarçadas pelas próprias palavras da Escritura. Por exemplo, “ouvir a
igreja” não é uma exortação que obriga os membros a submeterem os seus julgamentos
aos clérigos, mas, como Mateus 18:17 mostra, a assembleia local deve decidir a questão
quando um irmão transgressor recusa ser submisso à exortação privada. Como certa
pessoa disse, “Uma mente engenhosa e hipócrita pode selecionar diversos textos
fundamentais da Escritura e, em seguida, combiná-los da forma mais arbitrária possível, de
modo que, embora sejam a própria Palavra de Deus, expressem os pensamentos do
homem e não do Espírito Santo”.
Determinar o significado preciso de certas expressões por observar as circunstâncias
e a ocasião de sua ocorrência é de grande ajuda. Muitos pregadores, ao falharem nesse
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ponto, não compreendem a verdadeira força dessas palavras tão bem-conhecidas: “Ó
Senhor, dá palavras aos meus lábios, e a minha boca anunciará o teu louvor” (Salmos
51:15). A boca de Davi havia sido fechada pelo pecado e por não o confessar; desse modo,
o Espírito havia se extinguido! Agora que ele tinha se confessado perante o Senhor, Davi
clamava para que Deus limpasse seus lábios cobertos de vergonha. O significado espiritual
de um acontecimento é muitas vezes percebido ao se prestar atenção ao que está
vinculado. Um exemplo notável disso é encontrado em Mateus 8:23-26, a qual, tendo-a em
mente, possui uma aplicação para nós. A chave para isso é encontrada na última parte do
verso 23 e na leitura dos versos 19-22. A ordem de pensamento é bastante sugestiva: a
passagem toda trata de “seguir” a Cristo, e os versos 23-26 fornecem uma figura
representativa das marcas que o caminho do discípulo possui, em meio a um mundo
tempestuoso: enfrentar provações, dificuldades e perigos; e diversas vezes pensar que o
Senhor parece estar “adormecido”, desatento ou indiferente às nossas tribulações! Mas, na
realidade, é um teste de fé, uma amostra de que Ele exige confiança enquanto O
esperamos, que Ele é nosso único refúgio, suficiente para cada tempestade!
A parábola registrada em Lucas 15:3-32 jamais poderá ser interpretada corretamente
se seu contexto for ignorado. Por falta de usar essa analogia, que confusão e desacordo
desnecessários têm ocorrido entre os comentaristas a respeito de quem são as noventa e
nove ovelhas deixadas no deserto (caracterizadas como “simplesmente pessoas/justos que
não necessitam de arrependimento”) e de quem é o “filho mais velho” (que se queixou do
tratamento generoso concedido a seu irmão); observamos que essa parábola (dividida em
três partes) não foi dita por Cristo aos discípulos, mas dirigida aos seus inimigos. Ela foi
dada em resposta aos fariseus e escribas que haviam murmurado por nosso Senhor ter
recebido pecadores e comido com eles. Seu plano era expor a condição de seus corações,
e, confirmar as Suas próprias ações graciosas. Ele a expôs retratando a condição perdida
de seus críticos vis e dando a conhecer a base em que Ele recebeu pecadores em
comunhão conSigo, e revelando as operações divinas que causam esse bendito resultado.
Uma vez que tais verdades claras são compreendidas, não há dificuldades em entender os
detalhes da parábola.
Duas classes claramente distintas nos são apresentadas em Lucas 15:1-2: os
publicanos e pecadores desprezados que, vendo sua grande necessidade, foram atraídos
a Cristo; e os fariseus e escribas, orgulhosos e cheios de presunção. Em cada uma das
três partes da parábola, ambos estão em vista, respectivamente. Em primeiro lugar, o bom
Pastor busca e protege sua ovelha perdida, pois é Ele quem efetua a salvação; as noventa
e nove que, a seus próprios olhos, não precisavam de arrependimento tipificam o fariseu
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hipócrita — deixados no “deserto”, em contraste com a ovelha trazida para “casa”. Na
segunda, são descritas as operações secretas do Espírito no coração (retratadas sob a
figura de uma mulher dentro da casa), e por meio da “luz” a moeda perdida é recuperada
— enquanto as outras nove são entregues à própria sorte. Na terceira, a única ovelha
procurada pelo Pastor, pela iluminação do Espírito, é conduzida ao Pai; enquanto que o
filho mais velho (aquele que se gabava, dizendo “eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca
transgredir o teu mandamento”) representa o fariseu — um estranho ao alegre banquete!
Aprenda com isso a importância de se observar a quem uma passagem é destinada, em
quais circunstâncias e ocasiões ela ocorre e o objetivo central do falante ou escritor, antes
de tentar interpretar seus detalhes.
Cada verso iniciado pela palavra “pois” nos obriga a traçar uma conexão existente:
geralmente ela tem a força de “porque”, comprovando a existência de uma declaração
anterior. Da mesma forma, a expressão “Por causa disto” e palavras como “por isso” e
“portanto” exigem muita atenção, de modo que possamos ter diante de nós a promessa da
qual a conclusão é retirada. O mal-entendido generalizado de 2 Coríntios 5:17 fornece um
exemplo do que acontece quando há descuido no momento da análise. Nove a cada dez
vezes sua introdução “Assim que” não é citada. Por não haver compreensão de seu
significado, um sentido completamente errado é dado a “se alguém está em Cristo, nova
criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”. Essa introdução, “Assim
que”, indica que esse verso não pode ser analisado como uma sentença isolada, completa
em si mesma, mas sim como uma sentença intimamente ligada com algo exposto
anteriormente. Ao voltarmos para o verso anterior, veremos que ele também começa com
as palavras “Assim que”, demonstrando ser uma passagem didática ou doutrinária, e não
uma que narre a vida de alguém ou a experiência da alma, nem uma exortação, exigindo
obras.
Deve-se notar, com bastante atenção, que “se alguém” de 2 Coríntios 5:17 demonstra
que aquilo não é algo realizado por alguns poucos especiais, nem um retrato de cristãos
maduros, mas a expressão de algo que é comum a todos os regenerados. Na realidade, o
verso definitivamente não está tratando da experiência cristã, mas do novo relacionamento
[com Deus] para qual a regeneração nos traz. E precisaríamos de tempo para responder
cuidadosamente a cada questão: Sobre qual assunto específico o apóstolo estava
escrevendo? O que o levou a escrever? Qual foi sua abordagem específica nessa ocasião?
Porém, basta dizer que ele estava refutando caluniadores judaizantes e destruindo suas
mentiras. Nos versos 14-16, Paulo enfatiza que a união com Cristo representa morte aos
relacionamentos naturais, na qual toda distinção carnal e biológica entre judeus e gentis
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acaba; além disso, nos conduz a um novo fundamento, o da ressurreição, que nos
proporciona uma nova posição diante de Deus. Como membros de uma nova criação,
estamos sob um pacto inteiramente novo, e para nós as limitações e restrições da antiga
aliança “já se passaram”. Este é o propósito fundamental da epístola para esse fato
manifesta plenamente.
5. Igualmente necessário é que o intérprete determine o escopo de cada passagem,
isto é, sua coerência com o que precede e com o que se segue. Às vezes isso pode ser
melhor feito por se notar o livro particular em que se encontra. De modo notável, esse é o
caso de alguns leitores ao lerem o livro de Hebreus. Quantos cristãos, que caíram em
grandes pecados ou que se desviaram durante algum tempo, têm, após se arrependerem,
se atormentado de maneira desnecessária ao lerem versos como Hebreus 6:4-6, 10:26-31!
Dizemos “de maneira desnecessária”, pois tais versos foram dirigidos a uma classe de
pessoas muito diferente, cujo caso era totalmente outro. Esses hebreus citados na carta
ocupavam uma posição única. Educados no judaísmo, haviam abraçado o evangelho. No
entanto, mais tarde, ao sofrerem terríveis perseguições e verem que o Messias não
correspondia às suas esperanças, eles estavam realmente tentados a abandonar o
cristianismo para retornar ao judaísmo. Nas passagens mencionadas acima, esses cristãos
estavam claramente advertidos de que o abandono da fé cristã seria fatal, de modo que
aplicá-las a cristãos desviados é algo completamente absurdo. Usá-las para isso seria fugir
do propósito e escopo do texto.
Algumas vezes, para obter a chave de uma passagem é preciso observar em qual
parte do livro ela se encontra. Um exemplo pertinente é encontrado em Romanos 2:6-10,
texto que tem sido mal interpretado por muitos. O grande tema dessa epístola é “a justiça
de Deus”, declarada nos versos 1:16-17. Sua primeira divisão vai do capítulo 1:18 ao 3:21,
na qual a necessidade universal da justiça de Deus é demonstrada. A segunda vai do
capítulo 3:21 ao 5:1, na qual a manifestação da justiça de Deus está estabelecida. E a
terceira, a imputação da justiça de Deus está desde o capítulo 5:1 até o 8:39. Em Romanos
1:18-32, o apóstolo estabelece a culpa do mundo gentio; enquanto no capítulo 2, a do povo
judeu. Em seus primeiros dezesseis versos, ele estabelece os princípios que estarão
vigentes no Grande Julgamento, e utiliza os versos 17-24 para aplicá-los diretamente à
nação favorecida. Os princípios são:
(1) o julgamento de Deus prosseguirá sobre o fundamento de que o homem
condenou a si mesmo (v. 1);
(2) ele será conforme cada caso (v. 2);
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(3) abusar da misericórdia divina aumenta a culpa do réu (vv. 3-5);
(4) obras, e não aparência exterior ou profissão verbal, decidirão o caso (vv. 6-
10);
(5) Deus será imparcial, não concedendo nenhum favoritismo (v. 11);
(6) a pena total será contabilizada a partir dos diferentes níveis de iluminação
desfrutados por diferentes classes e tipos de pessoas (vv. 11-15);
(7) a sentença será executada por Jesus Cristo (v. 16).
A partir dessa breve análise (que exibe o quanto a passagem abrange), torna-se
bastante evidente que o apóstolo não estava dando a conhecer o caminho da salvação ao
declarar “o qual recompensará cada um segundo suas obras; a saber: A vida eterna aos
que, com perseverança em fazer o bem, procuram glória, honra e incorrupção” (Romanos
2:6-7). Assim, longe de afirmar que pecadores conseguiriam obter a felicidade eterna
através de um bom comportamento ou da obediência a Deus, seu propósito era exatamente
o contrário: mostrar o que a santa Lei de Deus exige dos homens, e que esta exigência
permaneceria no Dia do Juízo. Visto que a natureza depravada da humanidade torna
impossível a qualquer homem, judeu ou gentio, prestar obediência perfeita e contínua à Lei
divina, torna-se visível a total desesperança da raça humana e é claramente testemunhada
a sua total necessidade de voltar-se de si e olhar para a justiça de Deus em Cristo.
Outra passagem que, quando não observada seu escopo, resulta em falsa doutrina é
1 Coríntios 3:11-15. Ela frequentemente é utilizada para sustentar a perigosa ilusão de que
há uma categoria de cristãos genuínos que perderam toda a “recompensa” para o futuro,
não tendo boas obras consideradas; e que, ainda assim, entrarão no Céu. Tal ideia é
extremamente insultante para o Espírito Santo, pois afirma que Ele concede o milagre da
graça à alma, habita a pessoa, mesmo que não haja nenhum fruto espiritual para provar.
Tal ideia grotesca é totalmente contrária à analogia da fé, pois Efésios 2:10 nos diz que
aqueles a quem Deus salva pela graça através da fé são “feitura dele, criados em Cristo
Jesus para boas obras”. Aqueles que não andam em boas obras não são salvos, pois “a fé
sem obras é morta” (Tiago 2:20). A Escritura declara: “Deveras há uma recompensa para
o justo” (Salmos 58:11), de modo que “cada um [regenerado] receberá louvor de Deus” (1
Coríntios 4:5), e certamente não seria esse o caso se alguns deles não fossem nada senão
pepinos plantados na terra.
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Essa interpretação não somente desonra a Deus e vai contra todo o ensino da
Escritura como também é refutada pelo próprio contexto. Para compreendermos 1 Coríntios
3:11-15, os versos 1-10 devem ser cuidadosamente analisados — de modo que
estabeleçamos o assunto sobre o qual Paulo trata. No início do capítulo 3, o apóstolo
retorna à acusação que havia feito contra os coríntios no capítulo 1:11, onde ele os reprova
por oporem um servo de Deus contra outro, o que resultou em divisões — principal razão
para haver escrito a epístola. No capítulo 3:3, ele aponta que essa conduta evidenciava a
carnalidade daqueles homens, e os lembra de que tanto ele quanto Apolo eram nada “senão
ministros” (v. 5). Paulo havia apenas plantado e Apolo regado — foi Deus quem deu o
crescimento. Uma vez que nenhum deles era “alguma coisa” a menos que Deus
abençoasse seus esforços (v. 7), que loucura seria formar um ídolo de meros instrumentos!
Assim, é evidente, além de qualquer dúvida, que os versos iniciais de 1 Coríntios 3 tratam
do ministério oficial dos servos de Deus. É mais claro ainda no grego, a palavra “homem”
não ocorre em nenhum na passagem, “todo homem” sendo literalmente “cada um”, isto é,
da classe especial a que se refere.
O mesmo tema é abordado no verso 8. Embora haja diversidade no trabalho dos
servos de Deus (um é feito evangelista; outro, doutor), ainda assim eles receberam uma
missão do mesmo Mestre e têm objetivos em comum a respeito do bem-estar das almas.
Por isso, é pecado e loucura exaltar um servo acima do outro, ou instá-los para que
disputem entre si. Ainda que Cristo distribua dons diferentes a seus servos e os tenha
repartindo em diversos ministérios, “cada um receberá o seu galardão”. O próprio edifício é
de Deus e os ministros, seus trabalhadores (v. 9). No verso 10, Paulo se refere ao
“fundamento” ministerial que ele havia exercido (cf. Efésios 2:20), e o que se segue diz
respeito ao material utilizado pelos construtores que vieram após ele. Se esse material (a
pregação do evangelho) honrou a Cristo e edificou a santos, eles iriam suportá-los e seriam
recompensados. Mas, se, em vez disso, o pregador usou para seus temas o aumento da
criminalidade, a ameaça da bomba, as últimas ações dos judeus, etc., como lixo sem
qualquer valor seria queimado no dia vindouro e seria recompensado. Assim, é os materiais
usados por pregadores em suas ministrações públicas, e não a caminhada dos cristãos
privados, o que está aqui em vista.
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43
Capítulo 6
________________________________________
A palavra “interpretação” tem, nesse contexto, tanto um significado mais rigoroso (ou
estrito) como mais amplo (ou livre). No primeiro sentido, significa extrair a força gramatical
da passagem; no segundo, explicar seu significado espiritual. Se o expositor se limitar de
forma rígida às regras técnicas de exegese, ainda que tenha serventia para o acadêmico,
ele será de pouco proveito para o povo simples de Deus. Dissertar a respeito das
propriedades químicas de um alimento não saciará a fome do homem faminto, nem
tampouco traçar a raiz das palavras no grego e hebraico (algo necessário, mas precisa
estar em seu devido lugar) deixará o cristão melhor habilitado a combater o bom combate
da fé. Isso, por um lado, não quer dizer que desprezamos o conhecimento acadêmico, nem,
por outro, que apoiamos aqueles que dão lugar à imaginação ao manusearem a Palavra de
Deus. Em vez disso, queremos dizer que o principal objetivo do expositor deve ser o de unir
a verdade aos corações de seus ouvintes ou leitores — ele deve demonstrar que o primeiro
sentido pode ter um poder vivificante, transformador e edificante sobre o segundo.
Em artigos anteriores dessa série, tem-se explicado que a tarefa do intérprete é agir
conforme Neemias 8:8, em que é dito: “E leram no livro, na lei de Deus; e declarando, e
explicando o sentido, faziam que, lendo, se entendesse”; para tanto, o pregador precisa,
semanalmente, investir horas em estudo particular. Cada palavra do texto — a menos que
usá-la de forma contrária esteja claro na passagem analisada — deve receber seu
significado exato e preciso, de acordo com seu uso em toda a Escritura. De outro modo, o
expositor estaria sendo descompromissado, e exporia os oráculos de Deus não por seus
próprios termos, mas com ideias vãs e imaginações criadas pelo homem. As leis da
linguagem não devem ser violadas ou o significado das palavras alterado para atender
nossos propósitos. Não iremos diminuir o verdadeiro poder e significado de quaisquer
termos, mas explicá-los através de princípios íntegros, e não por construções forçadas ou
evasões jesuíticas.
A tarefa do intérprete é determinar, por rigorosa investigação exegética, o sentido
exato das palavras usadas pelo Espírito Santo e, na medida do possível, transmitir os
pensamentos de Deus em Sua própria linguagem. É também verificar e determinar o
significado exato dos termos utilizados na Sagrada Escritura e cuidadosamente evitar que
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opiniões pessoais interfiram em seu dever. O intérprete não pode inserir nada que é seu,
mas ele deve, simplesmente, empenhar-se diligentemente para dar o verdadeiro sentido de
cada passagem analisada. Por um lado, ele não deve ignorar, ocultar ou reter nada do
texto; por outro, não deve acrescentar ou manipular algo para atender aos seus próprios
caprichos. A Escritura deve ser exposta a fim de falar por si mesma, e isso ocorre somente
à medida que o pregador anuncia seu real significado. Ele não deve somente explicar seus
termos, mas também a natureza das ideias que eles expressam; caso contrário, ele seria
capaz de fazer uso dos termos bíblicos e ainda assim dar-lhes um sentido antibíblico. Pode-
se descobrir com precisão o significado de cada palavra em uma passagem e, no entanto,
por algum erro contextual ou por qualquer inclinação do próprio autor, ter um entendimento
errado a respeito do que a passagem realmente ensina.
Um descuido que não seria tolerado em qualquer outra circunstância, infelizmente, é
livremente permitido quando cometido em relação à Bíblia. Artistas que são muito
minuciosos na escolha de suas cores ao pintar um objeto natural são muitas vezes muito
negligentes quando buscam fazer um retrato santo. Assim, a arca de Noé é representada
como tendo uma série de janelas em seus lados, enquanto tinha apenas uma, e no topo! A
pomba que veio a ele depois do dilúvio ter diminuído é retratada com um ramo de oliveira
em seu bico, em vez de uma “folha” (Gênesis 8:11)! O bebê Moisés na arca de juncos é
descrito com um sorriso encantador em seu rosto, em vez de lágrimas (Êxodo 2:6)! Que
nenhum tal desrespeito criminoso pelos detalhes da Sagrada Escritura caracterizem o
expositor. Em vez disso, deixe o máximo cuidado e dores serem tidos para garantir a
precisão, por examinarem cada detalhe, pesando cada jota e til. A palavra usada em
“examinai as escrituras” (João 5:39) significa diligentemente rastrear, como o caçador faz
com o rastro dos animais. O trabalho do intérprete é anunciar o sentido e não apenas o som
da Palavra.
Ao enumerar, descrever e ilustrar algumas das leis ou regras que devem reger o
intérprete, nós já consideramos: Em primeiro lugar, a necessidade de reconhecer e ser
regulado pela interrelação e interdependência entre o Antigo e o Novo Testamentos. Em
segundo lugar, a importância e a utilidade de observar como as citações a partir do Antigo
Testamento são feitas no Novo: a maneira pela qual e fins para os quais são citadas. Em
terceiro lugar, a absoluta necessidade de conformar estritamente todas as nossas
interpretações à analogia geral da fé, ou seja, cada verso deve ser explicado em plena
harmonia com esse sistema da Verdade que Deus nos revelou e que qualquer exposição
é inválida se se opõe o que é ensinado em outras partes da Bíblia. Em quarto lugar, a
necessidade de prestar muita atenção a todo o contexto de qualquer passagem sob
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consideração. Em quinto lugar, a importância de determinação do escopo de cada
passagem, e o aspecto particular da verdade aí apresentada.
Há muito no Sermão do Monte que ilustra a força dessa regra, pois muitas das suas
demonstrações foram gravemente mal interpretadas pela falha em perceber o seu alcance
ou propósito. Assim, quando o nosso Senhor declarou: “Ouvistes que foi dito aos antigos:
Não cometerás adultério. Eu, porém, vos digo, que qualquer que atentar numa mulher para
a cobiçar, já em seu coração cometeu adultério com ela” (Mateus 5:27-28); tem sido suposto
que Ele estava estabelecendo um padrão mais elevado de pureza moral que o enunciado
no Sinai. Mas um tal conceito está em desacordo direto com seu propósito. Após
solenemente afirmar (v. 17) que, longe de seu ser sua missão destruir a lei ou os profetas,
Ele tinha vindo para cumpri-los (ou seja, aplicar e realizar as suas exigências), e por certo
Ele não se colocaria imediatamente contra o seu ensino. Não, a partir do verso 21 em diante
Ele estava empenhado em anunciar a justiça que Ele exigia dos cidadãos do Seu reino,
que ultrapassava a justiça “dos escribas e fariseus”, que defendiam os dogmas dos rabinos,
os quais tinham “invalidado o mandamento de Deus” por suas tradições (Mateus 15:6).
Cristo não disse: “Ouvistes que Deus disse dito no Sinai”, mas “Ouvistes que foi dito
aos antigos”, o que torna inequivocamente claro que Ele estava se opondo ao ensinamento
dos anciãos, que haviam restringido o Sétimo Mandamento do Decálogo ao ato de relações
sexuais ilegais com uma mulher casada; insistindo que isso exigia conformidade das
afeições internas, proibindo todos os pensamentos e desejos impuros do coração. Há muito
em Mateus 5-7 que não pode ser corretamente entendido a menos que o principal objetivo
e propósito do nosso Senhor nesse discurso sejam claramente percebidos; caso não seja
assim, as suas demonstrações mais claras se tornam mais ou menos obscuras e suas
ilustrações mais pertinentes parecem irrelevantes. Não era o ensino real da lei e dos
profetas, que Cristo refutou aqui, mas as conclusões errôneas que os mestres religiosos
tinham extraído e as falsas noções que foram formadas com base nelas, e que eram tão
dogmaticamente anunciadas naquele tempo. O gume afiado da espada do Espírito tinha
sido anulado pelo fato dos rabinos haverem rebaixado Seus preceitos, impondo sobre eles
sua própria interpretação o que os tornava desagradáveis para os não-regenerados.
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não
resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (vv.
38-39) fornece outro exemplo da necessidade de determinar a abrangência de uma
passagem antes de tentar explicá-la. Pela falha em fazer assim, muitos têm perdido a força
desse contraste. Tem sido suposto que o nosso Senhor estava aqui ordenando uma norma
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de conduta mais misericordiosa do que era exigido sob a economia mosaica; no entanto,
se o leitor voltar para Deuteronômio 19:17-21, encontrará que esses versos davam
instruções aos “juízes” de Israel; essas instruções não deviam ser regidas pelo sentimento,
mas para administrar a justiça estrita ao malfeitor: “olho por olho “, etc. Mas esse estatuto,
que pertence apenas ao magistrado impor como penalidade judicial, havia sido pervertido
pelos fariseus, dando-lhe um carácter geral, ensinando assim, que cada homem deveria
fazer cumprir a lei com suas próprias mãos. Nosso Senhor aqui proibiu a prática da
vingança pessoal, e ao fazê-lo manteve o claro ensino do Antigo Testamento (veja Êxodo
23:4-5; Levítico 19:18 e Provérbios 24:29, 25:21-22, que proibiam expressamente o
exercício de malícia e retaliação pessoal).
“Todo aquele, pois, que escuta estas minhas palavras, e as pratica, assemelhá-lo-ei
ao homem prudente, que edificou a sua casa sobre a rocha; e desceu a chuva, e correram
rios, e assopraram ventos, e combateram aquela casa, e não caiu, porque estava edificada
sobre a rocha” (Mateus 7:24-25). Quantos sermões foram lidos nesses versos, os quais
não estavam lá, e falharam tristemente em anunciar o que está neles, por não
compreenderem o seu escopo. Ali, Cristo não estava envolvido no anúncio do Evangelho
da graça de Deus e revelando a Si mesmo como o único fundamento da aceitação do
pecador, mas estava fazendo uma aplicação prática e perscrutadora do sermão que Ele
estava aqui concluindo.
O “pois” no início indica que Ele estava extraindo uma conclusão de tudo o que havia
dito anteriormente. Nos versos precedentes, Cristo não estava descrevendo negociantes
de méritos ou falando contra aqueles que confiavam em boas obras e realizações religiosas
para a sua salvação, mas estava exortando seus ouvintes a entrarem pela porta estreita
(vv. 13-14), alertando contra os falsos profetas (vv. 15-20), denunciando uma profissão de
fé vazia. No verso imediatamente anterior (v. 23), longe de se apresentar como o Redentor,
ternamente atraindo os pecadores, Ele é visto como o Juiz, dizendo aos hipócritas: “Apartai-
vos de mim, vós que praticais a iniquidade”.
Em vista do que acaba de ser ressaltado, esse seria, no mínimo, um lugar estranho
para Cristo introduzir o Evangelho e anunciar que Sua própria obra consumada era o único
fundamento de salvação sobre o qual os pecadores deveriam descansar as suas almas.
Isso não somente não daria nenhum significado ao “pois” introdutório, mas não seria
coerente com o que se segue imediatamente, onde, em vez de apontar para a necessidade
de confiar em Seu sangue expiatório, Cristo mostrou quão indispensável é que nós
obedeçamos aos Seus preceitos. Verdadeiramente não há redenção para qualquer alma,
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senão por meio da “fé no seu sangue” (Romanos 3:25), mas isso não é sobre o que Ele
estava aqui tratando. Antes, Ele estava insistindo que nem todos os que lhe dizem: “Senhor,
Senhor”, entrarão em Seu reino, mas “aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos
céus” (v. 21). Em outras palavras, Ele estava testando a profissão de fé, exigindo a
realidade de que a fé genuína produzirá boas obras. Aqueles que se julgam estar confiando
salvificamente no sangue do Cordeiro enquanto ignoram os Seus mandamentos estão
fatalmente enganados sobre si mesmos. Aqui, Cristo não compara o que ouviu e creu em
Sua palavra a um homem prudente que construiu a sua casa seguramente sobre uma
rocha, mas sim aquele que “ouve e as cumpre” — como no verso 26, o que constrói sobre
a areia é aquele que ouve suas palavras “e não as cumpre”.
“Concluímos, pois, que o homem é justificado pela fé sem as obras da lei” (Romanos
3:28); “Vedes então que o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé” (Tiago
2:24). A menos que o propósito de cada escritor seja claramente apreendido, essas duas
declarações contradizem uma a outra. Romanos 3:28 é uma conclusão do que tinha sido
anunciado nos versos 21-27, a saber, toda vanglória diante de Deus se torna impossível
pelo método divino da salvação. Pela própria natureza do caso, se a justificação diante de
Deus é pela fé, então deve ser somente pela fé, sem a mistura de qualquer mérito nosso.
Tiago 2:24 como é claro a partir dos versos 17, 18 e 26, não está tratando de como o
pecador obtém a aceitação diante de Deus, mas como tal pecado evidencia a sua
aceitação. Paulo estava refutando aquela tendência legalista que leva os homens confiarem
em e “estabelecerem a sua própria justiça” pelas obras; Tiago estava lutando contra esse
espírito de Antinomianismo licencioso que faz com que outros pervertam o Evangelho e
insistam que as boas obras não sejam essenciais para qualquer finalidade. Paulo estava
refutando negociadores de méritos, que repudiavam a salvação somente pela graça; Tiago
afirmou que a graça opera pela justiça e transforma as pessoas, mostrando a inutilidade de
uma fé morta que nada produz além de uma profissão jactanciosa. O fiel servo de Deus
sempre alternará em advertir os seus ouvintes contra o legalismo por um lado, e contra a
licenciosidade, por outro.
6. A necessidade de interpretação da Escritura pela Escritura. O princípio geral é
expresso nas palavras bem conhecidas: “comparando as coisas espirituais com as
espirituais” (1 Coríntios 2:13), pois enquanto a afirmativa anterior se refere mais
especificamente à inspiração divina pela qual o apóstolo ensinou, como o porta-voz
autoritativo do Senhor, ainda assim, os dois versos 12 e 14 tratam da compreensão das
coisas espirituais, e, portanto, nós consideramos que a última afirmativa do verso 13 tem
uma força dupla. A palavra grega traduzida como “comparando” é usada na tradução da
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Septuaginta do Velho Testamento usualmente para expressar o ato de interpretar sonhos
e enigmas, e C. Hodge parafraseia: “comparando as coisas espirituais com as espirituais”
por “explicando as coisas do espírito nas palavras do espírito”, indicando que a palavra
“espiritual” não tem substantivo relacionado com ela, e, portanto, mais naturalmente
concorda com o termo “palavras” da frase anterior. Por estas razões, consideramos que 1
Coríntios 2:13 enuncia uma regra muito valiosa e importante para a compreensão e
interpretação da Palavra de Deus, ou seja, que uma parte dela deve ser explicada por outra,
pois a comparação das coisas espirituais serve para iluminar e ilustrar uma e outra, e,
assim, a sua perfeita harmonia é demonstrada. Algo mais do que um conhecimento confuso
ou vago das Escrituras deve ser buscado: a verificação de que uma parte da verdade está
em pleno acordo com outras partes torna manifesta a sua unidade — como as cortinas do
tabernáculo eram ligadas entre si por laçadas.
Muitíssimo mais do que qualquer livro não-inspirado, a Bíblia é um volume
autoexplicativo, não só porque registra a realização de suas promessas e o cumprimento
de suas profecias, não só porque seus tipos e antítipos mutuamente revelam uns aos
outros, mas, porque todas as suas verdades fundamentais podem ser descobertas por meio
dos seus próprios conteúdos, sem referência a qualquer coisa ab extra ou fora de si mesma.
Quando uma dificuldade for experimentada em uma passagem, ela pode ser resolvida por
uma comparação e análise das outras passagens, onde as mesmas palavras ou outras
semelhantes ocorrem ou onde os mesmos assuntos, ou semelhantes, são tratados de
forma muito detalhada ou explicada da forma mais clara. Por exemplo, aquela expressão
de vital importância “a justiça de Deus” em Romanos 1:17 — todos os outros lugares onde
ela ocorre nas epístolas de Paulo devem ser cuidadosamente ponderadas antes que
possamos ter certeza de seu significado exato, e tendo feito isso, não há necessidade de
consultar autores pagãos. Isso não deve ser feito somente por observar cada palavra, mas
as suas partes e derivados, adjuntos e cognatos, devem ser examinados em todos os
casos, pois, com frequência, assim uma luz será lançada sobre a mesma. Que Deus
demanda que estudemos a Sua Palavra dessa forma, é evidente a partir fato de que
nenhum sistema de classificação ou arranjo de informação foram fornecidos a nós sobre
qualquer de seus temas.
Os principais temas tratados nas Escrituras são apresentados a nós mais ou menos
fragmentados, sendo espalhados por suas páginas e revelados sob diversos aspectos,
alguns clara e completamente, outros mais remota e laconicamente: em conexões
diferentes e com diferentes adições nas diversas passagens onde elas ocorrem. Isto foi
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designado por Deus em Sua multiforme sabedoria para nos fazer examinar a Sua Palavra.
É evidente que se quisermos apreender totalmente a Sua mente revelada sobre qualquer
assunto particular, devemos coletar e reunir todas as passagens em que tal assunto é
advertido, ou em que um pensamento ou sentimento similar é expresso; e por esse método,
podemos ter a certeza de que se nós conduzirmos a nossa investigação num espírito reto,
e com diligência e perseverança, chegaremos a um conhecimento claro da Sua vontade
revelada. A Bíblia é um pouco como um mosaico, cujos fragmentos estão espalhados aqui
e ali através da Palavra, e esses fragmentos devem ser reunidos por nós e cuidadosamente
montados, se quisermos obter a imagem completa de qualquer um dos seus inúmeros
temas. Há muitas passagens nas Escrituras que podem ser compreendidas apenas pelos
esclarecimentos e amplificações fornecidas por outras passagens.
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Capítulo 7
________________________________________
Contra as nossas concepções equivocadas de qualquer parte da Sua Verdade, Deus,
em Sua graça e sabedoria, plenamente nos supriu ao nos conceder uma grande variedade
de termos sinônimos e diferentes modos de expressão. Assim como os nossos variados
sentidos, embora não sejam perfeitos, são eficazes para transmitir à nossa mente uma
impressão real do mundo exterior por meio de sua operação conjunta, desse modo as
comunicações diferentes e complementares de Deus através dos muitos escritores das
Escrituras nos permitem rever as nossas primeiras impressões e ampliar nossa visão sobre
as coisas divinas, ampliando o horizonte da verdade e nos permitindo obter uma concepção
mais adequada da mesma. O que um escritor expressa em linguagem figurativa, outro
apresenta em palavras simples. Enquanto um profeta evidencia a bondade e misericórdia
de Deus, outro enfatiza a Sua severidade e justiça. Se um evangelista apresenta as
perfeições da humanidade de Cristo, outro torna proeminente a Sua Divindade; se um O
retrata como o Servo humilde, outro revela-O como o Rei majestoso. Um apóstolo insiste
sobre a eficácia da fé, em seguida, outro mostra o valor do amor, enquanto um terceiro
lembra-nos que a fé e o amor são apenas palavras vazias, a menos que eles produzem
frutos espirituais. Assim, a Escritura exige ser estudada como um todo, e suas partes devem
ser comparadas com as outras, se quisermos obter uma compreensão adequada da
revelação divina. Muito no Novo Testamento é ininteligível quando separado do Antigo e
não poucas coisas nas Epístolas exige os Evangelhos e os Atos para sua elucidação.
Mais especificamente, a importância de comparar Escritura com Escritura aparece na
confirmação que é oferecida. Não que elas exijam qualquer tipo de autenticação, pois são
a Palavra dAquele que não pode mentir, e devem ser recebidas como tal, por um
consentimento sem reservas à sua autoridade divina. Não, antes, a nossa fé nelas devem
ser o mais firme e totalmente estabelecida. Como o sistema de dupla entrada na
contabilidade fornece uma verificação segura para o auditor, assim, pelas bocas de duas
ou três testemunhas a Verdade é estabelecida. Assim, encontramos nosso Senhor
empregando esse método em João 5, tornando manifesto a inescusável incredulidade dos
judeus em Sua divindade, apelando para as diferentes testemunhas que atestaram o
mesmo (vv. 32-39). Assim, Seu apóstolo na sinagoga de Antioquia, ao estabelecer o fato
de Sua ressurreição, não se contentou em apenas citar o Salmo 2:7 como prova, mas
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apelou também ao Salmo 16:10 (Atos 13:33-36). Assim também em suas Epístolas: um
exemplo notável disso é encontrado em Romanos 15, onde, depois de afirmar que “Jesus
Cristo foi ministro da circuncisão para a verdade de Deus, para confirmar as promessas
feitas aos pais”, acrescentou, “e para que os gentios glorifiquem a Deus pela sua
misericórdia”, citando o Salmo 18:49, como prova; porém, uma vez que esse era um ponto
controvertido entre os judeus, acrescentou mais uma prova, observe o seu “E mais uma
vez” no início de versos 10, 11 e 12. Assim também “por duas coisas imutáveis [a promessa
e o juramento de Deus]... tenhamos a firme consolação” (Hebreus 6:18).
As Escrituras necessitam ser comparadas com Escrituras para fins de elucidação. “Se
o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer; e se tiver sede, dá-lhe água para beber;
porque assim lhe amontoarás brasas sobre a cabeça; e o Senhor to retribuirá” (Provérbios
25:21-22). Os comentaristas são quase igualmente divididos entre duas visões
completamente diferentes sobre o que é representado pela expressão figurativa “brasas”
sendo amontoadas sobre a cabeça de um inimigo, quando o tratamos o gentilmente; uma
parte argumenta que isso significa o agravamento de sua culpa, outros insistem que isso
significa a destruição de um espírito de inimizade nele e a conquista de sua boa vontade.
Ao comparar cuidadosamente o contexto em que essa passagem é citada em Romanos
12:20, a controvérsia é terminada, pois deixa claro que a última é a verdadeira
interpretação, pois o espírito do Evangelho não ordena qualquer ação que garanta a
desgraça de um adversário. Ainda assim, um apelo ao Novo Testamento não deve ser
necessário a fim de expor o erro da outra explicação, pois tanto a Lei como o Evangelho
ordena o amor ao próximo e a bondade para com um inimigo. Como João nos diz em sua
primeira epístola, quando buscar nos inculcar a lei do amor, que ele não estava dando um
“novo mandamento”, mas um mandamento que eles haviam recebido desde o início; mas
que agora era aplicado por meio de um novo exemplo e motivo (2:7-8).
“E não podia fazer ali nenhuma obra maravilhosa; somente curou alguns poucos
enfermos, impondo-lhes as mãos” (Marcos 6:5). Alguns Arminianos são tão determinados
em negar a onipotência de Deus e a invencibilidade de Sua vontade que eles têm apelado
para essa passagem como prova de que o poder do Seu Filho encarnado era limitado, e
que havia ocasiões em que os Seus desígnios misericordiosos eram frustrados pelo
homem. Mas uma comparação da passagem paralela em Mateus 13:54-58, ao mesmo
tempo evidencia a mentira da afirmação de uma tal blasfêmia, pois ali somos informados
que “e não fez ali muitas maravilhas, por causa da incredulidade deles”. Assim, não foi
qualquer limitação em Si mesmo, mas algo neles que O deteve. Em outras palavras, Ele
agiu por um senso de adequação à circunstância. A ênfase tanto em Marcos 6:5 quanto em
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Mateus 13:58 está na palavra “ali”, pois, como mostra o contexto, isso ocorreu em Nazaré,
onde Ele foi desprezado. Realizar obras maravilhosas diante daqueles que O viam com
desprezo seria, a princípio, lançar pérolas aos porcos; assim como seria inadequado
realizar milagres para satisfazer a curiosidade de Herodes (Lucas 23:8); em outros lugares
Ele fez muitas obras sobrenaturais. Em Gênesis 19:22, o Senhor não pôde destruir Sodoma
até que Ló fugisse dali, enquanto em Jeremias 44:22, Ele “não podia mais suportar” as
maldades de Israel; isso foi adequação moral, não incapacidade física.
A comparação é útil também para a finalidade de amplificação. Uma Escritura não
somente apoia e ilumina a outra, mas, muitas vezes, uma passagem suplementa e amplia
a outra. Um exemplo simples, embora impressionante, é visto no que é conhecido como a
Parábola do Semeador, mas que talvez possa ser mais apropriadamente designada de: A
Parábola do Grão e dos Solos. A importância profunda desta parábola é intimada a nós
pelo Espírito Santo por Ele ter movido Mateus, Marcos e Lucas a registrarem a mesma. Os
três relatos contêm algumas variações marcantes, e eles precisam ser cuidadosamente
comparados a fim de obtermos o retrato completo estabelecido neles. O seu âmbito é
revelado em Lucas 8:18: “Vede, pois, como ouvis”. Não fala do ponto de vista da realização
dos conselhos divinos, mas de pôr em prática a responsabilidade humana. Isto é feito
inequivocamente claro a partir do que é dito sobre o que foi semeado em boa terra: o
frutífero ouvinte da Palavra. Cristo não o descreve como alguém “em quem uma obra da
graça divina é operada”, ou “cujo coração havia se tornado receptivo através de operações
sobrenaturais do Espírito”, mas sim como aquele que recebeu a Palavra em “um honesto e
bom coração”. Verdade, de fato, é que a obra vivificante do Espírito deve ser previamente
realizada em qualquer um assim receba a Palavra, de modo a tornar-se frutífero (Atos
16:14), mas esse não é o aspecto particular da verdade que nosso Senhor estava aqui
apresentando; em vez disso, Ele estava mostrando que o próprio ouvinte deve buscar a
graça de frutificar, se ele deseja dar fruto para a glória de Deus.
O próprio semeador é quase perdido de vista(!). Quase todos os detalhes da parábola
tratam dos vários tipos de solo no qual a semente caiu, considerando-os ou improdutivos
ou produtivos apenas de alguma frutificação. Nisso, Cristo apresentou a recepção que é
dada à pregação da Palavra. Ele comparou o mundo a um campo, que é dividido em quatro
partes, de acordo com os seus diferentes tipos de solo. Em Sua interpretação, Ele definiu
os diversos solos como representando diferentes tipos de pessoas que ouvem a pregação
da Palavra, e solenemente cabe a cada um de nós diligentemente examinarmos a nós
mesmos, para que possamos determinar com certeza a que tipo nós pertencemos. Esses
quatro tipos — a partir das descrições dadas sobre os solos e das explicações que Cristo
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forneceu sobre eles — podem ser respectivamente chamados de: o coração duro, o
coração raso, o coração dividido e o coração íntegro. No primeiro, a semente não obtém
sustentação; no segundo, ela não desenvolve nenhuma raiz; no terceiro, não havia nenhum
espaço; no quarto, foi encontrado tudo o que de bom faltou nos ouros três, e, portanto,
houve crescimento. Estes mesmos quatro tipos foram encontrados em todas as gerações,
entre os que se sentaram sob a pregação da Palavra de Deus, e eles provavelmente
existem em cada igreja e assembleia hoje na Terra; não é difícil distingui-los, se medirmos
os Cristãos professos por aquilo que o Senhor afirma sobre cada um.
O primeiro solo é o ouvinte “junto ao caminho”, cujo coração é totalmente receptivo,
como a estrada é batida e endurecida pelo tráfego do mundo. A semente não penetra em
tal solo, e “as aves do céu” a arrebatam. Cristo explicou isso como sendo um retrato de
alguém que “não compreende a palavra” (ainda que seja seu dever cuidar de fazê-lo – 1
Coríntios 8:2), e o maligno tira a palavra do seu interior; Lucas 8 acrescenta: “para que não
se salvem, crendo”. O segundo é o ouvinte “solo rochoso”, ou seja, aquele solo que possui
uma base de rochas, mas uma fina camada de terra por cima. Uma vez que não haverá
terra profunda a semente não poderá desenvolver suas raízes, e o sol escaldante a fará
definhar. Esta é uma representação do ouvinte superficial, cujas emoções são despertadas,
mas que carece de qualquer exame de consciência e convicções profundas. Ele recebe a
Palavra com uma “alegria” natural, mas (no relato de Mateus) “chegada a angústia e a
perseguição, por causa da palavra, logo se ofende”. Estes são os que não têm raiz em si
mesmos, e consequentemente (como o relato de Lucas nos informa) “apenas creem por
algum tempo, e no tempo da tentação se desviam”. Eles nada têm além de uma fé
temporária e evanescente; muito tememos ser esse o caso da grande maioria dos
“convertidos” em missões especiais e nas “campanhas evangelísticas”.
O terceiro, ou “solo o espinhoso”, é o ouvinte mais difícil de identificar, mas o Senhor
graciosamente forneceu uma ajuda completa quanto a isso, aprofundando os detalhes de
Suas explicações sobre o que os “espinhos” significam. Os três relatos dizem-nos que eles
simples e naturalmente “cresceram”, o que implica que nenhum esforço foi feito para tratar
de removê-los; e todas as três narrativas mostram que eles “sufocaram” a semente ou a
Palavra. O registro de Mateus define os espinhos como “os cuidados deste mundo e a
sedução das riquezas”. Marcos acrescenta: “as ambições de outras coisas, entrando”.
Enquanto Lucas menciona também “os deleitas da vida”. Assim, somos ensinados que há
toda uma variedade de coisas que impedem qualquer fruto que está sendo levado à
perfeição; contra cada uma destas coisas nós precisamos estar muito atentos e em oração.
O ouvinte “solo bom” é aquele que “entende” a Palavra (Mateus 13:23), pois a menos que
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o seu sentido seja compreendido, ela de nada nos aproveita; provavelmente uma
familiaridade experiencial também está incluída. Marcos 4 menciona “recebe-a” (cf. Tiago
1:21), enquanto Lucas 8 descreve esse ouvinte como recebendo a Palavra “em um coração
honesto e bom”, que é aquele que se opõe a toda a presunção carnal e ama a verdade pelo
que ela é, aplicando a Palavra ao seu próprio caso e julgando-se por ela; “a guarda”, preza
e medita sobre ela, atende e obedece-a; e “produz fruto com perseverança”.
Em um capítulo anterior chamamos a atenção para Mateus 7:24-27, como um
exemplo da importância de determinar o alcance de uma passagem. Vamos agora apontar
para a necessidade de compará-la com a passagem paralela em Lucas 6:47-49. Nela os
ouvintes da Palavra são comparados aos construtores sábios e aos tolos. Os primeiros
constroem a sua casa sobre o fundamento da Palavra de Deus. O edifício é construído, e
a esperança é cultivada. A tempestade que veio sobre a casa é a tribulação ou prova a que
é submetida. Apenas Lucas começa seu relato dizendo que o homem sábio veio a Cristo,
para aprender dEle. Sua sabedoria apareceu no problema que ele teve e as dores que
sofreu a fim de encontrar uma base segura sobre a rocha. O relato de Lucas acrescenta
que ele “cavou profundo”, o que se refere à sua seriedade e cuidado, e significa que ele
buscou espiritualmente aproximar-se das Escrituras e de forma diligente examinou seu
coração e profissão; esse cavar fundo está em proposital contraste com “porque não tinha
terra profunda” (Marcos 4:5) do ouvinte “solo rochoso”. Apenas Lucas usa a expressão “com
ímpeto” para descrever a violência da tempestade pela qual a casa foi provada: a sua
profissão sobreviveu aos ataques do mundo, da carne e do Diabo, e ao escrutínio de Deus
no momento da morte; o que prova que ele era um cumpridor da Palavra e não apenas um
ouvinte (Tiago 1:22). Inútil é a confissão dos lábios a menos que seja confirmada pela vida.
A comparação de Escritura com Escritura é valiosa para fins de harmonização ou para
a preservação do equilíbrio da Verdade, evitando assim que nos tornemos desequilibrados.
Uma ilustração disso é encontrada em conexão com o que é chamado de “a grande
comissão”, um registro tríplice desta, com variações notáveis, é dado no último capítulo de
cada um dos Evangelhos Sinópticos. A fim de revelar um conhecimento correto ou total da
completude da ordem que Cristo deu aos Seus servos, em vez de limitar a nossa atenção
para apenas um ou dois destes relatos — como é agora tão frequentemente o caso — os
três relatos precisam ser reunidos. Lucas 24:47, mostra que o dever do ministro é tanto
“que o arrependimento e a remissão dos pecados sejam pregados em seu nome”, quanto
a ordem que os pecadores “creiam nEle”; e Mateus 28:19-20, deixa claro que é dever do
ministro tanto batizar aqueles que creem quanto depois ensiná-los a guardar todas as
coisas que Ele ordenou, como também “pregar o evangelho a toda criatura”. A qualidade é
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ainda mais importante do que a quantidade! Uma das principais razões por que tão poucas
das igrejas Cristãs em terras pagãs são autossuficientes é que os missionários deixaram
muitas vezes de doutrinar e edificar seus convertidos exaustivamente, deixando-os em um
estado infantil, enquanto partem para outros lugares buscando outras pessoas para
evangelizarem.
O não cumprimento desse importante princípio está na base de grande parte da
evangelização defeituosa de nossos dias, em que os perdidos são informados de que a
única coisa necessária para a sua salvação é “crer no Senhor Jesus Cristo”. Outras
passagens mostram que o arrependimento é igualmente essencial: “Arrependei-vos, e
crede no evangelho” (Marcos 1:15), “a conversão a Deus, e a fé em nosso Senhor Jesus
Cristo” (Atos 20:21). É importante notar que, sempre que os dois são mencionados, o
arrependimento sempre vem em primeiro lugar, pois em relação à própria natureza do caso,
é impossível que um coração impenitente creia salvificamente (Mateus 21:32). O
arrependimento é uma compreensão de minha culpabilidade por ser um rebelde contra
Deus, e me desviar dEle e condenar-me. O arrependimento se expressa na tristeza amarga
pelo e ódio ao pecado. Isso resulta em um reconhecimento de minhas ofensas e no
abandono de coração dos meus ídolos (Provérbios 28:13), em um abaixar as armas da
minha guerra e em um abandono sincero de meus maus caminhos (Isaías 55:7). Em
algumas passagens, como Lucas 13:3 e Atos 2:38; 3:19, somente o arrependimento é
mencionado. Em João 3:15 e Romanos 1:16; 10:4, apenas o “crer” é especificado. Por que
é assim? Porque as Escrituras não são escritas como documentos de legisladores, em que
os termos são exaustivamente repetidos e multiplicados. Cada verso deve ser interpretado
à luz das Escrituras como um todo; assim onde somente o “arrependimento” é mencionado,
o “crer” está implícito; e onde somente o “crer” é encontrado, o “arrependimento” é
pressuposto.
7. Declarações breves devem ser interpretadas por outras mais completas. É uma
regra invariável da exegese que, quando algo está mais clara ou completamente definido
por um escritor do que por outro, o último sempre deve ser entendido à luz do primeiro, e o
mesmo se aplica a duas declarações do mesmo pregador ou escritor. Particularmente esse
é o caso com os três primeiros Evangelhos; as passagens paralelas devem ser consultadas,
e a mais curta deve ser interpretada à luz da mais completa. Assim, quando Pedro
perguntou a Cristo: “Senhor, até quantas vezes pecará meu irmão contra mim, e eu lhe
perdoarei? Até sete?”, isto não deve ser considerado como significando que um Cristão
deve tolerar erros e exercer graça à custa da justiça; pois Ele antes havia acabado de dizer:
“Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste
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a teu irmão” [v. 15]. Não, antes a linguagem de Cristo em Mateus 18:22 deve ser explicada
por Sua declaração mais completa em Lucas 17:3-4: “Olhai por vós mesmos. E, se teu
irmão pecar contra ti, repreende-o e, se ele se arrepender, perdoa-lhe. E, se pecar contra
ti sete vezes no dia, e sete vezes no dia vier ter contigo, dizendo: Arrependo-me; perdoa-
lhe”. O próprio Deus não nos perdoa antes que nos arrependamos (Atos 2:38, 3:19)! Se um
irmão não se arrepende, nenhuma malícia deve ser nutrida contra ele; no entanto, ele não
deve ser tratado como se nenhuma ofensa houvesse sido cometida.
Muito dano já foi feito por alguns que, sem qualificação, interpretaram as palavras de
nosso Senhor em Marcos 10:11: “Qualquer que repudiar sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra ela”, sujeitando assim a parte inocente à mesma penalidade da
parte culpada. Mas essa afirmação deve ser interpretada à luz de uma mais completa em
Mateus 5:32: “Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por
causa de fornicação, faz que ela cometa adultério, e qualquer que casar com a repudiada
comete adultério”, repetido por Cristo em Mateus 19:9. Nessas palavras, o único Legislador
de Seu povo propôs uma regra geral: “Todo aquele que repudia sua mulher faz com que
ela cometa adultério”, e então ele colocou uma exceção, ou seja, que onde o adultério
aconteceu ele pode repudiar, e ele pode se casar novamente. Como Cristo ensina a
legalidade do divórcio em razão de infidelidade conjugal, assim Ele ensina que é lícito o
inocente se casar novamente depois de um tal divórcio, sem contrair culpa. A violação dos
votos de casamento rompe o vínculo do casamento, e aquele que manteve os votos
fielmente é, após o divórcio ser obtido, livre para se casar novamente.
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Capítulo 8
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8. É necessário reunir e comparar todas as passagens que tratam do mesmo assunto,
onde os termos cognatos ou diferentes expressões são usadas. Isto é essencial se o
expositor quiser ser preservado de concepções errôneas do mesmo, e para que ele intenda
a mente do Espírito. Tome essas palavras bem conhecidas como um exemplo simples:
“Pedi, e dar-se-vos-á” (Mateus 7:7). Poucos textos foram mais gravemente pervertidos do
que esse. Muitos o têm considerado como uma espécie de cheque em branco, de modo
que ninguém — não importa o seu estado de alma ou seu modo de vida — pode preencher
exatamente com o que lhe agrada, e que, após fazer isto, ele tem apenas que apresentar
o cheque preenchido diante do trono da graça e Deus fica obrigado a honrar isso. Tal
caricatura da verdade não mereceria refutação se atualmente ela não estivesse sendo tão
grandemente alardeada em alguns lugares. Tiago 4:3 declara expressamente sobre alguns:
“Pedis e não recebeis, porque pedis mal”; há alguns que “pedem” e não recebem! E porquê?
Porque a petição deles é carnal, “para o gastardes em vossos deleites”, e, portanto, um
Deus santo lhes nega.
Pedir a Deus em oração é uma coisa; pedir apropriada, razoável, aceitável e
efetivamente é outra coisa completamente diferente. Se queremos verificar como o último
deve ser feito, as Escrituras devem ser examinadas para esse efeito. Assim, a fim de
garantir que Deus nos ouça, devemos nos aproximar de Deus através do Mediador: “E tudo
quanto pedirdes ao Pai em meu nome, Ele vo-lo concederá” (João 16:23). Mas, pedir ao
Pai em Seu nome significa muito mais do que apenas proferir as palavras “Dê-me isto em
o nome de Jesus”. Entre outras coisas, significa pedir na Pessoa de Cristo, como
identificados com e unidos a Ele; pedindo o que é de acordo com Suas perfeições e será
para Sua glória; pedindo o que Ele pediria se estivesse em nosso lugar. Novamente,
devemos pedir com fé (Marcos 11:24), pois Deus não abençoará ninguém por sua
incredulidade. Cristo disse aos Seus discípulos: “Se vós permanecerdes em mim e as
minhas palavras permanecerem em vós, pedireis o que quiserdes, e vos será feito” (João
15:7), aqui mais duas condições são estipuladas. Para receber devemos pedir de acordo
com a vontade de Deus (1 João 5:14), como revelado em Sua Palavra. Que deplorável e
indevido uso tem sido feito de Mateus 7:7 pelo simples fato de não buscarem interpretar
esta passagem à luz de passagens paralelas!
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Outro exemplo de falha nesse ponto é o uso frequente feito de Gálatas 6:15: “Porque
em Cristo Jesus nem a circuncisão, nem a incircuncisão tem virtude alguma, mas sim o ser
uma nova criatura” (ou “nova criação”). É muito adequado e pertinente utilizar esse verso
ao mostrar que nem as ordenanças cerimoniais do Judaísmo nem o Batismo e Ceia do
Senhor do Cristianismo são de qualquer valor para adequar-nos para o recebimento de
nossa herança com os santos na luz. Assim também, embora com muito menos frequência,
somos lembrados de que: “Em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem
valor algum; mas sim a fé que opera pelo amor” (Gálatas 5:6), isto é, da fé que advém da
gratidão a Deus pelo Seu dom inefável, e não por motivos legais, pois essa fé somente
pode ser obtida pelo dom de Deus. Mas quão raramente é citado no púlpito que “a
circuncisão é nada e a incircuncisão nada é, mas, sim, a observância dos mandamentos de
Deus” (1 Coríntios 7:19). Isso diz respeito à nossa submissão à autoridade divina, a nossa
caminhada em sujeição à vontade de Deus, e geralmente isto é omitido. É somente através
da colocação desses três versos lado a lado que obtemos uma visão equilibrada. Não
somos vitalmente unidos a Cristo a menos que tenhamos nascido de novo; não nascemos
de novo, a menos que tenhamos uma fé que opera pelo amor; e nós não temos essa fé
salvífica a menos que isso seja comprovado por uma observância dos mandamentos de
Deus.
É dever do expositor reunir as várias descrições e exemplificações dadas nas
Escrituras de qualquer coisa em particular, ao invés de formular uma definição formal de
sua natureza, pois é desse modo que o Espírito Santo nos ensina a conceber isto. Tome o
simples ato de fé salvífica, e observe as numerosas e mui diferentes expressões usadas
para descrevê-la. Ela é citada como crer no Senhor Jesus Cristo (Atos 16:31), ou repousar
com confiança a alma nEle. Como vir a Ele (Mateus 11:28), o que implica o abandono de
tudo o que se opõe a Ele. Como recebê-lO (João 1:12), enquanto Ele é oferecido
gratuitamente aos pecadores no Evangelho. Como uma fuga para buscar refúgio nEle
(Hebreus 6:18), como o homicida que procura refúgio em uma das cidades previstas para
esse propósito (Número 35:6). Como olhar para Ele (Isaías 45:22). Como o olhar dos
israelitas feridos para a serpente na haste (Números 21:9). Como uma aceitação do
testemunho de Deus, e assim confirmando que Ele é verdadeiro (João 3:33). Como a
entrada em um caminho (Mateus 7:13) ou em uma porta (João 10:9). Como um ato de
rendição completa ou entrega de nós mesmos ao Senhor (2 Coríntios 8:5), como uma
mulher quando se casa com um homem.
O ato da fé salvífica também é apresentado como um chamado ao Senhor (Romanos
10:13), como fez Pedro ao afundar (Mateus 14:30) e o ladrão moribundo. Como confiar em
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Cristo (Efésios 1:13) como o grande Médico, confiando em Sua suficiência para curar as
nossas doenças mortais. Como um descanso no Senhor (Salmos 37:7) como em um
alicerce seguro (Isaías 28:16). Como um ato de apropriação ou de comer (João 6:51) para
satisfazer um doloroso vazio interior. Como um compromisso (2 Timóteo 1:12): como um
homem deposita o seu dinheiro em um banco seguro, assim devemos entregar as nossas
almas nas mãos de Cristo, para o tempo e a eternidade (cf. Lucas 23:46). Como fé no Seu
sangue (Romanos 3:25). Como uma crença na Verdade (2 Tessalonicenses 2:13). Como
um ato de obediência ao santo mandamento de Deus (2 Pedro 2:21), em conformidade com
os termos do Evangelho (Romanos 10:16). Como um amor ao Senhor Jesus Cristo (1
Coríntios 16:22). Como um converter-se ao Senhor (Atos 11:21), o que implica uma
separação do mundo. Como o recebimento do testemunho de Deus (1 João 5:9-10) como
um motivo todo-suficiente de segurança, sem a evidência de um sentimento ou qualquer
outra coisa. Como um tomar da água da vida (Apocalipse 22:17). A maioria destas vinte
expressões é figurativa e, portanto, melhor adequada do que qualquer definição formal para
transmitir à nossa mente um conceito mais vivo do ato da fé salvífica e para preservar-nos
de uma visão unilateral do mesmo.
Muito mal tem sido feito por “neófitos” incompetentes quando se trata do tema da
regeneração, limitando-se a um único termo, “nascer de novo”. Esta é apenas uma das
muitas figuras utilizadas nas Escrituras para descrever esse milagre da graça que é
operado na alma quando essa passa da morte para a vida e é trazida das trevas para a
maravilhosa luz de Deus. É denominado um novo nascimento porque uma vida divina é
comunicada e há o início de uma nova experiência. Mas também é comparada a uma
ressurreição espiritual, que apresenta uma linha muito diferente do pensamento, e a uma
“renovação” (Colossenses 3:10), que indica uma mudança no indivíduo em relação ao que
ele era originalmente. É a pessoa que é divinamente vivificada e não apenas uma “natureza”
que é nascida de Deus: “Necessário vos é nascer de novo” (João 3:7), e não apenas algo
em você deve nascer de novo; “Ele é nascido de Deus” (1 João 3:9). A mesma pessoa que
era espiritualmente morta, estando todo o seu ser alienado de Deus, é então vivificada: todo
o seu ser é reconciliado com Deus. Isto deve ser assim, de outro modo não haveria
nenhuma preservação da identidade do indivíduo. É um novo nascimento do próprio
indivíduo e não de algo nele. A natureza nunca é alterada, mas a pessoa é, relativamente
e não absolutamente.
Se nos limitarmos à figura do novo nascimento quando consideramos a grande
mudança operada em alguém a quem Deus salva, não somente obteremos um conceito
muito inadequado do mesmo, mas um conceito completamente errado. Em outras
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passagens isso é citado como: uma iluminação da mente (Atos 26:13), um minucioso e
convencimento da consciência (Romanos 7:9), a regeneração do coração (Ezequiel 11:19),
uma subjugação da vontade (Salmos 110:3), um levar de nossos pensamentos à sujeição
a Cristo (2 Coríntios 10:5), a lei de Deus escrita sobre o coração (Hebreus 8:10). Em
algumas passagens algo é dito ser removido do indivíduo (Deuteronômio 30:6; Ezequiel
36:26), o amor ao pecado, inimizade contra Deus; enquanto em outras passagens, algo é
comunicado (Romanos 5:5; 1 João 5:20). As figuras da criação (Efésios 2:10), regeneração
(Tito 3:5) e ressurreição (1 João 3:14) também são empregadas. Em algumas passagens
esse milagre parece ser uma coisa concluída (1 Coríntios 6:11; Colossenses 1:12), em
outros, aparece como um processo ainda em curso (2 Coríntios 3:18; Filipenses 1:16).
Embora a obra da graça seja uma, ainda assim é multifacetada. Seu objeto é uma criatura
complexa e sua salvação afeta cada parte de seu complexo ser.
O nascimento físico é a entrada nesse mundo para uma criatura, uma personalidade
completa, a qual antes da concepção não possuía qualquer existência. Mas alguém
regenerado por Deus tinha uma personalidade completa antes dele nascer novamente. A
regeneração não é a criação de um indivíduo que até então não existia, mas a
espiritualização de alguém que já existe, a renovação e reformação de alguém a quem o
pecado incapacitou para a comunhão com Deus, concedendo-lhe uma nova inclinação à
todas as suas faculdades. Tome cuidado para não pensar que o Cristão é composto de
duas personalidades distintas e diversas. A responsabilidade é atribuída ao indivíduo e não
à sua “natureza” ou “naturezas”. Embora tanto o pecado quanto a graça, habitem no santo,
Deus o considera responsável por resistir e subjugar a um e por submeter-se e ser regulado
pela outra. O fato de que esse milagre da graça também é comparado a uma ressurreição
(João 5:25) deve nos impedir de formarmos uma ideia parcial do que é intencionado por
novo nascimento e por “nova criatura”, e de forçar algumas analogias em relação ao
nascimento natural, que outras expressões figurativas não permitem. A grande mudança
interior também é comparada a uma divina “geração” (1 Pedro 1:3), porque a imagem do
Criador é então impressa sobre a alma. Como o primeiro Adão gerou um filho à sua imagem
(Gênesis 5:3), assim também o último Adão tem uma “imagem” (Romanos 8:29) a transmitir
aos Seus filhos (Efésios 4:24).
O que tem sido apontado acima aplica-se com igual força ao assunto da mortificação
(Colossenses 3:5). Este dever Cristão essencial é estabelecido nas Escrituras através de
uma grande variedade de expressões figurativas, e é muito necessário que nós tomemos
o cuidado de reuni-las e compará-las se quisermos ser preservados de perspectivas
defeituosas do que Deus requer de Seu povo nesta importante questão de resistir ao e
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vencer o mal. A mortificação é dita ser como uma circuncisão do coração (Deuteronômio
11:16) e como arrancar o olho direito e cortar a mão direita (Mateus 5:29-30), o que nos dá
a ideia de ser uma coisa dolorosa. É uma negação de si mesmo e um tomar a cruz (Mateus
16:24). É um despojar-se das obras das trevas (Romanos 13:12), um despojar-se do velho
homem (Efésios 4:22), um separar-se de toda imundícia e superfluidade da promiscuidade
(Tiago 1:21), cada um dos quais é necessário antes que possamos nos revestir da
armadura da luz ou do novo homem, ou receber com mansidão a Palavra enxertada, pois
temos de deixar de fazer o mal antes que possamos fazer o bem (Isaías 1:16-17). É um
não fazer nenhuma provisão para a carne (Romanos 13:14), um desfazer do corpo, ou seja,
do pecado (Romanos 6:6; Colossenses 2:11) e trazê-lo em sujeição (1 Coríntios 9:27), um
purificar-nos de toda a imundícia da carne e do espírito (2 Coríntios 7:1), é um abster-se de
toda a aparência do mal (1 Tessalonicenses 5:22), a deixar de lado todo embaraço
(Hebreus 12:1).
9. Igualmente necessário é não separar o que Deus uniu. Por natureza, todos nós
somos propensos a ir para extremos, especialmente aqueles que possuem uma tendência
filosófica em suas mentes, os quais, em busca de unidade de pensamento, estão em grande
perigo de forçar uma unidade para que ela entre na esfera de seu conhecimento limitado.
Para fazer isso, eles são muito propensos a sacrificar um lado ou elemento da verdade em
detrimento a outro. Eu posso ser bastante claro e lógico à custa de ser superficial e não
abrangente. Uma advertência muito solene contra esse perigo foi fornecida pelos judeus
em relação à sua interpretação das profecias messiânicas, pois eles atentarem
exclusivamente para aquelas que anunciavam as glórias de Cristo e negligenciaram
aquelas que prediziam os Seus sofrimentos de modo que até mesmo os próprios apóstolos
foram maldosamente afetados por isso, e foram repreendidos por Cristo em relação a tal
loucura (Lucas 24:25-26). É nesse ponto que o povo de Deus, e em particular os Seus
ministros, precisam ser muito vigilantes. A verdade é dupla (Hebreus 4:12): Cada doutrina
tem o seu elemento correspondente e complementar, todos os privilégios têm a sua
obrigação implícita. Esses dois lados da Verdade não se cruzam entre si, mas correm
paralelos um ao outro: eles não são contraditórios, mas complementares, e ambos devem
ser sustentados por nós, se quisermos ser impedidos de grave erro.
Assim, nunca devemos permitir que a grande verdade da soberania de Deus afaste o
fato da responsabilidade humana. A vontade do Todo-Poderoso é realmente invencível,
mas isso não significa que não somos nada mais do que bonecos inanimados. Não, nós
somos agentes morais, bem como criaturas racionais, e em tudo somos tratados por Deus
como tal. “É necessário que venham escândalos”, disse Cristo, mas Ele imediatamente
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acrescentou, “mas ai daquele homem por quem o escândalo vem” (Mateus 18:7). Aqui as
duas coisas estão unidas: a certeza infalível dos decretos divinos, a culpabilidade e a
criminalidade do agente humano. O mesmo conjunto inseparável aparece novamente na
declaração relativa à morte de Cristo: “A este que vos foi entregue pelo determinado
conselho e presciência de Deus, prendestes, crucificastes e matastes pelas mãos de
injustos” (Atos 2:23). Mais uma vez, o nosso zelo pela doutrina da eleição não deve fazer-
nos ignorar a necessidade de utilizar os meios. Aqueles pensam: “se eu sou eleito, serei
salvo, quer eu me arrependa e confie em Cristo ou não faça nada disso”, estão mortalmente
enganando a si mesmos; prova disto é o que está escrito em 2 Tessalonicenses 2:13: “Mas
devemos sempre dar graças a Deus por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus
elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade”.
Ninguém nunca será salvo até que creia (Lucas 8:12; Hebreus 10:39), e, portanto, todos
devem ser exortados a fazê-lo.
A redenção particular (i.e., Cristo fez expiação somente pelos pecados de Seu próprio
povo) não deve impedir os Seus servos de pregar o Evangelho a toda a criatura e anunciar
que há um Salvador para todos os pecadores que se apegam a Ele, e que os que assim
fazem são salvos do Inferno. Não divida as duas metades de João 6:37: todo aquele que o
Pai dá a Cristo, virá a Ele, ainda assim, cada um deve buscá-lO (Isaías 55:6; Jeremias
29:13). A incapacidade do homem natural não anula sua prestação de contas, pois embora
ninguém possa ir a Cristo, se o Pai não o atrair (João 6:44), sua recusa a vir é altamente
censurável (Provérbios 1:24-31; João 5:40). Também um Cristo dividido não deve ser
apresentado aos pecadores para a sua aceitação. É uma ilusão imaginar que o Seu
sacrifício sacerdotal pode ser recebido enquanto o Seu governo real for recusado ou que
Seu sangue me salvará embora eu despreze o Seu governo. Cristo é “Senhor e Salvador”,
e nessa ordem inalterável (2 Pedro 1:11; 3:2,18), porque temos que abaixar as armas da
nossa guerra contra Ele e tomar o Seu jugo sobre nós a fim de encontrarmos descanso
para a nossa alma. Assim, o arrependimento e a fé são igualmente necessários (Marcos
1:15; Atos 20:21).
Se por um lado a justificação e a santificação devem ser claramente distinguidas, por
outro, elas não devem ser dissociadas (1 Coríntios 1:30, 6:11). “Cristo nunca entra na alma
sozinho. Ele traz o Espírito Santo com Ele, e o Espírito concede dons e graças. Cristo vem
com uma bênção em cada mão: o perdão em uma e a santidade na outra” (Thomas Adams,
1650). No entanto, quão raramente Efésios 2:8-9 é completado pela citação do verso 10!
Novamente, as verdades gêmeas da preservação divina e da perseverança Cristã não
devem ser separadas, pois a primeira é realizada pela instrumentalidade da última e não
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sem ela. Somos de fato “guardados pelo poder de Deus”, assim como “pela fé” (1 Pedro
1:5), e se em 1 João 2:27 [na versão usada pelo autor], o apóstolo assegurou aos santos:
“haveis de permanecer nele”, no verso seguinte ele os exortou a “permanecer nele”; como
Paulo também os exortou aos Filipenses a operarem a sua própria salvação com temor e
tremor, e depois acrescentou: “Porque Deus é o que opera em vós tanto o querer como o
efetuar, segundo a sua boa vontade” (Filipenses 2:13). Balaão desejou morrer a morte dos
justos, mas não estava disposto a viver a vida de um. Meios e fins não devem ser
separados: nunca alcançaremos o Céu, a menos que nós continuemos no único caminho
(o “estreito”) que leva a ele.
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Capítulo 9
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10. O simples negativo, muitas vezes implica, por outro lado, o positivo. Essa é uma
regra muito simples de exegese, mas uma que demanda a atenção do jovem estudante. A
declaração negativa é, naturalmente, aquela em que algo é negado ou onde a ausência de
seu oposto é suposta. No discurso comum o inverso de um negativo geralmente é válido,
como quando nós declaramos: “Eu espero que não chova hoje”, é o mesmo que dizer: “Eu
confio que o tempo permanecerá firme”. Que essa regra ocorre na Escritura é claro a partir
dos inúmeros casos em que a antítese é indicada. “Nem permitirás que o teu Santo veja a
corrupção” é explicado em: “Far-me-ás ver a vereda da vida” (Salmos 16:10-11). “Não
escondi a tua justiça dentro do meu coração”, e depois o lado positivo segue, “apregoei a
tua fidelidade e a tua salvação” (Salmos 40:9-10). “Por isso deixai a mentira, e falai a
verdade cada um com o seu próximo... Aquele que furtava, não furte mais; antes trabalhe”
(Efésios 4:25,28). Muitos outros exemplos poderiam ser dados, mas esses são suficientes
para estabelecer a regra da qual estamos lidando.
Ora, o Espírito Santo nem sempre usa a antítese, contudo, a usa em muitos casos;
vejamos alguns exemplos para que possamos exercitar as nossas mentes em Sua Palavra:
“Não esmagará a cana quebrada, e não apagará o morrão que fumega” (Mateus 12:20),
significa que Ele ternamente cuida dela e a nutre. “A Escritura não pode ser anulada” (João
10:35) isso equivalente a dizer que ela certamente será cumprida. “Sem mim nada podeis
fazer” (João 15:5) implica que, em união e comunhão com Ele “podemos todas as coisas”
(Filipenses 4:13). Aliás, observe como o primeiro serve para definir o último; não significa
que sejamos, então, capazes de realizar milagres, mas, sim, capacitados para darmos fruto!
“Não vos ponhais em jugo desigual com os infiéis” (2 Coríntios 6:14) tem a força de “Saí do
meio deles e apartai-vos”, como o verso 17 mostra. “Não sejamos cobiçosos de vanglórias”
(Gálatas 5:26) implica que sejamos humildes de espírito e consideremos os outros
superiores a nós mesmos (Filipenses 2:3). “Estas coisas vos escrevo, para que não
pequeis” (1 João 2:1) é igual a “meu propósito é inculcar e promover a prática da santidade”,
como tudo o que se segue mostra claramente.
Mandamentos negativos recomendam o bem oposto: “Não tomarás o nome do Senhor
teu Deus em vão” (Êxodo 20:7) implica que devemos ter o Seu nome em máxima reverência
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e santificá-lo em nossos corações. Ameaças negativas são afirmações tácitas: “O Senhor
não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”; antes Ele o condenará e punirá.
Promessas negativas contêm garantias positivas: “Um coração quebrantado e contrito ó
Deus, tu não desprezarás” (Salmos 51:17), isso significa que tal coração é aceitável a Ele.
“Não retirará bem algum aos que andam na retidão” (Salmos 84:11) é o mesmo que dizer
que tudo o que é verdadeiramente bom para os tais, certamente, lhes será dado.
Conclusões negativas envolvem seus opostos: “O pai do insensato não tem alegria”
(Provérbios 17:21), isso intenciona mostrar que ele sofrerá muita tristeza e angústia por
causa do filho — oh, que as crianças desobedientes estejam conscientes do sofrimento que
eles causarão aos seus pais. “Dar importância à aparência das pessoas não é bom”
(Provérbios 28:21), mas é mal. Declarações negativas trazem consigo assertivas fortes:
“Na verdade, Deus não procede impiamente; nem o Todo-Poderoso perverte o juízo” (Jó
34:12), antes Ele agirá de modo santo e governará com retidão.
11. Em nítido contraste com o supracitado, deve-se salientar que em muitos casos as
declarações apresentadas sob a forma interrogativa têm a força de uma negativa enfática.
Essa é outra regra simples que todos os expositores devem ter em mente. “Porventura
alcançarás os caminhos de Deus, ou chegarás à perfeição do Todo-Poderoso?” (Jó 11:7),
não, de fato. “E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado
à sua estatura?” (Mateus 6:27), ninguém pode fazê-lo por quaisquer meios. “Pois que
aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem
em recompensa da sua alma?” (Mateus 16:26), absolutamente nada, ou melhor, ele está
incomensuravelmente em pior situação. “Serpentes, raça de víboras! como escapareis da
condenação do inferno?” (Mateus 23:33), eles não escaparão. “Como podeis vós crer,
recebendo honra uns dos outros, e não buscando a honra que vem só de Deus?” (João
5:44), isso é moralmente impossível. “Como crerão naquele de quem não ouviram falar?”
(Romanos 10:14), eles não crerão. Por outro lado, a interrogação de Mateus 6:305 é uma
afirmação forte; enquanto que a de Mateus 6:286 é uma proibição.
12. O uso correto da razão em relação às coisas de Deus. Essa é outra regra de
exegese que é de importância considerável, ainda que deve ser usada com santo cuidado
e cautela, por um julgamento maduro e por um conhecimento aprofundado da Palavra. Por
essa razão, não deve ser usado pelo neófito ou inexperiente. O Cristão, como o não-Cristão,
é dotado de racionalidade, e o exercício dela, se santificada, certamente tem um bom lugar
5 “Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá
muito mais a vós, homens de pouca fé?”. 6 “E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos?”.
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na esfera do reino das coisas espirituais. Antes de considerar a aplicação da razão ao expor
a Verdade, vamos pontuar seu domínio mais geral. Dois exemplos disso podem ser
selecionados a partir dos ensinamentos do nosso Senhor. “Ora, se Deus veste assim a erva
do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, porventura, não vestirá muito mais
a vós, homens de pouca fé?” (Mateus 6:30). Aqui encontramos Cristo demonstrando, por
um processo simples de lógica, a irracionalidade absoluta da ansiedade desconfiada em
relação ao suprimento de necessidades temporais. Seu argumento é extraído a partir da
consideração da providência divina. Se Deus cuida do campo, muito mais Ele cuidará de
Seu amado povo; Ele evidencia Seu cuidado por vestir a erva do campo, logo, muito mais
Ele fornecerá roupas para nós.
“Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais
vosso Pai, que está nos céus, dará bens aos que lhe pedirem?” (Mateus 7:11). Aqui,
novamente, o Senhor nos mostra como essa faculdade deve ser usada por meio de um
processo de raciocínio santo. Ele estava falando sobre o tema da oração, e apresentou um
argumento para assegurar que os Seus discípulos serão ouvidos no trono da graça. O
argumento é baseado em uma comparação entre desigualdades e a razão extraída do
menor ao maior. Pode ser descrito assim: Se os pais terrenos, embora pecadores, são
inclinados a ouvir os apelos de seus pequeninos, certamente nosso Pai celestial não
fechará os ouvidos para os clamores de Seus filhos: pais naturais, de fato, respondem e
concedem os pedidos de seus filhinhos, portanto, muito mais o nosso Pai graciosa e
generosamente responderá nossas orações e concederá bens aos Seus. Diz-se de Abraão
que ele raciocinava ou considerava assim consigo mesmo: Não há nada impossível para
Deus. Da mesma forma o apóstolo: “Pois tenho para mim [estou convencido por raciocínio
lógico] que os sofrimentos do tempo presente não são dignos de serem comparados com
a glória a ser revelada em nós” (Romanos 8:18). Outras ilustrações do raciocínio inspirado
de Paulo são encontradas em Romanos 5: 9-10 e 8:31-32. Em todos esses casos, somos
ensinados sobre a legitimidade e uso correto do raciocínio.
O Senhor Jesus, muitas vezes argumentou, tanto com os discípulos quanto com os
Seus adversários, como acontece com os homens racionais, de acordo com os princípios
do raciocínio que Ele fez acerca da profecia e da conformidade do evento com a previsão
(Lucas 24:25-26; João 5:39,46). Ele assim o fez a partir dos milagres que realizou (João
10:25,37,38; 14:10-11) como sendo provas incontestáveis de que Ele foi enviado de Deus,
e reprovou os Seus desprezadores por não identificá-lO como o Messias: “Hipócritas,
sabeis discernir a face da terra e do céu; como não sabeis então discernir este tempo? E
por que não julgais também por vós mesmos o que é justo?” (Lucas 12:56-57), essa foi uma
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repreensão direta e contundente, porque em seu mais baixo fundamento eles falharam em
usar adequadamente os seus poderes de raciocínio, como Nicodemos fez: “Rabi, bem
sabemos que és Mestre, vindo de Deus; porque ninguém pode fazer estes sinais que tu
fazes, se Deus não for com ele” (João 3:2). Assim, também, o apóstolo quando exortando
os fiéis a fugirem da idolatria acrescentou: “Falo como a entendidos; julgai vós mesmos o
que eu digo” (1 Coríntios 10:15).
Em sua exposição magistral de Hebreus 4:3, Owen apontou que o argumento do
apóstolo repousou sobre a regra lógica de que “quando há em questão dois opostos entre
si, aquele que afirma um, ao mesmo tempo nega o outro; e, o inverso também é verdadeiro,
aquele que nega um, afirma o outro. Aquele que afirma ser dia, de fato, diz que não é noite,
como se ele tivesse usado formalmente tais palavras”. Seu propósito completo em 4:1-11
foi demonstrar por vários testemunhos e exemplos que a incredulidade separa do repouso
de Deus, ao passo que a fé concede entrada a esse descanso. No verso 3, ele afirma:
“Porque nós, os que temos crido, entramos no repouso”, em comprovação disso, ele
acrescenta: “tal como disse: Assim jurei na minha ira que não entrarão no meu repouso”.
Ali o apóstolo novamente citou o Salmo 95 (veja Hebreus 3:7,11,15,18). A partir da triste
experiência do fracasso de Israel ao entrar no repouso por causa da sua incredulidade e
desobediência a Deus, Paulo chegou à conclusão óbvia e inevitável que os crentes “entram”
no repouso.
Nós repetimos, é apenas por esse princípio de lógica que o argumento do apóstolo
em Hebreus 4:3 pode ser entendido. Se algum dos nossos leitores estiver inclinado a ter
problema com essa afirmação, então nós respeitosamente o exortamos a examinar e
cuidadosamente ponderar nesse verso, e ver se ele percebe como o texto-prova citado
supre qualquer confirmação da proposição de sua cláusula de abertura. A partir dessa
exposição Owen apontou: “Deste modo podemos perceber o uso da razão ou de deduções
lógicas na proposição, lidando e confirmando santas verdades sobrenaturais e artigos de
fé. A validade da prova do apóstolo nessa passagem depende da certeza da sentença
lógica antes mencionada, a consideração dessa remove toda a dificuldade. E negar essa
liberdade da consequência dedutiva, de acordo com as corretas regras de raciocínio, é
quase remover o uso da Escritura, e banir a razão daquelas coisas em que ela deve ser
principalmente empregada”.
Em Hebreus 8:13, encontra-se outro e ainda assim muito mais simples exemplo de
raciocínio sobre as Escrituras. “Dizendo Nova aliança, envelheceu a primeira. Ora, o que
foi tornado velho, e se envelhece, perto está de acabar” (Hebreus 8:13). O propósito do
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apóstolo nessa epístola foi expor a superioridade imensurável do Cristianismo sobre o
Judaísmo, e exortar os crentes hebreus a se apegarem firmemente a Cristo, a verdadeira
luz e substância, e não se voltarem para as sombras e símbolos de um sistema que havia
servido ao seu propósito. Entre outras razões, ele tinha apelado para a promessa de uma
“nova aliança” feita por Yahwéh em Jeremias 31:31-34. Ele tinha citado isso em Hebreus
8:8-12, e então extraiu uma inferência lógica da palavra “nova”: Deus está chamando essa
melhor economia de nova, sendo claramente implícito que a anterior havia se tornado
obsoleta; assim como o Salmista (102:25-26), ao afirmar que a presente terra e céus
pereceriam, adicionou como prova que eles “envelheceriam como uma roupa”. Assim, a
declaração feita em Hebreus 8:13, é (a título de dedução lógica) apresentada como uma
prova da proposição indicada em 8:7: “Porque, se aquela primeira fora irrepreensível, nunca
se teria buscado lugar para a segunda”.
Em Efésios 4:8, Paulo cita o Salmo 68:18, em seguida, mostra-nos como devemos
fazer um uso correto da razão ou exercer as faculdades intelectuais e morais: Por isso diz:
“Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, e deu dons aos homens”, a exaltação de Cristo
pressupunha uma humilhação anterior. Mais uma vez: “Ou cuidais vós que em vão diz a
Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes?” (Tiago 4:5). Mas, como Thomas
Manton destacou em sua exposição desse verso, tal afirmação não é encontrada em
nenhum lugar na Bíblia nesses termos específicos, e acrescenta: “A Escritura ‘diz’ o que
pode ser inferido a partir do escopo dela própria por justa consequência. Inferências
imediatas são tão válidas quanto palavras expressas. Cristo provou a ressurreição não pelo
testemunho direto, mas pelo argumento (Mateus 22:32). Portanto, o que a Escritura indica
por uma boa consequência, deve ser recebido como se fosse disto expressamente”. Ainda
outro dos apóstolos recorreu ao raciocínio, quando disse: “Se recebemos o testemunho dos
homens, o testemunho de Deus é maior” (1 João 5:9), e infinitamente mais confiável; daí,
não há desculpas para aqueles que o rejeitam.
Aqueles que estão familiarizados com os escritos de Agostinho e Calvino observarão
quão frequentemente eles inferiram que aquilo que for livremente concedido por Deus é
algo de que o homem caído, considerado em si mesmo, é destituído. Essa é uma dedução
óbvia da razão, e uma correta regra de exegese, sendo de aplicação simples e universal, a
saber, que tudo o que é graciosamente oferecido em e por Cristo está faltando em nossa
condição natural. Assim, cada verso que fala da vida eterna como um dom divino, ou que
faz a promessa da vida eterna para aqueles que creem, pressupõe necessariamente que
estamos sem ela, e, portanto, espiritualmente mortos. Assim, também, o recebimento do
Espírito Santo pelo Cristão (Atos 2:38; Gálatas 3:2, 4:6) toma como certo que em sua
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condição não-regenerada ele estava sem o Espírito, depois de ter perdido Sua presença
interior por causa do pecado; o mesmo sendo graciosamente restaurado a nós pela
mediação de Cristo (João 7:39; Gálatas 3:14). Como resultado da Queda, o Espírito Santo
foi, no exercício da justiça divina, retirado do coração humano e, consequentemente, foi
deixado não só sem um habitante divino, mas se tornou uma presa de todas aquelas
influências — naturais, mundanas e satânicas — que, na ausência do Espírito Santo,
inevitavelmente atraem as afeições para longe de Deus; mas na regeneração o Espírito é
novamente dado (Ezequiel 34:27).
Enquanto, por um lado, a faculdade da razão é muito superior aos nossos sentidos
corporais (o que distingue o homem e o eleva acima dos animais), por outro lado, a razão
é muito inferior à fé (o dom de Deus para o Seu povo), e esta, por sua vez, ao Espírito
Santo, de Quem somos dependentes para a direção da razão e o fortalecimento da fé. Há
muita confusão mental e não poucos pensamentos equivocados por parte dos santos sobre
a posição e extensão que a razão pode e deve ter em relação às Escrituras. Certamente
Deus não subordinou a Sua Palavra à nossa razão para que nós aceitemos apenas o que
é aprovado por nosso julgamento. No entanto, Ele supriu o Seu povo com essa faculdade,
e embora insuficiente, por si só, é uma valiosa ajuda na compreensão da Verdade. Embora
a razão não deva ser feita o medidor de nossa crença, contudo ela deve ser usada como
serva da fé, comparando Escritura com Escritura, deduzindo inferências e extraindo
consequências de acordo com as leis legítimas da lógica. Nunca a faculdade da razão é
tão dignamente usada como no esforço por compreender a Sagrada Escritura. Se por um
lado somos proibidos de nos estribarmos em nosso próprio entendimento (Provérbios 3:5),
por outro, somos exortados a aplicar nossos corações ao entendimento (Provérbios 2:2).
Deus tem nos fornecido com um padrão infalível pelo qual podemos testar cada
exercício de nossa razão em Sua Palavra, ou seja, a analogia da fé. E é aí que temos uma
salvaguarda segura contra o mau uso dessa faculdade. Embora seja verdade que, muitas
vezes, mais está implícito nas palavras das Escrituras do que é realmente expresso, ainda
assim, a razão não é uma lei em si mesma para fazer qualquer suplemento que quiser.
Qualquer dedução que fazemos, não importa quão lógica pareça, qualquer consequência
que extraímos, não importa o quão plausível seja, é errônea se for incompatível com outras
passagens. Por exemplo, quando lemos: “Sede vós pois perfeitos, como vosso Pai que está
nos céus é perfeito” (Mateus 5:48), podemos concluir que a perfeição sem pecado é
atingível nessa vida, mas se fizermos isso erramos, como Filipenses 3:12 e 1 João 1:8
mostram. Outrossim, eu poderia inferir a partir das palavras de Cristo, “ninguém pode vir a
mim, se o Pai que me enviou não o trouxer” (João 6:44), que, portanto, não sou de modo
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algum responsável por ir a Ele, e que minha incapacidade me isenta de responsabilidade;
assim, eu seguramente cometeria um erro, como João 5:40 e outras passagens mostram.
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Capítulo 10
________________________________________
É de primeira importância que o expositor tenha sempre em mente que não somente
a substância e os sentimentos expressos nas Sagradas Escrituras são de origem divina,
mas que todo o seu conteúdo é verbalmente inspirado. Suas próprias afirmações dão
considerável ênfase sobre esse fato. Disse o santo Jó: “as palavras da sua boca guardei
mais do que a minha porção” (23:12); ele não apenas venerava a Palavra de Deus em sua
totalidade, mas altamente valorizava cada sílaba nela. “As palavras do Senhor são palavras
puras, como prata refinada em fornalha de barro, purificada sete vezes” (Salmos 12:6).
Acreditamos que essa é mais do que uma declaração geral sobre a preciosidade, pureza e
permanência do que sai da boca do Senhor, pois deve ser devidamente notado que as
afirmações divinas não são simplesmente comparadas à prata refinada numa fornalha, mas
em “fornalha de barro”. Embora o Espírito Santo tenha usado o vernáculo da terra, contudo,
Ele expurgou aquilo que usou de toda escória humana, dando a alguns de seus termos
uma força totalmente diferente da sua origem humana, conferindo-lhes um maior significado
e aplicando tudo com perfeição espiritual, como a expressão “purificada sete vezes”
expressa. Assim, “toda a palavra de Deus é pura” (Provérbios 30:5).
O Senhor Jesus pôs repetidamente ênfase a esse aspecto da Verdade. Ao dar a
conhecer aos Seus discípulos os requisitos fundamentais da recepção de suas respostas
em oração, Ele disse: “Se vós estiverdes em mim [mantiverem um espírito de constante
dependência e permanecerem em comunhão com Ele], e as minhas palavras
permanecerem em vós [formando os seus pensamentos e regulando os seus desejos],
pedireis o que quiserdes, e vos será feito” (João 15:7), pois em tais casos eles pediriam
apenas o que seria para a glória de Deus e para seu próprio bem real. Novamente, Ele
declarou: “As palavras que eu vos digo são espírito e vida” (João 6:63). A Palavra de Deus,
então, é composta de palavras, e cada uma delas é selecionada pela sabedoria divina e
posicionada com precisão infalível. Portanto, cabe a nós não pouparmos esforços na busca
de conhecermos o significado exato de cada um dos seus termos, e mais diligentemente
verificar a ordem exata em que eles são colocados, pois a correta compreensão de uma
passagem se dá primeiramente por nossa obtenção de uma compreensão correta de sua
linguagem. Isso deveria ser tão óbvio a ponto de não ser preciso nenhum argumento, mas
é surpreendente o quão frequentemente esse princípio fundamental é ignorado e violado.
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Antes de afirmar várias outras regras que devem orientar o expositor, aquelas que
particularmente se relacionam mais diretamente com a interpretação de palavras e frases,
vamos mencionar vários alertas que precisam ser observados. Em primeiro lugar, não
assuma desde o início que tudo é simples e inteligível para você, pois muitas vezes as
palavras da Escritura são usadas em um sentido diferente e mais elevado do que na
linguagem comum. Assim, não é suficiente se familiarizar com o seu significado segundo
consta no dicionário, antes temos de saber como eles são usados pelo Espírito Santo. Por
exemplo, “esperança” significa muito mais na Palavra de Deus do que nos lábios dos
homens. Em segundo lugar, não conclua que você chegou ao significado de um termo, por
seu sentido ser bastante óbvio em uma ou duas passagens, pois você não está em uma
posição para delimitar uma definição até ter avaliado cada ocorrência do mesmo. Isso exige
muito trabalho e paciência, mas tal é necessário se quisermos ser preservados de ideias
errôneas. Em terceiro lugar, não conclua que qualquer termo empregado pelo Espírito tem
uma significação uniforme, pois esse está longe de ser o caso. A força dessas advertências
será feita mais evidente nos parágrafos seguintes.
13. A limitação das declarações gerais. Informações gerais devem, muitas vezes, ser
limitadas, tanto em si mesmas quanto em sua aplicação. Muitos exemplos desse princípio
ocorrem no livro de Provérbios, e, obviamente, pois um provérbio ou ditado é um princípio
geral expresso de uma forma breve, uma verdade moral estabelecida em linguagem
condensada e universal. Assim: “Decerto sofrerá severamente aquele que fica por fiador do
estranho, mas o que evita a fiança estará seguro” (11:15) anuncia a regra geral, ainda
assim, existem exceções na questão. “A coroa dos velhos são os filhos dos filhos; e a glória
dos filhos são seus pais” (17:6), no entanto, isso está longe de acontecer em todos os
casos. “Aquele que encontra uma esposa, acha o bem, e alcança a benevolência do
Senhor” (18:22), como muitos homens — o escritor inclusive — já descobriram, todavia, a
experiência de não poucos tem sido o contrário. “A estultícia está ligada ao coração da
criança, mas a vara da correção a afugentará dela” (22:15), mas Deus reserva a Si mesmo
o direito soberano de fazer esse bem a quem Lhe agrada, onde Ele não abençoa esse
meio, a criança é endurecida em sua perversidade. “Viste o homem diligente na sua obra?
Perante reis será posto” (22:29), embora, às vezes, os mais diligentes se encontram com
pouco sucesso material.
Informações gerais devem ser qualificadas, quando as interpretarmos comparando-
as, em um sentido ilimitado, com outros versos. Um desses casos é a proibição de nosso
Senhor: “Não julgueis, para que não sejais julgados” (Mateus 7:1), pois se essa afirmação
fosse considerada sem qualquer restrição contradiria o Seu preceito: “julgai segundo a reta
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justiça” (João 7:24); mas quantas vezes esse preceito é lançado contra as cabeças
daqueles que realizam um dever Cristão. A capacidade de pesar ou julgar, para formar uma
estimativa e opinião, é umas das mais valiosas de nossas faculdades, e o uso correto disso
é uma das nossas tarefas mais importantes. É muito necessário que nós tenhamos os
nossos sentidos “exercitados para discernir [grego: “julgar completamente”] o bem e o mal”
(Hebreus 5:14) se não queremos ser enganados pelas aparências, e levados por cada
impostor de lábios bajuladores que encontramos. A menos que formemos um juízo do que
é verdadeiro e falso, como podemos receber um e evitar o outro? Somos convidados a
“acautelar-nos dos falsos profetas”, mas como podemos fazê-lo a menos que nós
julguemos ou cuidadosamente meçamos cada pregador da Palavra de Deus? Somos
proibidos de ter comunhão com as obras infrutuosas das trevas, mas isso nos obriga a
determinar quais são essas. Cristo não estava aqui proibindo todo o julgamento dos outros,
mas estava repreendendo um julgamento importuno ou autoritário; presunçoso, hipócrita,
precipitado ou apressado, insustentável, injusto e impiedoso. Muita graça e sabedoria é
necessária para que nós apliquemos corretamente essa palavra do nosso Mestre.
Outro exemplo pertinente é encontrado em nosso Senhor: “Não jureis” (Mateus 5:34).
Na parte do Sermão do Monte em que essas palavras ocorrem, Cristo estava libertando os
mandamentos divinos dos erros dos rabinos e fariseus, e reforçando o seu rigor e
espiritualidade. No caso agora diante de nós, os mestres judeus haviam restringido os
estatutos mosaicos sobre juramentos à simples proibição de perjúrio, incentivando o hábito
de jurar pela criatura e jurar levianamente em uma conversa normal. Nos versos 34-37,
nosso Senhor investiu contra essas tradições e práticas corruptas. Ele nunca pretendeu
que Seu “não jureis” fosse tomado absolutamente fica claro a partir de Sua proibição que
os homens jurassem por alguma criatura, e da Sua repreensão a todos os juramentos em
conversas cotidianas. A analogia geral da Escritura revela a necessidade de juramentos em
certas ocasiões. Abraão jurou a Abimeleque (Gênesis 21:23-24) e exigiu que o seu servo
prestasse juramento (Gênesis 24:8-9); Jacó (Gênesis 31:53) e José (Gênesis 47:31) ambos
fizeram um juramento. Paulo confirmou repetidamente seu ensino por solenemente chamar
a Deus por testemunha (Romanos 9:1; 2 Coríntios 1:23, etc.). Hebreus 6:16, indica que os
juramentos são tanto admissíveis quanto necessários.
Há muitas expressões usadas nas Escrituras indefinidamente em vez de
especificamente, e que não devem ser entendidas sem qualificação. Algumas delas são
mais ou menos aparentes, outras só podem ser descobertas por uma comparação e estudo
de outras passagens que tratam do mesmo assunto. Assim: “...esta salvação de Deus é
enviada aos gentios, e eles a ouvirão” (Atos 28:28, e cf. 11:18) não significa que cada um
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deles seria salvo. Da mesma forma: “E a glória do Senhor se manifestará, e toda a carne
juntamente a verá” e “que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne” (Isaías 40:5; Atos
2:17) eram simplesmente anúncios que a graça de Deus transbordaria os limites estreitos
de Israel segundo a carne. Assim também “o mundo” tem uma variedade de significados e
muito raramente é sinónimo de toda a humanidade. Em passagens como João 7:4 e 12:19,
apenas uma pequena parte de seus habitantes foram incluídos. Em Lucas 2:1, o mundo
profano está em vista; em João 15:18-19, o mundo dos que professavam ser o povo de
Deus, pois eram partidos religiosos de Israel que odiavam Cristo. Em João 14:17 e 17:9, os
não-eleitos são referidos; compare com “o mundo dos ímpios” (2 Pedro 2:5), enquanto que
em João 1:29 e 6:33, a referência é ao mundo dos eleitos de Deus, os que são realmente
salvos por Cristo.
Outra palavra que é usada na Bíblia com considerável amplitude é “tudo”, e muito
raramente é encontrada sem qualquer limitação. “E, tudo o que pedirdes em oração,
crendo, o recebereis” (Mateus 21:22), obviamente, significa tudo o que pedimos que é
segundo a vontade de Deus (1 João 5:14). Quando os apóstolos disseram a Cristo: “Todos
te buscam” (Marcos 1:37), que “todos se admiravam” dos Seus milagres (Marcos 5:20) e
que “todas as pessoas vieram a ele” no templo (João 8:2), essas expressões estavam longe
de significar a soma total dos habitantes da Palestina. Quando Lucas diz aos seus leitores
que ele tinha se “informado minuciosamente de tudo desde o princípio” (1:3), e quando
somos informados de que Cristo predisse todas as coisas (Marcos 13:23) aos Seus
apóstolos, tal linguagem não deve ser tomada absolutamente. Da mesma forma,
afirmações como “porque todos glorificavam a Deus pelo que acontecera”, “este é o homem
que por todas as partes ensina a todos contra o povo e contra a lei”, “porque hás de ser sua
testemunha para com todos os homens” (Atos 4:21, 21:28, 22:15), devem ser consideradas
relativamente. Consequentemente, à luz desses exemplos, quando ele lida com “Ele
morreu por todos” e “deu a si mesmo em resgate por todos” (2 Coríntios 5:15; 1 Timóteo
2:6), o expositor deve determinar a partir de outras Escrituras (como Isaías 53:8; Mateus
1:21; Efésios 5:25) se se intenciona toda a humanidade ou todos os que creem.
O mesmo é verdadeiro sobre a expressão “todo homem” (veja, por exemplo, Marcos
8:25; Lucas 16:16; Romanos 12:3; e compare com 2 Tessalonicenses 3:2; 1 Coríntios 4:5).
Assim também o termo “todas as coisas”. Nem a passagem: “e eis que tudo vos será limpo”
(Lucas 11:41), nem “todas as coisas me são lícitas” (1 Coríntios 6:12) pode ser tomada pelo
valor literal, ou muitas Escrituras seriam desmentidas. “Fiz-me tudo para todos” (1 Coríntios
9:22), essa passagem deve ser explicada por aquilo que o precede imediatamente. “Todas
as coisas” de Romanos 8:28, tem referência aos “sofrimentos do tempo presente”, e “todas
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as coisas” de 8:32, significa “todas as coisas que dizem respeito à vida e piedade” (2 Pedro
1:3). Os “tempos da restauração de todas as coisas” (Atos 3:21) é imediatamente
modificado pelas palavras que se seguem imediatamente: “as quais Deus falou pela boca
dos seus santos profetas, desde o princípio”, e certamente nenhuma delas previu a
restauração do Diabo e seus anjos à sua antiga glória. O texto: “Para reconciliar consigo
mesmo todas as coisas” (Colossenses 1:20) não deve ser entendido como ensinado
expressamente o Universalismo, ou cada passagem afirmando a condenação eterna dos
que estão sem Cristo seria desmentida.
14. Afirmações positivas com uma força comparativa. Muitas afirmações nas
Escrituras são expressas de forma absoluta, ainda assim elas devem ser entendidas
relativamente. Isto é evidente a partir desses exemplos explicados a seguir. “Não ajunteis
tesouros na terra” (Mateus 6:19) esse verso é explicado no verso seguinte: “Mas ajuntai
tesouros no céu”. “Trabalhai, não pela comida que perece” (João 6:27) não é uma proibição
absoluta, como é demonstrado por: “mas pela comida que permanece para a vida eterna”.
Da mesma forma: “Não atente cada um para o que é propriamente seu, mas cada qual
também para o que é dos outros” (Filipenses 2:4), ou seja, nós devemos amar o nosso
próximo como a nós mesmos. “Por isso, nem o que planta é alguma coisa, nem o que rega”,
deve ser tomado relativamente, porque Deus frequentemente emprega tanto um quanto o
outro como instrumentos para fazer essas mesmas coisas: “mas Deus, que dá o
crescimento” (1 Coríntios 3:7), isso mostra onde a ênfase deve ser colocada, e Aquele a
quem a glória deve ser atribuída. “O enfeite delas não seja o exterior, no frisado dos
cabelos, no uso de joias de ouro, na compostura dos vestidos; mas o homem encoberto no
coração; no incorruptível traje de um espírito manso e quieto, que é precioso diante de
Deus” (1 Pedro 3:3-4).
Há, no entanto, numerosos exemplos que não são imediatamente explicadas para
nós, mas que a analogia da fé deixa claro. “Falou mais Deus a Moisés, e disse: Eu sou o
Senhor. E eu apareci a Abraão, a Isaque, e a Jacó, como o Deus Todo-Poderoso; mas pelo
meu nome, Yahwéh, não lhes fui perfeitamente conhecido” (Êxodo 6:2-3 – trad. lit.). No
entanto, é bastante claro a partir das palavras de Abraão em Gênesis 15:6,8, a partir de
seu chamado ao altar “Yahwéh-Jiré” (Gênesis 22:14), e a partir de Gênesis 26:2,24, e das
palavras de Deus a Jacó em 28:13, que os patriarcas estavam familiarizados com esse
título divino. Mas eles não O conheciam como o Cumpridor de Suas promessas ou Sua real
fidelidade pactual; enquanto Moisés e os hebreus agora teriam prova de Sua palavra dita
em Gênesis 15:13-14, e seriam trazidos para a terra de Canaã. “Os meus olhos estão
continuamente no Senhor” (Salmos 25:15), isto deve ser entendido em harmonia com
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outras Escrituras que mostram que houve momentos em que os olhos de Davi foram
afastados do Senhor, e, como resultado, ele caiu em graves pecados; no entanto, esse era
o hábito do seu coração, o teor geral de sua vida espiritual. Veja 1 Reis 15:5, para mais
uma demonstração comparativa sobre Davi.
“Sacrifício e oferta não quiseste”, isto é, não quiseste que continuassem por mais
tempo, como o que se segue mostra; as sombras dão lugar à substância: “holocausto e
expiação pelo pecado não reclamaste” (Salmos 40:6). Essas últimas palavras devem,
obviamente, ser entendidas relativamente, pelo fato de tais ofertas já terem sido requeridas
por determinação divina. Mas mesmo a apresentação dos sacrifícios mais caros (o cordeiro,
ou um boi) eram inaceitáveis a Deus, a menos que procedessem daqueles que
sinceramente desejavam obedecê-lO e servi-lO, como fica claro a partir de tais passagens
como Provérbios 21:27 e Isaías 1:11-15. Conformidade comparativa com os preceitos da
lei moral era muito mais importante do que a conformidade com a lei cerimonial (veja 1
Samuel 15:22; Salmos 69:30-31; Provérbios 21:3; Oséias 6:6; 1 Coríntios 7:19). Adoração
é rejeitada, a menos que seja realizada por amor e gratidão. Semelhantemente devemos
entender: “Porque nunca falei a vossos pais, no dia em que os tirei da terra do Egito, nem
lhes ordenei coisa alguma acerca de holocaustos ou sacrifícios” (Jeremias 7:22), aquelas
não foram as primeiras ou principais coisas ordenadas. Não, “mas isto lhes ordenei,
dizendo: Ouvi a minha voz”, isto é, a concepção de toda a revelação no Sinai foi inculcar a
sujeição prática à vontade de Deus, e o ritual levítico era apenas um meio para esse fim.
Palavras que são usadas para expressar perpetuidade não devem ser estendidas
para além da duração conhecida das coisas ditas. Como quando os judeus foram
ordenados a manter certas instituições nas suas gerações como sendo ordenanças para
sempre (Êxodo 12:24; Números 15:15), isso não significava que deviam fazê-lo por toda a
eternidade, mas apenas durante a economia mosaica. Da mesma forma os montes
perpétuos e outeiros eternos de Habacuque 3:6, só falava de permanência e estabilidade
comparativa, pois a terra ainda seria destruída. “Mas, quando tu deres esmola, não saiba a
tua mão esquerda o que faz a tua direita” (Mateus 6:3), isto não deve ser considerado
absolutamente, caso contrário, qualquer ato de beneficência que viesse ao conhecimento
de nossos companheiros seria proibido, e isso seria contrário à analogia da fé. Os Cristãos
primitivos nem sempre escondiam as suas doações, como Atos 11:29-30 demonstra. O
sigilo em si pode se tornar um manto para a avareza, e sob a pretensão de esconder boas
obras nós podemos acumular dinheiro para gastar conosco mesmos. Há momentos em que
uma pessoa de destaque pode justamente estimular os seus irmãos por seu próprio espírito
de liberalidade. Este preceito divino foi projetado para conter a ambição corrupta de nossos
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77
corações pelo louvor dos homens. Cristo quis dizer que devemos realizar atos de caridade
o mais discretamente possível, sendo a nossa principal preocupação ter a aprovação de
Deus, em vez do aplauso dos nossos semelhantes. Quando uma boa obra foi feita, não
devemos fazer questão de mantê-la em nossa mente, e em vez de congratular-nos a nós
mesmos por causa dela, devemos prosseguir para outros deveres que ainda temos a fazer.
Não devemos concluir a partir dos termos de Lucas 14:12-13, que é errado que
convidemos nossos amigos e parentes para participar da nossa hospitalidade, embora uma
comparação seja assim expressa novamente em linguagem positiva; mas, antes, devemos
fazer com que os pobres e necessitados não sejam negligenciados ou menosprezado por
nós. “Porque a lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo”
(João 1:17). Quantas vezes essas palavras foram mal interpretadas, sim, distorcidas; pois
é um erro grave concluir a partir dessas palavras que não havia “graça”, sob a economia
Mosaica ou que não haja nenhuma “lei” sob a economia Cristã. O fato é que o contraste
não é entre as mensagens de Moisés e Cristo, mas as características de seus ministérios.
“Vós não me vereis mais” (João 16:10), disse Cristo aos Seus apóstolos. No entanto, eles
O viram! O que, então, Ele quis dizer? Que eles não O veriam novamente em um estado
de humilhação, sob a forma de servo, em semelhança da carne do pecado, porque, naquela
ocasião o veriam em Seu estado glorificado (compare com “semelhante ao Filho do
homem”, Apocalipse 1:13). Atos 1:3, definitivamente, informa-nos que Cristo foi visto dos
apóstolos durante quarenta dias depois da ressurreição, e, claro, Ele é agora visto por eles
no Céu. Quando o apóstolo declarou: “Porque nada me propus saber entre vós, senão a
Jesus Cristo, e este crucificado” (1 Coríntios 2:2), ele não quis dizer que Aquele era o seu
único tema, mas sim que Cristo era o seu assunto dominante e proeminente. Quando
somos exortados: “Não estejais inquietos por coisa alguma” (Filipenses 4:6), nós
certamente não devemos entender que os cuidados com o objetivo de agradar a Deus
sejam proibidos, ou que não devemos ter profunda preocupação pelos nossos pecados.
Os exemplos acima (muitos outros poderiam ser adicionados) mostram que o
cuidado constante é necessário para distinguir entre as declarações positivas e
comparativas, e entre palavras com um sentido absoluta e aquelas palavras que possuem
um sentido simplesmente relativo.
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Capítulo 11
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15. Linguagem Não-literal. Nós deixamos essa importante regra da exegese para esse
momento, porque é necessária maturidade no julgamento para a sua correta aplicação. Há
uma quantidade considerável de linguagem não-literal na Palavra de Deus e é muito
necessário que o expositor a reconheça. Grande dano foi feito por não fazê-lo, e muitos
erros graves foram ensinados como resultado de considerar como literal o que era figurado.
De um modo geral, as palavras da Escritura devem ser entendidas em seu significado puro
e simples; sim, a sua significação natural e óbvia deve sempre ser mantida a menos que
alguma razão evidente e necessária exija o contrário; como, por exemplo, quando Cristo
nos ordenou arrancar um olho direito e cortar a mão direita se os mesmos nos levassem a
pecar, ou quando Ele acusou os escribas e fariseus de “devorar as casas das viúvas”
(Mateus 23:14), pois manifestamente tal linguagem não deve ser considerada em seu
sentido literal. Mas há muitos outros casos que não são tão evidentes como esses, como
quando Cristo disse: “E, ocasionalmente [por acaso] descia pelo mesmo caminho certo
sacerdote” (Lucas 10:31), o que significa que ele tomou esse caminho sem qualquer
finalidade particular ou propósito específico, pois um entendimento literal das palavras
negaria as ordenações da Providência.
É necessária uma discriminação minuciosa, tanto espiritual quanto mental, para
distinguir entre o literal e o não-literal na Escritura. Isso se aplica em primeiro lugar ao
tradutor, como algumas ilustrações mostrarão. Ele tem que determinar em cada ocorrência
da palavra kelayoth se a traduzirá literalmente como “rins” ou figurativamente como
“coração” e “mente”, palavras que nas Escrituras fazem referência à sede das afeições e
sentimentos; a nossa Versão Autorizada se refere à primeira por dezoito vezes, e a última,
treze vezes. Em passagens como Salmos 16:7; 26:2; 73:21, “rins” tem referência ao homem
interior, especialmente à mente e à consciência; como os rins devem eliminar as impurezas
do sangue, a mente e a consciência devem nos livrar do mal. A palavra hebraica ruach
significa literalmente vento, e é assim traduzida noventa vezes na Versão Autorizada; no
entanto, também é usada emblematicamente como espírito, muitas vezes, e como o
Espírito Santo por mais de 200 vezes. Muita sabedoria e discernimento espiritual é exigido
pelo tradutor para discriminar. Lachash é traduzido como “brincos” em Isaías 3:20, mas
como “oração” em Isaías 26:16! A palavra grega presbuteros significa literalmente uma
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pessoa idosa, e é assim traduzido em Atos 2:17, e Filemom 9, mas na maioria dos casos
se refere a “anciãos”7 ou oficiais da igreja.
Agora, se um grande cuidado deve ser tomado pelo tradutor para distinguir entre
coisas diferentes, é igualmente assim com o expositor. Que ele devidamente leve a sério
as advertências fornecidas pela experiência dos apóstolos. Quantas vezes eles não
conseguiram entender o significado da linguagem de seu Mestre! Quando Ele declarou: “O
que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que
contamina o homem”, disseram-Lhe: “Explica-nos esta parábola”, e Ele respondeu: “Até vós
mesmos estais ainda sem entender?” (Mateus 15:11,15,16). Quando Jesus lhes ordenou:
“acautelai-vos do fermento dos fariseus e dos saduceus”, eles discorriam entre si e
concluíram que era porque não tinham trazido pão (Mateus 16:6-7). Quando Ele lhes disse
que tinha uma comida para comer, a qual eles não conheciam, imaginaram que alguém
havia ministrado às Suas necessidades corporais durante a sua ausência (João 4:32-33).
Quando disse: “Nosso amigo Lázaro dorme”, os apóstolos supuseram (como qualquer um
de nós teria feito!) que Ele se referia ao sono natural. Muitas vezes é registrado que eles
“não compreendiam” as palavras de Cristo (Marcos 9:32; Lucas 18:34; João 8:27, 12:16).
Eles entenderam muito pouco do que Jesus intencionava quando perguntou: “Se eu quero
que ele fique até que eu venha, que te importa a ti?” (João 21:22-23).
O elemento figurativo é muito proeminente nas Escrituras, especialmente no Antigo
Testamento, onde as coisas naturais são comumente usadas e adaptadas para explicar as
coisas espirituais, adequando suas instruções para o estado atual do homem, no qual ele
não pode ver as coisas de Deus, exceto através das lentes da natureza. Cada palavra
hebraica tem um sentido literal e se refere a algum objeto sensível, e, portanto, transmite
uma ideia comparativa a algum objeto impalpável. Enquanto no corpo, nós recebemos
informações através de nossos sentidos; não podemos formar a menor ideia de qualquer
objeto divino ou celestial, senão conforme ele é comparado e ilustrado por algo terreno ou
material. Realidades internas são explicadas por fenômenos externos, como “rasgai o
vosso coração, e não as vossas vestes, e convertei-vos ao Senhor, vosso Deus” (Joel 2:13),
e: “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça”. Misericórdias espirituais são
postas diante de nossos olhos sob suas figuras com as quais estamos familiarizados, mas
expressivas na natureza, como em: “Porque derramarei água sobre o sedento, e rios sobre
a terra seca; derramarei o meu Espírito sobre a tua posteridade, e a minha bênção sobre
7 Em Inglês: Elders.
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os teus descendentes” (Isaías 44:3), e: “destilai, ó céus, dessas alturas, e as nuvens
chovam justiça; abra-se a terra, e produza a salvação” (Isaías 45:8).
Outros antes de nós têm apontado que há uma analogia divinamente projetada entre
o mundo natural e o espiritual. Deus assim formou os reinos visíveis como a sombra do
invisível, o temporal para simbolizar o eterno. Daí as similitudes muitas vezes empregadas
por Cristo, extraídas por Ele do reino natural, não eram ilustrações arbitrárias, mas figuras
pré-ordenadas de sobrenatural. Existe uma ligação muito íntima entre as esferas da criação
e da graça, para que nós, assim, sejamos ensinados a olhar de uma para a outra. “Por meio
de Suas parábolas inimitáveis, Cristo mostrou que quando a natureza era avaliada
corretamente, falava uma só língua com o Espírito de Deus; e quanto mais completamente
bem entendida, e isto mais variada e completamente, será encontrada a harmonia que
subsiste entre os princípios da sua constituição e os de Seu reino espiritual” (Patrick
Fairbairn). Quem pode deixar de perceber tanto a adequação quanto a sublimidade do
paralelo entre essa alusão do reino natural e sua realização antitípica: “Até que refresque
o dia, e fujam as sombras” (Cantares de Salomão 2:17), onde a referência é tanto à primeira
(João 8:56) quanto à segunda vinda do Filho de Deus na carne (Filipenses 1:6-10)?
As palavras são usadas em sentido literal quando se referem ao seu significado
simples e natural; e figurativamente, quando um termo se refere a um objeto ao qual ele
não pertence natural ou normalmente. Assim, o termo “duro” é a qualidade de uma pedra,
mas quando caracteriza o coração é empregado figurativamente. A figura de linguagem
consiste em uma palavra ou palavras que estão sendo usadas fora de seu sentido e
maneira comuns, para enfatizar algo e atrair a nossa atenção ao que é dito. Não que um
significado diferente seja dado à palavra, mas uma nova aplicação dela é feita. O significado
da palavra é sempre o mesmo quando usada corretamente e, assim, figuras têm o seu
próprio sentido e explicam-se a si mesmas. Na grande maioria dos casos, não há
dificuldade em distinguir entre o literal e o não-literal. Aqui também há uma estreita
semelhança entre a Palavra de Deus e Suas obras na criação. A maioria dos objetos no
mundo natural são evidentes e simples, facilmente distinguidos; todavia, alguns são
obscuros e misteriosos. Há certas “leis” perceptíveis que regulam as ações da natureza; no
entanto, há exceções notáveis na maioria delas. Assim, podemos ter certeza de que Deus
não empregou linguagem que só poderia confundir e embaraçar os ignorantes, mas o
significado de muitas coisas na Sua Palavra pode ser determinado apenas por trabalho
diligente.
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Se toda a Escritura tivesse sido redigida em linguagem altamente figurativa e
misteriosos hieróglifos, que estivessem muito acima da capacidade do homem comum. Por
outro lado, se tudo fosse tão simples como ABC não haveria necessidade de Deus prover
mestres (Efésios 4:11). Mas como aquele que ensina determina quando a linguagem é
literal e quando não-literal? Geralmente, clara indicação é dada, especialmente no emprego
de metáfora, onde um objeto é usado para expor o outro, como em: “Judá é um leãozinho”
(Gênesis 49:9). Mais particularmente: em primeiro lugar, quando uma interpretação literal
manifestamente colidiria com a natureza essencial do assunto tratado, como quando
membros físicos são atribuídos a Deus, ou quando o discípulo é ordenado a “tomar a sua
cruz” (viver uma vida de autossacrifício) a fim de seguir a Cristo. Em segundo lugar, quando
uma interpretação literal envolveria um absurdo ou impropriedade moral, como em:
“Quando te assentares a comer com um governador, atenta bem para o que é posto diante
de ti, e se és homem de grande apetite, põe uma faca à tua garganta” (Provérbios 23:1-2),
isto é, não dê qualquer espaço aos desejos; outro exemplo é a metáfora que fala de
amontoar brasas sobre a cabeça de um inimigo (Romanos 12:20). Em terceiro lugar,
devemos consultar outras passagens, e interpretarmos tal passagem como Salmo 26:6,
através de Genesis 35:1-2 e Hebreus 10:22.
De tudo o que foi dito acima, é evidente que temos de evitar um literalismo rígido
quando estivermos lidando com representações sensoriais ou materiais de coisas
imateriais, e quando termos corporais são usados a respeito de não-corporais, como por
exemplo: “A espada devorará” (Jeremias 46:10), pois devorar é propriedade de uma criatura
viva e fazendo uso de seus dentes, mas aqui, por uma figura, isso é aplicado ao fio da
espada. E ainda: “Esqueça-se a minha direita da sua destreza” (Salmos 137:5), aqui o
“esquecimento”, que pertence à mente, é aplicado à mão, significando “perca o seu poder
de direcioná-la corretamente”. Novamente: “Virei-me para ver a voz” (Apocalipse 1:12 --
trad. lit.), ou seja, aquele que a proferiu. “Guarda o teu pé, quando entrares na casa de
Deus” (Eclesiastes 5:1), isso pode ser considerado tanto em um sentido literal quanto
figurado. No primeiro caso, significaria: “que o seu andar seja recatado, sem pressa e
reverente enquanto se aproxima do lugar de adoração”; no segundo: “cuide dos
movimentos de sua mente e das afeições de seu coração, pois eles são para a alma o que
os pés são para o corpo”. É ao devido controle do nosso homem interior que nossa atenção
deve ser principalmente dirigida.
Também é muito necessário que o expositor constantemente tenha em mente que
muitas das coisas que pertencem ao Novo Pacto são estabelecidas de acordo com as
figuras do Antigo. Assim, Cristo é mencionado como “nossa Páscoa” e como Sacerdote
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“segundo a ordem de Melquisedeque” (Hebreus 6:20). O paraíso é descrito como “seio de
Abraão” (Lucas 16:22). Os santos do Novo Testamento são referidos como descendência
de Abraão e “o Israel de Deus” (Gálatas 3:7, 6:16); como “a circuncisão” (Filipenses 3:3), e
como “a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa” (1 Pedro 2:9); enquanto em
Gálatas 4:26, eles são informados de que sobre “a Jerusalém que é de cima é livre; a qual
é mãe de todos nós”. Mais uma vez, a expressão “pois não tendes chegado ao monte
palpável” (Hebreus 12:18) não se refere a qualquer monte físico, mas à ordem das coisas
que foram formalmente instituídas no Sinai, as características morais que foram
adequadamente simbolizadas e surpreendentemente esboçadas pelos fenômenos físicos
que acompanharam a entrega da Lei. Da mesma forma: “tendes chegado ao monte Sião”
(12:22) não mais significa um monte físico do que “temos um altar” (13:10) significa que os
Cristãos têm um altar tangível. É a antitípica, espiritual e celestial Sião que está em vista,
isto é, aquele estado glorioso ao qual a graça divina trouxe todos aqueles que creem no
Evangelho.
Outrossim, o expositor precisa estar atento para detectar a linguagem irônica, pois
geralmente significa o oposto ao que é expresso, sendo uma forma de sátira para o
propósito de expor um absurdo e evidenciar o ridículo. Essa linguagem foi usada por Deus
quando Ele disse: “Eis que o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o
mal” (Gênesis 3:22), e quando Ele ordenou a Israel: “Ide, e clamai aos deuses que
escolhestes; que eles vos livrem no tempo do vosso aperto” (Juízes 10:14); por Elias,
quando ele zombou dos profetas de Baal: “Clamai em altas vozes, porque ele é um deus;
pode ser que esteja falando, ou que tenha alguma coisa que fazer, ou que intente alguma
viagem; talvez esteja dormindo, e despertará” (1 Reis 18:27); por Micaías quando ele
respondeu Jeosafá: “Sobe, e serás bem sucedido; porque o Senhor a entregará na mão do
rei” (1 Reis 22:15); por Jó: “Na verdade, vós sois o povo, e convosco morrerá a sabedoria”
(12:2); em Eclesiastes 11:9: “Alegra-te, jovem, na tua mocidade, e recreie-se o teu coração
nos dias da tua mocidade, e anda pelos caminhos do teu coração, e pela vista dos teus
olhos...”; por Cristo: quando Ele disse: “esse belo preço em que fui avaliado por eles”
(Zacarias 11:13) e por Paulo: “Já estais fartos! já estais ricos! sem nós reinais!” (1 Coríntios
4:8).
Também não devemos considerar literalmente a linguagem da hipérbole ou exagero,
quando mais é dito do que é realmente significado, como quando os dez espiões disseram
de Canaã: “as cidades são grandes e fortificadas até aos céus” (Deuteronômio 1:28), e
quando somos informados de que os seus exércitos eram “como a areia que está na praia
do mar em multidão” (Josué 11:4). Assim também a descrição dada daqueles que surgiram
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contra Gideão: “como gafanhotos em multidão; e os seus camelos sem número” (Juízes
7:12), e “não houve nação nem reino aonde o meu senhor não mandasse em busca de ti”
(1 Reis 18:10). Outros exemplos são encontrados em: “Eles sobem ao céu, descem ao
abismo” (Salmos 107:26); “Rios de água correr dos meus olhos” (Salmos 119:136); “O
menor virá a ser mil, e o mínimo uma nação forte; eu, o Senhor, ao seu tempo o farei
prontamente” (Isaías 60:22); “As suas viúvas mais se multiplicaram do que a areia dos
mares” (Jeremias 15:8), devemos ter em mente, ao lermos Apocalipse 7:9, que: “Há, porém,
ainda muitas outras coisas que Jesus fez; e se cada uma das quais fosse escrita, cuido que
nem ainda o mundo todo poderia conter os livros que se escrevessem” (João 21:25).
16. A elucidação dos tipos. Nenhum tratado sobre hermenêutica seria completo se
ignorasse essa importante e interessante seção da exposição. No entanto, um vasto
assunto como esse é impossível de tratar adequadamente em poucas frases. O Novo
Testamento claramente ensina que muito no Antigo predizia e esboçava o que estava por
vir. Desde os primeiros tempos aprouve a Deus preparar o caminho para a grande palavra
da redenção por uma série de representações parabólicas, e o trabalho do intérprete é
explicar o mesmo à luz da revelação mais ampla que Deus concedeu desde então. Os tipos
pertencem àquela esfera que diz respeito à relação das dispensações divinas anteriores e
posteriores e, portanto, um tipo pode ser definido como um modelo ou sinal de outro objeto
ou evento que é retratado de antemão, sombreando algo que deve depois corresponder e
prover a realidade do mesmo. Mas surge a pergunta: Como evitaremos o erro e o exagero
em nossa seleção e desvelamento dos tipos? O espaço só nos permitirá oferecer as
seguintes dicas e regras.
Em primeiro lugar, deve haver uma semelhança genuína na forma ou espírito entre
qualquer pessoa, ato ou instituição, no âmbito do Antigo Testamento e o que corresponda
a isso no Evangelho. Em segundo lugar, um tipo real deve ser algo que teve a sua
ordenação a partir de Deus, sendo indicado por Ele que prefiguraria e prepararia o caminho
para coisas melhores sob Cristo. Assim, a semelhança entre a sombra e a substância deve
ser real e não-imaginária, e concebida como tal na instituição original da sombra. É essa
intenção anterior e conexão preordenada entre eles que constitui a relação de tipo e
antítipo. Em terceiro lugar, traçando a ligação entre um e outro, nós devemos perguntar:
Qual era a importância inerente do símbolo original? O que simbolizava como uma parte da
religião então em vigor? E, então, o expositor deve prosseguir e mostrar como ele foi
adequado para servir como um guia e ponte para os eventos e questões benditos do reino
do Messias. Por exemplo, por meio do tabernáculo e seus serviços, Deus manifestou ao
Seu povo precisamente os mesmos princípios de governo, e exigiu deles substancialmente
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uma disposição e caráter idênticos, que Ele agora faz sob a mais sublime dispensação do
Cristianismo. Em quarto lugar, devida consideração é necessária quanto à diferença
essencial entre as naturezas reais do tipo e do antítipo: um sendo físico, temporário e
externo; o outro espiritual, eterno e, muitas vezes, interno.
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Capítulo 12
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17. Exposição das parábolas. Este é um outro ramo do nosso assunto sobre o qual
pelo menos um capítulo inteiro deveria ser dedicado, mas o perigo de sobrecarregar a
paciência de alguns dos nossos leitores torna isso desaconselhável. Devido à grande
simplicidade da sua natureza e da linguagem, é comumente suposto que as parábolas são
mais facilmente compreendidas do que qualquer outra forma de instrução bíblica, quando
o fato é que provavelmente o ensino mais errado foi propagado por cauda da
incompreensão do sentido de alguns de seus detalhes; isso aconteceu com as parábolas
mais do que com qualquer outra porção da Palavra. Grande cuidado deve ser tomado com
as parábolas, pois é especialmente importante determinar e, em seguida, manter em mente
o escopo ou principal propósito de cada uma. Mas em vez disso, com muita frequência as
parábolas são abordadas exclusivamente para a finalidade de encontrar apoio aparente
para alguma doutrina específica ou ideia que o pregador deseja provar. E, em consequência
disso, muito nelas foi arrancado de seu significado original, e elas foram entendidas de
modo a contrariar completamente outras passagens. Também aqui a analogia da fé deve
ser observada de forma constante, e nossa interpretação de cada parábola deve ser medida
por ela.
A definição infantil de que “uma parábola é uma história terrena com um significado
celestial” expressa a ideia geral. É uma forma de ensino pela qual as coisas espirituais são
representadas sob imagens sensíveis. As parábolas são de fato ilustrações em palavras,
tendo algo da mesma relação com a instrução daqueles a quem elas são dirigidas, como
fazem as ilustrações pictóricas usadas em livros para elucidar o leitor da página impressa.
A partir da relação com a verdade apresentada ou lição aplicada podem ser reunidos certos
princípios importantes, mas simples e óbvios, que precisam ser tidos em consideração no
estudo das parábolas de nosso Senhor. Em primeiro lugar, a parábola, como uma imagem
ilustrativa, só pode apresentar o seu objeto parcialmente. Nenhuma ilustração pode
fornecer ou exibir todos os aspectos de seu objeto, não mais do que a “planta” de um edifício
do arquiteto pode mostrar segundos e terceiros andares, e muito menos os representar
como serão quando concluídos, embora possa sugerir algo sobre deles. Assim, uma
parábola indica para nós apenas determinados alguns aspectos do assunto. Por isso nós
as encontramos agrupadas; todas em um grupo representando o mesmo assunto, mas
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cada uma estabelecendo uma característica distinta do mesmo; como acontece nas
parábolas de Mateus 13, as quais lidam com os “mistérios do reino dos céus”, e com
aquelas de Lucas 15 que nos mostram não somente a graça recebendo os pecadores, mas
buscando, encontrando, vestindo e lhes dando um banquete.
Em segundo lugar, as parábolas são subordinadas ao ensino direto; sendo projetadas
não para a prova, mas para a ilustração de uma doutrina ou dever. Deve sempre ser
lamentado quando Cristãos professos são culpados de colocar uma parte das Escrituras
contra outra, mas quando uma parábola é utilizada para anular alguma doutrina simples ou
mandamento de Deus, o absurdo é adicionado à irreverência. Daí, apelar para Mateus
18:23-25, para provar que o Deus de toda graça pode revogar o Seu perdão; ou negar a
responsabilidade do homem com base em que “a moeda de prata perdida” de Lucas 15
retrata o pecador por um objeto inanimado, é tanto tolo quanto profano. Em terceiro lugar,
é igualmente evidente que devemos buscar determinar o principal objetivo de Cristo na
principal lição de moral que Ele pretendia aplicar; ainda assim, esse dever óbvio é muito
negligenciado. Com muita frequência, as parábolas são tratadas como se seu propósito
fosse deixado em aberto para conjecturas e suas lições para inferência incerta. Tal ideia
ímpia e modo leviano de lidar com elas é claramente refutada por aquelas parábolas em
que o próprio Cristo explicou aos Seus discípulos. Assim, não somos deixados inteiramente
aos nossos próprios recursos, pois aquelas interpretadas pelo Senhor devem ser
consideradas como amostras, cada uma estabelecendo alguma verdade distinta, cada
detalhe possuindo um significado.
Em quarto lugar, é importante obter uma compreensão correta da própria
representação parabólica, uma vez que fornece a base da instrução espiritual. Se não
entendermos a alusão natural, não podemos dar uma exposição satisfatória da linguagem
em que é estabelecida. Devemos também ter cuidado para que não estendamos a
representação para além dos limites que ela pretendia ir. Essa representação se torna óbvia
quando nos concentramos sobre a ideia principal da parábola e permitimos que os seus
detalhes a tornem mais distinta. A parábola não deve ser separada em partes, mas vista
como um todo; todavia, não esqueça que cada detalhe contribui para a sua verdade central,
não há um simples uso exagerado de palavras. Normalmente, o contexto deixa claro qual
é o seu propósito e significado. Assim, a parábola do rei fazendo uma prestação de contas
com os seus servos (Mateus 18:23) foi proferida em resposta à pergunta de Pedro no verso
21; a do rico insensato em Lucas 12 foi ocasionada por um espírito de cobiça por parte de
quem desejava obter uma parte da herança de seu irmão. Aquelas em Lucas 15 foram a
partir do que está relacionado em seus versos de abertura. As parábolas incidem sobre os
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aspectos mais fundamentais do dever e do comportamento, em vez de sobre os detalhes
minuciosos desses.
Como esclarecido acima, muito ensino errôneo é resultado da falta de atenção a essas
regras simples. Assim, certos teólogos que são basicamente defeituosos a respeito da
Expiação têm argumentado a partir da parábola do filho pródigo que, uma vez que nenhum
sacrifício foi necessário para reconciliá-lo com o Pai ou fornecer acesso ao seio de Seu
amor, Deus perdoa absolutamente, por pura compaixão. Mas isso é uma perversão clara
da parábola, pois não é como um Pai, mas como justo Governador que Deus exige uma
satisfação à Sua justiça. Igualmente há uma deturpação grave da graça do Evangelho, se
entendermos a partir da parábola do servo incompassivo (Mateus 18:23-35) que a graça
divina é sempre exercida aos homens sem um sacrifício propiciatório aceito por Deus, para
reparação feita à Lei quebrada (Romanos 3:24). Essas parábolas nunca foram destinadas
a ensinar o fundamento do perdão divino; é errado forçar qualquer parábola a mostrar todo
um sistema de teologia. Alguns têm até mesmo extraído da passagem em que Cristo proíbe
Seus discípulos de arrancarem o joio, um argumento contra a igreja local exercer uma
disciplina tão rigorosa a ponto de desassociar membros heréticos ou desordenados, o que
é refutado por Seu ensino em Apocalipse 2 e 3, onde essa frouxidão é severamente
repreendida.
Igualmente perigoso e desastroso é aquela interpretação que fez a parábola dos
trabalhadores na vinha ensinar a salvação pelas obras. Uma vez que a parábola dá um
notável exemplo da importância de nos atentarmos para as definições, faremos algumas
observações sobre ela. Após a recusa do jovem rico a deixar tudo e seguir a Cristo, e Ele
buscar inculcar aos Seus discípulos a solene advertência desta triste situação, Pedro disse:
“Eis que nós deixamos tudo, e te seguimos; que receberemos?” (Mateus 19:22-27). O
Senhor respondeu duplamente: a primeira parte, como a questão era legítima, declarando
que tanto aqui e no futuro há abundante recompensa para aqueles que O seguiram (vv. 28-
29). Na segunda parte, nosso Senhor sondou o coração de Pedro, dando a entender que
por trás de sua pergunta havia uma disposição errada, uma ambição carnal que Ele tinha
tantas vezes repreendido nos apóstolos, quando eles disputaram a respeito de qual deles
seria o maior no reino e quem teria os primeiros assentos no mesmo. Havia um espírito
mercenário agindo neles, pois consideravam que eles tinham reivindicações de retribuições
mais elevadas do que outros, uma vez que eles foram os primeiros a deixar tudo e seguir
a Cristo, aumentando assim a sua própria importância e deixando Jesus sob obrigações.
Daí a parábola de Mateus 20:1-15, ser precedida pelas palavras: “Mas muitos que são
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primeiros serão últimos; e os últimos serão os primeiros”, e seguida por palavras
semelhantes.
Uma vez que não há espaço para duvidar que a parábola dos trabalhadores da vinha
foi designada para ilustrar as palavras em Mateus 19:30 e 20:16, é claro que nunca foi
destinada a ensinar o caminho da salvação, de modo que interpretá-la assim é perder
completamente o seu objetivo. A intenção do Senhor evidentemente era inculcar aos Seus
discípulos que a menos que eles mortificassem os males provenientes de seus corações,
esses eram de tal caráter que roubariam todo valor da devoção mais antiga e prolongada,
e que o último e mais breve serviço a Ele, em razão da ausência de autoafirmação, seria
considerado digno aos Seus olhos de receber recompensa tanto quanto o primeiro. Além
disso, Ele queria que soubessem que faria o que quisesse com aquilo que era Seu próprio,
logo, eles não deveriam ditar os termos de serviço. Foi corretamente observado por Trench8
em suas notas sobre essa parábola que um “acordo foi feito pelos primeiros trabalhadores
contratados (20:2) antes de entrarem em seu trabalho, exatamente o acordo que Pedro
quis fazer: “O que teremos?”; enquanto aqueles posteriormente envolvidos eram de um
espírito mais simples, confiando que o senhor daria a eles tudo o que era correto e justo”.
18. Palavras com significados diferentes. Existem muitos termos nas Escrituras que
não são de modo algum usadas de modo uniforme. Algumas têm diversos sentidos, outras
têm significados variados de um modo geral. Isso não significa que elas são usadas de
forma arbitrária ou caprichosa, menos ainda que isso visa confundir a mente dos simples.
Às vezes, é porque o termo original é muito amplo para ser expresso por um único
equivalente em português. Às vezes, ocorre em outra forma com ênfase. Mais
frequentemente, são as várias aplicações que são feitas para vários objetos. Assim, é uma
parte importante da tarefa do expositor delimitar essas distinções, e, ao invés de confundir,
deixar claro cada sentido diferente e, assim, “manejar bem a palavra da verdade”. Assim, a
palavra grega Paracleto é traduzida como “Consolador”, em relação ao Espírito, no
Evangelho segundo João, mas como “Advogado” em relação a Jesus Cristo primeira
epístola de João (2:1). Parece haver pouco em comum entre essas expressões, mas
quando descobrimos que o termo grego significa: “pessoa chamada para o lado de alguém
(para ajudar)”, a dificuldade é removida, e a verdade abençoada é revelada: o Cristão tem
dois ajudantes divinos, Um prático e Um legal; Um dentro de seu coração e Um no Céu;
Um ministra a ele, o Outro advoga por ele.
8 Pink faz referência a Richard Chenevix Trench (1807-1886), e seu livro: Notes on the parables of Our Lord
[Notas sobre as parábolas de Nosso Senhor].
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A palavra grega diatheke ocorre trinta e três vezes; seu significado comum — como o
hebraico berith — sendo “aliança”. Na Versão Autorizada é assim traduzida por vinte vezes,
e como “testamento” por treze vezes. Ora, uma aliança, estritamente falando, é um contrato
entre duas partes, uma prometendo fazer certas coisas mediante o cumprimento de certas
condições pela outra parte; enquanto testamento é algo por meio do que alguém concede
certos dons. Não parece haver nada em comum entre os dois conceitos, na verdade, são
totalmente contrários. Mas nós acreditamos que nossos tradutores traduziram o termo
corretamente em ambos os sentidos, embora nem sempre o fizeram felizmente; certamente
deve ser “aliança” em 2 Coríntios 3:6 e Apocalipse 11:19. É justamente traduzido como
“aliança” em Hebreus 8:6, e “testamento” em 9:15, pois ali é feito um testamento para
ilustrar uma determinada correspondência entre a dispensação divina preparatória e a
última. O testamento não se torna válido enquanto a pessoa está viva, ele só pode ter efeito
após a sua morte. Hebreus 9:15-17, trata de uma disposição que mostra a maneira pela
qual os homens obtêm uma herança através das riquezas da graça divina. Assim, em vez
de usar syntheke, que expressa mais exatamente uma aliança, o Espírito Santo de modo
proposital usa diatheke, que poderia ter uma dupla aplicação.
Vejamos agora alguns exemplos em que a mesma palavra em português tem muitas
variantes. Como nas palavras bem conhecidas do nosso Senhor: “Deixa que os mortos
sepultem os seus mortos” (Mateus 8:22), assim a palavra “vemos” é usada em dois sentidos
diferentes em Hebreus 2:8-9: “Ora, visto que lhe sujeitou todas as coisas, nada deixou que
lhe não esteja sujeito... Vemos, porém, coroado de glória e de honra...”, onde primeiro faz
referência ao que já havia sido exposto, e em segundo lugar, à percepção da fé. “Resgate”
é por meio de poder, bem como por preço. Às vezes, Deus defendeu ou resgatou o Seu
povo, destruindo os seus inimigos: Provérbios 21:18; Isaías 43: 4; Faraó e seus exércitos
no Mar Vermelho. Muitos têm ficado grandemente perplexos com as aplicações
notavelmente diferentes feitas quanto à palavra “carga” em Gálatas 6:2-5: “Levai as cargas
uns dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo... cada um levará o seu próprio fardo”. O
primeiro tem em vista a carga de fraquezas do Cristão, que deve simpatizar em espírito de
oração com seus irmãos e irmãs, e ajudá-los de modo prático. Este último tem referência à
responsabilidade individual, seu estado pessoal e destino, que ele mesmo deve cumprir, e
que não pode ser transferido para outros. A palavra grega para o primeiro é “pesos”, ou
fardos, os quais exigem uma mão amiga. Este último significa um “dever”, ou confiança
imposta.
O significado do termo “carne” parece ser tão óbvio que muitos consideram como um
grande desperdício de tempo examinar as suas várias conexões na Escritura. Supõe-se
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rapidamente que a palavra é sinônimo de corpo físico, e por isso uma investigação
cuidadosa não é feita. No entanto, na verdade, “carne” é usada nas Escrituras para incluir
muito mais do que o aspecto físico do nosso ser. Lemos sobre a “vontade da carne” (João
1:13) e “as obras da carne” (Gálatas 5:19), algumas das quais são atos da mente. Somos
proibidos de fazer provisão para a carne (Romanos 13:14), o que certamente não significa
que devemos morrer de fome ou negligenciar o corpo. Quando se diz: “o Verbo se fez carne”
(João 1:14), devemos entender que Ele tomou para Si toda uma natureza humana,
consistindo de espírito (Lucas 23:46), alma (João 12:27) e corpo. “Nos dias da sua carne”
(Hebreus 5:7) significa o tempo de Sua humilhação, em contraste com Sua presente
exaltação e glória. Mais uma vez, o leitor mediano da Bíblia imagina que “o mundo” é
equivalente a toda a raça humana, e, consequentemente, muitas das passagens na quais
esse termo ocorre são mal interpretadas. Muitos também supõem que o termo
“imortalidade” não exige qualquer exame crítico, concluindo que se refere à
indestrutibilidade da alma. Mas nunca devemos presumir entender algo da Palavra de
Deus. Se a concordância for consultada, será encontrado que “mortal” e “imortal” nunca
são aplicados à alma do homem, mas sempre ao seu corpo.
“Santo” e “santificar” representam em nossas Bíblias em português uma e a mesma
palavra hebraica e grega no original, mas elas não são de modo algum usadas
uniformemente, antes possuem uma variedade de abrangência e aplicação; daí as diversas
definições dos homens. A palavra é de tal modo ampla que nenhum único termo em
português pode expressá-la. Que significa mais do que “separado” é claro a partir do que é
dito sobre o nazireu: “todos os dias da sua separação, ele é santo ao Senhor” (Números
6:8), dizer: “todos os dias da sua separação, ele é separado” seria uma tautologia sem
sentido. Assim, sobre Cristo, está escrito: “santo, inocente, imaculado, separado dos
pecadores” (Hebreus 7:26), onde “santo” significa muito mais do que “separado”. Quando
aplicada a Deus essa palavra indica a Sua majestade inefável (Isaías 57:15). Em muitas
passagens expressa uma qualidade moral (Romanos 7:12; Tito 1:8). Em outras, refere-se
à pureza (Efésios 5:26; Hebreus 9:13). Muitas vezes significa consagrar-se ou dedicar-se
a Deus (Êxodo 20:11; João 17:19). Quando o termo é aplicado ao Cristão conota, em
termos gerais: (1) a relação sagrada com Deus, em cuja graça fomos levados a Cristo; (2)
aquela bendita graça interior pelo qual o Espírito nos fez conhecer a Deus e nos capacitou
a ter comunhão com Ele e (3) a vida transformada resultante disso (Lucas 1:75; 1 Pedro
1:15).
A palavra “juízo” é outra que exige um verdadeiro estudo. Há julgamentos da boca de
Deus que Seus servos devem fielmente declarar (Salmos 119:13), ou seja, toda a revelação
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da Sua vontade, a regra pela qual devemos andar e pelo que Ele ainda nos julgará. Esses
“juízos” (Êxodo 21:1) são os decretos divinos que fazem conhecida a diferença entre certo
e errado. Há também juízos da mão de Deus: “Bem sei eu, ó Senhor, que os teus juízos
são justos, e que segundo a tua fidelidade me afligiste” (Salmos 119:75). Esses são a
disciplina graciosa que ele administra aos Seus filhos; enquanto aqueles que são o castigo
aos iníquos (Ezequiel 5:15), são maldições judiciais e punições. Em algumas passagens a
palavra “juízo” expressa o conjunto de providências de Deus, muitas dos quais são “um
grande abismo” (Salmos 36:6) e “inescrutáveis” (Romanos 11:33) a qualquer mente finita,
coisas que não devem ser esquadrinhadas por nós. Eles indicam o Seu governo soberano,
pois “justiça e juízo são a base do Seu trono” (Salmos 97:2), semelhantemente a retidão da
administração de Cristo (João 9:39). “Ele trará justiça [julgamento] aos gentios” (Isaías 42:1)
intenciona a doutrina justa de Seu Evangelho. Em Judas 14 e 15 a referência é às
operações solenes do último dia. “Ensina-me bom juízo e ciência” (Salmos 119:66), essa
passagem consiste em um pedido por prudência, uma compreensão mais clara para aplicar
o conhecimento de forma correta. “Fazer justiça e juízo” (Gênesis 18:19) significa sermos
justos e equitativos em nossas relações.
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Capítulo 13
________________________________________
19. O uso que o Espírito Santo faz das palavras. A interpretação correta de muitas
passagens somente pode ser satisfatoriamente estabelecida por uma cuidadosa
investigação de como os seus termos são usados pelos escritores canônicos, pois muitos
deles possuem uma aplicação totalmente diferente de seus significados encontrados no
dicionário. A significação das palavras das Sagradas Escrituras não deve ser determinada
pela sua etimologia, nem pelo sentido que lhes cabe nos escritos clássicos, mas sim pela
sua utilização efetiva nas Escrituras em hebraico e grego — com a ajuda da versão
Septuaginta. Cada termo deve ser definido em harmonia estrita com o sentido que lhe é
dado na própria Palavra. É porque o leitor médio da Bíblia interpreta muito de sua linguagem
de acordo com a forma como a mesma é utilizada comumente por seus companheiros que
ele tem um conceito inadequado, e muitas vezes degradante, de suas expressões. A
concordância o ajudará muito mais do que o dicionário. Considere a palavra “castigo”. Nos
lábios humanos significa punir, mas esse está longe de ser o seu significado quando lemos
sobre Deus usando a vara sobre Seus filhos, até mesmo “correção” está muito aquém.
Paideia é apenas outra forma de paidon, que significa “crianças” (João 21:5). É possível ter
um vislumbre da conexão direta que existe entre “discípulo” e “disciplina”; é igualmente
evidente no grego a relação entre o “castigo” e a “criança” — disciplina de filho expressa
isto com mais precisão (Hebreus 12:7).
Considere a grande verdade e glorioso privilégio da adoção. Provavelmente não
exagero dizer que apenas uma pequena porcentagem de Cristãos tem qualquer conceito
bíblico sobre a adoção. Nos assuntos humanos, refere-se a um procedimento através do
qual um menino ou menina que não estava sob a guarda de um homem e uma mulher se
torna legalmente seu filho. A partir disso, conclui-se com base no sacrifício expiatório de
Cristo e na obra da regeneração do Espírito que pessoas que anteriormente não tinham
qualquer relação com Deus, então, tornam-se Seus filhos. Tal ideia não é apenas grosseira,
mas totalmente errada. João 11:52 deixa bem claro que Cristo morreu por Seu povo sob a
consideração de serem filhos de Deus, e não de modo a se tornarem filhos de Deus; assim
tanto os hebreus no Egito (Êxodo 5) quanto os gentios em Corinto (Atos 18:10) foram
considerados por Deus como pertencentes a Ele próprio antes do que os primeiros fossem
resgatados e os últimos tivessem o Evangelho pregado a eles. “E, porque sois filhos [e não
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para torná-los assim], Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama:
Aba, Pai” (Gálatas 4:6). O Espírito é dado para vivificar, para comunicar a natureza de filhos
e para nos revelar a nossa união com Cristo.
A bênção inestimável da adoção foi concedida ao eleito pela predestinação, sendo o
desígnio de Deus nela torná-los Seus filhos, por um ato de Sua pura vontade soberana: “E
nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o
beneplácito de sua vontade” (Efésios 1:5). Assim, não é nem o que Cristo fez por eles, nem
o que o Espírito opera neles que os torna filhos de Deus. A adoção se refere àquele estado
de graça a que os eleitos são levados em virtude de sua união com Cristo. É uma lei de
filiação em exercício, em e através do Filho, Deus os designa à união e comunhão com Ele.
A adoção transmite o direito legal de todas as bênçãos que desfrutamos tanto aqui quanto
no porvir. “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus; e, se
filhos, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo” (Romanos 8:16-17). Como a santidade
é o que nos capacita para o Céu, a adoção ou filiação transmite o direito ao Céu. “A adoção
não tanto designa a bênção em si preparada na predestinação divina, ou a graça recebida
no chamado eficaz, quanto a herança que é concedida aos santos, sim, a glória celestial;
veja Romanos 8:23” (John Gill).
Os eleitos foram dados a Cristo antes da fundação do mundo na relação de filhos:
“Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu” (Hebreus 2:13) será Sua própria
exclamação triunfante no último dia, e nenhum deles será perdido. É bem verdade que pela
Queda eles ficaram separados de Deus e, portanto, havia necessidade dEle ser
reconciliado com eles e eles com Ele; eles se tornaram mortos em delitos e pecados, e,
portanto, necessitavam ser vivificados para andarem em novidade de vida. Mas observe
cuidadosamente como Gálatas 4:4-5 afirma que: “Mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus
enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para remir os [previamente dEle]
que estavam debaixo da lei, a fim de recebermos a adoção de filhos”, e porque éramos os
tais, o Espírito nos foi dado. A declaração de adoção foi feita pela primeira vez na
predestinação (Efésios 1:5), depois em Cristo, e, em seguida, no crente. Como o Puritano
Stephen Charnock tão sucintamente afirmou: “A adoção nos dá os privilégios de filhos, e a
regeneração, a natureza de filhos. A adoção nos coloca em um relacionamento com Deus
como Pai, a regeneração opera em nós a imagem do Pai. A regeneração nos faz
relativamente Seus filhos, conferindo um poder ou direito (João 1:12); a adoção nos faz
formalmente Seus filhos, por transmitir um princípio (1 Pedro 1:23). Por meio da
regeneração, somos conformados à imagem divina; pela adoção, somos feitos participantes
da mesma”.
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“Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas: não vim ab-rogar, mas cumprir”
(Mateus 5:17). Essa foi uma declaração importante, e uma correta compreensão da mesma
é essencial, particularmente quanto ao significado exato da sua palavra final. Determinados
a negar a todo custo a verdade evangélica que Cristo cumpriu a lei por uma obediência
vicária em favor de Seu povo, os Socinianos insistem que nessa passagem “cumprir”
significa completar ou preencher completamente. Mas essa definição é completamente
arbitrária, e é refutada pela regra da interpretação que agora estamos ilustrando. Como o
erudito Smeaton apontou:
Nenhum exemplo de tal uso pode ser dado quando o verbo é aplicado a uma lei
ou a uma demanda expressa contida no espírito da lei: caso em que uniformemente
significa “cumprir”. Assim é dito: “quem ama o próximo cumpriu [ou seja, guardou] a
lei” (Romanos 13:8). O uso inflexível da linguagem governa o sentido em tal frase, no
sentido de que Cristo deve ser entendido como dizendo que Ele não veio para
preencher ou completar a lei por elementos adicionais, mas para cumpri-la por ser
feito segundo a lei. Em segundo lugar, “preencher” é inadmissível enquanto aplicado
ao segundo termo ou objeto do verbo: Cristo não veio para preencher ou expor os
profetas, mas simplesmente para cumprir suas predições. Sempre que a palavra
usada aqui é aplicada a qualquer questão profética, sempre é encontrada em tal
contexto que só pode significar “cumprir”, e, portanto, não devemos nos desviar sua
significação constante. Em terceiro lugar, o verso 18 deve ser considerado como
dando uma razão para a declaração feita no verso 17. Mas, que tipo de razão seria
dada se devêssemos considerar os versos ligados assim: “Eu vim para preencher ou
completar a lei, pois em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem
um jota ou um til de modo algum passará da lei, até que tudo seja ‘cumprido’?”.
Além disso, deve ser cuidadosamente notado que o termo cumprir foi aqui colocado
por Cristo em antítese direta a “destruir”, o que determina ainda mais o seu alcance e
significado, pois destruir a lei não é esvaziá-la do seu significado, mas revogá-la ou anulá-
la. Assim, “cumprir” deve ser considerado em seu sentido simples e natural, no sentido de
realizar o que a Lei e os Profetas requeriam, confirmá-los, fazer bem o que eles exigiram e
anunciaram. A lei só pode ser cumprida por uma perfeita obediência sendo prestada a ela.
O que acaba de ser posto diante de nós leva-nos a apontar que a única forma segura
e satisfatória de resolver o velho conflito entre teólogos Protestantes e Papistas quanto ao
fato da palavra “justificar” significar tornar justo ou declarar justo é verificar como o termo é
usado pelos escritores canônicos, pois um apelo às Sagradas Escrituras não deixa a menor
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dúvida sobre a questão. Em primeiro lugar, quando nós somos ditos “glorificar a Deus” nós
não Lhe prestamos glória, mas anunciamos que Ele é glorioso. Quando somos convocados
a santificar ao Senhor Deus em nossos corações (1 Pedro 3:15), não O tornamos santo,
mas apenas afirmamos que Ele é santo. Do mesmo modo, quando é dit:o “para que sejas
justificado quando falares, e puro quando julgares” (Salmos 51:4), a intenção disso é que
Ele seja pronunciado justo em Seus vereditos judiciais. Em nenhum desses casos há a
menor ambiguidade ou incerteza, em nenhum há qualquer transformação operada no
Objeto do verbo, pois sugerir isso seria terrível blasfêmia. Quando a sabedoria é dita ser
“justificada por seus filhos” (Mateus 11:19), obviamente, isso significa que ela é vindicada
por eles. Assim a palavra justificar também não tem qualquer intenção diferente quando é
aplicada à aceitação do pecador diante de Deus.
Em segundo lugar, deve ser notado que em muitas passagens a justificação é
colocada em oposição à condenação. O significado de um termo é muitas vezes percebido
por avaliar aquele que é colocado em oposição a ele, assim como “destruir” é oposto a
“cumprir” em Mateus 5:17. “Quando houver contenda entre alguns, e vierem a juízo, para
que os julguem, ao justo justificarão, e ao injusto condenarão” (Deuteronômio 25:1). “O que
justifica o ímpio, e o que condena o justo, tanto um como o outro são abomináveis ao
Senhor” (Provérbios 17:15). “Porque por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras
serás condenado” (Mateus 12:37). Assim, o sentido forense do termo é definitivamente
estabelecido, pois nessas e em outras passagens duas sentenças judiciais são
mencionadas, as quais são exatamente o oposto uma da outra. Como condenar um homem
“não é torna-lo injusto”, mas é simplesmente o pronunciamento de uma sentença adversa
contra ele, assim justificar não é realizar qualquer aperfeiçoamento moral em seu caráter,
mas é simplesmente declará-lo justo. A palavra ainda é explicada por Romanos 3:19-20:
“...para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja [declarado] condenável diante
de Deus. Por isso nenhuma carne será justificada diante dele”, onde culpa e não-
justificação são sinônimos.
Mas, em todas as gerações Satanás e seus agentes têm trabalhado para fazer com
que os homens acreditem que quando a Escritura fala sobre Deus justificando pecadores,
isso significa tornar os homens justos por meio de algo que é infundido neles, ou algo
produzido por eles; desonrando assim a Cristo. Os primeiros capítulos de Romanos são
dedicados a uma exposição dessa importantíssima verdade. Em primeiro lugar, é mostrado
que “não há nenhum justo” (3:10), ninguém atende aos requisitos da lei. Em segundo lugar,
Deus providenciou uma justiça perfeita em e por meio de Cristo, e isso é revelado no
Evangelho (1:16-17, 3:21-22). Em terceiro lugar, essa justiça ou obediência vicária de Cristo
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é imputada ou contada como sendo daqueles que creem (4:11,24). Em quarto lugar, uma
vez que Deus creditou ao pecador que creu o cumprimento da lei por seu Substituto, o
pecador é justificado (5:1,18). Em quinto lugar, portanto, ninguém pode intentar qualquer
acusação contra aquele que é assim justificado (8:33). Assim, o pecador crente pode
exclamar jubilosamente: “No Senhor há justiça e força” (Isaías 45:24). “Regozijar-me-ei
muito no Senhor, a minha alma se alegrará no meu Deus; porque me vestiu de roupas de
salvação, cobriu-me com o manto de justiça” (Isaías 61:10). “Sairei na força do Senhor
DEUS, farei menção da tua justiça, e só dela” (Salmos 71:16).
Muitos supõem quando leem sobre a “presciência” de Deus (Atos 2:23; 1 Pedro 1:2)
que a expressão significa simplesmente Seu conhecimento de antemão. Mas a presciência
de Deus significa muito mais, expressando certeza infalível, porque ela se baseia em Seu
decreto eterno. Deus prevê o que ocorrerá porque Ele determinou o que ocorrerá. Na sua
forma verbal a palavra é de fato traduzida como “preordenou” em vez de “conheceu de
antemão” em 1 Pedro 1:20. Alguns Arminianos, em sua oposição inveterada à verdade, têm
insistido que a palavra “eleito” significa uma pessoa superior ou excelente, ao invés de
alguém escolhido, apelando para Cristo ser chamado de “o eleito” de Deus em Isaías 42:1.
Mas o Espírito Santo antecipou e refutou essa distorção miserável por definir o termo em
Mateus 12:18 (onde Ele cita Isaías 42:1), “Eis o meu servo, a quem escolhi”. Marcos 13:20,
define o significado de “eleito” de uma vez por todas: “por causa dos eleitos, a quem Ele
escolheu”.
No discurso comum “príncipe” significa aquele que é inferior ao rei, mas não quando
Cristo é chamado de “o Príncipe da paz” e “o príncipe da vida”, como resultado dEle ser o
“Príncipe dos reis da terra” (Apocalipse 1:5). Muitos têm estado intrigados pela mostarda
ter sido chamada de “maior das plantas” (Mateus 13:22), e o amor sendo maior do que a fé
(1 Coríntios 13:13), quando na verdade a fé é a sua raiz, mas “maior” não significa maior
em tamanho no primeiro caso, ou superior no último, porém o mais útil; os “melhores dons”
de 1 Coríntios 12:31, e “maior” em 1 Coríntios 14:5, significam mais útil.
20. Distinguir entre coisas que diferem, pois se não o fizermos a Bíblia parecerá
contradizer-se, e nossas mentes estarão em um estado de confusão desesperada. Se nós
descuidadamente generalizarmos e confundirmos coisas diferentes, nós não somente
formaremos uma concepção vaga delas, mas em muitos casos, conceberemos algo
completamente errado. É muito necessário que o expositor atente diligentemente para essa
regra, somente assim ele será capaz de dar a verdadeira explicação para muitos versos.
Não somente é importante discriminar entre duas coisas diferentes, porém muitas vezes
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fazer distinções entre os vários aspectos do mesmo assunto. Considere, em primeiro lugar,
a palavra “cuidado”. Em Lucas 10:41, encontramos nosso Senhor repreendendo Marta
porque ela estava “ansiosa e afadigada com muitas coisas”, e Seu servo escreveu: “E bem
quisera eu que estivésseis sem cuidado” (1 Coríntios 7:32); enquanto em Filipenses 4:6, os
Cristãos são exortados a “não estejais inquietos por coisa alguma”. Por outro lado, somos
exortados que não deve haver divisão na igreja local: “mas antes tenham os membros igual
cuidado uns dos outros” (1 Coríntios 12:25), e o apóstolo elogiou os santos penitentes pelo
“cuidado” deles e expressou a sua própria preocupação com seu bem-estar lhes falar sobre
o “nosso cuidado” por eles (2 Coríntios 7:11-12). Assim, há um “cuidado” que é proibido e
um cuidado que é necessário. O primeiro é uma solicitude piedosa e moderada, que conduz
à vigilância e à diligência sacrificial no desempenho do dever; o outro é um cuidado
destrutivo e excessivo que produz distração e preocupação.
De modo semelhante, devemos distinguir nitidamente entre dois tipos totalmente
diferentes de temor: um que é adequado, espiritual e útil; o outro carnal, inútil e prejudicial.
Os crentes são convidados a operar a sua própria salvação com temor e tremor (Filipenses
2:12), ou seja, com um temor consciente de desagradar Aquele que tem sido tão gracioso
para com eles. Por outro lado, “o perfeito amor lança fora o temor” (João 4:18), ou seja, o
medo servil que provoca tormento, aqueles pensamentos terríveis que nos fazem olhar
adiante para o dia do juízo com consternação. Deus deve “ser reverenciado” (Salmos 89:7);
ou seja, tido na mais alta estima e reverência, o deve coração profundamente
impressionado com Sua Majestade, maravilhado com Sua santidade inefável. Quando
lemos daqueles que: “Assim temiam ao Senhor, mas também serviam a seus deuses” (2
Reis 17:33), significa por causa de um temor de Sua vingança, eles passaram a adorá-lO
exteriormente, mas o amor de seus corações perversos foi colocado sobre os seus ídolos.
Assim, um temor filial inspira gratidão e um desejo de agradar e honrar a Deus, mas um
temor servil produz terror na mente por causa de uma consciência culpada, como foi o caso
de Adão (Gênesis 3:9-10), e é assim agora com os demônios (Tiago 2:19). Um atrai a Deus,
o outro afasta dEle; um leva à escravidão e ao desespero; o outro leva à humildade e
promove o espírito de adoração.
A fim de compreender certas passagens é absolutamente necessário reconhecer que
existe uma dupla “vontade” de Deus da qual fala a Escritura, pelo que não queremos dizer
a Sua vontade decretiva e Sua vontade permissiva, pois em última análise, esta é uma
distinção que não distingue, pois Deus nunca permite qualquer coisa que seja contrária ao
Seu propósito eterno. Não, nós nos referimos à distinção muito real que existe entre a Sua
vontade secreta e revelada, ou, como prefiro muito mais expressar isto, entre Sua
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predestinação e Sua vontade preceptiva. A vontade secreta de Deus consiste em Seus
próprios conselhos que Ele não divulga a ninguém. Sua vontade revelada é feita conhecida
em Sua Palavra, e é o que define o nosso dever e é o padrão de nossa responsabilidade.
A grande razão por que eu deveria adotar uma certa conduta ou fazer uma determinada
coisa é porque é a vontade de Deus que eu faça isso, e me revelou isso nas Escrituras,
como a regra pela qual eu devo andar. Mas suponha que eu ajo em contrário à Sua Palavra
e desobedeço, eu não contrariei a Sua vontade? Certamente. Então, isso significa que eu
tenha frustrado o Seu propósito? Seguramente não, por esse é sempre realizado, não
obstante a perversidade de Suas criaturas. A vontade revelada de Deus nunca é cumprida
perfeitamente por qualquer um de nós, mas a Sua vontade secreta ou preordenada nunca
é impedida por qualquer um (Salmos 135:6; Provérbios 21:30; Isaías 46:10).
O que acaba de ser referido acima é reconhecidamente um grande abismo, que
nenhuma mente finita pode compreender totalmente. No entanto, a distinção citada deve
ser feita, se não quisermos ser culpados de fazer as Escrituras se contradizerem. Por
exemplo, passagens como as seguintes evidenciam a universalidade e invencibilidade da
vontade de Deus que está sendo cumprida: “Mas, se ele resolveu alguma coisa, quem então
o desviará? O que a sua alma quiser, isso fará” (Jó 23:13). “Mas o nosso Deus está nos
céus; fez tudo o que lhe agradou” (Salmos 115:3). “E todos os moradores da terra são
reputados em nada, e segundo a sua vontade ele opera com o exército do céu e os
moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão, e lhe diga: Que fazes?” (Daniel
4:35). “Porquanto, quem tem resistido à sua vontade?” (Romanos 9:19). Por outro lado,
passagens como as seguintes têm referência à vontade revelada ou preceptiva de Deus,
que pode ser resistida pela criatura: “E o servo que soube a vontade do seu senhor, e não
se aprontou, nem fez conforme a sua vontade...” (Lucas 12:47). “Porque esta é a vontade
de Deus, a vossa santificação” (1 Tessalonicenses 4:3). “Em tudo dai graças, porque esta
é a vontade de Deus em Cristo Jesus para convosco” (1 Tessalonicenses 5:18). A vontade
secreta de Deus é o Seu propósito eterno e imutável a respeito de todas as coisas que Ele
fez, e é operada por meio e através das agências que Ele designou para esta finalidade, e
que não pode ser mais impedida por homens ou demônios mais do que eles podem impedir
a sol de brilhar.
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Capítulo 14
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Devido a certas passagens do Antigo Testamento, não poucos estiveram perplexos
com essa palavra: “Deus nunca foi visto por alguém” (João 1:18), essas palavras já foram
usadas como um argumento tolo por infiéis para “provar que a Bíblia está cheia de
contradições”. Tais versos necessitam de intérprete para explicar o seu sentido, e, assim,
distinguir entre coisas que diferem. Algumas dessas declarações que falam do Senhor
“aparecendo” para um e outro das grandes personagens do passado se referem à Sua
aparição como o Anjo da aliança; outras foram manifestações teofânicas, em que Ele
assumiu a forma humana (cf. Ezequiel 1:26; Daniel 3:25), o que profetizavam a encarnação
divina; outras significam que Ele foi visto pela fé (Hebreus 11:26). Quando Isaías declarou:
“eu vi também ao Senhor assentado sobre um alto e sublime trono” (6:1), isso significa que
ele o fez com os olhos de seu entendimento, em visão profética, e não com a visão corporal.
Deus, considerado essencialmente, é “invisível” (1 Timóteo 1:17), pois Sua essência ou
natureza não pode ser vista (1 Timóteo 6:16), não, nem por santos anjos nem pelos santos
glorificados no Céu. Quando se diz que O veremos “face a face” (1 Coríntios 13:12), isso
indica “clara e distintamente”, em contraste com “por espelho em enigma” (obscuramente)
na primeira parte do verso; embora o Senhor Jesus, na verdade, será visto face a face.
Um exame cuidadoso das diferentes passagens em que nosso Senhor é referido como
aparecendo ou voltando revela o fato de que nem todas elas fazem alusão ao Seu retorno
pessoal e público, quando Ele “aparecerá segunda vez, sem pecado, aos que o esperam
para salvação” (Hebreus 9:28). Assim, “Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós” (João
14:18), que tinha como referência, em primeiro lugar, a Sua vinda corporal aos Seus
discípulos após a Sua ressurreição e, em segundo lugar, a Sua vinda espiritual no dia de
Pentecostes, quando Ele lhes deu outro Consolador. “Se alguém me ama, guardará a
minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada” (João
14:23), vêm nas poderosas influências da graça e consolação divinas. “E pela cruz
reconciliar ambos com Deus em um corpo, matando com ela as inimizades. E, vindo, ele
evangelizou a paz, a vós que estáveis longe, e aos que estavam perto” (Efésios 2:16-17),
o que foi cumprido de forma mediada, no ministério de Seus servos, pois quem os recebe,
recebe a Cristo (Mateus 10:40). “Lembra-te, pois, de onde caíste, e arrepende-te, e pratica
as primeiras obras; quando não, brevemente a ti virei, e tirarei do seu lugar o teu castiçal,
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100
se não te arrependeres” (Apocalipse 2:5, e cf. 2:16), essa passagem fala de uma visitação
judicial. “Ele virá a nós como a chuva” (Oséias 6:3), todo avivamento espiritual e concessão
de graça é uma vinda do Senhor à alma.
Outro exemplo onde é necessário distinguir entre coisas que diferem é ao
observarmos cuidadosamente os vários sentidos e significados dados à palavra esperança.
Em algumas passagens a referência é à graça da esperança, a faculdade pela qual
esperamos um bom futuro, como em: “fé, esperança, amor” (1 Coríntios 13:13), da qual
Deus é o autor, “o Deus de esperança” (Romanos 15:13). Em alguns versos é o fundamento
da expectativa, sobre o qual ela repousa, como é dito sobre Abraão, “O qual, em esperança,
creu contra a esperança, tanto que ele tornou-se pai de muitas nações”, o que é explicado
no que se segue: “conforme o que lhe fora dito: Assim será a tua descendência” (Romanos
4:18), sua esperança repousava sobre a promessa segura de Deus. Em outros lugares é o
objeto da esperança que está em vista, as coisas que são esperadas, ou Aquele em quem
nossa confiança é colocada, como em: “esperança que vos está reservada nos céus”
(Colossenses 1:5); “Aguardando a bendita esperança” (Tito 2:13); “ó Senhor, esperança de
Israel” (Jeremias 17:13). Ocasionalmente, o termo significa a garantia do que é produzido,
como em: “a minha carne repousará em esperança” (Salmos 16:9 – trad. lit.) e “nos
gloriamos na esperança... e a esperança não traz confusão” (Romanos 5:2,5).
Para esclarecer o pensamento e fundamentar a doutrina é muito necessário distinguir
entre os três tempos e os vários aspectos da salvação de Deus. Como somos familiarizados
com essa palavra, ela é usada com frouxidão imperdoável (mesmo pela maioria dos
pregadores), através da falha em reconhecer que esse é o termo mais abrangente
encontrado nas Escrituras, e da falha em se esforçar para averiguar o modo como ele é
utilizado nelas. Frequentemente um conceito muito inadequado é formado sobre o âmbito
e conteúdo dessa palavra, e por ignorar as distinções que o Espírito Santo tem feito, nada
senão uma ideia obscura e confusa é obtida. Quão poucos, por exemplo, seriam capazes
de fazer uma simples exposição das seguintes afirmações: “Que nos salvou” (2 Timóteo
1:9, e cf. Tito 3:5); “operai a vossa salvação com temor e tremor” (Filipenses 2:12); “porque
a nossa salvação está agora mais perto de nós do que quando aceitamos a fé” (Romanos
13:11 e cf. 1 Pedro 1:5). Agora, esses versos não se referem a três salvações diferentes,
mas sim a três aspectos da mesma salvação. O primeiro como um fato consumado, a
salvação do deleite no pecado e da penalidade pelo pecado. O segundo como um processo
presente, quanto ao poder e atração pelo pecado. O terceiro como uma perspectiva futura,
a salvação da própria presença do pecado.
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Se o equilíbrio da verdade deve ser preservado e se devem ser evitados a má prática
de opor um aspecto contra o outro, ou de enfatizar em demasia um e ignorar o outro; um
cuidadoso estudo precisa ser feito sobre as diferentes causas e meios da salvação. Há
nada menos do que sete coisas que concorrem nessa grande obra, pois todos esses estão
ditos, em uma passagem ou em outra, “salvar-nos”. A salvação é atribuída ao Pai: “Que
nos salvou, e chamou com uma santa vocação” (2 Timóteo 1:9), devido ao Seu amor eletivo
em Cristo. Ao Senhor Jesus: “Ele salvará o seu povo dos seus pecados” (Mateus 1:21),
devido ao Seu mérito e expiação. Ao Espírito Santo: “nos salvou pela... renovação do
Espírito Santo” (Tito 3:5), devido às Suas operações todo-poderosas e eficazes. À
instrumentalidade da Palavra: “a palavra em vós enxertada, a qual pode salvar as vossas
almas” (Tiago 1:21), porque ela desvela a nossa necessidade e revela a graça, pela qual
podemos ser salvos. À obra dos servos do Senhor: “Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina.
Persevera nestas coisas; porque, fazendo isto, te salvarás, tanto a ti mesmo como aos que
te ouvem” (1 Timóteo 4:16), por causa da sua fidelidade à verdade. À conversão do
pecador, em que tanto o arrependimento e a fé são exercidos por ele: “Salvai-vos desta
geração perversa” (Atos 2:40), pelo arrependimento mencionado no verso 38; “pela graça
sois salvos, por meio da fé” (Efésios 2:8). Às ordenanças: “Que também, como uma
verdadeira figura, agora vos salva, o batismo” (1 Pedro 3:21), selando a graça de Deus em
um coração crente.
Agora, essas sete causas afirmativas da salvação precisam ser consideradas em sua
ordem e mantidas em seus devidos lugares, pois de outra forma haverá incalculável
prejuízo. Por exemplo, se elevamos uma causa subordinada acima de uma primária, logo,
todo o senso de verdadeira proporção é perdido. O amor e sabedoria de Deus são a causa
primária, o motivo primário de todo o restante. Em seguida, estão os méritos e satisfação
de Cristo, que também são a base de tudo o que se segue. As operações eficazes do
Espírito Santo produzem nos pecadores aquilo que é necessário para a sua participação
nos benefícios propostos pelo Pai e adquiridos por Cristo. A Palavra é o principal meio
utilizado por Deus para a convicção e conversão. Como o resultado da operação do Espírito
e da aplicação da Palavra em poder em nossos corações, somos levados ao
arrependimento e à fé. Nisso, é costume usual do Espírito Santo usar os ministros de Cristo
como Seus agentes subordinados. A Ceia do Senhor e o Batismo são meios pelos quais
expressamos nosso arrependimento e fé, e os temos confirmado a nós. Essas causas
concordantes também não devem ser confundidas, de modo que atribuímos a um anterior
o que diz respeito a outro posterior. Não devemos atribuir às ordenanças o que pertence à
Palavra, nem à conversão o que se origina por meio do Espírito, nem dar a Ele a honra que
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é peculiar a Cristo. Cada um deve ser cuidadosamente distinguido, definido e mantido em
seu devido lugar.
A necessidade de distinguir entre as coisas que diferem é ainda evidenciado pelo
seguinte. O caminhar em escuridão de Isaías 9:2 não é ocasionado pelo Senhor retirar a
luz de Sua face, mas é devido à ausência de instrução ministerial, e, portanto, deve ser
explicado por Amós 8:11; já em 1 João 1:6 deve considerando que andar em trevas consiste
em uma revolta aberta contra Deus. A palavra “morto” em João 6:49 significa morto
fisicamente; “não morra” no próximo verso significa morto espiritualmente; “nunca verá a
morte” em João 8:51, tem referência à segunda morte. A passagem “da morte para a vida”
de João 5:24, é legal, a recompensa da Lei, justificação; mas a passagem “da morte para
a vida” de 1 João 3:14, experiencial, significa regeneração. “Um novo homem” de Efésios
2:15, é aquele corpo místico composto de judeus e gentios salvos, do qual Cristo é a
cabeça; enquanto o “novo homem” de Efésios 4:24, é a nova condição e posição garantidas
pela regeneração, e que o beneficiário é ordenado a fazer manifesto em seu
comportamento diário. Quando é dito que Cristo foi “sem pecado” em Seu primeiro advento
(Hebreus 4:15) significa que Ele era pessoal e experimentalmente assim, sendo o Santo de
Deus; mas quanto é dito que Ele será “sem pecado” na Sua segunda vinda (Hebreus 9:28)
indica que Ele será imperativamente assim, não mais estará sob a culpa de Seu povo. Em
passagens como Romanos 5:1; Efésios 2:8; etc., “fé” significa o ato e graça da fé, mas em
1 Timóteo 3:9, 4:1 e Judas 3, “a fé” se refere ao corpo de doutrina revelada nas Escrituras.
21. O significado espiritual da Escritura: não simplesmente na aplicação que pode
razoavelmente ser feita de uma passagem, mas o seu conteúdo real. Nós temos em mente
aquelas passagens onde um objeto material ou transação histórica delineou ou indicou
objetos e experiências espirituais. Grande cuidado deve ser tido aqui, para que por um lado
não sejamos escravos do “literalismo”, de modo que percamos o significado mais profundo
e sentido mais elevado de muitas coisas na Palavra de Deus; ou que, por outro lado,
usemos livremente a nossa imaginação e “leiamos” em um verso o que não está lá ou
“carnalizemos” o que deve ser considerado em seu sentido simples e natural. Contra ambos
os males, o expositor precisa estar constantemente em vigilância. Salientamos também
que, em não poucos casos, as Escrituras possuem tanto um sentido literal quanto místico,
e uma das tarefas que cabem ao intérprete é anunciar cada um deles de forma clara. Alguns
exemplos deixarão mais claro o que queremos dizer.
Os seis primeiros versos do Salmo 19 contêm uma descrição sublime das perfeições
de Deus como são demonstradas na criação material, especialmente nos corpos celestes;
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no entanto, é bastante evidente que o apóstolo Paulo também considerou o que é dito do
sol e as estrelas como sendo seu emblema divinamente designado do reino da graça. Pois,
em Romanos 10:4-17, descobrimos que ele tinha diante de si o anúncio universal do
Evangelho, e que no verso 18, ele citou o Salmo 19: “Mas digo: Porventura não ouviram?
Sim, por certo, pois ‘por toda a terra saiu a voz deles, e as suas palavras até aos confins
do mundo’”. Ministros de Cristo são chamados “estrelas” (Daniel 12:3; Apocalipse 1:20),
pois como as estrelas iluminam todas as partes da Terra, assim os mensageiros
evangélicos irradiam os raios da luz e da verdade sobre a escuridão de um mundo ímpio.
E assim como não há nenhum discurso ou linguagem em que a voz das estrelas celestes
não é ouvida, pois elas são tantas línguas proclamando a glória de seu Criador, assim os
ministros de Cristo têm, em diferentes períodos da história, anunciado as boas novas de
Deus em toda linguagem humana. No dia de Pentecostes homens de muitas nações
ouviram os servos de Deus falarem em suas próprias línguas as grandezas de Deus, de
modo que mesmo então, o testemunho dos apóstolos foi anunciado “em todo o mundo”
(Atos 2:9-11, e cf. Colossenses 1:5,6,23).
É evidente a adequação da interpretação espiritual do apóstolo sobre o Salmo 19:4, e
ele nos fornece uma chave de valor inestimável para a abertura do que se segue
imediatamente. À luz das profecias messiânicas é bastante clara, o que é dito nos versos
5 e 6 deve ser entendido, em última instância, sobre o próprio Cristo, pois em Malaquias
4:2, Ele é expressamente chamado de “o Sol da justiça”, que deve “trazer curas nas suas
asas”. Como o sol é um corpo celeste, assim o Salvador não é da Terra (João 8:23), mas
é “o Senhor do céu” (1 Coríntios 15:47). Assim o salmista passou a dizer: “neles [nos céus]
pôs uma tenda para o sol”. A ênfase é ao luminar central no firmamento, todos os menores
sendo perdidos de vista. Assim é no Evangelho: somente um objeto central é estabelecido
e magnificado ali. Como nos céus particularmente o sol exibe a glória natural de Deus,
assim o Evangelho, ao revelar o Filho, manifesta a glória moral de Deus. Muito
apropriadamente o Evangelho é comparado a uma “tenda” ou tabernáculo (em vez de um
templo fixo), pois, como Israel no passado, assim ele tanto contém e ainda resguarda a
glória de Cristo, e é designado para se mover livremente de um lugar para outro, em vez
de ficar estático.
“O qual é como um noivo que sai do seu tálamo”. Assim como o sol no início da manhã
lança para trás as cortinas do seu pavilhão, o raiar da luz dispersa a sombra da noite, assim
no Evangelho, Cristo aparece como um Noivo, removendo a escuridão da não-regeneração
de Seu povo, de modo a ser amado e admirado por todos os que creem. “E se alegra como
um herói, a correr o seu caminho”, estando plenamente assegurado de Seu triunfo
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(Apocalipse 6:2). “A sua saída é desde uma extremidade dos céus”, em Miquéias 5:2,
somos informados de que Cristo tem “saídas [que] são desde os tempos antigos, desde os
dias da eternidade”. Essas saídas ocorreram, em primeiro lugar, na medida em que o Pacto
Eterno é em tudo bem ordenado e seguro, no qual Ele prometeu “Eis aqui venho... Para
fazer, ó Deus, a tua vontade”. Em segundo lugar, nos anúncios de profecia, quando, de
Gênesis 3:15 em diante, as cortinas foram gradualmente removidas, pois a Pessoa do
Messias vai sendo desvelada em crescente distinção, até que em Isaías 53 Ele foi
totalmente revelado. Em terceiro lugar, nas missões Evangélicas por toda a Terra, que
continuará até à Sua ainda mais grandiosa aparição. Quando Ele brilha em uma alma “nada
se esconde ao seu calor”. Essa interpretação é confirmada pelo verso 7: “A lei do Senhor é
perfeita, e refrigera a alma”.
O oitavo Salmo nos fornece um outro exemplo de uma passagem da Escritura que
tem um duplo significado: um natural e um espiritual. O âmbito principal desse Salmo, como
seus versos inicial e final mostram, é magnificar o Criador, exaltando as maravilhas de Suas
mãos. Conforme Davi contemplava as belezas e maravilhas do céu, ele tinha um senso de
sua própria nulidade, de modo que ele exclamou: “Que é o homem mortal [enosh: homem
frágil, insignificante], para que te lembres dele? e o filho do homem [um diminutivo de
“homem”], para que o visites?”. Depois, a sua admiração aprofundou-se quando ele passou
a dizer: “Pois pouco menor o fizeste do que os anjos, e de glória e de honra o coroaste.
Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de
seus pés”. É aí que vemos tanto a soberania quanto a graça abundante de Deus, em tão
altamente elevar alguém tão humilde. Isto encheu o Salmista de assombro e admiração,
que Deus tivesse colocado todas as criaturas do mundo em sujeição ao homem, em vez de
aos anjos (Gênesis 1:28). É nisso que vemos a bondade de Deus para com a humanidade,
e o alto favor que lhe foi conferido. Mas isso não representa o alcance e sentido total dos
versos.
O Salmo 8:4-6 é citado pelo apóstolo em Hebreus 2:6-8, onde ele estava provando a
partir das Escrituras a superioridade imensurável de Cristo sobre os anjos. Ele realmente
foi por pouco tempo (durante o período de Sua humilhação) feito menor do que os anjos,
mas depois que Ele concluiu triunfantemente a obra que Lhe foi dada, Deus O exaltou muito
acima deles. Assim, o que foi dito por tempo indeterminado sobre o “homem”, sobre Davi,
Paulo aplica definitiva e espiritualmente a Cristo, para depois dizer: “mas agora ainda não
vemos que todas as coisas lhe estejam sujeitas”, ele imediatamente acrescentou: “Vemos,
porém... Jesus”, o que significa que vemos cumprido nEle os termos desse antigo oráculo.
Toda margem para dúvidas a esse respeito é removida pelas próximas palavras de Paulo:
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“coroado de glória e de honra... que fora feito um pouco menor do que os anjos”. O Salmo
8 é messiânico e deve ser visto ainda ao lado daquelas passagens citadas a partir dele em
Mateus 21:16 e 1 Coríntios 15:27, que se aplicam, sem dúvida, ao Senhor Jesus. A
linguagem utilizada por Davi, então, era muito mais do que uma exultação natural de
admiração pelas obras de Deus na criação, a saber, foi um êxtase espiritual ao ser
concedida uma visão sobre o mistério da graça, o reino de Cristo e o amor do Pai pela
pessoa do Mediador.
Mas a exultação do espírito de Davi foi estimulada com algo mais do que aquilo que
acaba de ser apontado: o “homem” a quem ele contemplou era o “homem novo”, o “homem
perfeito” de Efésios 2:15 e 4:13, aquele homem espiritual do qual Cristo é a Cabeça. A
afirmação de Davi referia-se, em última análise, não somente a Cristo pessoal, mas à
Pessoa de Cristo místico, pois o Redentor compartilha com os Seus remidos os despojos
de Sua vitória e admite-os a uma participação em Sua recompensa. Eles são Seus
“coerdeiros” (Romanos 8:17), e essa é a glorificação deles que o Salmo 8:5-6, tinha em
vista finalmente. Mesmo agora, os anjos estão em uma posição de subordinação a eles
(Hebreus 1:14) e no dia vindouro os remidos serão “coroados de glória e honra”. “Ao que
vencer lhe concederei que se assente comigo no meu trono” (Apocalipse 3:21, e cf. 21:7).
A exaltação de Cristo é a garantia do Cristão, pois Ele entrou no Céu como as primícias, o
penhor da colheita futura. Oh, que perspectiva há aqui para a fé apossar-se da esperança
e desfrutar desde agora! Se isso fosse mais real para nós, estaríamos mais envolvidos em
nos desviar de olhar do presente para o futuro, seríamos repletos de admiração e louvor, e
as tribulações triviais e os problemas dessa vida nos afetariam muito menos.
O Salmo 89 nos fornece mais uma ilustração do princípio que estamos aqui tratando,
e um muito impressionante e importante. Historicamente, esse Salmo olha para trás, para
o que está registrado em 2 Samuel 7:4-17, ou seja, a aliança que o Senhor fez com Davi;
mas ninguém com os olhos ungidos pode ler esse Salmo sem rapidamente perceber que
alguém maior do que o filho de Jessé está ali em vista, nomeadamente, o seu Salvador. À
luz de Isaías 42:1: “Fiz uma aliança com o meu escolhido, e jurei ao meu servo Davi”
(Salmos 89:3), é bastante claro que a referência espiritual é ao Pacto de Graça que Deus
fez com o Mediador antes da fundação do mundo; compare: “Então falaste em visão ao teu
santo” (v. 19). Isto ainda é confirmado no que imediatamente se segue: “A tua semente
estabelecerei para sempre, e edificarei o teu trono de geração em geração” (v. 4), o que
não é verdade quanto ao Davi histórico. Como observou Spurgeon: “Davi deve ter sempre
uma semente, e realmente isso é cumprido em Jesus, além de suas expectativas. Que
semente Davi tem na multidão que surgiu dAquele que era ao mesmo tempo o seu Filho e
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o seu Senhor! O Filho de Davi é o grande Progenitor, o último Adão, o Pai da eternidade;
Ele vê a Sua semente, e neles contempla o fruto do trabalho da Sua alma. A dinastia de
Davi nunca decai, mas, pelo contrário, está cada vez mais consolidada pelo grande
Arquiteto do Céu e da Terra. Jesus é um Rei, bem como um Progenitor, e Seu trono está
edificado para sempre”. À medida que lemos esse Salmo, verso após verso, somos
compelidos a olhar para além do literal em direção ao espiritual, até que o clímax é atingido
no verso 27, onde Deus diz sobre o antitípico Davi: “Também o farei meu primogênito mais
elevado do que os reis da terra”.
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Capítulo 15
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1 Coríntios 10:1-4 fornece outra ilustração do que estamos tratando aqui, a saber, o
conteúdo espiritual de muitas passagens na Palavra de Deus: “Ora, irmãos, não quero que
ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem, e todos passaram pelo mar.
E todos foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, e todos comeram de uma mesma
comida espiritual, e beberam todos de uma mesma bebida espiritual, porque bebiam da
pedra espiritual que os seguia; e a pedra era Cristo”. Como uma questão de fato, histórica
e divinamente registrada, eles comeram do alimento físico e beberam da água que,
literalmente, fluiu de uma pedra; ainda assim, por mais três vezes o apóstolo declarou que
o mesmo ocorria de modo espiritual. Ao fazê-lo, Paulo não estava apenas intencionando
que havia uma estreita analogia entre o relacionamento de Deus com os hebreus do
passado e com os Seus santos hoje; antes, ele estava insistindo que as experiências no
deserto de Israel segundo a carne esboçavam as experiências da alma de Israel segundo
o espírito. Não é apenas que as instituições divinas sob o judaísmo possuíam um significado
simbólico e típico, mas que os Cristãos entram na substância espiritual do que eles tinham
apenas como sombras. Cristo é o nosso altar (Hebreus 13:10), nossa páscoa (1 Coríntios
5:7), nosso Sumo Sacerdote (Hebreus 4:14). Em Cristo nós somos circuncidados
espiritualmente (Colossenses 2:11).
“Mas chegastes ao monte Sião” (Hebreus 12:22) também deve ser entendido
espiritualmente, e não de modo literal. Isso deve ser bastante óbvio, mas, por causa das
ideias grosseiras e carnais dos Dispensacionalistas modernos há necessidade que
insistamos nesse ponto. Essa é uma das muitas passagens em que as bênçãos e privilégios
da Nova Aliança são expressos em linguagem extraída da Antiga, o antítipo sendo
apresentado sob a fraseologia do tipo. Assim, quando Cristo anunciou o livre caminho que
agora há entre o Céu e a Terra, e o que Sua obra redentora efetuaria, Ele o descreveu em
palavras tiradas da visão de Jacó: “Na verdade, na verdade vos digo que daqui em diante
vereis o Céu aberto, e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem”
(João 1:51). Tão notável e plena foi essa declaração, que contém muito mais em si do que
foi discernido pela maioria dos expositores. Ele não somente declarou que seria restaurada
uma relação bendita entre os santos espíritos do mundo superior e os santos enquanto aqui
em baixo, mas também revelou a base sobre a qual essa relação se baseia, fornecendo a
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chave para passagens como Atos 12:7 e Hebreus 1:14. Deve ser cuidadosamente
observado que Cristo aqui refere a Si mesmo como “o Filho do homem”, um título que alude
uniformemente à Sua auto-humilhação como o último Adão, ou a algumas das
consequências da Sua obediência até à morte.
Como o resultado da morte expiatória de Cristo, um novo e vivo caminho foi aberto na
presença de Deus, os pecadores lavados pelo sangue têm o direito de se aproximarem
dEle, em plena certeza de fé. Mas João 1:51 ensina algo mais do que o Redentor ser o elo
da união entre o Céu e a Terra, o único Mediador entre Deus e os homens; a saber, que
um dos frutos preciosos de Sua obra expiatória é a restauração daquela relação, há tempos
rompida, entre os homens e os anjos. Como Cristo derrubou a parede de separação entre
judeus e gentios através da Sua morte na cruz, tendo assim matado a inimizade que havia
entre eles, dessa forma Ele também pôs fim ao estranhamento que o pecado causara entre
anjos e homens; eles são considerados como os dois ramos de uma mesma família,
reunidos e unidos sob uma cabeça (Efésios 1:10). Pelo sangue da Sua cruz, Cristo
reconciliou todas as coisas no Céu e na Terra (Colossenses 1:20), unindo-os em uma feliz
comunhão, e por essa razão um anjo diz a João: “Sou teu conservo, e de teus irmãos, que
têm o testemunho de Jesus” (Apocalipse 19:10). Assim João 1:51 nos ensina que Cristo é
o Mediador de uma comunhão espiritual entre os habitantes da Terra e do Céu, e o
Mantenedor dessa comunhão.
Agora, como Cristo anunciou a unidade que Ele produziria entre os anjos e Seu povo
por uma alusão à visão de Jacó, assim Ele se referiu ao paraíso como o “seio de Abraão”
(Lucas 16:22), e Seu apóstolo falou da Nova Aliança (prefigurada por Sara) como “a
Jerusalém que é de cima é livre; a qual é mãe de todos nós” (Gálatas 4:26) e os santos do
Novo Testamento como “circuncisão” (Filipenses 3:3). De modo semelhante (para voltar a
Hebreus 12:22), quando Ele disse: “Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus
vivo”, se referiu à “Sião” espiritual, ou àquele estado abençoado e glorioso no qual os
crentes foram chamados pelo Evangelho. Essa linguagem olha para trás, é claro, para o
Antigo Testamento, onde (de acordo com as diferentes grafias em hebraico e grego) é
chamado de “Sião”, o que representou ou exemplificou a maior revelação da graça divina
nos tempos do Antigo Testamento. Era o lugar de habitação de Deus (Salmos 76:2). Era o
objeto do amor especial de Deus e o local de nascimento dos seus eleitos: “O Senhor ama
as portas de Sião, mais do que todas as habitações de Jacó. Coisas gloriosas se dizem de
ti, ó cidade de Deus. (Selá)... E de Sião se dirá: Este e aquele homem nasceram ali; e o
mesmo Altíssimo a estabelecerá” (Salmos 87:2,3,5). A salvação e todas as bênçãos eram
ditas ser provenientes de Sião (Salmos 128:5, 134:3).
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Sião não era apenas o local do templo, mas o trono a partir do qual Davi reinou e
governou o reino de Israel, emitindo suas leis e estendendo o poder do seu governo sobre
toda a terra santa. Como tal, prefigurava o reino do Messias. É (em cumprimento da
promessa do Pai) para Sião celestial que o Senhor Jesus foi exaltado (Salmos 2:6, e cf.
Hebreus 2:9), e Ele estende o Seu cetro sobre os corações de Seu povo. Sião é onde o
Davi espiritual é entronizado, e de onde “a vara da Sua força” é manejada, não só para
trazer os Seus remidos em submissão voluntária, mas dominará “no meio dos teus inimigos”
(Salmos 110:2; Isaías 2:3). Assim, ao dizer aos crentes do Evangelho: “Mas chegastes ao
monte Sião, e à cidade do Deus vivo”, o Espírito Santo assegura que a eles foi dada uma
participação pessoal em todas as coisas notáveis ditas sobre Sião em qualquer passagem
nas Escrituras, e que o conteúdo espiritual daquelas boas coisas pertence aos santos do
Novo Testamento em particular, e que eles têm acesso ao trono espiritual do antítipo Davi
— o trono da graça. Uma vez que “todas quantas promessas há de Deus, são nele sim, e
por ele o Amém...” (2 Coríntios 1:20), então aqueles que estão em Cristo têm o direito e os
títulos a todas as coisas gloriosas faladas de Sião no Antigo Testamento. Compare Josué
1:5 e Hebreus 13:5-6, para uma ilustração desse princípio.
Há um outro tipo de passagens, um pouco diferentes daquelas citadas acima, que
precisa ser considerado no âmbito do presente tópico sobre a importância espiritual de
versos da Palavra. Estes podem ser adequadamente introduzidos por uma declaração em
Apocalipse 11:8: “E os seus corpos jazerão na praça da grande cidade, que espiritualmente
se chama Sodoma e Egito, onde também o seu Senhor foi crucificado”. Como poderia muito
bem ser esperado, mesmo por aqueles que têm apenas relativamente pequena
familiaridade com as numerosas obras sobre o Apocalipse, e com as suas diversas
interpretações, os comentaristas diferem amplamente em suas explicações sobre esse
verso. Não nos propomos acrescentar a esse grande número, tentando identificar as “duas
testemunhas” ou determinar se a “grande cidade” onde eles jazerão mortos deve ser
entendida literal ou simbolicamente, nem se a referência é a algum lugar ou algo no
passado, no presente ou no futuro, pois tais especulações não possuem nenhum valor
prático, oferecendo pequena ajuda na luta do bom combate da fé. É suficiente para o nosso
presente propósito, simplesmente chamar a atenção do leitor para as palavras que temos
em itálico, e apontar como essa afirmação estabelece mais uma vez o princípio de exegese
que estamos ilustrando aqui.
Ao dizer que a “grande cidade” de Apocalipse 11:8, espiritualmente chama-se Sodoma
e Egito, o Espírito Santo dá a entender que ela é caracterizada pelos mesmos males que a
Escritura nos ensina a associar àqueles lugares, aquela imundície de Sodoma e crueldade
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do Egito, ao afligirem a vida do povo de Deus no passado, marcou a cena onde as duas
testemunhas testificaram sobre Deus e foram mortos por sua fidelidade. É provável que a
linguagem de Apocalipse 11:8 contenha uma alusão a Ezequiel 16:44-59, onde repetida
menção é feita sobre uma Sodoma mística. “Mística”, dizemos, pois quando o Senhor
declarou: “Eu, pois, farei voltar os cativos delas; os cativos de Sodoma e suas filhas” (v.
53), e a questão a ser feita, se ainda haverá uma restauração das históricas Sodoma e as
outras cidades da planície, ou seja, apenas materializam o que deve ser entendido
espiritualmente (por literalizar o que é figurado), e deveria transferir o assunto aqui falado
do governo moral de Deus para com os homens, para o mero reino natural dos arranjos
providenciais divinos referentes ao mundo material.
Quando o Senhor disse aos habitantes de Jerusalém: “Tu és filha de tua mãe, que
tinha nojo de seu marido e de seus filhos... vossa mãe foi hetéia, e vosso pai amorreu”
(Ezequiel 16:45), Ele estava acusando-os de serem culpados das mesmas abominações
que caracterizavam os habitantes originais da Palestina, que muito precocemente
apostataram de Deus, sendo entre os primeiros idólatras depois do grande dilúvio. “Vivo
eu, diz o Senhor DEUS, que não fez Sodoma, tua irmã, nem ela, nem suas filhas, como
fizeste tu e tuas filhas. Eis que essa foi a iniquidade de Sodoma, tua irmã: Soberba, fartura
de pão, e abundância de ociosidade teve ela e suas filhas; mas nunca fortaleceu a mão do
pobre e do necessitado” (16:48-49). Deus se dirigiu assim à nação judaica apóstata e
corrupta porque havia trilhado o caminho contaminado e imitado os pecados da antiga
cidade de má fama. Designar o povo da aliança como “Sodoma”, porque a situação e
costumes desses eram idênticos, era uma das maneiras mais solenes e impressionantes
que poderiam ser empregadas para descrever a sua depravação inveterada e caráter vil.
Claro, então, é que “hetéia”, “amorreu” e “Sodoma” nesses versos não devem ser
considerados mais literalmente do que “Davi” em Ezequiel 34:23, ou “Balaão” e “Jezabel”
em Apocalipse 2:14,20.
Mais uma ilustração desse tipo deve ser suficiente. Quando Seus discípulos
perguntaram a Cristo: “Por que dizem então os escribas que é mister que Elias venha
primeiro?”. Ele lhes respondeu: “Em verdade Elias virá primeiro”, e nos é dito: “Então
entenderam os discípulos que lhes falara de João o Batista” (Mateus 17:10-13). Essa é uma
das passagens que os Teosofistas apelam como apoio da sua crença na reencarnação, e
se as palavras do Senhor fossem tomadas em seu valor literal, então deveríamos admitir
que elas oferecem, no mínimo, alguma brecha para essa teoria. Como os
Dispensationalistas de nossos dias, os escribas eram grandes defensores da letra da
Escritura, e insistiam que aquela promessa divina: “Eis que eu vos enviarei o profeta Elias,
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antes que venha o grande e terrível dia do Senhor” (Malaquias 4:5), significava exatamente
o que Ele disse. Aqui é certamente outro caso em questão, onde é necessário que o
intérprete cuidadosamente compare Escritura com Escritura e anuncie o significado
espiritual das palavras. Que João Batista não era a pessoa real do tisbita é bastante claro
a partir de sua própria negação, pois quando ele foi perguntado: “És tu Elias?”, Ele declarou
expressamente: “Eu não sou” (João 1:21). Por conseguinte, a questão permanece: O que
nosso Senhor intencionava quando disse sobre o Seu precursor “Elias virá primeiro”?
Que Cristo estava afirmando uma verdade profunda, a qual pode ser apreendida
apenas por almas espiritual e divinamente iluminadas, quando declarou que João Batista
era Elias, é muito evidente a partir de Suas palavras aos apóstolos em Mateus 11:13-14:
“Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João. E, se quereis dar crédito, é este o
Elias que havia de vir”. Essas palavras também continham uma repreensão indireta às suas
crenças e sentimentos carnais a respeito do esperado reino do Messias. Seu acréscimo,
“quem tem ouvidos para ouvir, ouça” (v. 15) confirma o que acabamos de sinalizar, pois
essa exortação não era feita, exceto quando algo difícil para o homem natural entender
estava em questão. João Batista foi rejeitado pelos líderes de Israel. Herodes o decapitou,
e Cristo declarou que Ele também “padeceria” (Mateus 17:12), e isso era algo que
dificilmente estaria de acordo com suas opiniões. Um Messias sofredor, cujo arauto tinha
sido assassinado, era difícil de harmonizar com o ensinamento dos escribas relativos a
Malaquias 4:5; ainda assim, não há nada nesse verso que deve nos fazer tropeçar hoje,
pois o nosso Senhor revelou de modo muito claro o seu significado.
Além da elucidação de Malaquias 4:5, fornecida acima, deve ser ressaltado que a
passagem-chave que abre o mistério é Lucas 1:17, onde foi anunciado que João viria antes
de Cristo “no espírito e virtude de Elias”, linguagem que significa manifestamente que ele
não era uma reencarnação do tisbita. A unidade essencial dos dois homens em seu caráter
e obra transmitiam a ideia de que o anterior seria uma profecia do outro. O último apareceu
num momento em que as condições eram muito semelhantes àquelas que caracterizaram
o estado de Israel nos dias de Acabe. As semelhanças entre os dois homens são muitas e
notáveis. João era essencialmente um pregador do arrependimento. Ele era um homem de
grande austeridade, vestido de forma semelhante ao profeta de Gileade. O julgamento real
foi feito a respeito de sua fidelidade, e também pelo ódio e perseguição dos ímpios, mas
ele era zeloso pelo Senhor, tanto em reprovar o pecado mesmo dos poderosos e na busca
pela reforma de sua nação. Tanto a sua missão quanto a sua disposição eram semelhantes
em caráter às de Elias.
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Antes de deixarmos essa parte de nosso assunto complexo, um grupo muito mais
numeroso de passagens, que também diferem consideravelmente daquelas já observadas,
exige a nossa atenção, a saber, as que delineiam os altos e baixos da vida Cristã. Muitas
delas são apresentadas em termos simples e literais, outras em linguagem altamente
figurativa ou típica. Ainda outras estão escondidas atrás de acontecimentos históricos que
foram divinamente designadas à sombra diante das provações e tentações, as rebeldias e
quedas, os conflitos e castigos, as esperanças e as decepções, os avivamentos e
restaurações dos santos nesta época. Temos deixado estas para o fim, não porque são de
menor importância, mas porque exigem um expositor divinamente ensinado e maduro para
lidar com elas. Elas demandam alguém que esteja bem familiarizado com o seu próprio
coração, tanto com o funcionamento da corrupção quanto com as operações da graça em
seu interior, bem como um com um conhecimento considerável dos “caminhos” de Deus,
caso queria traçar as diferentes experiências de Seu povo como se registradas nas
Escrituras. É relativamente fácil anunciar o significado espiritual de Êxodo 15:23-25, ou do
Salmo 23, por exemplo; porém é mais difícil (embora necessário) anunciar o do Salmo 38:9-
10, 63:1-2, 107:17-20; Provérbios 24:30-34; Isaías 17:10-11 e Oséias 2:14-15.
Vamos agora ilustrar a partir da história de Jonas, como esta retrata espiritualmente a
experiência de muitos santos desviados. O Senhor deu a esse profeta um mandamento,
mas este era contrário às suas inclinações naturais. Ele desobedeceu, buscando fugir “da
presença do Senhor”, fazendo com que sua vontade própria enfraquecesse o espírito de
oração e apreço pela Palavra. Jonas desceu para um navio, buscando as coisas do mundo.
Deus começou a castigá-lo, através do envio de “um grande vento no mar” por causa de
sua desobediência. Isso deveria ter falado em voz alta à sua consciência, mas, infelizmente,
ele estava dormindo. Jonas não percebeu a primeira manifestação da insatisfação divina e,
portanto, não estava incomodado quanto a isso. Assim é com um santo desviado: a
consciência fica sonolenta quando Deus aflige, ele está muito entorpecido para “ouvir a
vara”. Mas Deus não permitiria que Jonas ficasse indiferente. Ele foi severamente
despertado de seu sono pelo comandante, as sortes foram lançadas e caíram sobre o
próprio Jonas. Sua fala “levantai-me, e lançai-me ao mar” (1:12) era a linguagem desse
desânimo que vem sobre alguém quando é levado a colher tempestades. No entanto, Deus
não abandonou Seu filho rebelde e desesperado: Ele “preparou um grande peixe para
engolir Jonas”, e sobrenaturalmente o preservou. A sequência é abençoada: disse esse
homem errante: “Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu” (2:2); sim, e o
libertou.
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Em suas características essenciais, essas são as experiências comuns de um crente
que, ao seguir inclinações carnais, está determinado a trilhar o seu próprio caminho. Em
sua misericórdia o Senhor corrige alguém assim por causa de sua vontade própria e
carnalidade. Quando ele age como “um novilho ainda não domado” (Jeremias 31:18), e
adota uma conduta de desobediência, Deus frustra os seus planos de autogratificação e o
impede de chegar a alguma Társis em que ele pôs o seu coração. O Senhor não permitirá
que os Seus próprios façam o que quiserem. Por meio de Sua providência, um “grande
vento” vem e frustra os seus desejos e projetos. Se eles não conseguem ver a mão de Deus
nisso, e não se humilham penitentemente, em seguida, Sua vara ainda recai mais
pesadamente sobre eles. Então, eles clamam a Deus em sua aflição. Observe como Jonas
olhou para além de todos os instrumentos e reconheceu: “Porque tu me lançaste no
profundo” (2:3) e confessou a sua loucura (2:8). Em sua afirmação: “o que votei pagarei”
(2:9) nós vemos que ele foi restaurado a um espírito de submissão; enquanto sua
declaração: “a salvação é do Senhor”, atribui livremente a sua restauração à bondade
divina. Assim Jonas 1 e 2 contêm um retrato espiritual das tribulações de um santo que se
rebela e da fidelidade e misericórdia de Deus em Seu lidar com ele.
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Capítulo 16
________________________________________
Existem certos tipos de mentalidade, particularmente místicas e fanáticas, que são
propensas a substituir conceitos fantasiosos por interpretações espirituais. A Palavra de
Deus precisa ser manuseada com temor reverente, e com muita oração por discernimento
e orientação, para que não pisemos no solo sagrado com os sapatos da sabedoria carnal;
ou com a mentalidade inexperiente, que busca novidades, dando asas à sua imaginação,
em vez de disciplinar-se a respeitar estritamente a analogia da fé. Todo pregador precisa
estar constantemente em vigilância contra substituir a engenhosidade humana pelo ensino
do Espírito. Satanás já imitou as operações do Espírito, e falsificou um entendimento
espiritual das Escrituras, por perversões grosseiras das mesmas. Um exemplo antigo disso
é a Cabala, que embora grandemente estimada entre os judeus, é abundante nas
explicações mais absurdas das Sagradas Escrituras. A imprudente alegorização da
Orígenes é outro exemplo a ser evitado, pois ele torceu os textos mais simples e claros nas
formas e sentidos mais grotescos. O estranho sistema de exegese adotado por
Swedenborg é mais um caso disso. A imaginação precisa ser freada tanto por uma
consciência sensível quanto pelo espírito de uma mente sã.
É justamente na medida em que realmente valorizamos a interpretação espiritual da
Palavra de Deus, que nós abominaremos todas as falsificações. Deve-se vigiar contra dois
extremos, tanto por aqueles que promovem quanto por aqueles que recebem alguma nova
explicação de uma passagem: (1) um amor pelo que é fantasioso e (2) um preconceito
contra o que é novo. Existe um meio termo entre apressadamente condenar ou aceitar, a
saber, examinar cuidadosamente e com oração o que é apresentado, testá-lo por outras
passagens e pela nossa própria experiência. Sem dúvida, a maioria de nós pode lembrar
de algumas interpretações que eram novas, e que a princípio nos pareceu ser “exagerada”,
mas que agora consideramos sã e útil. Se o Espírito Santo não tivesse nos informado que
duas esposas de Abraão eram figuras dos dois pactos (Gálatas 4:24), e que as palavras de
Moisés em Deuteronômio 30:11-14, deviam ser entendidas espiritualmente sobre a justiça
da fé (Romanos 10:6-9), nós consideraríamos tais interpretações ridículas. Lembre-se que
Deus concede luz a um ministro que Ele não concede a outro. Mesmo que a explicação
dele não seja aceitável a você no momento, seja cuidadoso antes de, precipitadamente,
chamá-la de “uma perversão das Escrituras”, para que o mesmo ensino que está sendo
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abençoado para a nutrição do coração de um pobre filho de Deus não seja rejeitado pela
sua cabeça.
22. Dupla referência e significado. É sempre preciso ter em mente que há uma
plenitude, bem como uma profundidade, nas palavras de Deus, de modo que não acontece
com as palavras dos homens, de modo que raramente uma única e breve definição explica
adequadamente um termo bíblico. Por essa razão, temos de estar constantemente em
vigilância contra a limitação do escopo de qualquer declaração divinamente inspirada, e
afirmar que ela significa apenas assim e assim. Portanto, quando somos informados de que
Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança, essas palavras provavelmente têm pelo
menos uma alusão quádrupla: Em primeiro lugar, a encarnação do Filho, pois Ele é
claramente designado a “imagem do Deus invisível” (Colossense 1:15). Em segundo lugar,
ao homem ser uma criatura tripartite, pois “Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem”
(Gênesis 1:26) — uma trindade na unidade, que consiste em “espírito e alma e corpo” (1
Tessalonicenses 5:23). Em terceiro lugar, à Sua semelhança moral, que o homem perdeu
na Queda, mas que é restaurada na regeneração (Efésios 4:24; Colossenses 3:10). Em
quarto lugar, à posição atribuída ao homem e a autoridade com que foi investido: “domine”
(Gênesis 1:26). Adão era um “deus” ou governante, sob o Senhor, de todas as criaturas do
mundo.
Diante do que foi referido, é evidente que o ditado favorito dos Dispensacionalistas —
“a aplicação é múltipla, a interpretação é apenas uma” — é errônea, pois acima não são
quatro interpretações da “imagem de Deus” a partir do qual podemos escolher, mas o
quádruplo significado real do próprio termo. Dizer que “a interpretação é apenas uma” é
também contradizer categoricamente a explicação de nosso Senhor da parábola do
semeador, pois quando Ele definiu seus termos deu três ou quatro significados diferentes
para “espinhos”; compare Mateus 13:22; Marcos 4:18-19 e Lucas 8:14. Estamos
cordialmente de acordo com o parágrafo nove do capítulo inicial da Confissão de Fé de
Westminster, quando ela diz: “A regra infalível de interpretação da Escritura é a própria
Escritura; e, portanto, quando houver uma questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de
qualquer Escritura (que não é múltiplo, mas único), esse pode ser investigado por meio de
outros textos que o expressem mais claramente”, exceto que não concordamos com a
limitação mencionada nos parênteses. Estamos mais preferivelmente ao lado de Joseph
Caryl (um dos autores da Confissão de Westminster), que, ao comentar em um verso as
palavras que eram suscetíveis de vários significados, e que tinham sido diversamente
explicadas pelos expositores, disse: “Em uma Escritura que pode, sem a censura de
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qualquer verdade, admitir diversos sentidos, eu não seria tão positivo quanto a um, de modo
a rejeitar todos os outros”.
Mesmo que fosse verdade que o significado gramatical de um verso seja apenas um,
no entanto, ele pode ter uma dupla referência, como é certamente o caso com algumas das
profecias na Sagrada Escritura, que possuem um cumprimento maior, e um menor. Ellicott,
em sua introdução ao livro de Apocalipse, em seu comentário, ao escrever sobre a profecia,
disse: “As palavras de Deus significam mais do que um homem ou uma escola de
pensamento possam abarcar. Há profundezas da Verdade inexploradas que se encontram
sob as frases mais simples. Assim como estamos acostumados a dizer que a história se
repete, assim as profecias da Bíblia não se esgotam em um ou até mesmo muitos
cumprimentos. Cada profecia é uma única chave que abre muitas portas, e o drama
grandioso e imponente do Apocalipse foi talvez negligenciado em uma época, para ser
repetido na próxima”. Nós tememos muito que nada, senão o miserável partidarismo tem
feito com que muitos desprezem tal conceito, e causado a rejeição de todas as outras
interpretações que não concordem com o seu próprio sistema particular. Davi disse: “Teu
mandamento é amplíssimo” (Salmos 119:96): consideremos isso para que nós não
diminuamos ou limitemos o mesmo.
A declaração do Pai acerca de seu Filho “com o seu conhecimento o meu servo, o
justo, justificará a muitos” (Isaías 53:11) certamente tem uma força dupla: o “conhecimento”
que Ele possui e o conhecimento que Ele transmite. Como Thomas Manton indicou: “isso
pode ser considerado de uma ou outra maneira: ativamente, quanto ao conhecimento que
Ele deve anunciar; passivamente, por nossa apreensão de Cristo”, pois o primeiro sem o
segundo não pode nos justificar. “Com o seu conhecimento” pode ser considerado subjetiva
e objetivamente. Primeiro, pelo seu próprio conhecimento pessoal do Pai (João 17:25), que
foi o fundamento que Ele transmitiu aos homens (João 3:11) para a sua salvação. Em
segundo lugar, quanto ao nosso conhecimento salvífico dEle, recebido dEle. Em vez de
tergiversações quanto à possibilidade ou não de Isaías intencionar incluir cada um desses
significados, sejamos gratos que ele foi orientado a usar uma linguagem que incluía ambos
os sentidos. Novamente, a expressão figurativa de nosso Senhor quando Ele declarou que
“as portas do inferno” não prevalecerão contra “Sua Igreja” (Mateus 16:19) admite uma
dupla referência: à morte (Isaías 38:10) e ao poder do mal. A morte e a sepultura têm
prevalecido sobre todas as instituições humanas, mas não sobre Cristo (Atos 2:27), ou a
Sua Igreja (Salmos 72:17; Mateus 28:20), nem qualquer arma forjada contra ela prosperará
(Isaías 54:17) — significados tão diferentes não são mais surpreendentes do que a
aplicação simbólica da palavra “leão” a Satanás (1 Pedro 5:8) e a Cristo (Apocalipse 5:5).
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“Logo, para que é a lei? Foi ordenada por causa das transgressões” (Gálatas 3:19).
Essa resposta admite dois significados diferentes. Em primeiro lugar, o objetivo imediato da
lei ser anteriormente anunciada e executada posteriormente à herança prometida a Abraão
e à sua descendência era refrear a carnalidade dos hebreus e evidenciar o seu pecado, ao
fazer conhecida a eles a vontade de Deus23 e a penalidade temível por violar a Sua
autoridade. Em segundo lugar, o seu propósito final era preparar o caminho para Cristo,
demonstrando a sua necessidade dEle por causa de sua terrível culpa. O “por causa das
transgressões” é intencionalmente geral o suficiente para incluir ambos: suprimir
transgressões, e revelar os transgressores. Assim também o verso seguinte tem um duplo
significado: “Ora, o medianeiro não o é de um só [grupo], mas Deus é um” [Gálatas 3:20].
Considerando o contexto, “Deus é um só (v. 10 e seguintes, especialmente 16-19) significa
em primeiro lugar, que o Seu propósito é imutável. O Seu desígnio era o mesmo em ambos
os pactos abraâmico e do Sinai — a lei sendo dada com uma finalidade graciosa em vista,
preparar o caminho para o Salvador: daí a pergunta e resposta no verso 21. No entanto,
tendo em conta todo o contexto é igualmente claro, em segundo lugar, que “Deus é um só”
significa que Seu método de salvação permanece inalterado através de todas as
dispensações. “É porventura Deus somente dos judeus? E não o é também dos gentios?
Também dos gentios, certamente, visto que Deus é um só, que justifica pela fé a
circuncisão, e por meio da fé a incircuncisão” (Romanos 3:29-30).
O que acaba de ser observado nos leva a ressaltar que os termos “Israel”, “judeu” e
“descendência de Abraão” têm todos uma dupla alusão. A expressão “Israel segundo a
carne” (1 Coríntios 10:18) é, obviamente, um discriminador, e não teria sentido se não
houvesse Israel segundo o Espírito, que é o Israel regenerado, “o Israel de Deus” (Gálatas
6:16). O “Israel segundo a carne” eram os descendentes naturais de Abraão, enquanto o
Israel espiritual, quer judeus, quer gentios, são aqueles que nasceram de novo e adoram a
Deus em espírito e em verdade. Quando o salmista declarou: “Verdadeiramente bom é
Deus para com Israel, para com os limpos de coração” (73:1), ele certamente não se referiu
aos descendentes carnais de Jacó, pois a maioria deles não tinha “um coração limpo”!
Quando o nosso Senhor disse a Natanael: “Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não
há dolo” (João 1:47), Ele, obviamente, intencionava muito mais do que alguém que
descendia naturalmente de Jacó. Sua linguagem foi tão distintiva quanto quando Ele disse:
“Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos” (João
8:31). “Um verdadeiro israelita” indicava um genuíno filho de Israel espiritual, um homem
de fé e de oração, santo e honesto. “Em quem não há dolo” fornece mais uma confirmação
de que as características de um salvo estavam ali em vista (compare com Salmos 32:1).
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Quando Cristo disse: “Eu não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel”
(Mateus 15:24), Ele não poderia intencionar os descendentes carnais de Jacó, pois, como
muitas Escrituras mostram claramente (Isaías 42:6; Romanos 15:8-9), Ele também foi
enviado aos gentios. Não, as “ovelhas perdidas da casa de Israel” aqui indicam toda a
eleição da graça. “E a todos quantos andarem conforme esta regra, paz e misericórdia
sobre eles e sobre o Israel de Deus” (Gálatas 6:16) isto não poderia referir-se à nação, pois
a ira de Deus estava sobre ela — é sobre o Israel eleito pelo Pai, redimido pelo Filho e
regenerado pelo Espírito que a paz e a misericórdia divina descansam. “Não que a palavra
de Deus haja faltado, porque nem todos os que são de Israel são israelitas” (Romanos 9:6).
Os judeus erroneamente imaginaram que as promessas que Deus fez a Abraão e à sua
descendência pertenciam apenas aos seus descendentes naturais: daí a sua reivindicação
“temos por pai a Abraão” (Mateus 3:9). Mas essas promessas não foram feitas para os
homens segundo a carne, mas para os homens segundo o Espírito, os regenerados, só
eles são os “filhos da promessa” (Romanos 9:8). As promessas de Deus a Abraão, Isaque
e Jacó foram dadas a eles como crentes, e as promessas são propriedade espiritual e
alimento dos crentes, e de ninguém mais (Romanos 4:13,16). Até esse fato ser
compreendido, estaremos confusos em relação às promessas do Antigo Testamento (cf. 2
Coríntios 1:20, 7:1; 2 Pedro 1:4).
“Sabei, pois, que os que são da fé são filhos de Abraão” (Gálatas 3:7). Os filhos de
Abraão são de dois tipos, físico e espiritual: aqueles que são dele por natureza, e aqueles
que são vinculados a ele pela graça. “Ser o filho de uma pessoa em um sentido figurado é
equivalente a ser ‘semelhante a ele e envolvido em seu destino’, bom ou mau. Ser ‘filho de
Deus’ é ser como Deus, e também, como o apóstolo afirma, é ser ‘herdeiro de Deus’. Ser
‘os filhos de Abraão’ é ser semelhante a Abraão, imitar a sua conduta e compartilhar a sua
bem-aventurança” (John Brown). Assim, ser “os filhos do maligno” (Mateus 13:38) é serem
conformes à sua imagem vil, tanto no caráter quanto na conduta (João 8:44), e compartilhar
sua condenação (Mateus 15:41). Cristo disse aos judeus carnais do seu tempo: “Se fôsseis
filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão” (João 8:39). Estes são os seus filhos
espirituais que “andam nas pisadas daquela fé” que ele teve (Romanos 4:12) e que são
“benditos com o crente Abraão” (Gálatas 3:9). Precisamos estar unidos a Cristo, que é “o
Filho de Abraão” (Mateus 1:1), a fim de obtermos as bênçãos que Deus pactuou com o
patriarca. O duplo significado da expressão “filhos” ou “descendência de Abraão” foi
claramente indicado no início, quando Deus comparou a sua semente às estrelas dos céus
e à areia que está na praia do mar (Gênesis 22:17).
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Semelhantemente, a palavra “judeus” é aplicada a duas classes de pessoas muito
diferentes, embora poucos hoje pensariam assim, se eles se limitarem ao ministério de uma
classe que se orgulha de ter mais luz do que a maioria dos cristãos professos. Todavia,
isso é inequivocamente estabelecido pela declaração de Romanos 2:28-29: “Porque não é
judeu o que o é exteriormente, nem é circuncisão a que o é exteriormente na carne. Mas é
judeu o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra; cujo
louvor não provém dos homens, mas de Deus”. Certamente nada poderia ser mais claro do
que isso, e à luz de uma tal declaração parece extremamente estranho que haja aqueles
— gloriando-se de sua elevada ortodoxia, e condenando amargamente todos os que
diferem deles — que insistem que o termo “judeu” se refere apenas aos descendentes
naturais de Jacó, e ridicularizam a ideia de que haja alguma coisa como um judeu espiritual.
Mas quando Deus nos diz: “é judeu o que o é no interior”, Ele manifestamente quer dizer
que o verdadeiro “judeu”, o antitípico, é uma pessoa regenerada, que tem o “louvor” ou a
aprovação de Deus.
Não é somente infantil, mas enganoso, afirmar que “Israel” significa Israel e “judeu”
significa judeu, e que quando a Palavra de Deus faz menção de Jerusalém ou Sião nada
mais é referido que esses lugares reais. Aqueles que fazem tais afirmações estão apenas
enganando a si mesmos (e outros que são ingênuos o suficiente para dar ouvidos a eles)
pelo mero som das palavras. Desse modo, afirmam que “carne” significa nada mais do que
o corpo físico, que “a água” (João 4:14) se refere apenas a esse elemento material, ou que
“a morte” (João 5:24) não significa nada, senão a dissolução física. Há o fim de toda
interpretação — anúncio do sentido da Escritura — quando os tais adotam uma atitude tão
tola. Cada verso exige um estudo cuidadoso e em oração, de modo que seja bastante
apurado o que o Espírito intenciona: o Israel carnal ou o espiritual, a descendência literal
de Abraão ou a mística, o judeu natural ou o regenerado, a Jerusalém terrena ou a celestial,
a Sião típica ou o antitípica. Deus não escreveu a Sua Palavra de tal forma que o leitor
mediano é feito independente daquela ajuda que Ele designou dar por meio dos mestres
aprovados por Ele.
Nós podemos imaginar aqueles de nossos leitores que se sentaram sob os erros do
Dispensacionalismo dizendo: “Tudo isso parece muito confuso, pois fomos ensinados a
distinguir claramente entre Israel e a Igreja, um sendo um povo terreno e o outro sendo um
celeste”. Evidentemente, Israel era um “povo terreno”, assim também eram os egípcios, os
babilônios, e todos os outros habitantes desse mundo. Este escritor e seus leitores Cristãos
também são um “povo terreno”, pois nem os seus corpos nem as suas almas ainda foram
levadas ao Céu. Em resposta, o opositor dirá que a herança de Israel era terrena. Mas nós
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perguntamos, era mesmo? A herança dos patriarcas era terrena? Hebreus 11:14-16 mostra
claramente o contrário, pois nos é dito “que buscam uma pátria”, isto depois de terem
entrado na terra de Canaã, “mas agora eles [Abraão, Isaque e Jacó] desejam uma [pátria]
melhor, isto é, a celestial”. A herança de Moisés era terrena? Deixe que Hebreus 11:26 nos
responda: “Tendo por maiores riquezas o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egito;
porque tinha em vista a recompensa”, ou seja, uma recompensa eterna (cf. Colossenses
3:24)! A herança de Davi era mundana? Se assim for, como ele poderia falar de si mesmo
como “um peregrino na terra” (Salmos 39:12, 119:119)? O Salmo 73:25 mostra no que o
seu coração estava estabelecido.
Não é suficiente afirmar que a herança de Israel era terrena: que “Israel” deve ser
definitivamente estabelecido, e também qual herança delineava. Como a porção que o
Senhor designou, prometeu e deu a Abraão e seus descendentes, aquela terra de Canaã,
ao longo da era Cristã, foi justamente considerada como prefigurando a herança celestial,
para a qual os membros de Cristo estão peregrinando na medida em que passam através
desse contexto de pecado e tribulação. A fim de obter a imagem típica completa das
variadas experiências espirituais e exercícios dos eleitos de Deus como foram tão
vividamente prenunciadas no passado, temos que ter em consideração não somente a
história dos hebreus no Egito e suas jornadas pelo deserto, mas também o que foi exigido
deles a fim de adentrarem e ocuparem a terra de Canaã. Como já tantas vezes indicamos
em nossos artigos sobre a vida e os tempos de Josué, Canaã também deve ser
contemplada a partir de dois pontos de vista, natural e espiritual: espiritualmente, como
retratando a herança dos israelitas regenerados, cuja herança deve ser obtida e apreciada
agora pela fé e obediência, mas na qual não entraremos totalmente até que o rio Jordão da
morte seja atravessado. Certamente, muito cuidado deve ser tomado com a analogia da fé.
Embora Canaã fosse uma dádiva divina para Israel natural, no entanto, a ocupação
deles da mesma foi o resultado de sua própria valentia. Aliás, Canaã foi lhes concedida
pelo dom gratuito de Deus, no entanto, precisou ser conquistada por eles. Nisso foi figurado
com precisão o que é necessário a fim de adentrar em Canaã celestial. O livro de Josué
não somente mostra a graça soberana de Deus, exibe a Sua fidelidade à aliança e o grande
poder que Ele revela em favor do seu povo, mas também torna conhecido o que Ele
requereu deles no cumprimento de sua responsabilidade, e mostra que o Senhor somente
lutava por Seu povo enquanto eles permaneciam em plena dependência e estavam em
completa sujeição a Ele. Havia enormes obstáculos a serem superados, inimigos terríveis
e poderosos para serem vencidos, uma guerra dura e prolongada a ser travada, e apenas
enquanto eles cooperavam ativamente, o Senhor se mostrava forte em seu favor. “Porque
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se diligentemente guardardes todos esses mandamentos, que vos ordeno para os
guardardes, amando ao Senhor vosso Deus, andando em todos os seus caminhos, e a ele
vos achegardes, também o Senhor, de diante de vós, lançará fora todas estas nações...
Todo o lugar que pisar a planta do vosso pé será vosso...” (Deuteronômio 11:22-24). Esse
“se” não era de incerteza, mas tinha relação com a sua prestação de contas — como o “se”
de João 8:31,51; Colossenses 1:23 e Hebreus 3:6,14 tem relação com a nossa.
A herança da Igreja é totalmente a partir da graça divina e comprada pelo Mediador,
no entanto, não é obtida pelos herdeiros da promessa sem árduos esforços de sua parte.
Deve-se entrar pela porta estreita e caminhar pelo caminho estreito (Mateus 6:13-14). Há
uma corrida a ser executada que demanda a temperança em todas as coisas (1 Coríntios
9:24-26). Há uma luta a ser travada (1 Timóteo 6:12; 2 Timóteo 4:7), e, a fim de sermos
bem-sucedidos nela, precisamos tomar “toda a armadura de Deus” (Efésios 6:13) e fazer
uso diário da mesma. Há um conflito incessante com a carne a ser efetuado (Gálatas 5:17),
um Diabo a ser firmemente resistido na fé (1 Pedro 5:8-9), um mundo sedutor e hostil a ser
vencido (Tiago 4:4; 1 João 5:4). Ainda assim, é bendita verdade que “nós, os que temos
crido, entramos no descanso” (Hebreus 4:3). O jugo de Cristo deve ser tomado sobre nós,
embora a ordem divina permaneça, “Procuremos, pois, entrar naquele repouso” (Hebreus
4:11) que nos espera no alto, e do qual a terra que mana leite e mel era o emblema.
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Capítulo 17
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23. A regra da ordem. A Palavra de Deus é como as Suas obras: a disposição
intencional e precisão minuciosa a caracterizam por toda parte. Se “tudo tem o seu tempo
determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3:1) no mundo
natural, seguramente o mesmo é válido em relação ao reino espiritual, e tudo que diz
respeito a ele. Mesmo aqueles que não professam ser Cristãos reconhecem e admitem que
“a ordem é a primeira lei do céu”. Deus é um Deus de ordem, e muito inequivocamente
esse fato é demonstrado por toda a Sagrada Escritura. Tudo nela é metódico e está em seu
devido lugar: mude esse arranjo, e a confusão e erro se segue imediatamente. Assim, é de
profunda importância que prestemos muita atenção à ordem em que a verdade foi
estabelecida pelo Espírito onisciente. A chave para muitos versos deve ser encontrada ao
observar a posição que ele ocupa, a sua coerência com o que precede, e a sua relação
com o que se segue.
Se o seu conteúdo for considerado histórica, doutrinária ou tipicamente, Gênesis deve
introduzir a Palavra, pois é o livro dos princípios. Este livro tem sido apropriadamente
chamado de “a sementeira da Bíblia”, pois nele encontra-se sob a forma inicial quase tudo
o que é posteriormente mais desenvolvido nos livros seguintes. Doutrinariamente, seu tema
é o da eleição divina, que é o primeiro ato da graça de Deus para o Seu povo. Em seguida,
vem Êxodo, que trata da redenção através de compra e poder (6:6, 15:13). O terceiro livro,
como poderia ser esperado, vê o povo de Deus como no fundamento da ressurreição,
sendo não tanto doutrinal quanto experiencial em seu caráter. Levítico mostra para o quê
nós somos redimidos, tendo por tema a comunhão e adoração: sua chave está pendurada
na porta — o Senhor falando a partir do tabernáculo (1:1). O quarto livro lida com o lado
prático da vida espiritual, traçando a história do crente nesse mundo — pois o quatro é o
número da terra. “O deserto” (1:1) é um símbolo do mundo em sua condição caída, o lugar
de provação e tribulação. Seu assunto é a caminhada e a guerra dos santos.
A posição desses quatro livros manifesta claramente o desígnio da obra divina, e nos
ensina a ordem em que a verdade deve ser apresentada. Uma ilustração igualmente
impressionante é vista na justaposição e ordem dos dois últimos livros de Salomão, pois o
tema de Eclesiastes é, sem dúvida: “proveito nenhum há debaixo do sol”, enquanto que o
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de Cânticos fala da “plena satisfação no Filho”: sobre um pode ser inscrito: “Qualquer que
beber desta água tornará a ter sede”; sobre o outro: “Mas aquele que beber da água que
eu lhe der nunca terá sede” (João 4:13-14). Em 2 Timóteo 3:16, Paulo nos informa que as
Escrituras são proveitosas “para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em
justiça”, e essa é a própria ordem que ele seguiu em suas epístolas. Pois, Romanos é um
tratado doutrinário, as epístolas aos Coríntios é uma reprovação de desordens na igreja,
Gálatas é uma correção de ensino errôneo e Efésios descreve aquele caminhar que é o
único digno de um filho de Deus.
Os livros da Bíblia não são apenas infalivelmente posicionados, mas o conteúdo de
cada um é disposto em sequência lógica e necessária. Assim, é muito interessante observar
como cada um dos patriarcas de Gênesis prefigurou alguma verdade distinta e fundamental
a respeito do crente. Em Abraão temos ilustrada a eleição divina e o chamado eficaz. Em
Isaque temos descrita a filiação divina (por um nascimento sobrenatural) e a vida de
submissão à vontade de Deus. Em Jacó temos retratado o conflito entre a carne e o espírito:
as duas naturezas no crente, indicado pelo seu nome duplo, Jacó‒Israel. Em José temos
exemplificado a grande verdade do direito à herança: após um tempo de tribulação, foi feito
governante do Egito. Assim, a ordem histórica é também doutrinal e vivencial, progressiva
e tende a um clímax. As cinco grandes ofertas de Levítico 1—5 tipificam muitos aspectos
distintos da Pessoa e obra do Senhor Jesus, e uma instrução de valor inestimável deve ser
obtida ponderando a sequência delas.
Os Salmos 22, 23 e 24 nos apresentam uma tríade significativa e abençoada,
especialmente porque Cristo é visto neles. No primeiro, nós contemplamos o sofrimento do
Seu povo; no último vemos como o Rei da glória recebe uma recepção real no Céu, e somos
supridos com uma descrição das características possuídas por aqueles a quem Ele
capacita para habitar conSigo ali; enquanto o do meio nos mostra quão graciosamente Ele
ministra e provê às Suas ovelhas (a quem Ele está conduzindo ao aprisco celestial) durante
o intervalo em que eles são deixados na Terra. No Salmo 22 contemplamos o “bom pastor”
(João 10:11), no 23 o “grande pastor” (Hebreus 13:20), no 24 o “Sumo Pastor” (1 Pedro
5:4). Novamente, se é essencial para o consolo do crente encontrar que Romanos 7
descreve com precisão a sua experiência espiritual, e que a sua fé deve lançar mão das
promessas divinas de Romanos 8; é igualmente necessário que os pregadores não
somente se apeguem à absoluta soberania de Deus na eleição e reprovação, conforme
estabelecido em Romanos 9; mas que eles também anunciem a livre oferta do Evangelho
a todos os homens e estimulem a cumprir a sua responsabilidade de aceitar essa oferta,
conforme apresentado em Romanos 10.
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O que foi exemplificada nos parágrafos anteriores se aplicam não somente no geral,
mas é igualmente verdade nos detalhes. Por exemplo, o arranjo dos Dez Mandamentos da
lei moral (que compreendem a soma da justiça) é profundamente significativo. Eles foram
escritos em duas tábuas de pedra, para indicar que eles se dividem em dois grupos
distintos. Os quatro primeiros se referem à nossa responsabilidade em relação a Deus; os
último seis, às nossas obrigações para com os homens. Vão é fingir que somos adoradores
sinceros de Deus, se os deveres do amor aos nossos próximos forem negligenciados;
igualmente inútil é a profissão de piedade que, enquanto se abstém de ofensas contra os
nossos companheiros, retém da Majestade do Céu a honra e glória que Lhe são devidas.
Mais uma vez, as cinco exortações contidas no Salmo 37:1-7 são dispostas em ordem
lógica e inevitável. Devemos renunciar à indignação e inveja se quisermos confiar no
Senhor, e devemos confiar nEle antes que possamos nos deleitar nEle, e isso é necessário
a fim de entregarmos confiantemente o nosso caminho a Ele, e descansarmos e
esperarmos pacientemente por Ele.
A ordem das bem-aventuranças em Mateus 5:3-11 está repleta de instrução valiosa,
e nós perdemos muito se não atentarmos bem para isso. Nas primeiras quatro, são
mostrados a nós os atos do coração daqueles que foram vivificados pelo Espírito. Primeiro,
há um senso de necessidade, um reconhecimento da sua nulidade e vazio. Em segundo
lugar, há um julgamento de si mesmo, uma consciência de culpa e lamento por sua
condição perdida. Em terceiro lugar, uma desistência de tentar justificar a si mesmo, um
abandono de todas as pretensões de mérito pessoal, um tomar de seu lugar no pó diante
de Deus. Em quarto lugar, o olho da alma se desviou de si mesmo para Outro: eles são
conscientes de sua extrema necessidade de salvação. As quatro seguintes descrevem os
frutos encontrados no regenerado. Assim, nessas bem-aventuranças Cristo declara as
marcas do nascimento que distinguem aqueles que são os súditos do Seu reino, e torna
conhecidos aqueles sobre quem repousa a bênção de Deus.
Que olho ungido pode deixar de ver a ordem perfeita na oração modelo que Cristo
deu aos Seus discípulos? Nela, Ele forneceu uma diretriz simples, mas abrangente;
revelando como Deus deve ser abordado por Seus filhos, a ordem em que os seus pedidos
devem ser apresentados, as coisas que eles mais precisam de pedir, e a honra devida a
Ele. Cada aspecto da oração está incluído: adoração, súplica e argumentação. Cada
cláusula nela ocorre no Antigo Testamento, indicando que nossas orações devem ser
bíblicas para que sejam aceitáveis (1 João 5:14). Suas petições são em número de sete,
mostrando a plenitude do que aqui é suprido. Todos os seus pronomes estão no plural,
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ensinando ao Cristão que as necessidades dos seus irmãos e irmãs, e não apenas as suas,
devem estar diante dele quando se curvar diante do trono da graça.
Que o estudante preste muita atenção para a ordem seguida nestes exemplos
adicionais, a qual nós deixamos para que examine por si mesmo. Os milagres de Cristo em
Mateus 8 e 9. As sete parábolas de Mateus 13. O resultado sétuplo da justificação,
conforme estabelecido em Romanos 5:1-11. As sete graças de 2 Pedro 1:5-7, a presença
e processo que permite que o santo se assegure de sua vocação e eleição, tanto em relação
a si mesmo quanto para os seus companheiros, pois “estas coisas” do verso 10 são as
mencionadas nos versos 5-7. Tudo na Escritura é de acordo com um propósito definido.
O propósito especial de Lucas era estabelecer as perfeições da humanidade do nosso
Senhor, e é muito abençoado traçar as diferentes passagens em seu Evangelho onde Cristo
é visto como um homem de oração. “E aconteceu que, como todo o povo se batizava, sendo
batizado também Jesus, orando ele, o céu se abriu” (Lucas 3:21). Lucas é o único que
fornece esse detalhe significativo, e quão precioso ele é. O batismo de Cristo marcou o fim
da Sua vida privada, e o início de Sua missão oficial. E aqui somos informados que Ele
permanecia em ato de devoção logo no início do Seu ministério público. Jesus estava
envolvido em dedicar-se a Deus, em buscar graça para o trabalho grandioso que estava
diante dEle. Assim, a primeira visão que a multidão teve foi dEle em oração! “Ele, porém,
retirava-se para os desertos, e ali orava” (Lucas 5:16). Isso ocorreu logo após Seus milagres
de misericórdia, quando “a sua fama, porém, se propagava ainda mais, e ajuntava-se muita
gente para o ouvir e para ser por ele curada das suas enfermidades” (v. 15). Sua resposta
a essa demonstração de popularidade foi marcante, e cheia de instrução para os Seus
servos. Ele se retirou das aclamações das multidões e ficou a sós com Deus. Novamente:
“E aconteceu que naqueles dias subiu ao monte a orar, e passou a noite em oração a Deus”
(Lucas 6:12). Isso ocorreu imediatamente após os escribas e fariseus estarem “cheios de
furor” contra Ele, e logo antes dEle selecionar os doze. Nosso Redentor não fez nenhuma
tentativa de combater os seus inimigos, mas retirou-se para ter comunhão com o Pai. Antes
de chamar os apóstolos, Ele passou a noite clamando a Deus.
“E aconteceu que, estando ele só, orando, estavam com ele os discípulos; e
perguntou-lhes, dizendo: Quem diz a multidão que eu sou?” (Lucas 9:18). Isso aconteceu
logo após Ele alimentar a multidão; depois de se engajar no serviço público, Ele se retirou
a fim de ter devoção privada. Podemos inferir a partir da pergunta que fez aos seus
discípulos que a incredulidade dos homens estava começando a lançar uma sombra sobre
a sua alma, e que Ele agora buscava por alívio e força do alto. “E aconteceu que, quase
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oito dias depois destas palavras, tomou consigo a Pedro, a João e a Tiago, e subiu ao
monte a orar. E, estando ele orando, transfigurou-se a aparência do seu rosto, e a sua
roupa ficou branca e mui resplandecente” (Lucas 9:28-29). Foi enquanto envolvido em
oração que Cristo foi transfigurado — quão significativo e instrutivo! “E aconteceu que,
estando ele a orar num certo lugar, quando acabou, lhe disse um dos seus discípulos:
Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou aos seus discípulos” (Lucas 11:1).
Essa é uma das passagens (veja também os Salmos Messiânicos) que nos dão algumas
indicações sobre a natureza de Suas súplicas. Enquanto O ouviam, os discípulos sentiram
que não sabiam nada sobre oração! “Disse também o Senhor: Simão, Simão... eu rogue i
por ti, para que a tua fé não desfaleça” (Lucas 22:31-32). Aqui nós O contemplamos como
o grande Sumo Sacerdote fazendo intercessão por um dos seus próprios. E Ele “apartou-
se deles cerca de um tiro de pedra; e, pondo-se de joelhos, orava, dizendo: Pai, se queres,
passa de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lucas 22:41-
42). Aqui está o auge da oração: rendição completa e aquiescência à vontade divina.
Nos sete milagres registrados no Evangelho de João, podemos discernir uma ordem
impressionante de pensamento, enquanto retratam Cristo comunicando vida ao Seu povo.
Em Sua transformação da água em vinho nas bodas de casamento de Caná (2:6-11) nos
é mostrado, simbolicamente, a nossa necessidade de vida — Cristo supre o que estava
faltando. Na cura do filho do homem nobre (4:47-54) que estava “à morte” vemos o retrato
da concessão de vida. Na cura do homem paralítico (5:3-9) vemos o poder da vida,
capacitando um aleijado desamparado a se levantar e andar. Ao alimentar a multidão
(6:11), vemos quão graciosamente Cristo sustenta a nossa vida. Ao encaminhar-se aos
discípulos temerosos sobre o mar em meio à tempestade, testemunhamos Jesus
preservando as suas vidas, libertando-os do perigo. Na resposta do homem cego cujos
olhos Cristo abriu (9:7,38) aprendemos qual deve ser a ocupação da vida — ele O adorou:
dessa forma, supremamente, devemos empregar a nova natureza. Ao ressuscitar Lázaro
do sepulcro (11:44), temos a consumação da vida, pois a ressurreição dos santos é o
prenúncio da sua felicidade eterna.
O ensino do nosso Senhor a respeito das operações do Espírito Santo no interior dos
e em relação aos santos segue uma ordem instrutiva que tende a um clímax. Primeiro, Ele
fez menção de estar “cheio do Espírito” (3:6,8), pois a vivificação é a Sua operação inicial
sobre os eleitos. Em segundo lugar, por meio da linguagem figurada (cf. 3:5), Ele falou da
presença interior do Espírito: “...água que eu lhe der se fará nele uma fonte de água que
salte para a vida eterna” (4:14). Em terceiro lugar, Ele declarou que deveria haver uma
manifestação da mesma, e um refrigério para os outros: “...rios de água viva correrão do
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seu ventre [a parte mais íntima]. E isto disse ele do Espírito...” (7:38-39). Em quarto lugar,
Ele prometeu que o Espírito bendito estaria com eles de forma permanente: “E eu rogarei
ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre” (14:16).
Em quinto lugar, Ele anunciou que o Espírito os instrui plenamente: “Esse vos ensinará
todas as coisas” (14:26). Em sexto lugar, Ele declarou que o Espírito tanto testemunhará
dEle quanto os capacitará para testemunhar dEle: “Mas, quando vier o Consolador, que eu
da parte do Pai vos hei de enviar, aquele Espírito de verdade, que procede do Pai, ele
testificará de mim. E vós também testificareis, pois estivestes comigo desde o princípio”
(15:26-27). Em sétimo lugar, Cristo afirmou que o Espírito deve magnificá-lO: “Ele me
glorificará, porque há de receber do que é meu, e vo-lo há de anunciar” (14:14), fazendo-
Me totalmente desejável aos seus olhos.
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Capítulo 18
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24. A regra da causa e efeito. Com isto intencionamos a observação e rastreamento
da conexão que existe entre certos eventos notáveis na vida de um indivíduo ou nação e o
que levou ao mesmo. Por exemplo, os eventos finais gravados na triste história de Ló nos
assustam e aterrorizam pela sua natureza lamentável e revoltante; ainda assim, se
considerarmos com atenção tudo o que precedeu, então o trágico final quase pode ser
antecipado. Ou considere o caso mais conhecido de negação de Cristo por Simão Pedro,
que parece estar completamente fora de sintonia com o que conhecemos do seu caráter.
Realmente estranha é a anomalia apresentada: que aquele que não teve medo de sair do
navio e caminhar sobre o mar até o seu amado Mestre, e que corajosamente desembainhou
a espada e cortou a orelha do servo do sumo sacerdote quando uma forte companhia veio
para prender o Salvador, tremeu na presença de uma empregada doméstica, e teve medo
de confessar ao Senhor Jesus! No entanto, sua triste queda não foi um evento isolado não
tendo nenhuma relação com o que tinha ocorrido antes; antes tudo fazia de algumas de
suas atitude e ações anteriores, sendo lógica, e praticamente inevitável, consequência
daquelas. Estes são exemplos de um numeroso tipo de casos, e eles devem ser
cuidadosamente meditados quando lemos as porções biográficas da Escritura.
Este princípio de interpretação será mais facilmente compreendido quando
destacamos que é o mesmo da lei da semeadura e da colheita. Essa lei opera agora, nesse
mundo, e é uma parte importante da tarefa do expositor observar seu desenrolar na vida
dos personagens bíblicos. Consideremos, então, alguns dos detalhes registrados sobre Ló
antes de sua carreira terminar em meio às sombras escuras de sua caverna no monte.
Após a referência inicial a ele em Gênesis 11:31, nada é dito ao seu respeito até depois da
triste peregrinação de Abraão no Egito. Parece que Ló contraiu o espírito do Egito e adquiriu
um gosto por suas panelas de carne. Em Gênesis 13:6-7, lemos sobre uma contenda entre
os pastores de Abraão e Ló: a posterior recompensa do Senhor e a conduta subsequente
desse último parecem claramente indicar qual deles era o culpado. A proposta que Abraão
fez ao seu sobrinho (13:8-9) foi uma das mais generosas e a carnalidade de Ló ficou logo
evidenciada na vantagem que ele teve sobre Abraão. Em vez de deixar a escolha para o
seu tio, Ló se rendeu à concupiscência dos olhos e escolheu a planície do Jordão, que era
bem regada e “como a terra do Egito”! Em seguida, ele “armou suas tendas até Sodoma”
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(13:12). Então ele foi e “habitou em Sodoma” (14:12), abandonou a tenda de peregrino por
uma “casa” (19:3). Lá, ele se estabeleceu, envelheceu e assentou-se à “porta” (19:1),
enquanto as suas filhas casaram com homens de Sodoma.9
Semelhantemente, vamos traçar brevemente os vários tropeços que levaram à terrível
queda de Pedro. Foi primeiro a sua autoconfiança e orgulho quando declarou: “Ainda que
todos se escandalizem, nunca, porém, eu” (Marcos 14:29). Nós não duvidamos de sua
sinceridade naquela ocasião, mas é claro que ele não percebia a sua inconstância.
Ignorância acerca de si mesmo e autoconfiança sempre acompanham um ao outro; não até
que o eu ao ser realmente conhecido seja posto em desconfiança. Em segundo lugar, ele
não cumpriu a exortação do seu Mestre: “Vigiai e orai” (Marcos 14:38-40), e em vez disso
foi dormir novamente — é apenas uma percepção de fraqueza que faz com que alguém
fervorosamente busque por força. Em terceiro lugar, ele ignorou o alerta solene de Cristo
que Satanás desejava cirandá-lo (Lucas 22:31,33). Em quarto lugar, eis que ele agiu pela
força da carne ao desembainhar a espada (João 18:10). Naturalmente, ele tinha boas
intenções, mas espiritualmente, quão tolas eras as suas percepções; quão completamente
fora do lugar estava a sua arma na presença do manso e humilde Salvador! Não admira
que em seguida somos informados que ele seguiu a Cristo “de longe” (Mateus 26:58), pois
ele estava totalmente fora da direção do Seu Espírito. É algo solene vê-lo ignorando o alerta
providencial da porta fechada (João 18:16). Ele estava frio espiritualmente bem como
fisicamente, mas quão patético é vê-lo se aquecendo com o fogo do inimigo (João 18:18).
Que ele “assentou-se” em tais circunstâncias (Marcos 14:54) mostra o quão sério era o seu
declínio. Todas essas coisas abriram o caminho para o seu último praguejar e juramento
(Mateus 26:74).
Estes acima são casos inconfundíveis e evidentes da operação da lei de causa e
efeito! Mas, voltemos agora para um tipo diferente de casos, onde houve uma sementeira
diferente e uma colheita mais feliz. Em Gênesis 22 temos uma das cenas mais tocantes e
surpreendentes apresentadas nas Escrituras. Ali nós contemplamos a graça que triunfa
sobre a natureza, o espírito sendo superior à carne. Ele foi o teste final e mais severo a que
foram submetidos a fé e obediência de Abraão. Ele foi chamado para sacrificar o seu amado
9 Embora a argumentação de Pink sobre Ló seja notável e mereça atenção, é também notório que Pink ao
buscar fundamentar seu ponto com algumas passagens das Escrituras, acaba ignorando a analogia da fé e
contradizendo o verdadeiro e claro testemunho das Escrituras a respeito de Ló, que encontra-se na Segunda
Epístola de Pedro 2:7-8: “E livrou o justo Ló, enfadado da vida dissoluta dos homens abomináveis (porque
este justo, habitando entre eles, afligia todos os dias a sua alma justa, vendo e ouvindo sobre as suas obras
injustas)”. Não me recordo de algum caso nas Escrituras em que alguém é chamado de justo três vezes em
apenas dois versos, o que deixa claro que Ló era um justo e não o contrário – N.T.
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Isaque, e ser ele mesmo o executor. Quão grandiosamente respondeu, o patriarca
duramente provado, prendendo o seu único filho, colocando-o sobre o altar, tomando a faca
na mão e não retrocedendo até que uma voz do Céu lhe ordenou não matar o rapaz. Agora
observe a bendita consequência menos conhecida. O anjo da aliança disse-lhe: “Por mim
mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu
único filho, que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua
descendência... porquanto obedeceste à minha voz” (vv. 16-18). Assim o Senhor se
agradou em fazer menção da submissão de Seu servo como a consideração de Sua
graciosa recompensa nesta ocasião: não que houvesse qualquer proporção entre uma e
outra, mas que Ele, assim honrou a fé e obediência pelo qual Abraão O honrou.
Posteriormente, Ele fez promessas graciosas para Isaque: “Porquanto Abraão obedeceu à
minha voz, e guardou o meu mandado...” (26:2-5).
Em Números 14 uma cena muito diferente é apresentada para nossa contemplação.
Ali nós vemos as reações de Israel ao triste relatório feito pela maioria descrente dos
espiões que Moisés enviara para fazer um reconhecimento de Canaã. “Então toda a
congregação levantou a sua voz; e o povo chorou...”, comportando-se como crianças
teimosas. Pior ainda, eles murmuraram contra Moisés e Arão, e falaram da nomeação de
um novo líder para conduzi-los de volta ao Egito. Em risco considerável para as suas vidas
(v. 10), Josué e Calebe protestaram com eles. O Senhor interveio, e lançou uma sentença
sobre aquela geração incrédula, sentenciando-a a morrer no deserto. Em bendito contraste,
Ele disse: “Porém o meu servo Calebe, porquanto nele houve outro espírito, e perseverou
em seguir-me, eu o levarei à terra em que entrou, e a sua descendência a possuirá em
herança” (v. 24). Números 25 nos concede outro exemplo do mesmo princípio. Deixando
de lado os seus próprios sentimentos, o filho de Eleazar agiu para a glória de Yahwéh, e
sobre ele o Senhor disse, ele “desviou a minha ira de sobre os filhos de Israel, pois foi
zeloso com o meu zelo no meio deles... Portanto dize: Eis que lhe dou a minha aliança de
paz; e ele, e a sua descendência depois dele, terá a aliança do sacerdócio perpétuo,
porquanto teve zelo pelo seu Deus, e fez expiação pelos filhos de Israel” (vv. 10-13).
Agora, é quase desnecessário sinalizar que nem Abraão, nem Calebe, nem Finéias
fizeram com que Deus estivesse em dívida, ou O colocaram sob qualquer obrigação para
com eles. Ainda assim, os seus casos ilustram um princípio muito importante nos caminhos
governamentais de Deus. Esse princípio é afirmado em sua própria declaração: “porque
aos que me honram honrarei, porém os que me desprezam serão desprezados” (1 Samuel
2:30). Apesar de não haver absolutamente nada de meritório sobre as boas obras de Seu
povo, Deus tem o prazer de dar testemunho de Sua aprovação das mesmas e manifesta
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em relação aos Seus mandamentos que “em os guardar há grande recompensa” (Salmos
19:11). Assim, o Senhor testemunhou a Sua aceitação do santo zelo de Finéias, colocando
um fim imediato à praga sobre Israel, e ao vincular o sacerdócio à sua família. Como
Matthew Henry apontou: “A recompensa correspondia ao serviço: ao executar a justiça, ele
fez expiação pelos filhos de Israel (v. 13), e portanto, ele e os seus devem, doravante, ser
usados para fazer expiação pelo sacrifício”. Provérbios 11:31 declara o mesmo princípio:
“Eis que o justo recebe na terra a retribuição”. Como Spurgeon observou: “Apesar de que
as disposições da graça divina são, ao máximo grau, soberanas e independentes do mérito
humano, ainda assim nas relações da providência frequentemente é perceptível uma regra
da justiça, através da qual os injuriados são amplamente vingados e os justos, por fim, são
libertos”.
Davi reconheceu: “Assim que retribuiu-me o Senhor conforme a minha justiça,
conforme a pureza de minhas mãos perante os seus olhos” (Salmos 18:24). Ele estava se
referindo a Deus libertá-lo de seus inimigos, em particular de Saul. Como Davi se comportou
em relação ao rei? Será que ele cometeu qualquer pecado que justificava a sua hostilidade?
Será que ele o prejudicou de alguma forma? Não, ele não odiava Saul nem cobiçava o seu
trono, e, portanto, aquele monarca foi muito injusto ao perseguir tão implacavelmente a sua
vida. Davi era tão inocente a esse respeito que ele apelou para o grande Examinador dos
corações: “Não se alegrem os meus inimigos de mim sem razão” (Salmos 35:19). Assim,
quando ele disse: “retribuiu-me o Senhor conforme a minha justiça”, ele estava longe de
manifestar um espírito farisaico. Em vez disso, ele estava admitindo sua inocência diante
do tribunal da equidade humana. Desde que ele não tinha nenhuma maldade para com seu
perseguidor, ele quis dar o testemunho de uma boa consciência. Em tudo o que ele sofreu
nas mãos de Saul, Davi não revidou; ele não somente se recusou a matar, ou mesmo ferir,
quando Saul estava à sua mercê, mas ele aproveitou todas as oportunidades para servir a
causa de Israel, apesar da ingratidão, inveja e traição que recebeu em troca. Ao ser liberto
e ao ter o trono conferido a si, Davi reconheceu um dos princípios básicos que operam no
governo divino desse mundo, e confessou que Deus tinha graciosamente o recompensado
por causa de sua integridade.
A Deidade não hesita em tomar como um de seus títulos “o SENHOR, Deus das
recompensas” (Jeremias 51:56), e tem mostrado através de toda a Sua Palavra, que Ele
lida com o pecador e com o santo como tal. A Josué Ele disse que se ele desse à Sua
palavra a sua devida estima, meditasse nela de dia e de noite, para que pudesse cuidar de
fazer conforme a tudo o que nela está escrito, “então farás prosperar o teu caminho, e serás
bem sucedido” (1:8, e cf. Jó 36:11; Provérbios 3:1-4). Por outro lado, Ele disse ao
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desobediente Israel: “Por que transgredis os mandamentos do Senhor, de modo que não
possais prosperar? Porque deixastes ao Senhor, também ele vos deixará” (2 Crônicas
24:20). Esse é um princípio invariável em Seu governo. Sobre Uzias, lemos: “...nos dias em
que buscou ao Senhor, Deus o fez prosperar” (2 Crônicas 26:5). O juízo de Deus, mesmo
sobre o reino de Acabe, foi adiado: “porquanto se humilha perante mim” (1 Reis 21:29). Ao
contrário, Ele disse a Davi que a espada nunca se afastaria de sua casa: “porquanto me
desprezaste” (2 Samuel 12:9-10). O Novo Testamento ensina a mesma coisa. “Bem-
aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia” (Mateus 5:7). “Se
não perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai vos perdoará as vossas
ofensas” (6:15); “com a medida com que tiverdes medido vos hão de medir a vós” (7:2).
“Como guardaste a palavra da minha paciência, também eu te guardarei” (Apocalipse 3:10).
Deus estabeleceu uma conexão inseparável entre santidade e felicidade, e não é uma
pequena parte do trabalho do expositor ressaltar que enquanto os nossos caminhos Lhe
agradam, o Seu sorriso está sobre nós; mas quando somos rebeldes, somos grandemente
perdedores; mostrar que embora o povo de Deus não esteja debaixo da maldição da vara,
ele está sob a sua disciplina; e ele deve considerar ilustrações bíblicas desse fato. É uma
coisa ter os nossos pecados perdoados, mas é outra bem diferente desfrutar dos favores
de Deus na providência e criação, bem como espiritualmente; como as vidas dos
personagens bíblicos exemplificam claramente. Deus não aflige de bom grado
(Lamentações 3:33), mas castiga porque nós Lhe demos ocasião para fazê-lo (Salmos
89:30-33). Quando nós não entristecemos o Espírito Santo, Ele torna Cristo mais real e
precioso para a alma; o canal de bênção é aberto e respostas reais são recebidas à oração.
Mas, infelizmente, quantas vezes damos a Deus a oportunidade de dizer: “os vossos
pecados apartam de vós o bem” (Jeremias 5:25). Então, que o pregador não perca
nenhuma oportunidade de provar pelas Escrituras que o caminho da obediência é o
caminho da bênção (Salmos 81:11-16), e demonstrar que Deus ordena os Seus caminhos
para conosco de acordo com a nossa conduta (Isaías 48:10) — Ele fez isso com o próprio
Cristo (João 8:29, 10:17; Salmos 45:7).
25. A regra da ênfase. A importância fundamental e perpetuidade da lei moral foi
indicada por ser escrita pelo próprio dedo de Deus, e pelas duas tábuas em que foi inscrita
haverem sido colocadas em abrigo seguro dentro da arca santa. O valor inestimável do
Evangelho foi significado por ser anunciado aos pastores por um anjo: “eis aqui vos trago
novas de grande alegria, que será para todo o povo”, e por ser acompanhado por uma
multidão dos exércitos celestiais louvando a Deus e dizendo: “Glória a Deus nas alturas,
paz na terra, boa vontade para com os homens” (Lucas 2:10,14). O valor relativo de alguma
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coisa é geralmente indicado pelo lugar e destaque que lhe é dado nas Escrituras. Assim,
apenas dois dos evangelistas fazem menção ao nascimento real de Cristo; apenas um
deles nos fornece quaisquer detalhes sobre sua infância; apenas Marcos e Lucas se
referem à Sua ascensão; mas todos os quatro evangelistas descrevem a Sua morte
sacrificial e ressurreição vitoriosa! Quão claramente isso nos informa sobre o que mais deve
ser anunciado por Seus servos, e o que deve envolver mais os corações e mentes do Seu
povo!
Outro meio e método empregado pelo Espírito para prender nossa atenção e
concentrar as nossas mentes em partes distintas da Verdade é o seu uso de um grande
número de “figuras de linguagem”. Nelas Ele arranjou palavras e frases de uma maneira
incomum com a finalidade de impressionar mais profundamente o leitor com o que é dito.
O erudito autor10 de The Companion Bible [A Bíblia Companheira] (agora quase
inacessível) referiu mais detalhadamente esse assunto do que qualquer escritor inglês e, a
partir dele nós agora selecionamos um ou dois exemplos. A figura de anabasis ou gradação,
no qual há uma preparação até um clímax, como em: “Quem intentará acusação contra os
escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem é que condena? Pois é Cristo quem
morreu, ou antes quem ressuscitou dentre os mortos, o qual está à direita de Deus, e
também intercede por nós” (Romanos 8:33-34). Assim, novamente em 2 Pedro 1:5-7:
“...acrescentai à vossa fé a virtude... caridade”. A figura oposta é a de catabasis ou descida
gradual, um notável exemplo disso é encontrado em Filipenses 2:6-8.
A forma mais comum de destaque é a repetição. Isto é encontrado na Palavra em toda
uma variedade de maneiras, como na duplicação de um nome: “Abraão, Abraão” (Gênesis
22:11). Houve seis outras pessoas a quem o Senhor se dirigiu assim: “Jacó, Jacó” (46:2),
“Moisés, Moisés” (Êxodo 3:4), “Samuel, Samuel” (1 Samuel 3:10), “Marta, Marta” (Lucas
10:41), “Simão, Simão” (22:10), “Saulo, Saulo” (Atos 9:4). Depois, houve o triste:
“Jerusalém, Jerusalém” de nosso Senhor (Mateus 23:37), e seu brado de angústia: “Meu
Deus, Meu Deus” (Mateus 27:46); como ainda haverá o urgente: “Senhor, Senhor” dos
perdidos (Lucas 13:25). Tais formas de intensificação da expressão como: “o santo dos
santos”, “Cântico dos Cânticos”, vaidade das vaidades”, e o inefável “para todo o sempre”,
expressam o mesmo princípio. Novamente, “Espera no Senhor, anima-te, e ele fortalecerá
o teu coração; espera, pois, no Senhor” (Salmos 27:14); “Regozijai-vos sempre no Senhor;
outra vez digo, regozijai-vos” (Filipenses 4:4). Ainda mais enfático é o “santo, santo, santo”
de Isaías 6:3, e a expressão: “Ó terra, terra, terra! Ouve a palavra do Senhor” (Jeremias
10 Ethelbert William Bullinger (15 de dezembro de 1837 - 2 de junho 1913).
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22:29), e porque não: “Ao revés, ao revés, ao revés” (Ezequiel 21:27), e também: “Ai! ai! ai!
dos que habitam sobre a terra!” (Apocalipse 8:13)?
Uma forma simples de repetição estrutural ocorre na linguagem de adoração
encontrada tanto no início quanto no fim do Salmo 8: “Ó Senhor, Senhor nosso, quão
admirável é o teu nome sobre toda a terra!”. Outras formas desse princípio são as que são
tecnicamente conhecidas como ciclóide, ou repetição circular, onde a mesma frase ocorre
em intervalos regulares, como em “Faze-nos voltar, ó Deus” (Salmos 80:3,7,9); epíbole, ou
repetição sobreposta, onde a mesma frase é usada em intervalos irregulares, como “a voz
do Senhor” (Salmos 29:3,4,5,7,8,9); epímone, ou persistência, onde a repetição ocorre com
o propósito de fazer uma impressão mais duradoura, como em João 21:15-17, onde nosso
Senhor continuou a desafiar o amor de Seu discípulo errante, e evidenciou a Sua aceitação
de suas respostas por declarar: “Apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas
ovelhas”.
No Antigo Testamento muitos exemplos são encontrados do que é chamado
paralelismo hebraico, no qual o mesmo pensamento é expresso em linguagem diferente.
Por exemplo: “Ele mesmo julgará o mundo com justiça; exercerá juízo sobre povos com
retidão” (Salmos 9:8). “A soberba precede a ruína, e a altivez do espírito precede a queda”
(Provérbios 16:18, e compare com Isaías 1:18). Em outros casos, a verdade é demonstrada
por um contraste: “A maldição do Senhor habita na casa do ímpio, mas a habitação dos
justos abençoará” (Provérbios 3:33, 15:17). No grego a ênfase é indicada pela ordem das
palavras em uma frase: “Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim” (Mateus 1:18); “Mas
Deus prova o seu amor para conosco” (Romanos 5:8).
A importância de prestar atenção à ênfase divina é indicada de várias formas. “Em
verdade, em verdade”, com o qual Cristo prefaciou alguns dos Seus mais relevantes
enunciados. Seu uso da forma interrogativa ao invés da afirmativa em casos como: “Pois,
que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” (Marcos 8:36) —
muito mais forte do que: “Não aproveitaria nada ao homem se...”, etc. A fim de convocar
atenção urgente ao que acabou de dizer, a expressão: “Aquele que tem ouvidos para ouvir,
ouça” de Cristo é usada novamente, com uma pequena variação, em cada um dos seus
discursos às sete igrejas de Apocalipse 2 e 3. Várias exposições notáveis de Paulo são
precedidas por “esta é uma palavra fiel”. Quando explica o significado de Melquisedeque,
ele sinaliza esse princípio: “A quem também Abraão deu o dízimo de tudo, e primeiramente
é, por interpretação, rei de justiça, e depois também rei de Salém, que é rei de paz”
(Hebreus 7:2, e cf. Tiago 3:17). Com a finalidade de dar destaque, outras declarações são
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introduzidas pela palavra “Oh”; “Oh! quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em
união” (Salmos 133:1, e cf. 1 João 3:1).
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Capítulo 19
________________________________________
26. A origem das palavras. Uma enorme quantidade de tempo, pesquisa e estudo tem
sido dedicado a isso, e os homens de grande erudição têm reunido os resultados de seu
trabalho em volumes que são enormes e caros. No entanto, na opinião do escritor, esses
estão longe de possuir aquele valor que tem sido muitas vezes atribuído a eles, ele também
não os considera quase indispensáveis para o pregador, como muitos têm afirmado. Sem
dúvida, eles contêm informações de considerável interesse para etimologistas, mas como
um meio para interpretar as Escrituras, os léxicos são muito superestimados. Um
conhecimento da derivação das palavras usadas nas Escrituras originais não pode ser
essencial, pois é inalcançável para a grande maioria do povo de Deus. Além disso, as
tentativas para chegar a essas derivações, muitas vezes não são de todo uniformes, pois
os melhores hebraístas estão longe de ser unânimes quanto às raízes particulares a partir
do qual são formadas várias palavras no Antigo Testamento. Para nós parece muito
insatisfatório, sim, profano, voltar-se para poetas e filósofos pagãos para descobrir como
certas palavras gregas eram usadas antes que fossem empregadas no Novo Testamento.
Porém, o que é ainda mais direto ao ponto, um tal método é arruinado diante do emprego
real que o Espírito Santo faz de vários termos.
Em vista do que foi dito na décima oitava regra de exegese, não me proponho a
escrever muito sobre esse ponto. Em vez disso, vamos nos limitar a um único exemplo, que
ilustra a frase final do parágrafo anterior, e que, ao mesmo tempo, refuta um erro que é
muito difundido atualmente. Muitos dos que negam que os ímpios serão punidos
eternamente apelam para o fato de que adjetivo grego aionios simplesmente significa
“tempo duradouro”, e que eis ton aiona (Judas 13) e eis aionas aionon (Apocalipse 14:11)
significa “pela era” e “pelas eras das eras” e “para sempre” e “para todo o sempre”. A
simples resposta é dada; ainda assim, é insignificante para o ponto em questão.
Verdadeiramente, essas expressões gregas são apenas termos temporais, pela razão
suficiente de que as mentes dos antigos eram incapazes de compreender o conceito de
eternidade. Portanto, a linguagem empregada por aqueles que foram destituídos de uma
revelação escrita de Deus não é de proveito nenhum, quer a favor ou contra a respeito da
imensidão da bem-aventurança do redimido ou da miséria do perdido. Para verificar isso
devemos observar como os termos são usados na Sagrada Escritura.
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As conexões em que o Espírito Santo usou a palavra aionios não deixa qualquer
espaço para qualquer incerteza sobre o seu significado na mente de um investigador
imparcial. Essa palavra não ocorre apenas em expressões como “destruição eterna”, “fogo
eterno”, “castigo eterno”, mas também em “vida eterna” (Mateus 25:46), “salvação eterna”
(Hebreus 5:9), “eterna glória” (1 Pedro 5:10); e com toda a certeza esses são atemporais.
Ainda mais decisivamente, essa palavra está ligada com a subsistência da Divindade:
“Deus eterno” (Romanos 16:26). Novamente, a força e o alcance da palavra são claramente
vistos no fato de que ela é a antítese daquilo que é de duração limitada: “as [coisas] que se
veem são temporais, e as que se não veem são eternas” (2 Coríntios 4:18). Agora, é óbvio
que se as coisas temporais durassem para sempre, não poderia haver contraste entre elas
e as coisas que são eternas. Igualmente certo é que se as coisas eternas fossem somente
“duradouras”, elas não seriam diferentes das coisas temporais. O contraste entre o temporal
e o eterno é tão real e tão grande como entre as coisas “visíveis e invisíveis”. Mais uma
vez, em Filemon, verso 15, aionios (traduzido como “para sempre”) é colocado em oposição
a “por algum tempo”, mostrando que um é o oposto do outro — “o retivesses para sempre”
manifestamente significa nunca o expulsar ou mandá-lo embora.
Antes de deixar esse assunto deve ser salientado que o desespero absoluto da
condição dos perdidos encontra-se não somente no fato de que sua punição é dita ser
eterna, mas em outras considerações colaterais que são igualmente definitivas. Não há um
único caso registrado na Escritura de um pecador sendo salvo após a morte, nem qualquer
passagem estendendo qualquer promessa para tal. Por outro lado, há muito do contrário.
“O homem que muitas vezes repreendido endurece a cerviz, de repente será destruído sem
que haja remédio” (Provérbios 29:1), o que não seria o caso se, depois de “eras” em fogo
purificador, ele fosse finalmente admitido no Céu. Aos seus inimigos, Cristo disse:
“...morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, não podeis vós vir” (João 8:21); pelo fato
da morte haver selado o seu destino. Este fato é igualmente certo a partir daquelas terríveis
palavras de Cristo: “a ressurreição da condenação” (João 5:29), o que exclui todo vislumbre
de esperança quanto à sua recuperação na próxima vida. Para o apóstata “já não resta
mais sacrifício pelos pecados” (Hebreus 10:26). “Porque o juízo será sem misericórdia
sobre aquele que não fez misericórdia” (Tiago 2:13). “Cujo fim é a destruição” (Filipenses
3:19). Por isso é que está escrito no fim da Escritura: “Aquele que é injusto, faça injustiça
ainda: e quem está sujo, suje-se ainda” (Apocalipse 22:11) — assim como a árvore cai,
assim também permanecerá ali para sempre.
27. A regra da comparação e contraste. Embora esta regra seja muito menos
importante para o expositor do que muitas das outras, é de profundo interesse; e, embora
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pouco seja conhecido, ainda assim, esse princípio tem um lugar de destaque na Palavra.
E, considerando o que foi denominado “o par de opostos”, que nos confrontam em todas
as esferas, não deveria nos causar nenhuma surpresa encontrar que essa regra recebe tal
frequente ilustração e exemplificação nas Escrituras, e isso de várias maneiras. Deus e o
Diabo, o tempo e a eternidade, dia e noite, homem e mulher, bem e mal, Céu e Inferno, são
estabelecidos em oposição um ao outro. No princípio criou Deus os Céus e a Terra, e a
Terra tem os seus dois hemisférios, norte e sul. Assim também no Antigo e Novo
Testamentos há judeus e gentios, e após os dias de Salomão os israelitas foram divididos
em dois reinos; enquanto por toda a cristandade, encontramos o possuidor genuíno da
graça e o aquele que é meramente professo, mas não possui a graça. Seja qual for a
explicação, somos confrontados em todos os lugares com essa misteriosa dualidade: o
visível e o invisível, espírito e matéria, terra e mar, forças de ação centrífuga e centrípeta,
vida e morte.
Como apontado em uma ocasião anterior, a própria verdade é sempre dupla, e,
portanto, a própria Palavra de Deus é comparada a uma espada de dois gumes. Não
somente é, em primeiro lugar, uma revelação de Deus, e, em segundo lugar, dirigida à
responsabilidade humana; mas um grande número de passagens nela tem uma força e
significado duplos, um literal e espiritual; muitas de suas profecias possuem um
cumprimento duplo, um maior e um menor; uma vez que a promessa e o preceito, ou o
privilégio e a obrigação correspondente, são sempre combinados. Casos de pares são
numerosos. Os dois grandes luminares (Gênesis 1:16); dois de cada espécie entrando na
arca (6:19). As duas tábuas em que a lei foi escrita. As duas aves (Levíticos 14:4-7); os dois
bodes (16:7); as duas décimas de flor de farinha e os dois pães (23:13,17). O milagre
repetido da água a partir da rocha ferida (Êxodo 17; Números 20), como também Cristo
alimentando por duas vezes uma grande multidão com alguns pães e peixes. Os dois sinais
a Gideão (Juízes 6). As duas oliveiras (Zacarias 4). Os dois mestres (Mateus 6:24); as duas
fundações (7:24-27). Os dois devedores (Lucas 7:41); os dois filhos (15:11); os dois homens
que foram ao templo para orar (18:10). As duas testemunhas falsas contra Cristo (Mateus
26:60); e os dois ladrões crucificados com Ele. Os dois anjos (Atos 1:10). As duas “coisas
imutáveis” de Hebreus (6:18). As duas bestas (Apocalipse 13).
Como Cristo enviou os Seus apóstolos em pares, assim por toda a Bíblia dois
indivíduos são mais ou menos intimamente associados: em alguns casos, um complementa
o outro, mas na maioria há um contraste marcante entre eles. Assim, temos Caim e Abel,
Enoque e Noé, Abraão e Ló, Sara e Agar, Isaque e Ismael, Esaú e Jacó, Moisés e Arão,
Calebe e Josué, Noemi e Rute, Samuel e Saul, Davi e Jônatas, Elias e Eliseu, Neemias e
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Esdras, Marta e Maria, os fariseus e os saduceus, Anás e Caifás, Pilatos e Herodes, Paulo
e Barnabé. Às vezes, uma série de antíteses notáveis reúnem-se na vida de um único
indivíduo. Notavelmente esse foi o caso de Moisés. “Ele era o filho de uma escrava, e o
filho de uma princesa. Ele nasceu de uma escrava, mas viveu em um palácio. Ele foi
educado na corte, e habitou no deserto. Ele foi o mais poderoso dos guerreiros, e o mais
manso dos homens. Ele tinha a sabedoria do Egito, e a fé de uma criança. Ele não era
eloquente, e falava com Deus. Ele tinha a vara do pastor, e o poder do infinito. Ele foi o
doador da lei, e o precursor da graça. Ele morreu sozinho no monte Nebo, e apareceu com
Cristo na Judéia. Nenhum homem compareceu a seu funeral, mas Deus o sepultou” (I. M.
Haldeman).
A. T. Pierson indicou que outra série de paradoxos marcantes é encontrada naquela
notável profecia sobre o Messias em Isaías 53. Embora fosse o Filho de Deus, contudo a
sua pregação não foi crida. Ele era tido por Deus como “renovo”, mas pelos homens como
“a raiz de uma terra seca”. Servo de Yahwéh, em Quem a Sua alma se deleita, mas na
estima dos judeus Ele não possuía nenhuma formosura ou beleza. Nomeado pelo Pai e
ungido pelo Espírito, ainda assim foi desprezado e rejeitado pelos homens. Gravemente
ferido e castigado pelos pecadores, mas os pecadores crentes foram curados pelas Suas
pisaduras. Nenhuma iniquidade foi achada nEle, mas as iniquidades de muitos estavam
sobre Ele. Embora Ele mesmo era o Juiz de todos, foi levado diante do tribunal de criaturas
humanas. Sem geração, mas possuiu uma numerosa descendência. Cortado da terra dos
viventes, ainda assim, vivo para sempre. Ele teve a sua sepultura com os ímpios, no
entanto, Ele estava com o rico na sua morte. Embora contado com os injustos, Ele justifica
a muitos. Ele foi atacado pelo valente, mas Ele saqueou o valente, libertando uma multidão
de cativos da sua mão. Ele foi contado com e ridicularizado pelos transgressores, mas fez
intercessão por eles.
É de fato notável encontrar a dualidade das coisas que nos confrontam com tanta
frequência em conexão com o plano da redenção. Com base na obra dos grandes cabeças
federais, o primeiro Adão e o último Adão, com os pactos fundamentais ligados a eles: o
Pacto das Obras e o Pacto da Graça. O último Adão com as Suas duas naturezas distintas,
constituindo-o Mediador Deus-homem. Duas genealogias diferentes são dadas a Ele, em
Mateus 1 e Lucas 3. Há Seus dois adventos distintos: o primeiro em profunda humilhação,
o segundo em grande glória. A salvação que Ele operou para o Seu povo é dupla: objetiva
e subjetiva ou coletiva e vital, a que Ele efetuou por eles, e outra que Ele opera neles —
uma justiça imputada a eles, e uma justiça comunicada. A vida Cristã é uma estranha
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dualidade: os princípios do pecado e da graça sempre se opõem um ao outro. As duas
ordenanças que Cristo deu às Suas igrejas: o Batismo e a Ceia do Senhor.
Há muitos pontos de contraste entre os dois primeiros livros da Bíblia. No primeiro,
temos a história de uma família; no último a história de uma nação. No primeiro os
descendentes de Abraão são apenas poucos em número; no outro eles aumentaram a
centenas de milhares. Em Gênesis os hebreus são bem-vindos e honrados no Egito,
enquanto que em Êxodo eles são odiados e evitados. No primeiro, lemos de um faraó que
diz a José: “Deus te fez saber tudo isto” (41:39), mas no último, outro Faraó diz a Moisés:
“Não conheço o Senhor” (5:2). Em Gênesis ouvimos falar sobre um “cordeiro” prometido
(22:8), em Êxodo sobre o “Cordeiro” morto e seu sangue aspergido. No primeiro, temos
registrada a entrada de Israel no Egito; no último é descrita a saída deles. No primeiro
vemos os patriarcas peregrinando na terra que mana leite e mel; no outro os seus
descendentes estão errantes no deserto. Gênesis termina com José em um caixão,
enquanto Êxodo termina com a glória do Senhor enchendo o tabernáculo.
É interessante e instrutivo comparar as passagens sobrenaturais de Israel
atravessando o Mar Vermelho e o Jordão. Há pelo menos doze detalhes de semelhança
entre elas, o que deixaremos que o leitor verifique por si mesmo. Aqui, vamos considerar
os seus pontos de divergência. Em primeiro lugar, um conclui a saída de Israel da casa da
servidão, o outro iniciou a sua entrada na terra da promessa. Em segundo lugar, o primeiro
milagre foi operado no fim para que pudessem escapar dos egípcios, este último lhes
permitiu se aproximarem e conquistarem os cananeus. Em terceiro lugar, em conexão com
um o Senhor fez o mar se abrir por um forte vento oriental (Êxodo 14:21), mas com relação
ao outro, nenhum meio sequer foi usado — para demonstrar que Ele não está vinculado a
meios, mas que os emprega ou dispensa como Lhe agrada. Em quarto lugar, o milagre
anterior foi realizado à noite (14:21), este último em plena luz do dia. Em quinto lugar, as
multidões do Mar Vermelho foram mortas porque o Senhor fez com que as águas tornassem
sobre os egípcios de modo que “cobriram os carros e os cavaleiros de todo o exército de
Faraó, que os haviam seguido no mar; nenhum deles ficou” (14:28), enquanto que no
Jordão nenhuma única alma pereceu. Em sexto lugar, um foi operado para pessoas que
um pouco antes estavam cheias de incredulidade e murmuração (Êxodo 14:11), o outro
para um povo que era fiel e obediente (Josué 2:24, 3:1). Em sétimo lugar, com a única
exceção de Calebe e Josué, todos os adultos que se beneficiaram do primeiro milagre
morreram no deserto; enquanto a grande maioria daqueles que foram favorecidos por
compartilhar deste último “possuíram as suas possessões”. Em oitavo lugar, as águas do
Mar Vermelho foram “divididas” (Êxodo 14:21), as do Jordão que “vêm de cima, pararão
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amontoadas” (Josué 3:13). Em nono lugar, no primeiro, a morte judicial do crente para o
pecado foi tipificada; neste último foi tipificada a sua unidade legal com Cristo na Sua
ressurreição, seguido por uma entrada prática em sua herança. Em décimo lugar,
consequentemente, não houve “santificai-vos”, antes do primeiro, mas essa convocação foi
uma exigência imperativa para o último (Josué 3:5). Em décimo primeiro lugar, a resposta
dos inimigos de Israel para a intervenção do Senhor por Seu povo no Mar Vermelho foi:
“Perseguirei, alcançarei, repartirei os despojos; fartar-se-á a minha alma deles...” (Êxodo
15:9); mas no segundo, “E sucedeu que, ouvindo todos os reis dos amorreus, que
habitavam deste lado do Jordão... desfaleceu-se-lhes o coração, e não houve mais ânimo
neles, por causa dos filhos de Israel” (Josué 5:1). Em décimo segundo lugar, após o
primeiro, “Israel viu os egípcios mortos na praia do mar” (Êxodo 14:30); após o último, um
monte de doze pedras celebrou o evento (Josué 4:20-22).
Muitos exemplos desse princípio são encontrados ao observarmos atentamente os
detalhes de diferentes exemplos que o Espírito Santo colocou lado a lado na Palavra. Por
exemplo, quão súbita e estranha é a transição que nos confronta enquanto lemos 1 Reis
18-19. É como se o sol estivesse resplandecendo brilhantemente no céu claro, e no
momento seguinte, sem qualquer aviso, nuvens negras agitassem os céus. Os contrastes
apresentados nesses capítulos são nítidos e surpreendentes. No primeiro capítulo vemos
o profeta de Gileade no seu melhor; no último podemos vê-lo no seu pior. No final de um “a
mão do Senhor estava sobre Elias”, enquanto ele corria adiante da carruagem de Acabe;
no início do outro, o temor do homem estava sobre ele, e ele receava por sua vida. Ali, ele
estava preocupado somente com a glória do Senhor, aqui está ele preocupado apenas
consigo mesmo. Ali, ele era fortalecido na fé e o ajudante do seu povo; aqui ele dá lugar à
incredulidade, e é o desertor de sua nação. Em um, ele corajosamente enfrenta os
quatrocentos profetas de Baal de forma destemida, aqui ele foge em pânico pelas ameaças
de uma única mulher. Do topo do monte, ele vai para o deserto, e de suplicar ao Senhor
para que Ele vindicasse o Seu grande nome, passou a implorar-Lhe que tirasse sua vida.
Quem teria imaginado uma sequência tão trágica? Quão forte é a exposição e
exemplificação do contraste da fragilidade e inconstância do coração humano, mesmo em
um santo!
O trabalho de Elias e Eliseu formou duas partes de um todo, um completando o outro,
e, embora existam semelhanças evidentes entre eles há também contrastes notáveis.
Ambos eram profetas, ambos habitavam em Samaria, ambos foram confrontados com
quase a mesma situação. A queda do manto de Elias sobre Eliseu indica que este último
era o sucessor do primeiro, e que ele foi chamado para continuar a sua missão. O primeiro
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milagre realizado por Eliseu foi idêntico ao último realizado por seu mestre: ferir as águas
do Jordão com o manto, para que se dividissem para os dois lados (2 Reis 2:8,14). No início
do seu ministério Elias disse ao rei Acabe: “Vive o Senhor dos Exércitos, em cuja presença
estou” (2 Reis 3:14). Como Elias foi acolhido pela mulher de Sarepta, e a recompensou,
restaurando a vida de seu filho (1 Reis 17:23), assim Eliseu foi atendido por uma mulher
em Suném e a recompensou, restaurando a vida de seu filho (2 Reis 4).
Os pontos de concordância entre os dois profetas são impressionantes, mas os
contrastes em suas carreiras e trabalho também são vívidos. Um apareceu de repente e de
forma dramática no cenário da ação pública, nenhuma palavra nos é dita a respeito de sua
origem ou como ele tinha sido chamado anteriormente; mas sobre o outro, o nome de seu
pai é registrado, e um relato é feito a respeito de sua ocupação na época em que recebeu
o chamado para o serviço de Deus. O primeiro milagre de Elias foi cerrar os céus, para que
pelo espaço de três anos e meio não houvesse nem orvalho nem chuva de acordo com a
sua palavra; enquanto que o primeiro ato público de Eliseu foi curar as fontes de água (2
Reis 2:21-22) e proporcionar abundância de água para o povo (3:20). A principal diferença
entre eles é vista no caráter dos milagres operados por e conectado com eles: a maioria
daqueles milagres realizados pelo primeiro foram associados com morte e destruição, mas
a grande maioria daqueles atribuídos a Eliseu foram obras de cura e restauração. Elias era
mais profeta de julgamento, o outro de graça. O primeiro foi marcado pela solidão,
habitando longe das multidões apóstatas; este último parece ter passado a maior parte de
seu tempo na companhia dos profetas, presidindo suas escolas. Um foi levado ao Céu num
carro de fogo, o outro ficou doente na velhice e morreu de morte natural (22:9).
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Capítulo 20
________________________________________
No último capítulo nós ressaltamos aqueles diferentes aspectos da Verdade que são
frequentemente enfatizados nas Escrituras, colocando dois exemplos em justaposição a
fim de pontuar várias diferenças entre eles. Demos várias ilustrações do Antigo Testamento
da regra da comparação e contraste; agora vamos mostrar que o mesmo princípio é válido
no Novo Testamento. Considere, em primeiro lugar, as antíteses notáveis entre o que é
registrado em Lucas 18:35-42 e 19:1-9. Aquilo que é narrado na primeira passagem ocorreu
enquanto Cristo se aproximava de Jericó (a cidade da maldição – Josué 6:26), já a segunda
ocorreu depois dEle ter passado por ela. O sujeito da primeira era um mendigo cego, o da
segunda era o “chefe dos publicanos”. Bartimeu ocupou um lugar humilde, pois ele “sentou-
se à beira do caminho”; Zaqueu assumiu uma posição elevada, pois ele “subiu a um
sicômoro”. Aquele tinha a intenção de obter esmola dos transeuntes; o outro estava
determinado a “vê-lO”, a saber, Cristo. Bartimeu tomou a iniciativa e clamou: “Filho de Davi,
tem misericórdia de mim”; Cristo tomou a iniciativa em relação Zaqueu, ordenando-lhe
“descer”. O primeiro suplicou por sua vista; a este último Cristo fez um pedido peremptório:
“hoje me convém pousar em tua casa”. A multidão repreendeu Bartimeu por clamar a Cristo;
todos “murmuraram” por Cristo ser hóspede de Zaqueu.
Há uma série impressionante de contrastes entre o que é encontrado nos versos
iniciais de João 3 e João 4. O que é registrado no primeiro ocorreu em Jerusalém, no último
o cenário é em Samaria. Em um temos “um homem dos fariseus, chamado Nicodemos”; no
outro, uma mulher não nomeada. Ele era uma pessoa distinta, um “mestre de Israel”; ela
era de uma das classes mais baixas, pois ela veio ao poço, para “tirar água”. Ele era um
judeu favorecido, ela uma samaritana desprezada, uma semi-pagã. Nicodemos era um
homem de grande reputação, um membro do Sinédrio; aquela com quem Cristo lidou em
João 4 era uma mulher de costumes dissolutos. Nicodemos foi falar com Jesus; Cristo
esperou pela mulher no poço, e ela não tinha ideia que encontraria o seu Salvador. O
primeiro incidente ocorreu “durante a noite”; este último ao meio-dia. Para o fariseu justo
aos seus próprios olhos, Cristo disse: “Necessário vos é nascer de novo”; à pecadora dos
gentios Ele falou do “dom de Deus”. Nada é dito sobre como a primeira conversa terminou
— aparentemente Nicodemos, naquela época, não foi convencido; a última saiu e
testemunhou de Cristo.
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Ao comparar o que está registrado nas primeiras partes de João 12 e 13 alguns
contrastes interessantes e instrutivos são revelados. No primeiro lemos que: “Fizeram-lhe,
pois, ali uma ceia”; neste último, há uma ceia que Ele designou. No primeiro, Ele está
sentado à mesa; no último Ele levantou-se à mesa. Naquele, Ele é honrado; neste Ele
executa o ofício de um servo. No primeiro, vemos Maria aos pés do Salvador; no outro
vemos o Filho de Deus inclinando-se para cuidar dos pés de Seus discípulos. Os pés falam
da caminhada. Os pés de Cristo foram ungidos com perfume caro; os pés dos apóstolos
foram lavados com água. Enquanto Cristo passava por este mundo, Ele não foi
contaminado: Ele o deixou como entrou nele: “santo, inocente, imaculado” (Hebreus 7:26).
Que Seus pés foram ungidos com nardo perfumado nos fala do cheiro suave que sempre
subiu dEle ao Pai, perfeitamente glorificando-O em cada passo do Seu caminho. Em nítido
contraste com o caminhar de Cristo, o caminhar dos discípulos era contaminado, e a sujeira
do caminho precisava ser removida se eles quisessem ter “parte” ou comunhão com Ele
(13:8). Os pés de Cristo foram ungidos antes dos deles serem lavados, pois em todas as
coisas Ele deve ter a “preeminência” (Colossenses 1:18). Em relação ao primeiro, Judas
queixou-se; neste último, Pedro objetou. Interpretativamente, um tinha o sepultamento de
Cristo em vista (12:7); o outro esboçou uma importante parte de Sua presença ministerial
nas alturas (13:1).
Muitas ilustrações desse princípio são encontradas em conexão com palavras e
expressões que são utilizadas apenas duas vezes nas Escrituras, e surpreendente são os
contrastes entre elas. Apopnigo ocorre apenas em Lucas 8:7,33: uma tendo referência à
semente ser sufocada pelos espinhos; a outra, onde os porcos endemoninhados se
afogaram no mar. Em Lucas 2:1-5, apographe é usado em conexão com os próprios
primogênitos sendo inscritos na terra, enquanto que em Hebreus 12:23, refere-se a Igreja
dos primogênitos inscritos nos Céus. Apokueo é usado em Tiago 1:15,23 sobre o desejo
dar a luz ao pecado, e do Pai nos gerando pela Palavra da Verdade. Apolausis é aplicado
às coisas que Deus nos deu para apreciarmos licitamente (1 Timóteo 6:17), e à recusa de
Moisés para desfrutar dos prazeres ilícitos do pecado (Hebreus 11:25). Anthrakia só é
encontrado em João 18:18, onde Pedro juntou-se aos inimigos de Cristo nas “brasas”, e em
21:9, onde os discípulos se alimentaram diante das mesmas na presença de Cristo.
Choramakros é o “país distante” para o qual o filho pródigo partiu (Lucas 15:13), e um muito
diferente para o qual Cristo foi em Sua ascensão (Lucas 19:12). Panoplia é usado para a
“armadura” do inimigo (Lucas 11:22), e para a armadura que Cristo providenciou para os
santos (Efésios 6:11,13).
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Há duas referências ao “vale do rei”: em uma Melquisedeque é retratado simbolizando
a Cristo (Gênesis 14:17-18); na outra, Absalão ergueu um monumento para si mesmo (2
Samuel 18:18). Que notável (e provavelmente proposital) contraste existe entre as
expressões “e caíram do povo aquele dia uns três mil homens” (Êxodo 32:28), e “naquele
dia agregaram-se quase três mil almas” (Atos 2:41) — as únicas ocasiões em que a
expressão “quase três mil” é usada nas Escrituras. Semelhante também é esse exemplo:
“eram com ele [Davi] uns quatrocentos homens” (1 Samuel 22:2), e “levantou-se Teudas,
dizendo ser alguém; a este se ajuntou o número de uns quatrocentos homens” (Atos 5:36).
Em 1 Samuel 28:24, lemos sobre o “bezerro cevado” da feiticeira de En-Dor; em Lucas
15:23, somos informados do “bezerro cevado”, que foi morto para o filho pródigo! Katischuo
ocorre apenas em “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, a Igreja (Mateus
16:18), e “os seus gritos, e os dos principais dos sacerdotes, prevaleciam” (Lucas 23:23)
com Pilatos contra Cristo, relativo à Sua crucificação.
Quanto perdemos ao deixarmos de prestar atenção cuidadosa a essa palavra:
“comparando coisas espirituais com espirituais” (1 Coríntios 2:13). Se passássemos mais
tempo em oração, meditação sobre as Escrituras, teríamos mais frequentemente a
oportunidade de dizer com Davi: “Folgo com a tua palavra, como aquele que acha um
grande despojo” (Salmos 119:162). Não é ao leitor apressado ou superficial que os tesouros
são revelados. Que contraste surpreendente e solene existe entre Cristo ser “contado com
os transgressores” (Marcos 15:28), e Judas ser “contado com” os apóstolos (Atos 1:17).
Kataluma é usado somente em Lucas 2:7, onde é traduzido como: “porque não havia lugar
para eles na estalagem”; e em Lucas 22:11, onde é traduzido: “o aposento”, onde o
Salvador participou da Páscoa com seus discípulos. A mulher de Tiatira em Atos 16:14 teve
o coração aberto pelo Senhor para que ela pudesse “tomar para si” (que é o significado da
palavra grega traduzida por “entender”) a mensagem do servo de Deus; mas a mulher de
Tiatira em Apocalipse 2:20 abriu a boca com a finalidade de seduzir os servos de Deus!
Apenas duas vezes lemos sobre o Senhor Jesus ser beijado, e que contraste: o beijo da
mulher por devoção (Lucas 7:38), o beijo de Judas por traição de Judas (Mateus 26:40)!
Em relação à interpretação da Escritura a importância desse princípio de comparar
duas coisas ou passagens e observar as suas variações pode ser ainda mais
definitivamente vista comparando a parábola do nosso Senhor sobre o banquete de
casamento, em Mateus 22:1-10, e a parábola da grande ceia de Lucas 14:16-24. Os
comentaristas têm descuidadamente assumido que elas ensinam a mesma coisa, mas um
exame atento delas mostrará que apesar de terem muitas coisas em comum, elas
apresentam aspectos bastante diferentes da Verdade: ilustrando, respectivamente, o
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chamado exterior, geral e ineficaz do Evangelho e o chamado interno, particular e eficaz de
Deus. Na primeira, são “servos” (no plural) que estão envolvidos (vv. 3,4,6,8,10); enquanto
na segunda é “aquele servo” (v. 21), “seu servo” (v. 21), “o servo” (vv. 22-23). Deve-se notar
que as suas comissões não são as mesmas: os servos são instruídos a “chamar os
convidados para as bodas” (v. 3), a “dizer-lhes” (v. 4), e “convidarem para as bodas” (v. 9),
e nada mais; enquanto que o servo não deveria apenas “dizer aos convidados: Vinde” (v.
17), mas também “trazê-los” (“força-os a entrar” – v. 23).
Quando essas distinções são devidamente ponderadas, fica evidente que enquanto
em Mateus 22 os “servos” são os ministros de Deus enviados a pregar o Evangelho a toda
criatura, “o servo” de Lucas 14 não é outro senão o Espírito Santo, que por Suas operações
de poder invencível e eficaz vivifica os eleitos de Deus em novidade de vida. Somente Ele
é capaz de superar a aversão natural e oposição deles às coisas divinas, assim como
somente Ele é capaz de trazer “aqui os pobres, e aleijados, e mancos e cegos”. Nem
ninguém mais poderia verdadeiramente dizer sobre os seus esforços: “Senhor, feito está
como mandaste” (Lucas 14:22). Como Cristo era o “servo” da Divindade (Mateus 12:18-20)
durante os dias da Sua carne, assim o bendito Espírito é o “servo” de Cristo durante esse
período (João 16:14; Atos 2:33). Essa interpretação é confirmada pelo fato de que os servos
foram “ultrajados” e até mesmo “mortos” (Mateus 22:6). Além disso, nós lemos sobre eles:
“E os servos, saindo pelos caminhos, ajuntaram todos quantos encontraram, tanto maus
como bons; e a festa nupcial foi cheia de convidados” (Mateus 22:10), pois eles não eram
capazes de ler os corações; mas nenhuma declaração como essa é feita sobre o Servo que
“traz” (para o Céu) aqueles com quem Ele lida.
Antes de deixarmos essa parte de nosso assunto, daremos um outro exemplo de sua
importância e valor. Ao fazer uso da regra do contraste, somos capazes de determinar
decisivamente a controvérsia que os Socinianos têm levantado sobre esse verso
importante, “Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele
fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Coríntios 5:21). Essa é uma das declarações mais
profundas e abrangentes a serem encontradas nas Escrituras a respeito da expiação,
contendo um breve resumo de todo o plano da salvação. Os inimigos do Evangelho insistem
que a expressão: “o fez pecado”, deveria ser traduzida como: “feito uma oferta pelo pecado”,
mas isso é totalmente inadmissível, pois nesse caso a antítese nos obrigaria a traduzir “para
que nele fôssemos feitos uma oferta pela justiça de Deus”, o que seria um evidente absurdo.
O contraste extraído daqui estabelece o significado exato dos termos usados. Os crentes
são legalmente declarados justos em Cristo diante de Deus, e, portanto, o contraste exige
que Cristo foi legalmente declarado pecado, isto é, culpado aos olhos da lei de Deus. A
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grande verdade afirmada nesse verso é a troca de lugares em relação às imputações dos
mesmos: os nossos pecados foram colocados na conta do nosso Fiador, tornando-o
judicialmente culpado; a Sua obediência é considerada em nossa conta, fazendo-nos
judicialmente justos diante de Deus.
28. A regra da primeira menção. Muito frequentemente isso é de grande ajuda para
chegar ao significado de uma palavra ou expressão. Posto que há apenas um Proclamador
em toda a Palavra, e Ele sabia desde o princípio tudo o que Ele diria, Ele ordenou as Suas
declarações de tal maneira a predizer desde o início o que ocorreria a seguir. Assim,
observando a sua configuração e associações, a ocorrência inicial de qualquer coisa nas
Escrituras geralmente nos sugere como, posteriormente, ela será utilizada. Em outras
palavras, o primeiro pronunciamento do Espírito Santo sobre um assunto muito
frequentemente indica, substancialmente, o que é encontrado nas referências posteriores.
Isto é de ajuda real para o expositor, fornecendo-lhe uma espécie de chave para o que vem
a seguir. Tanto quanto sabemos, a atenção foi originalmente dirigida a essa regra de
exegese por Lord Bacon (1600), e por mais de quarenta anos esse escritor fez uso da
mesma, colocando-a à prova em dezenas de casos; e enquanto ele tem encontrado alguns
casos em que a primeira menção de um termo não indica claramente o seu alcance futuro,
ele nunca se deparou com uma que estivesse fora de harmonia com isso; e a grande
maioria delas foram de valor inestimável em servir para definir o seu significado e alcance.
Isto aparecerá a partir das ilustrações que se seguem.
A primeira profecia registrada na Escritura fornece a chave para todo o tema da
predição messiânica, fornecendo um esboço notável e previsão de tudo o que ocorreria a
seguir. Disse o Senhor Deus à serpente: “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a
tua semente e a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gênesis
3:15). Em primeiro lugar, deve-se notar que essas palavras não foram dirigidas a Adão e
Eva, o que implica que o homem não era a parte imediata no pacto de restauração; que
esse não dependia de nada, por ou a partir dele. Em segundo lugar, que esse
pronunciamento divino foi feito após a Queda, e desse ponto em diante a profecia é sempre
consequente em caso da falha humana, não ocorrendo durante o estado normal das coisas,
mas somente quando a ruína começou e o julgamento é iminente — a próxima profecia foi
através de Enoque (Judas 14-15), pouco antes do dilúvio! Na profecia de Gênesis 3:15, foi
revelado que toda a esperança humana deveria centralizar-se em no Prometido. Essa
profecia revelou que o Prometido seria homem, da “semente” da mulher, e, portanto, de
nascimento sobrenatural. Ela anunciou que Ele seria o objeto de inimizade de Satanás. Ela
predisse que Ele seria temporariamente humilhado — ferido no calcanhar. Ela também
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proclamou a Sua vitória final, pois Ele esmagaria a cabeça da serpente, e, portanto, deveria
ser mais do que um homem. Ela indicou a luta secular que haveria entre as duas sementes:
os filhos do Diabo e aqueles unidos a Cristo.
“E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra”
(Gênesis 4:10). Essa é a primeira vez que a palavra de toda importância “sangue” é
mencionada nas Escrituras, e como todas as ocorrências iniciais dos termos fundamentais,
ela demanda a mais cuidadosa atenção e meditação. Essa referência é profundamente
importante, prenunciando algumas das características mais essenciais e marcantes da
expiação de Cristo. Abel era um pastor (Gênesis 4:2) e foi odiado por seu irmão, embora
sem causa justa (1 João 3:12). Ele não morreu de morte natural, mas teve um fim violento:
assim o Bom Pastor foi crucificado e morto pelas mãos dos injustos (Atos 2:23). À luz
desses fatos, quão profundamente significativas são as palavras: “A voz do sangue do teu
irmão clama a mim desde a terra”. Essa é a coisa mais importante, porém indescritivelmente
abençoada em conexão com o sangue de Cristo: ele fala a Deus! É o “sangue da aspersão,
que fala melhor do que o de Abel” (Hebreus 12:24), pois satisfez todas as exigências de
Deus e adquiriu benção inestimável para o Seu povo. A próxima menção de “sangue” está
em Gênesis 9:4, onde aprendemos que a vida está no sangue. A terceira referência é Êxodo
12:13, onde o sangue liberta do anjo vingador. Coloque as três juntas e temos uma
descrição completa de todos os ensinamentos posteriores da Escritura sobre o sangue.
Eles tratam, respectivamente, da morte, da vida e da salvação.
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Capítulo 21
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A primeira vez que o centro da natureza moral do homem — o coração — é
mencionado nas Escrituras temos uma previsão infalível de tudo será depois ensinado
sobre isto. “E viu o Senhor que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que
toda a imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente” (Gênesis
6:5). Notavelmente completo é o esboço nos fornecido aqui. Observe primeiro as palavras
“E viu o Senhor”, dando a entender que só Ele é totalmente conhecedor dessa fonte da qual
procedem as questões da vida. Em segundo lugar, isso é sobre o que Seus olhos estão
fixos: “o homem vê o que está diante dos olhos, porém o Senhor olha para o coração” (1
Samuel 16:7). Em terceiro lugar, o que é dito aqui a respeito do coração do homem é
explicativo de sua má conduta, uma vez que a própria fonte sendo suja, imundos devem
ser os fluxos que dela brotam. Em quarto lugar, que o coração do homem está agora
radicalmente mal, e isto continuamente, sendo “enganoso [a palavra hebraica é traduzida
por “torcido” em Isaías 40:4, e “machado” em Oséias 6:8]... mais do que todas as coisas
[incuravelmente], e perverso” (Jeremias 17:9); do qual, como Cristo declarou, procedem
todas as abominações cometidas pelo homem caído (Marcos 7:21-23). Em quinto lugar, o
“coração” é equivalente a todo o homem interior: “toda a imaginação dos pensamentos de
seu coração”, isto é, “os propósitos e desejos”, e, portanto, o coração não é somente a sede
de seu pensamento, mas de suas afeições e vontade.
“Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a terra e pesou-lhe em
seu coração.
E disse o Senhor: Destruirei o homem que criei de sobre a face da terra” (Gênesis 6:6-7).
Essa é a referência inicial ao arrependimento, e apesar de sua linguagem ser de fato
metafórica — por uma figura de linguagem (antropopatia) o Senhor atribui a Si mesmo
sentimentos humanos — ainda assim ela contém todos os elementos essenciais do mesmo.
Em primeiro lugar, é surpreendente descobrir que essa graça está aqui não atribuída à
criatura, mas ao Criador, nos dizendo que o arrependimento não se origina em um cuja
mente é inimizade contra Deus e cujo coração é duro como uma pedra, mas é um dom de
Deus (Atos 5:31, 11:18; 2 Timóteo 2:25), operado nele pelo Espírito Santo. Em segundo
lugar, que o arrependimento tem o pecado por seu objeto, pois é a maldade dos homens
que aqui é dita ter levado o Senhor se arrepender. Em terceiro lugar, sua natureza é
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claramente definida: como uma mudança de mente (o arrependimento de Deus por haver
feito o homem) e uma tristeza de coração. Em quarto lugar, a prova do arrependimento é
evidenciada pela reforma, ou uma mudança de conduta, uma resolução para desfazer
(tanto quanto é humanamente possível) o que aquilo que leva à tristeza — isto é visto na
decisão do Senhor de destruir o homem da face da Terra.
Em Gênesis 15:6, encontramos a primeira menção de três das palavras mais
importantes que são usados em conexão com a salvação do pecador, e o mais significativo
e bendito é vê-las aqui unidas. “E creu ele [Abrão] no Senhor, e imputou-lhe isto por justiça”.
Que notável antecipação isto foi do mais completo desdobramento do Evangelho, que pode
ser encontrado nos Profetas e do Novo Testamento! Essa passagem registra a resposta
dada pelo “pai de todos os que creem” (Romanos 4:11) à promessa maravilhosa que o
Senhor lhe fez: a de que, apesar de ser tão velho (quase cem anos), ele deveria não só
gerar um filho, mas, finalmente, ter um número incontável de sementes, e que a partir dele
brotaria o Messias. Como Romanos 4:19-20, afirma: “[Abraão] não atentou para o seu
próprio corpo já amortecido... E não duvidou da promessa de Deus por incredulidade, mas
foi fortificado na fé, dando glória a Deus”. Primeiro, temos aqui a definição mais simples de
fé que pode ser encontrada na Bíblia: “creu ele no Senhor”. Mais literalmente: “ele aman
Yahwéh”, isto é, seu coração respondeu com confiança de que “ isto será assim”. Em outras
palavras, ao receber implicitamente o testemunho divino, ele “confirmou que Deus é
verdadeiro” (João 3:33). Ele percebeu que era a palavra dAquele “que não pode mentir”
[Tito 1:2].
Em segundo lugar, aprendemos aqui qual foi a resposta da graça de Deus a essa
confiança como de criança que tanto honra-O: “imputou-lhe isto por justiça”. A palavra
“imputou” significa contou ou colocou em seu crédito; a mesma palavra hebraica aparece
no Salmo 32:2: “Bem-aventurado o homem a quem o Senhor não imputa maldade”, isto é,
nenhuma maldade será cobrada dele. Não é o ato de fé de Abraão, que é aqui referido,
mas o Objeto glorioso para o que ela olha, a saber, sua Semente e Filho prometidos, seu
Salvador. Em terceiro lugar, aqui também somos ensinados como um pecador crente é
legalmente justificado diante de Deus. Por natureza, ele não tem nenhuma justiça própria,
ao longo de todo o tempo em que ele viveu sem Cristo, suas melhores obras não são nada
mais do que trapos da imundícia aos olhos do Deus santo. Não só esteve Abraão destituído
de justiça, mas ele não a obteve por nenhum esforço próprio: sua fé era o único meio ou
instrumento que o ligava a uma justiça que estava fora dele mesmo. Depois de citar o seu
caso, o apóstolo passou a dizer: “Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a
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quem Deus imputa a justiça sem as obras” (Romanos 4:6), “com o coração se crê para a
justiça” (Romanos 10:10).
Posto que tratamos acima de um aspecto tão fundamental da Verdade, nós
aproveitaremos o ensejo para considerar brevemente Deuteronômio 25:1: “Quando houver
contenda entre alguns, e vierem a juízo, para que os julguem, ao justo justificarão, e ao
injusto condenarão”. Essa é a primeira ocorrência dessa importante palavra, e sua
configuração é muito sugestiva de seu significado. Em primeiro lugar, a justificação é uma
questão inteiramente judicial, sendo a pronúncia de sentença do Juiz de toda a Terra. Em
segundo lugar, é o oposto de condenação, quando alguém é condenado nos tribunais ele
não é transformado em mau, mas considerado culpado. Em terceiro lugar, ele é
considerado como “justo”, a Lei não tem nada contra ele, porque no caso do crente todos
os seus requisitos foram plenamente atendidos por seu Fiador. Nós também podemos
considerar, nesse contexto: “Não temais; estai quietos, e vede a salvação do SENHOR,
que hoje vos fará; porque aos egípcios, que hoje vistes, nunca mais os tornareis a ver”
(Êxodo 14:13 – trad. lit.). Quão profundamente significativo é esta primeira menção de
“salvação”, ela contém todos os elementos principais de nossa libertação espiritual. Foi a
salvação do Senhor, e de ninguém mais, sim, eles tiveram que cessar todas as atividades,
a fim de ver a mesma. Ela consistia de uma libertação milagrosa da morte. Foi algo
presente, o que eles experimentaram naquele dia. Ela também foi completa e eterna, pois
eles “nunca mais” veriam seus inimigos novamente”.
Muito sugestivo é a referência inicial ao cordeiro. “Eis aqui o fogo e a lenha, mas onde
está o cordeiro para o holocausto?” (Gênesis 22:7-8). Quão abençoado e significativo é
observar, em primeiro lugar, que essa conversa aconteceu entre um pai amoroso e um filho
unigênito (Hebreus 11:17). Em segundo lugar, muito notável é saber que o cordeiro não
seria demandado do homem, mas fornecido por Deus. Em terceiro lugar, ainda mais
notáveis são as palavras “Deus proverá para si o cordeiro”, porque era para atender aos
Seus requisitos, e para a satisfação de Suas reivindicações. Em quarto lugar, o cordeiro
não estava aqui designado para servir de alimento (pois essa não era a principal questão
que estava em mente), mas “para o holocausto”. Em quinto lugar, ele era um substituto
para o filho da promessa, pois, como o verso 13 mostra, “o carneiro” (um cordeiro no auge
de sua força) não só foi fornecido por Deus, mas também foi oferecido por Abraão, “em
lugar de seu filho”! Quão significativo é descobrir que a palavra adoração é mencionada
pela primeira vez em conexão com esta cena: “eu e o moço iremos até ali; e havendo
adorado, tornaremos a vós” (v. 5). A adoração exige que o adorador se separe dos
incrédulos, assim como Abraão deixou os seus dois servos para atrás dele; a adoração só
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é possível com base na ressurreição (“terceiro dia” – v. 4); e consiste em oferecer a Deus
o nosso melhor — o nosso Isaque.
Como indicativas são as palavras de abertura da Bíblia: “No princípio... Deus”, aqui é
ensinado ao homem a primeira grande verdade que ele precisa saber: que Deus é, em
primeiro lugar, o autor de todas as coisas, a fonte e origem de todo o bem. A primeira
aparição de Satanás na Bíblia nos revela seu caráter sutil, os métodos que ele emprega,
nos revela que a Palavra de Deus é o principal objeto de seus ataques e o retrata como o
arqui-mentiroso. Como as primeiras palavras registradas do Redentor: “Não sabeis que me
convém tratar dos negócios de meu Pai?” (Lucas 2:49), resumiram Sua missão e todos os
Seus ensinamentos posteriores, bem como nos deram a entender que isso não seria
apreciado e nem compreendido pelos homens. Muitos outros exemplos dessa regra da
primeira menção podem ser dados, mas os acima são amplamente suficientes para
exemplificar a sua realidade e valor. Eles revelam o quanto é importante rastrear as coisas
de volta à sua fonte, e mostrar que Deus pendurou a chave na porta, para nós a usarmos.
E demonstram a autoria divina da Bíblia, mostrando como os livros que foram escritos
posteriormente, invariavelmente empregam termos e frases com significado uniforme e em
perfeita harmonia com a sua menção inicial. Que provas que Aquele, que conhecia o fim
desde o início inspirou homens santos do passado com as mesmas palavras que eles
selecionaram e o uso que fizeram delas.
29. A regra do progresso. Posto que as Escrituras são a “palavra da vida” (Filipenses
2:16), elas são “vivas e eficazes” (Hebreus 4:12). Longe de ser “um livro morto”, como os
papistas, blasfemando, afirmam, e uma letra morta”, como alguns protestantes têm
ignorantemente asseverado, a Bíblia é imbuída com a própria vida de seu Autor. Este fato
é claramente exemplificado no princípio de progressão que marca todas as suas partes e
a si mesma como um todo. Isso pode ser testado e verificado por qualquer pessoa
competente, que irá se dar ao trabalho de ler as Escrituras sistematicamente, ou examinar
um assunto do início ao fim. À medida que isto for feito, ele vai perceber que a verdade vai
sendo desdobrada de forma ordenada, gradual, progressiva, conduzindo ao clímax. Não
nos é apresentada primeiro a erva, em seguida a espiga, e depois o grão cheio na espiga.
Enquanto a primeira menção de uma coisa sugere o seu âmbito e mais ou menos antecipa
o que virá a seguir, as referências posteriores amplificam isso, cada uma dando a sua
própria contribuição para o todo, e, assim, obtém-se tanto uma mais clara quanto mais
completa compreensão do mesmo. O caminho da verdade é como o dos justos: ele “vai
brilhando mais e mais”.
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Como dissemos há quase quarenta anos, o princípio acima mencionado é
impressionante e abençoadamente ilustrado em conexão com o Cordeiro. Em Gênesis
22:8, o cordeiro é profetizado: “Deus proverá para si o cordeiro”. Em Êxodo 12 o cordeiro é
claramente tipificado como “sem mácula”, cujo sangue forneceu abrigo do anjo destruidor,
e cuja carne deveria ser o alimento do povo de Deus. Em Isaías 53:7, o cordeiro é
definitivamente personificado: “Ele... como um cordeiro foi levado ao matadouro”. Em João
1:29, encontramos o cordeiro identificado, como apontando para Ele, o precursor de Cristo
anunciou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. Em 1 Pedro 1:19, é feita
referência a Ele como o cordeiro que foi crucificado: “...Mas com o precioso sangue de
Cristo, como de um cordeiro imaculado e incontaminado”, em Apocalipse 5:6, vemos o
Cordeiro glorificado, pois aquele que teve a visão em Patmos teve o privilégio de contemplar
no Céu, de pé, “um Cordeiro, como havendo sido morto”. Enquanto em Apocalipse 22:1,
vemos o Cordeiro satisfeito: “E mostrou-me o rio puro da água da vida, claro como cristal,
que procedia do trono de Deus e do Cordeiro”. Nestas passagens podemos vincular o
escopo progressivo visto na validade do sacrifício de Cristo. Em Gênesis 4:4, para o
indivíduo; em Êxodo 12:3, para a “casa” ou família; em Levítico 16:21, para a nação e em
Efésios 5:25, para a Igreja e toda a eleição da graça.
Outro exemplo dessa regra do progresso pode ser visto por rastrear as profecias
messiânicas e observar como há “linha por linha” até que a imagem seja completada. O
assunto é muito vasto para que lidemos com ele exaustivamente aqui, mas vamos olhar
para um único aspecto do mesmo, ou seja, aqueles que dizem respeito ao nascimento do
Messias. Em Gênesis 3:15, foi intimado para que o destruidor de Satanás seria um membro
da raça humana: a semente da mulher. Gênesis 9:27, revelou de qual das três principais
divisões da raça humana Ele descenderá: “E [Deus] habite nas tendas de Sem”. Em
Gênesis 22:18, foi dado a conhecer que Ele deveria ser um israelita: descendência de
Abraão. Em 2 Samuel 7:12-13, é anunciado que Ele viria da tribo de Judá: descenderia de
Davi. Em Isaías 11:10 Sua ascendência é definida ainda mais claramente: Ele iria nascer
da família de Jessé. Em Isaías 49:1, foi previsto que Ele seria nomeado pelo próprio Deus,
antes de seu nascimento, como, de fato, Ele foi. Enquanto Miquéias 5:2 especificou o lugar
onde Ele nasceria: Belém. Tais exemplos como esses não só demonstram claramente a
inspiração divina da Bíblia, mas a evidência de que o cânon das Escrituras, como o temos
agora, foi supervisionado pelo próprio Deus, pois Sua ordem é tanto cronológica como
lógica.
Há um avanço constante observável nos respectivos propósitos e escopo dos quatro
Evangelhos. Obviamente, Mateus deve vir em primeiro lugar, pois seu principal propósito é
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apresentar Cristo como a realização das promessas do Antigo Testamento e o Cumpridor
das profecias então feitas a respeito do Messias. Pela mesma razão, Marcos vem em
segundo lugar, enquanto no primeiro Cristo é visto testando o antigo povo da aliança, neste
Ele é visto como ministrando a eles. Mas o Evangelho de Lucas tem um escopo muito mais
amplo, sendo muito mais gentílico em seu caráter. Nele Cristo é visto em conexão com a
raça humana. O Filho do Homem se relacionando e, ainda assim, contrastando com os
filhos dos homens. O Evangelho de João nos conduz nos ergue para longe do chão,
enquanto nos primeiros três relatos evangélicos Jesus é retratado em suas relações
humanas (como o Filho de Abraão, o Servo de Deus e o homem perfeito), aqui Sua glória
divina resplandece e O comtemplamos como o Filho de Deus em relação à família de Deus.
Este mesmo princípio também é exemplificada no que está registrado em seus capítulos
finais. Mateus nos leva mais longe do que a ressurreição de Cristo; em Marcos 16:19, é
feita menção de Sua ascensão; em Lucas 24:49, é dada a promessa da vinda do Espírito
no dia de Pentecostes; enquanto que o Evangelho de João termina com uma referência à
Sua segunda vinda!
Os anúncios de previsão que o Salvador fez aos Seus discípulos a respeito de Seus
sofrimentos iminentes observam esse princípio, sendo cumulativos em suas respectivas
revelações. “Desde então começou Jesus a mostrar aos seus discípulos que convinha ir a
Jerusalém, e padecer muitas coisas dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos
escribas, e ser morto” (Mateus 16:21). Essa passagem nos forneceu um esboço geral —
de acordo com a regra da primeira menção. “Ora, achando-se eles na Galiléia, disse-lhes
Jesus: O Filho do homem será entregue nas mãos dos homens; e matá-lo-ão” (17:22-23).
Aqui, o fato adicional de que Ele seria traído foi mencionado. “E o Filho do homem será
entregue aos príncipes dos sacerdotes, e aos escribas, e condená-lo-ão à morte. E o
entregarão aos gentios para que dele escarneçam, e o açoitem e crucifiquem” (20:18-19).
Essa passagem nos revelou mais das indignidades horríveis que Jesus sofreria. “Então
Jesus lhes disse: Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim” (26:31). Aqui a perfídia
de Seus próprios discípulos foi predita. Como o Salvador comunicou essa triste notícia a
eles gradualmente! Que consideração por seus sentimentos!
É de se notar que nesses anúncios, como em todas as outras referências que fez à
Sua paixão, o Senhor falou apenas do lado humano da mesma, sendo totalmente silencioso
sobre o aspecto divino. Em perfeito acordo com essa regra do progresso, temos de avançar
para além dos Evangelhos (que dão um relato histórico dos fatos externos) para as
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Epístolas, onde o Espírito (enviado para guiar os apóstolos em “toda a verdade”11) dá a
conhecer o espiritual concepção e significado interno da Cruz. Ali somos informados de que
a morte de Cristo era tanto propiciatória quanto expiatória: uma satisfação à justiça divina,
um sacrifício que removeu os pecados do povo de Deus. Assim também nas Epístolas
descobrimos que, ao mesmo tempo em que nos Evangelhos os efeitos e bênçãos
individuais da redenção são mais evidenciados, nas Epístolas o indivíduo não é mais
proeminente, uma vez que agora ele é visto como uma parte de um todo maior — um
membro do corpo de Cristo. É verdade, que nos Evangelhos, o indivíduo não é ignorado.
Contudo, a proporção entre os aspectos individual e coletivo mudou: o que é primordial
nelas torna-se secundário das Epístolas. Essa é a ordem natural no desenvolvimento de
verdade.
11 Cf. Mas, quando vier aquele Espírito de verdade, ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de
si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará o que há de vir” (João 16:13) – N.T.
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Capítulo 22
________________________________________
30. A regra da menção completa. Nós já tratamos do princípio da primeira menção, e
mostramos que a referência inicial sobre um assunto ou a primeira ocorrência de um termo
indicado a partir de seu contexto e da maneira em que foi utilizado revela a força de seu
significado em todas as referências posteriores. Agora nós trataremos da regra da menção
progressiva, à medida em que pode ser visto que o Espírito Santo tem observado um
desenvolvimento ordenado no desenrolar de cada aspecto da Verdade; e isto, como é
natural, em conexão com a revelação divina: há primeiro a erva, em seguida a espiga e
depois que o grão cheio na espiga. Isso pode ser ainda ilustrado por um exemplo simples
e bem conhecido, a saber, as três alusões feitas a Nicodemos no Evangelho de João. Em
João 3 vemos a condição da meia-noite de sua alma; em 7:50-51, vemos, por assim dizer,
o amanhecer do crepúsculo; mas em 19:39-40, a luz do dia tinha totalmente raiado. Agora,
esses princípios são aumentados em um terço, pois, como A.T. Pierson apontou em seu
livro muito útil The Bible and Spiritual Criticism [A Bíblia e a Crítica Espiritual] (atualmente
esgotado), em algum lugar na Bíblia a cada um dos seus temas de destaque é dado uma
apresentação completa e sistemática. Em outras palavras, um capítulo inteiro é dedicado a
um tratamento exaustivo daquilo que é mais brevemente mencionado em outros lugares.
Abaixo, nós mencionamos brevemente alguns exemplos desse fato — selecionados a partir
do Dr. Pierson, e complementados por nossas próprias pesquisas.
Êxodo 20 nos dá o Decálogo completo, os Dez Mandamentos da lei moral são
indicados de forma clara e ordenada. O Salmo 119 estabelece a extensão da autoridade, a
importância e as diversas excelência da Palavra de Deus escrita. Em Isaías 53, temos um
quadro completo dos sofrimentos vicários do Salvador. João 17 contém uma descrição
completa sobre o assunto da intercessão, revelando a substância das coisas que nosso
grande Sumo Sacerdote pede ao Pai por Seu povo. Em Romanos 3:10-20, temos o
diagnóstico mais detalhado da condição depravada do homem caído que pode ser
encontrado na Bíblia. Em Romanos 5:12-21, a fundação da doutrina da representação
federal é grandemente desenvolvida. Em Romanos 7, o conflito entre as “duas naturezas”
no crente é descrito como em nenhum outro lugar. Em Romanos 9 a terrível soberania de
Deus, na eleição ou reprovação, é tratada mais longamente do que em quaisquer outros
lugares. Em 1 Coríntios 15 a ressurreição do corpo do crente é retratada em seu pleno
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esplendor. Em 2 Coríntios 8 e 9 cada aspecto da doação Cristã e os motivos variados, que
devem nos levar a sermos benevolentes são demonstrados. Em Hebreus 2:6-18,
encontramos a mais clara e abrangente declaração da realidade da humanidade de nosso
Senhor. Em Hebreus 11 temos um esboço maravilhosamente completo da vida de fé.
Hebreus 12 nos fornece um extenso tratamento do assunto do castigo divino. Em Tiago 3
temos um resumo do que o resto da Bíblia ensina a respeito da força e malícia da língua.
O todo da Epístola de Judas é dedicado ao tema solene de apostasia.
Nesses capítulos temos nos esforçado para colocar diante de nossos leitores quais
as regras que temos usado há muito tempo em nosso próprio estudo da Palavra. Elas foram
projetadas mais especialmente para os jovens pregadores, nós não poupamos esforços
para torná-los tão lúcidos e completos quanto possível, colocando em suas mãos esses
princípios de exegese que nos eram de grande proveito. Apesar de não ser uma regra
distinta da hermenêutica, algumas observações necessitam ser feitas sobre o assunto de
pontuação, porque desde que não existe nenhum dos manuscritos originais, a forma e o
modo de dividir o texto é muitas vezes uma questão de interpretação. As primeiras cópias
apresentavam um texto corrido, sem capítulos e versos, e menos ainda eles possuíam
quaisquer marcações de suas frases e sentenças. Também deve ser salientado que o
extenso uso letras maiúsculas em versos como Êxodo 3:14, 27:3; Isaías 26:4; Jeremias 23;
Zacarias 14:20 e Apocalipse 17:6, 19:16, originou-se com a Versão Autorizada12 de 1611,
pelo que elas não são encontradas em nenhuma das traduções anteriores. Elas não
possuem qualquer autoridade, e foram usadas para indicar o que os tradutores
consideraram de particular importância.
O uso de parêntesis é inteiramente uma questão de interpretação, pois não havia
nenhum nos originais e poucos nas primeiras cópias Creek. Os tradutores os consideraram
necessários em alguns casos, de modo a indicar o sentido de uma passagem por preservar
a continuidade do pensamento, como em Romanos 5:13-17, que é incomumente longo.
Alguns dos exemplos mais simples e mais conhecidas são Mateus 6:32; Lucas 2:35; João
7:50; Romanos 1:2.13 Não é para ser pensado que as palavras entre colchetes são de
menor importância; às vezes eles são uma amplificação, como em Marcos 5:13; em outros,
são explicativas, como em Marcos 5:42; João 4:2. Em vez de possuir apenas uma
12 Versão Autorizada da Bíblia Versão King James (King James Version - KJV) – N.T. 13 A partir daqui até a conclusão, como em todo este livro, o autor usa como referência a Versão King James,
enquanto nós tradutores usamos a versão Almeida Corrigida e Revisada Fiel (ACF) que apresenta algumas
variações em relação a versão usada por Pink, tanto no uso dos parênteses e itálicos, quando na redação do
próprio texto. Por este motivo foi um pouco dificultada a compreensão de alguns detalhes e pontos específicos
doravante tratados.
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importância trivial, uma série de frases entre parênteses são de profunda significação. Por
exemplo: “Porque eu sei que em mim (isto é, na minha carne,) não habita bem algum”
(Romanos 7:18 – trad. lit.), a ausência da palavra de qualificação tinha negado que
houvesse qualquer princípio da graça ou santidade nele. Exemplos semelhantes são
encontrados em 2 Coríntios 5:7 e 6:2. Por outro lado, alguns são de propriedade duvidosa:
nem todos vão considerar que os parênteses encontrados nas seguintes passagens são
necessários ou mesmo oportunos: Marcos 2:10; João 1:14, 7:39; 1 Coríntios 9:21; 2
Coríntios 10:4 e Efésios 4:9-10. Abaixo estão três passagens em que esse escritor
considera o uso de parênteses é uma verdadeira ajuda para a compreensão delas.
Em nossa opinião é necessária uma tripla mudança na pontuação de 1 Coríntios
15:22-26. Em primeiro lugar, a frase “depois virá o fim” deve ser colocada no final do verso
23 e não no início do verso 24, pois completa a frase, em vez de começar uma nova. Em
segundo lugar, a totalidade do verso 25 necessita de ser colocado em parêntesis, para que
a sequência do pensamento seja preservada. Em terceiro lugar, as palavras em itálico nos
versos 24 e 26 devem ser suprimidas, pois elas são não só desnecessárias, mas
enganosas. Pontuada assim, a passagem ficará: “Porque, assim como todos morrem em
Adão, assim também todos serão vivificados em Cristo. Mas cada um [literalmente “todos”]
por sua ordem: Cristo as primícias, depois os que são de Cristo, na sua vinda. Depois virá
o fim”. Como o pecado de Adão resultou não apenas em sua própria morte, mas também
na morte de todos os que estavam nele como sua cabeça federal, assim a obediência até
a morte de Cristo não só obteve a sua própria ressurreição, mas garante a ressurreição de
todos os que estão unidos a ele como sua cabeça federal: a ressurreição em honra e glória
— a ressurreição dos maus “para vergonha e desprezo eterno” não se enquadra no escopo
desse capítulo. A cláusula, “depois virá o fim” denota não “a cessação de todos os assuntos
seculares”, mas significa a conclusão da ressurreição — a conclusão da colheita (João
12:24).
Ao colocar a sua primeira frase no final do verso 23, o que se segue no verso 24
começa uma nova sentença, embora não seja um assunto novo. “Quando tiver entregado
o reino a Deus, ao Pai, [não em Seu aspecto mediatorial, mas apenas que um dos seus
aspectos que diz respeito à supressão de todos os rebeldes contra o Céu] e quando houver
aniquilado todo o império, e toda a potestade e força. (Porque convém que reine até que
haja posto a todos os inimigos debaixo de seus pés). Ora, o último inimigo que há de ser
aniquilado é a morte”. Cristo ressuscitou para reinar: todo o poder no Céu e na Terra foi
dado a Ele com o propósito expresso de subjugar e aniquilar todos os inimigos dEle mesmo
e de Seu pai, e essa questão da aniquilação da morte na ressurreição gloriosa de todo o
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Seu povo. O grande objetivo ao longo desse capítulo é mostrar a garantia que a
ressurreição de Cristo dá para os Seus remidos — o que era negado por alguns (v. 12).
Que esse assunto é continuado depois da passagem que estamos aqui criticamente
examinando resulta dos versos 29-32, onde outros argumentos são citados — desde o caso
daqueles que são batizados até às próprias experiências de Paulo. Os versos 24-26 são
projetados para assegurar aos corações dos crentes que embora muitos inimigos
poderosos procurem destruí-los, os seus esforços são totalmente inúteis, pois Cristo
triunfará sobre todos eles — a própria morte está sendo aniquilada em sua ressurreição.
A maioria dos comentaristas tiveram dificuldades ao tentar rastrear o curso do
argumento do apóstolo em Hebreus 4:1-11. A sua estrutura é realmente muito intrincada,
mas não um pouco de luz é lançado sobre ele, se colocarmos os versos 4-10 entre
parênteses. A exortação iniciada em 3:12, não é concluída até 4:12, é alcançada: tudo o
que intervém consiste em uma exposição e aplicação da passagem que cita o Salmo 95
em 3:7-11. O elo de ligação entre os dois capítulos é encontrado em: “E vemos que não
puderam entrar por causa da sua incredulidade” (3:19). Nessas palavras se baseia a
admoestação de 4:1-3, que nos convida a levarmos a sério a advertência solene que é
dada. A primeira frase do verso 3, quando literalmente apresentada, fica: “Pois nós
entramos no descanso, nós que cremos” — a tensão histórica é assim evitada. Não é nem
“entraram” nem “entra”, mas uma afirmação abstrata de um fato doutrinário — Somente os
crentes entram no repouso de Deus. A segunda metade do 4:3, cita novamente o Salmo
95.
Nos parênteses de 4:4-10, o apóstolo entra em uma discussão sobre o “repouso” que
o salmista falou e que ele estava exortando seus leitores a se esforçarem para entrar,
dizendo-lhes para tomar cuidado para que não ficasse fora do mesmo. Em primeiro lugar,
ele apontou (vv. 4-6) que Davi não se referiu ao próprio descanso de Deus na criação e
nem ao repouso do sábado que se seguiu do mesmo. Em segundo lugar, nem era o repouso
de Canaã (vv. 7-8) para a qual Josué levou Israel. Em terceiro lugar, era algo então futuro
(v. 9), ou seja, o descanso anunciado no Evangelho. Em quarto lugar, no verso 10, há uma
notável mudança de número a partir do “nós” no verso 1 e o “nós” do verso 3 com “aquele
que entrou no seu repouso”, onde a referência é ao próprio Cristo — Sua entrada sendo
tanto a promessa quanto a prova de que o Seu povo também fará o mesmo: “onde Jesus,
nosso precursor, entrou por nós” (6:20). Em 4:11, o apóstolo retorna para a sua principal
exortação de 3:13 e 4:1-3. Lá, ele havia dito: “Temamos, pois, que, porventura, deixada a
promessa de entrar no seu repouso, pareça que algum de vós fica para trás”; aqui ele dá a
conhecer como esse “temor” deve ser exercido: não no medo ou dúvida, mas como um
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respeito reverente às ameaças e às promessas divinas, com um uso diligente dos meios
de graça prescritos.
“Que não necessitasse, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia sacrifícios
(primeiramente por seus próprios pecados, e depois pelos do povo); porque isto fez ele,
uma vez, oferecendo-se a si mesmo” (Hebreus 7:27). Este é outro verso que tem
incomodado os comentaristas, mas toda dificuldade é removida inserindo os parênteses
acima. Nesse e no verso seguinte, o apóstolo especifica alguns dos aspectos em que nosso
Sumo Sacerdote é superior aos sacerdotes da ordem Aarônica. Suas perfeições, descritas
no verso 26, isentou-o de todos as fraquezas e imperfeições que pertencem aos sacerdotes
levitas, e que os desqualificavam para fazerem uma expiação eficaz a Deus pelo pecado.
Em bendito contraste, Cristo foi infinitamente agradável a Deus: Ele é não somente sem
transgressão e corrupção pessoal, mas intrinsecamente santo em Si mesmo. Assim, não
só não há necessidade dEle oferecer qualquer sacrifício por Si, mas Sua oferta por Seu
povo foi de valor infinito e validade eterna. “Porque isto fez ele, uma vez”, anuncia o fato
glorioso de sua suficiência absoluta: que isto não requer nenhuma repetição de Sua parte,
nem de acréscimo da nossa.
O uso de itálicos é também, em grande parte, uma questão de interpretação. Na
literatura comum eles são empregados para dar ênfase, mas em nossas Bíblias estão
inseridos pelos tradutores com o objetivo de tornar o sentido mais claro. Às vezes, eles são
úteis, outras vezes prejudiciais. No Antigo Testamento, isto é, em certos casos, mais ou
menos necessário, pois o hebraico não tem copulativo,14 mas junta-se o sujeito ao
predicado, o que dá uma ênfase de forma abrupta a que a mente dos falantes de português
está acostumada, como em: “Desde a planta do pé até a cabeça — não há nele coisa sã...
A vossa terra — assolada, as vossas cidades — abrasadas pelo fogo” (Isaías 1:6-7). Na
grande maioria dos casos, esse escritor ignora as palavras adicionadas pelos homens,
considerando que isto seja a coisa mais reverente a ser feita, bem como a que mais
contribui mais diretamente para a obtenção do sentido original. Em alguns casos, os
tradutores perderam muito do pensamento real da passagem, como na última frase de
Êxodo 2, em que “atentou Deus para a sua condição” deveria ser “atendou Deus para ela”,
ou seja, “Sua aliança com Abraão, com Isaque, e com Jacó”, do verso anterior. A última
palavra de Daniel 11:32, é demasiado restritiva — fazendo a Sua vontade também está
incluído.
14 Gramática: Diz-se do verbo que une o sujeito ao nome predicativo do sujeito – N.T.
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Mas é no Novo Testamento que a maioria dos erros ocorrem. Lá encontramos
algumas de passagens onde adições desnecessárias foram feitas e em que o significado
foi mal compreendido, falsificado pelas palavras acrescentadas pelos tradutores. Em
Romanos 8:27, “a vontade de Deus” é também contraída — Sua aliança, Sua Palavra, Sua
graça e misericórdia, não devem ser excluídas. O “de outro” em 1 Coríntios 4:7,
indevidamente restringe o âmbito de aplicação — a partir do que você era quando não-
regenerado não deve ser excluído. “Inspirador” é preferível a “autor” em 1 Coríntios 14:33,
pois Deus é o Decretador de todas as coisas (Romanos 11:36), ainda que não o Incitador
de confusão. É muito duvidoso que a expressão “a natureza do” seja permitida em Hebreus
2:16, pois não é a encarnação divina que está em vista (que temos no v. 14), mas sim o
objetivo e consequência da mesma. A sua palavra de abertura “porque” olha para trás,
remotamente, com os versos 9 e 10; imediatamente, para os versos 14 e 15. No verso 16
a razão é dada do porquê Cristo provou a morte por “cada filho”, e por que Ele destruiu
(anulou o poder de) o Diabo, a fim de libertar seus cativos, isto é, porque Ele tomou
(assumiu) não a causa dos anjos (os caídos), mas tomou a semente escolhida de Abraão
— assim uma base é aqui estabelecida para o que é dito no verso 17.
2 Coríntios 6:1, é uma circunstância ainda pior, pois, inserindo as palavras “com ele”
um pensamento totalmente estranho ao âmbito do apóstolo é introduzido, e uma base é
dada para uma horrível vanglória. Paulo estava se referindo aos esforços conjuntos dos
servos de Deus: um planta e outro rega (1 Coríntios 3:5-6). Pois dizer que eles eram
“trabalhadores junto com Deus” seria dividir as honras. Se algum acréscimo deve ser feito,
esse deve ser algo como “sob” Ele. Os ministros da nova aliança foram companheiros de
trabalho, apenas “cooperadores” da alegria (1:24) do povo de Deus. Assim também a
pontuação correta (como o grego requer) de 1 Coríntios 3:9, é: “Porque nós somos de Deus:
cooperadores no trabalho; vós sois lavoura de Deus e edifício de Deus”. Um outro exemplo
deve bastar. O acréscimo “para nos conduzir” em Gálatas 3:24, causa uma grande perda
do escopo da passagem, e inculca uma falsa doutrina. O apóstolo não estava ali tratando
com o lado experimental das coisas, mas com o lado dispensacional (como os versos do
próximo capítulo de abertura demonstrar); não com os perdidos, como tais, mas com o povo
de Deus sob a Antiga Aliança. A Lei nunca trouxe um único pecador a Cristo, o Espírito
Santo é que faz isso, e embora Ele use a Lei para convencer almas de sua necessidade de
Cristo, o Evangelho é o meio que Ele emprega para conduzi-los a Cristo.
Agora uma ou duas breves observações e concluímos. O trabalho do expositor é
trazer à tona o significado gramatical e espiritual de cada verso com que ele lida. A fim de
fazer isso, ele deve abordá-lo sem viés ou preconceito, e diligentemente estudá-lo. Ele não
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deve assumir que sabe o seu significado nem aderir às visões doutrinárias dos outros. Nem
deve formar suas próprias opiniões a partir de alguns versos isolados, mas cuidadosamente
comparar as suas ideias com toda a analogia da fé. Cada verso requer ser examinado
criticamente, e cada palavra cuidadosamente ponderada. Assim, ele deverá notar o “é
agradável” de Atos 10:35, e não “deve ser”, e “são” (em vez de “serão”) em Hebreus 3:6,14
— tirando a tensão mental nesses versos poderiam inculcar falsa doutrina. Um cuidado
minucioso é necessário se quisermos observar o “o Senhor e Salvador” de 2 Pedro 2:20
(não “seu”), e o “nossos” e não “seus” de 1 Coríntios 15:3. Finalmente, não é da
competência do intérprete explicar o que Deus não explicou (Deuteronômio 29:29), ou seja,
os seus “caminhos” (Romanos 11:33), milagres, etc.
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Solus Christus! Soli Deo Gloria!
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10 Sermões — R. M. M’Cheyne
Adoração — A. W. Pink
Agonia de Cristo — J. Edwards
Batismo, O — John Gill
Batismo de Crentes por Imersão, Um Distintivo
Neotestamentário e Batista — William R. Downing
Bênçãos do Pacto — C. H. Spurgeon
Biografia de A. W. Pink, Uma — Erroll Hulse
Carta de George Whitefield a John Wesley Sobre a
Doutrina da Eleição
Cessacionismo, Provando que os Dons Carismáticos
Cessaram — Peter Masters
Como Saber se Sou um Eleito? ou A Percepção da
Eleição — A. W. Pink
Como Ser uma Mulher de Deus? — Paul Washer
Como Toda a Doutrina da Predestinação é corrompida
pelos Arminianos — J. Owen
Confissão de Fé Batista de 1689
Conversão — John Gill
Cristo É Tudo Em Todos — Jeremiah Burroughs
Cristo, Totalmente Desejável — John Flavel
Defesa do Calvinismo, Uma — C. H. Spurgeon
Deus Salva Quem Ele Quer! — J. Edwards
Discipulado no T empo dos Puritanos, O — W. Bevins
Doutrina da Eleição, A — A. W. Pink
Eleição & Vocação — R. M. M’Cheyne
Eleição Particular — C. H. Spurgeon
Especial Origem da Instituição da Igreja Evangélica, A —
J. Owen
Evangelismo Moderno — A. W. Pink
Excelência de Cristo, A — J. Edwards
Gloriosa Predestinação, A — C. H. Spurgeon
Guia Para a Oração Fervorosa, Um — A. W. Pink
Igrejas do Novo Testamento — A. W. Pink
In Memoriam, a Canção dos Suspiros — Susannah
Spurgeon
Incomparável Excelência e Santidade de Deus, A —
Jeremiah Burroughs
Infinita Sabedoria de Deus Demonstrada na Salvação
dos Pecadores, A — A. W. Pink
Jesus! – C. H. Spurgeon
Justificação, Propiciação e Declaração — C. H. Spurgeon
Livre Graça, A — C. H. Spurgeon
Marcas de Uma Verdadeira Conversão — G. Whitefield
Mito do Livre-Arbítrio, O — Walter J. Chantry
Natureza da Igreja Evangélica, A — John Gill
OUTRAS LEITURAS QUE RECOMENDAMOS Baixe estes e outros e-books gratuitamente no site oEstandarteDeCristo.com.
— Sola Scriptura • Sola Fide • Sola Gratia • Solus Christus • Soli Deo Gloria —
Natureza e a Necessidade da Nova Criatura, Sobre a —
John Flavel
Necessário Vos é Nascer de Novo — Thomas Boston
Necessidade de Decidir-se Pela Verdade, A — C. H.
Spurgeon
Objeções à Soberania de Deus Respondidas — A. W.
Pink
Oração — Thomas Watson
Pacto da Graça, O — Mike Renihan
Paixão de Cristo, A — Thomas Adams
Pecadores nas Mãos de Um Deus Irado — J. Edwards
Pecaminosidade do Homem em Seu Estado Natural —
Thomas Boston
Plenitude do Mediador, A — John Gill
Porção do Ímpios, A — J. Edwards
Pregação Chocante — Paul Washer
Prerrogativa Real, A — C. H. Spurgeon
Queda, a Depravação Total do Homem em seu Estado
Natural..., A, Edição Comemorativa de Nº 200
Quem Deve Ser Batizado? — C. H. Spurgeon
Quem São Os Eleitos? — C. H. Spurgeon
Reformação Pessoal & na Oração Secreta — R. M.
M'Cheyne
Regeneração ou Decisionismo? — Paul Washer
Salvação Pertence Ao Senhor, A — C. H. Spurgeon
Sangue, O — C. H. Spurgeon
Semper Idem — Thomas Adams
Sermões de Páscoa — Adams, Pink, Spurgeon, Gill,
Owen e Charnock
Sermões Graciosos (15 Sermões sobre a Graça de
Deus) — C. H. Spurgeon
Soberania da Deus na Salvação dos Homens, A — J.
Edwards
Sobre a Nossa Conversão a Deus e Como Essa Doutrina
é Totalmente Corrompida Pelos Arminianos — J. Owen
Somente as Igrejas Congregacionais se Adequam aos
Propósitos de Cristo na Instituição de Sua Igreja — J.
Owen
Supremacia e o Poder de Deus, A — A. W. Pink
Teologia Pactual e Dispensacionalismo — William R.
Downing
Tratado Sobre a Oração, Um — John Bunyan
Tratado Sobre o Amor de Deus, Um — Bernardo de
Claraval
Um Cordão de Pérolas Soltas, Uma Jornada Teológica
no Batismo de Crentes — Fred Malone
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2 Coríntios 4
1 Por isso, tendo este ministério, segundo a misericórdia que nos foi feita, não desfalecemos;
2 Antes, rejeitamos as coisas que por vergonha se ocultam, não andando com astúcia nem
falsificando a palavra de Deus; e assim nos recomendamos à consciência de todo o homem,
na presença de Deus, pela manifestação da verdade. 3 Mas, se ainda o nosso evangelho está
encoberto, para os que se perdem está encoberto. 4 Nos quais o deus deste século cegou os
entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória
de Cristo, que é a imagem de Deus. 5 Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo
Jesus, o Senhor; e nós mesmos somos vossos servos por amor de Jesus. 6 Porque Deus,
que disse que das trevas resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações,
para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo. 7 Temos, porém,
este tesouro em vasos de barro, para que a excelência do poder seja de Deus, e não de nós. 8 Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados.
9 Perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos;
10 Trazendo sempre
por toda a parte a mortificação do Senhor Jesus no nosso corpo, para que a vida de Jesus
se manifeste também nos nossos corpos; 11
E assim nós, que vivemos, estamos sempre
entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também na
nossa carne mortal. 12
De maneira que em nós opera a morte, mas em vós a vida. 13
E temos
portanto o mesmo espírito de fé, como está escrito: Cri, por isso falei; nós cremos também,
por isso também falamos. 14
Sabendo que o que ressuscitou o Senhor Jesus nos ressuscitará
também por Jesus, e nos apresentará convosco. 15
Porque tudo isto é por amor de vós, para
que a graça, multiplicada por meio de muitos, faça abundar a ação de graças para glória de
Deus. 16
Por isso não desfalecemos; mas, ainda que o nosso homem exterior se corrompa, o
interior, contudo, se renova de dia em dia. 17
Porque a nossa leve e momentânea tribulação
produz para nós um peso eterno de glória mui excelente; 18
Não atentando nós nas coisas
que se veem, mas nas que se não veem; porque as que se veem são temporais, e as que se
não veem são eternas.