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O lugar é a antiga capela de um pala- cete, hoje transformado em um pe- queno restaurante. Os azulejos de mais de dois séculos e a pouca ilu- minação, debilmente compensada pelas velas, constroem o ambiente perfeito para que se escute e cante fado. É nessa construção do bairro da Alfama, o mais antigo de Lisboa, que, em 2002, uma ga- rota começou a chamar a atenção por sua voz e seu jeito de interpretar as canções. “Um dia, ela chegou com uns amigos e veio me perguntar se podia cantar. Havia o artista principal e depois outras pessoas cantavam. Olhei para aquela menina de tênis e calça jeans e quei desconada, mas disse que sim. Quando ela abriu a boca, todo mundo cou de queixo caído”, conta Anabela Paiva, 52 anos, proprietária na época da casa em que Carmo Rebelo de Andrade, a Carminho, deu início à carreira – hoje, aos 28 anos, ela é um dos principais nomes da típica música portuguesa e circula o mundo; só no m do ano, chegou a se apresentar 15 vezes em 17 dias, em uma turnê europeia, e, na volta, rumou para mais cinco shows no Brasil. “Bela”, como é chamada pelos amigos, cou tão impres- sionada com o que viu naquela sexta-feira há uma década que convidou a fadista adolescente para se apresentar sema- nalmente. Meses depois, Carminho já cantava duas vezes por semana no restaurante, sempre com casa cheia. “Nos dias em que ela cantava, eu tinha que deixar cliente para fora. Começamos a fazer reserva de mesa com semanas de antecedência. Todo mundo queria escutá-la”, destaca. Em pouco tempo, a fama da garota de 17 anos tinha ul- trapassado o círculo dos adoradores de fado e até quem não era amante das tristes melodias subia as vielas da Alfama para ouvir a jovem que interpretava como se fosse uma vete- rana. “Olha como ela respira, olha como ela canta”, comenta- va-se nos intervalos entre as canções. Não demorou para que o assédio de produtores musicais surgisse. Fãs e prossionais da música pressionavam Carminho para que ela gravasse o primeiro disco. Foi quando decidiu fazer uma pausa. Aos 21 anos e recém-formada em Publicidade e Marketing, resolveu tirar um ano sabático. Pegou o dinheiro que havia ganhado como cantora e foi fazer trabalho voluntário, com doentes em fase terminal, na Ásia, Oceania e América do Sul – no total, passou por 13 países em 11 meses. Antes de partir, ou- viu um alerta: o comboio não passa duas vezes, vai perder a oportunidade. “Fiquei um pouco aita quando ela disse que ia fazer essa viagem. Não ia passar um ano em Paris ou Berlim, ia sem muito plano e para países que desconhecíamos”, conta Teresa Siqueira, 59 anos, mãe da cantora e também fadista. “Mas foi muito bom para ela, que é a caçula, era mimada, e de repente saiu para conhecer o mundo. Voltou mudada, e isso foi óti- mo para a cabeça dela e também para a carreira”, completa a mãe, que, às quartas-feiras, canta no restaurante que Ana- bela, a “descobridora” de Carminho, administra atualmente, também no bairro da Alfama. No regresso da viagem, que teve escala nal no Brasil, Carminho voltou decidida a ser cantora. Até então, havia dúvida sobre o caminho a ser seguido. “Fazia confusão na cabeça dela isso de ganhar dinheiro fazendo uma coisa de que gosta tanto. Demorou a entender que poderia ser uma prossão”, conta Teresa. UM RAIO NO MESMO LUGAR DUAS VEZES O comboio passou novamente, e dessa vez Carminho não o perdeu. Fado, o primeiro disco, foi lançado em 2009 por uma grande gravadora e teve ótima recepção de crítica e público. O restaurante dos azulejos cheios de história cou pequeno, e a fadista começou a frequentar grandes salas – embora procurasse conciliar os espetáculos com apresenta- ções mais intimistas. Em 2011, um dueto com o espanhol Pablo Alborán co- locou a cantora no topo das paradas na Espanha e alavan- cou de vez sua carreira internacional. Pela primeira vez, um artista português teve a música mais executada na pátria | perfil | carminho AOS 28 ANOS, CARMINHO, UM DOS PRINCIPAIS NOMES DO FADO, JÁ MOSTROU SUA MÚSICA EM PAÍSES DE TODOS OS CANTOS DO MUNDO, ALÉM DE FIRMAR PARCERIAS COM CANTORES COMO CHICO BUARQUE E MILTON NASCIMENTO POR RICARDO VIEL , DE LISBOA A LINDA VOZ DE ALFAMA 44

A linda voz de Alfama

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Perfil da fadista Carminho para a Revista da Cultura, janeiro de 2013

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O lugar é a antiga capela de um pala-cete, hoje transformado em um pe-queno restaurante. Os azulejos de mais de dois séculos e a pouca ilu-minação, debilmente compensada pelas velas, constroem o ambiente perfeito para que se escute e cante fado. É nessa construção do bairro

da Alfama, o mais antigo de Lisboa, que, em 2002, uma ga-rota começou a chamar a atenção por sua voz e seu jeito de interpretar as canções. “Um dia, ela chegou com uns amigos e veio me perguntar se podia cantar. Havia o artista principal e depois outras pessoas cantavam. Olhei para aquela menina de tênis e calça jeans e ! quei descon! ada, mas disse que sim. Quando ela abriu a boca, todo mundo ! cou de queixo caído”, conta Anabela Paiva, 52 anos, proprietária na época da casa em que Carmo Rebelo de Andrade, a Carminho, deu início à carreira – hoje, aos 28 anos, ela é um dos principais nomes da típica música portuguesa e circula o mundo; só no ! m do ano, chegou a se apresentar 15 vezes em 17 dias, em uma turnê europeia, e, na volta, rumou para mais cinco shows no Brasil.

“Bela”, como é chamada pelos amigos, ! cou tão impres-sionada com o que viu naquela sexta-feira há uma década que convidou a fadista adolescente para se apresentar sema-nalmente. Meses depois, Carminho já cantava duas vezes por semana no restaurante, sempre com casa cheia. “Nos dias em que ela cantava, eu tinha que deixar cliente para fora. Começamos a fazer reserva de mesa com semanas de antecedência. Todo mundo queria escutá-la”, destaca.

Em pouco tempo, a fama da garota de 17 anos tinha ul-trapassado o círculo dos adoradores de fado e até quem não

era amante das tristes melodias subia as vielas da Alfama para ouvir a jovem que interpretava como se fosse uma vete-rana. “Olha como ela respira, olha como ela canta”, comenta-va-se nos intervalos entre as canções. Não demorou para que o assédio de produtores musicais surgisse. Fãs e pro! ssionais da música pressionavam Carminho para que ela gravasse o primeiro disco. Foi quando decidiu fazer uma pausa. Aos 21 anos e recém-formada em Publicidade e Marketing, resolveu tirar um ano sabático. Pegou o dinheiro que havia ganhado como cantora e foi fazer trabalho voluntário, com doentes em fase terminal, na Ásia, Oceania e América do Sul – no total, passou por 13 países em 11 meses. Antes de partir, ou-viu um alerta: o comboio não passa duas vezes, vai perder a oportunidade.

“Fiquei um pouco a" ita quando ela disse que ia fazer essa viagem. Não ia passar um ano em Paris ou Berlim, ia sem muito plano e para países que desconhecíamos”, conta Teresa Siqueira, 59 anos, mãe da cantora e também fadista. “Mas foi muito bom para ela, que é a caçula, era mimada, e de repente saiu para conhecer o mundo. Voltou mudada, e isso foi óti-mo para a cabeça dela e também para a carreira”, completa a mãe, que, às quartas-feiras, canta no restaurante que Ana-bela, a “descobridora” de Carminho, administra atualmente, também no bairro da Alfama.

No regresso da viagem, que teve escala ! nal no Brasil, Carminho voltou decidida a ser cantora. Até então, havia dúvida sobre o caminho a ser seguido. “Fazia confusão na cabeça dela isso de ganhar dinheiro fazendo uma coisa de que gosta tanto. Demorou a entender que poderia ser uma pro! ssão”, conta Teresa.

UM RAIO NO MESMO LUGAR DUAS VEZESO comboio passou novamente, e dessa vez Carminho

não o perdeu. Fado, o primeiro disco, foi lançado em 2009 por uma grande gravadora e teve ótima recepção de crítica e público. O restaurante dos azulejos cheios de história ! cou pequeno, e a fadista começou a frequentar grandes salas – embora procurasse conciliar os espetáculos com apresenta-ções mais intimistas.

Em 2011, um dueto com o espanhol Pablo Alborán co-locou a cantora no topo das paradas na Espanha e alavan-cou de vez sua carreira internacional. Pela primeira vez, um artista português teve a música mais executada na pátria

| perfil | carminho

AOS 28 ANOS, CARMINHO, UM DOS PRINCIPAIS NOMES DO FADO, JÁ MOSTROU SUA MÚSICA EM PAÍSES DE TODOS OS CANTOS DO MUNDO, ALÉM DE FIRMAR PARCERIAS COM CANTORES COMO CHICO BUARQUE E MILTON NASCIMENTO

P O R R I C A R D O V I E L , D E L I S B O A

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vizinha. Em 2012, a cantora fez show em países distantes do fado, como Suécia, Finlândia, Alemanha, Coreia do Sul, Peru, além do Brasil – local pelo qual tem carinho e boas his-tórias para contar. Aos 19 anos, Carminho embarcou como cantora em um cruzeiro que ia de Lisboa ao Rio de Janeiro. Na chegada, passou alguns dias na cidade, com direito a as-sistir a um ensaio de escola de samba. Na volta, confessou à mãe que “seu maior sonho” era conhecer Chico Buarque. No !nal do ano passado, o desejo se realizou, e melhor do que o que fora pedido. Carminho gravou com Chico, no Brasil, a música Carolina para seu segundo álbum, Alma, lançado no país em novembro último. “Ficou linda a versão, e foi escolha dela. Convenceu o Chico de que !caria bom. Ela tem muito cuidado com o repertório que escolhe”, diz Teresa, em um momento mãe coruja.

No !nal de 2012, mãe e !lha dividiram o palco do Coli-seu de Lisboa, a principal casa de shows da capital portugue-sa. Foi uma espécie de retribuição. Aos 12 anos, Carminho cantou no mesmo lugar em um concerto bene!cente em que a mãe era uma das artistas. “Perguntei em casa se alguém queria cantar e ela foi a única. Então, falei que tinha que en-saiar. Depois do ensaio, um dos músicos me disse: ´Deixa a menina cantar. É a!nada, tem voz, canta melhor do que muito pro!ssional´”, relembra Teresa.

FORA DA BOLHAHoje, Carminho é uma das cantoras mais badaladas de Por-

tugal e, aos 28 anos, já tem lugar de destaque no Museu do Fado. Além da voz e da maneira como interpreta as canções, a fadista é elogiada pela crítica por seu cuidado ao escolher não só as mú-sicas que canta, mas também os músicos que a acompanham. Costuma dizer que é “!lha do seu tempo” e por isso, embora tenha muito respeito pela tradição, não se furta a experimentar outros ritmos. Em seu segundo disco, além de cantar com Chi-co Buarque, faz dueto com Milton Nascimento e Nana Caym-mi. Já se apresentou no Rock in Rio Lisboa acompanhada do brasileiro Pedro Luís e, recentemente, fez um improvável dueto com uma banda de metal portuguesa. Mesmo entre os fadistas mais antigos e puristas, é difícil encontrar alguém que a critique. “Não quero mudar ou modernizar o fado, até porque ele é muito maior do que eu”, disse certa vez.

Agenciada por uma grande gravadora e cobiçada tanto pela imprensa como por empresas que querem associar sua marca à imagem da cantora, virou tarefa complicada con-seguir uma hora de conversa com Carminho. Mas pode ser que em um sábado de noite, em uma das estreitas ruas da Al-fama, você a encontre passeando tranquila com um gorrinho na cabeça. Se isso acontecer, não se furte a puxar conversa. Ela abrirá um sorriso bonito, falará de Chico com brilho nos olhos, contará da vontade que tem de voltar sempre ao Bra-sil e pedirá desculpas pela burocracia das assessorias de im-prensa e dos empresários. E se calhar, como se diz em Portu-gal, você ainda conseguirá escutá-la cantar em uma diminuta taberna. Só você e mais duas dezenas de sortudos. c FO

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