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INTRODUÇÃO Uma intervenção de reintegração cro- mática depende da obra em causa, do número e tipo de lacunas, e, em gran- de medida, dos critérios predefinidos, da formação e da sensibilidade do conservador-restaurador. Como caso de estudo escolhemos uma pintura mural, “A Ressurreição de Cristo” (fig. 1), do arco triunfal da nave da igreja manuelina do Convento de Cristo, em Tomar. Designam-se por lacunas as faltas ocasionais e intencionais na camada pictórica. Estas, perante o observa- dor, pelo facto de não serem neutras, resultam em formas de cor que inter- rompem o tecido figurativo (Brandi, 2006: 19). A interpretação da lacu- na e análise do seu protagonismo 13 Tema de Capa Pedra & Cal n.º 42 Abril . Maio . Junho 2009 podem explicar-se com a teoria do gestaltismo ou psicologia da forma (Brandi, 1961: 149-151; Brandi, 2006: 19-27; 89-90). Segundo o conceito ges- taltista de Figura-Fundo, a lacuna assume a forma de uma “figura” em relação à pintura, que passa a ser entendida como um “fundo”. Para restabelecer o potencial expressivo da obra, a lacuna deverá ter um valor de conexão entre os fragmentos originais existentes, e ser um elo de ligação ao tempo-vida da mesma (Casazza, 1992: 65; Philippot e Philippot, 1959: 5; Brandi, 2006: 89). A intervenção que tem por propósito resolver este problema denomina-se, consoante as fontes, por reintegração ou integração, cromática ou pictórica. É importante reter que na abordagem à reintegração cromática podem ser tomadas duas posições: a não-inter- venção e a intervenção. Estabelecida como uma hipótese crítica, sujeita a modificações (Philippot, 1959: 11), a reintegração, se adoptar metodolo- gias apropriadas, recompõe a uni- dade estética da obra, ao situar a lacuna no plano que lhe corresponde, sem modificar os aspectos formais da mesma, valorizando, na justa medi- da, os elementos originais. Como tal, a finalidade é que o tratamento da lacuna tenha uma solução que não prejudique o futuro da obra, não alte- re a sua essência (Brandi, 2006: 90), nem insinue a falsificação. A escolha entre as diversas opções técnicas para a reintegração cromáti- ca, vistas como mais “equilibradas” pelos conservadores-restauradores, deverá considerar, a priori, a quanti- dade de lacunas da obra. As técnicas utilizadas em conserva- ção e restauro, com maior ou menor êxito, diferenciadas ou não, têm sido: a reintegração mínima, com tonaliza- ção das pequenas faltas de camada cromática; o tom neutro; o sub-tom; o tratteggio ou rigatino; a selezione croma- tica; a astrazione cromatica; o pontilhis- mo; o mimético e as situações híbri- das (onde numa pintura se aplicam em simultâneo várias técnicas, con- soante os tipos de lacunas). Porém, não é nosso intuito, no presente texto, indicar qual é a via mais adequada na pintura mural supracitada, nem apontar quais as técnicas indicadas para cada caso. A resposta a esse tipo de problema obtém-se da avaliação de múltiplos factores, para além daquele que que- remos aqui focalizar, que está associa- do à análise espacial das lacunas na METODOLOGIAS A lacuna pictórica Aborda-se a aplicação de uma metodologia de classificação, com a qual pretendemos reconhecer as áreas de lacuna e não lacuna, de uma forma semi-automática, distinta da simples percepção visual. A finalidade é a produção de um mapeamento temático onde se possam estimar, quanti- tativamente, as lacunas na obra. Metodologias de interpretação e análise 1 – “Ressurreição de Cristo”, do arco triunfal da nave da Igreja do Convento de Cristo, em Tomar, antes da última intervenção, em 2008.

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INTRODUÇÃO Uma intervenção de reintegração cro-mática depende da obra em causa, do número e tipo de lacunas, e, em gran-de medida, dos critérios predefinidos, da formação e da sensibilidade do conservador-restaurador. Como caso de estudo escolhemos uma pintura mural, “A Ressurreição de Cristo” (fig. 1), do arco triunfal da nave da igreja manuelina do Convento de Cristo, em Tomar.Designam-se por lacunas as faltas ocasionais e intencionais na camada pictórica. Estas, perante o observa-dor, pelo facto de não serem neutras, resultam em formas de cor que inter-rompem o tecido figurativo (Brandi, 2006: 19). A interpretação da lacu-na e análise do seu protagonismo

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Tema de Capa

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podem explicar-se com a teoria do gestaltismo ou psicologia da forma (Brandi, 1961: 149-151; Brandi, 2006: 19-27; 89-90). Segundo o conceito ges-taltista de Figura-Fundo, a lacuna assume a forma de uma “figura” em relação à pintura, que passa a ser entendida como um “fundo”. Para restabelecer o potencial expressivo da obra, a lacuna deverá ter um valor de conexão entre os fragmentos originais existentes, e ser um elo de ligação ao tempo-vida da mesma (Casazza, 1992: 65; Philippot e Philippot, 1959: 5; Brandi, 2006: 89). A intervenção que tem por propósito resolver este problema denomina-se, consoante as fontes, por reintegração ou integração, cromática ou pictórica.É importante reter que na abordagem

à reintegração cromática podem ser tomadas duas posições: a não-inter-venção e a intervenção. Estabelecida como uma hipótese crítica, sujeita a modificações (Philippot, 1959: 11), a reintegração, se adoptar metodolo-gias apropriadas, recompõe a uni-dade estética da obra, ao situar a lacuna no plano que lhe corresponde, sem modificar os aspectos formais da mesma, valorizando, na justa medi-da, os elementos originais. Como tal, a finalidade é que o tratamento da lacuna tenha uma solução que não prejudique o futuro da obra, não alte-re a sua essência (Brandi, 2006: 90), nem insinue a falsificação.A escolha entre as diversas opções técnicas para a reintegração cromáti-ca, vistas como mais “equilibradas” pelos conservadores-restauradores, deverá considerar, a priori, a quanti-dade de lacunas da obra.As técnicas utilizadas em conserva-ção e restauro, com maior ou menor êxito, diferenciadas ou não, têm sido: a reintegração mínima, com tonaliza-ção das pequenas faltas de camada cromática; o tom neutro; o sub-tom; o tratteggio ou rigatino; a selezione croma-tica; a astrazione cromatica; o pontilhis-mo; o mimético e as situações híbri-das (onde numa pintura se aplicam em simultâneo várias técnicas, con-soante os tipos de lacunas). Porém, não é nosso intuito, no presente texto, indicar qual é a via mais adequada na pintura mural supracitada, nem apontar quais as técnicas indicadas para cada caso. A resposta a esse tipo de problema obtém-se da avaliação de múltiplos factores, para além daquele que que-remos aqui focalizar, que está associa-do à análise espacial das lacunas na

METODOLOGIAS

A lacuna pictórica

Aborda-se a aplicação de uma metodologia de classificação, com a qual pretendemos reconhecer as áreas de lacuna e não lacuna, de uma forma semi-automática, distinta da simples percepção visual. A finalidade é a produção de um mapeamento temático onde se possam estimar, quanti-tativamente, as lacunas na obra.

Metodologias de interpretação e análise

1 – “Ressurreição de Cristo”, do arco triunfal da nave da Igreja do Convento de Cristo, em Tomar, antes da última intervenção, em 2008.

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METODOLOGIAS

superfície cromática. Contudo, ape-sar de haver inconstância nas opções técnicas, é consensual o respeito pela lacuna, ou seja, a não reintegração além da área lacunar e a não promo-ção do falso histórico.

ANÁLISE E MAPEAMENTO

TEMÁTICO

Alguns estudos pontuais têm sido feitos com operações de análise espa-cial em pinturas sobre tela, madeira ou pintura mural. Por exemplo, já se verificou a utilização da análise de componentes principais (Pires et al., 2007), alguns casos de classifica-ções com algoritmos específicos não divulgados (Liu e Dongming, 2008: 121-131) e classificações de máxima verosimilhança (Lerma 2001; Balas et al., 2008; Comelli et al., 2008).Este trabalho sustenta-se em opera-ções de classificação (Lillesand et al., 2008), sendo desejável que o uso das metodologias acima referidas auxilie no problema da contabilização da extensão de lacunas, que é raramente destacado em conservação e restau-ro. As grandes superfícies pictóricas, como é o caso do arco triunfal, difi-cultam a elaboração de mapas temáti-cos, seja no modelo do desenho sobre papel ou seja por técnica de tratamen-to digital de imagem. É possível que uma solução para o problema esteja no uso de técnicas de informação geográfica. Assim, no caso de estudo, avaliou-se uma metodologia faseada em dois momentos: a análise de com-ponentes principais (fig. 2) e a classi-ficação supervisionada por máxima verosimilhança.O ponto de partida foi a análise dos componentes principais (ACP), por se tratar de uma técnica especialmen-te utilizada para destacar semelhan-ças e diferenças em objectos, quando se tem grande variabilidade espectral nas imagens (Gonçalves et al., 2008: 29-35). Sabe-se, ainda, que as opera-ções de realce e pré-processamento podem dar resultados profícuos com ajuste nos histogramas; no entanto, para o presente trabalho não se uti-lizaram.

No que respeita à classificação super-visionada, trata-se de uma operação que identifica zonas homogéneas numa imagem, representativas das dissemelhantes classes temáticas. Essas zonas, que vão servir de áreas de treino, ostentam a informação espectral característica dos temas que representam. A ferramenta SIG de classificação extrai as características dos temas em função das áreas obser-vadas, no pressuposto de que cada classe é bem conhecida. Para opera-cionalizar o algoritmo elegeram-se algumas amostras de treino, num total de 88 polígonos, redistribuídos entre as seguintes áreas: de lacunas, de carnação, no manto violáceo de Cristo, em azuis, nos vermelhos, nos verdes e nos cinzentos.

RESULTADOS

As operações de análise e classifi-cação, feitas em ambiente de siste-mas de informação geográfica (ESRI, 2009), permitiram segmentar as lacu-nas. Constatou-se que a área de lacu-nas calculada foi aproximadamente de 48,5% (fig. 3). O valor percentual obtido, depois de operada a segmen-tação, foi calculado por contabiliza-ção do número de células (pixels)

associadas a cada uma das duas classes – lacunas e camada pictórica.

DISCUSSÃO

Na fase de projecto e quando se opera o levantamento de informações e diagnóstico de um Bem Cultural pic-tórico, determinar qual é a técnica de reintegração cromática, mesmo que se definam critérios reconheci-dos como válidos do ponto de vista ético e deontológico, implica frequen-temente um exercício especulativo sobre o resultado da intervenção. No presente caso de estudo, em que as lacunas estão dispersas, demons-tra-se que se podem adoptar algumas metodologias específicas de interpre-tação espacial. Apesar de ser inevitá-vel reconhecer que há uma margem de erro associada às técnicas supra indicadas, que pode ser mitigada pela qualidade dos registos fotográficos e pela utilização de outros algorit-mos de classificação, a extracção de características da superfície pode ser efectivada de modo semi-automático, com os procedimentos enunciados. Embora o registo fotográfico da pintu-ra mural documente o estado de con-servação da obra, existem actualmen-te tecnologias de geomática acessíveis

2 – Mapa temático da análise de componentes principais (ACP).

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que permitem fazer avaliações mais eficientes das patologias antes, duran-te e depois das acções de conservação.

CONCLUSÃOO estudo aponta noções generalistas de reintegração cromática e sugere duas técnicas de análise espacial e classificação, já antes utilizadas para outras finalidades, mas que se com-prova serem úteis na conservação e restauro.O registo pictórico da “Ressurreição de Cristo”, ex-libris do Convento de Cristo, serviu neste caso para um pro-cesso de inferimento deontológico e operativo, não só pela área extensa de lacunas que apresenta, indicada pelo classificador, mas também pela sua complexidade de formas, que obriga a uma reflexão na fase de reintegra-ção cromática. Saber que a interrupção do tecido figurativo na obra tem um valor aproximado de 48,5%, pode ajudar a decisão entre intervir ou não intervir, bem como, na determinação da técni-ca de reintegração mais adequada à obra. É importante também ter pre-sente que uma estratégia de actuação deve ponderar a análise quantitativa das lacunas pictóricas em relação à pintura, assim como a própria pintu-

NOTAArtigo elaborado com o apoio do Programa Operacional Ciência e Inovação 2010 (POCI 2010), co-financiado pelo Governo Português e pela União Europeia, através do Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional (FEDER) e da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

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3 – Resultado das operações, onde a amarelo se observam as lacunas.

ra e a “obra de conjunto”, neste caso, a Charola.

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