8
A LINGUAGEM JURÍDICA EM DEBATE: uma questão sociolingüística 1 Profa. Dra. Patrícia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda RESUMO Este artigo tem o objetivo de discutir a linguagem jurídica sob uma perspectiva sociolingüística. O que se pretende, portanto, é debater como muitos operadores do Direito ainda utilizam uma linguagem extremamente elaborada, que dificilmente é compreendida pelo cidadão comum. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem Jurídica; Sociolingüística; Redação Forense. INTRODUÇÃO O uso da linguagem na área jurídica tem sido alvo de debates e controvérsias ao longo do tempo. Uma questão que tem gerado muita polêmica é a utilização de uma linguagem demasiadamente elaborada. O que se percebe, com muita freqüência, é um uso da língua extremamente dissociado da realidade. A presença excessiva de latinismos e de um vocabulário que escapa à compreensão dos leigos tem sido constante. Opondo-se a essa perspectiva, encontramos, por exemplo, o trabalho que vem sendo realizado pela AMB Associação dos Magistrados Brasileiros com o objetivo de discutir o papel que a linguagem forense exerce no contexto social. De acordo com a AMB, a linguagem jurídica deve atender a uma função claramente social, permitindo que qualquer cidadão seja capaz de compreendê-la. Para a entidade, o uso de uma linguagem mais simples, direta e objetiva, nos tribunais e nas faculdades de Direito, está entre os grandes desafios para que o Poder Judiciário se aproxime mais dos cidadãos (ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS, 2005). A questão se que interpõe aqui é, portanto, a confusão que se tem operado entre o uso de uma linguagem técnica e o uso de uma linguagem rebuscada. A presença de uma linguagem técnica é algo extremamente comum a qualquer ciência ou área do conhecimento. Assim como, por exemplo, a medicina ou a informática possuem um vocabulário bastante específico, é natural que a linguagem jurídica apresente também um jargão, ou seja, uma linguagem que reflita eminentemente a prática forense. Todavia, o que se tem percebido é uma exacerbação desse tecnicismo, visto que o uso de uma linguagem demasiadamente específica acaba atuando como fator de distanciamento entre o Direito e o cidadão comum. Nesse contexto, observam-se freqüentemente sentenças cujo teor não é possível que as partes conheçam sem a interferência 1 CUNHA LACERDA, P. F. A. da . A linguagem jurídica em debate: uma questão sociolingüística. Revista Estação Científica, v. 1, p. 11-25, 2007. .

A LINGUAGEM JURÍDICA EM DEBATE - 27.05

Embed Size (px)

Citation preview

  • A LINGUAGEM JURDICA EM DEBATE:

    uma questo sociolingstica1

    Profa. Dra. Patrcia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda

    RESUMO Este artigo tem o objetivo de discutir a linguagem jurdica sob uma perspectiva sociolingstica. O que se pretende, portanto, debater como muitos operadores do Direito ainda utilizam uma linguagem extremamente elaborada, que dificilmente compreendida pelo cidado comum. PALAVRAS-CHAVE: Linguagem Jurdica; Sociolingstica; Redao Forense.

    INTRODUO

    O uso da linguagem na rea jurdica tem sido alvo de debates e controvrsias ao longo do

    tempo. Uma questo que tem gerado muita polmica a utilizao de uma linguagem

    demasiadamente elaborada. O que se percebe, com muita freqncia, um uso da lngua

    extremamente dissociado da realidade. A presena excessiva de latinismos e de um vocabulrio

    que escapa compreenso dos leigos tem sido constante.

    Opondo-se a essa perspectiva, encontramos, por exemplo, o trabalho que vem sendo

    realizado pela AMB Associao dos Magistrados Brasileiros com o objetivo de discutir o papel

    que a linguagem forense exerce no contexto social. De acordo com a AMB, a linguagem jurdica

    deve atender a uma funo claramente social, permitindo que qualquer cidado seja capaz de

    compreend-la. Para a entidade, o uso de uma linguagem mais simples, direta e objetiva, nos

    tribunais e nas faculdades de Direito, est entre os grandes desafios para que o Poder Judicirio

    se aproxime mais dos cidados (ASSOCIAO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS, 2005).

    A questo se que interpe aqui , portanto, a confuso que se tem operado entre o uso de

    uma linguagem tcnica e o uso de uma linguagem rebuscada. A presena de uma linguagem

    tcnica algo extremamente comum a qualquer cincia ou rea do conhecimento. Assim como,

    por exemplo, a medicina ou a informtica possuem um vocabulrio bastante especfico, natural

    que a linguagem jurdica apresente tambm um jargo, ou seja, uma linguagem que reflita

    eminentemente a prtica forense. Todavia, o que se tem percebido uma exacerbao desse

    tecnicismo, visto que o uso de uma linguagem demasiadamente especfica acaba atuando como

    fator de distanciamento entre o Direito e o cidado comum. Nesse contexto, observam-se

    freqentemente sentenas cujo teor no possvel que as partes conheam sem a interferncia

    1 CUNHA LACERDA, P. F. A. da . A linguagem jurdica em debate: uma questo sociolingstica. Revista Estao

    Cientfica, v. 1, p. 11-25, 2007.

    .

  • de seu advogado. Essa incompreenso na leitura da pea decorre quase sempre do abuso de

    termos jurdicos obsoletos, que acabam refletindo a manifesta exacerbao estilstica realizada

    por muitos juristas.

    Com a inteno de aprofundar esta questo, discutiremos neste artigo a funo social da

    linguagem, demonstrando que a simplificao da linguagem jurdica no deve ser tratada

    simplesmente como uma proposta a ser implantada. Na verdade, o que pretendemos evidenciar

    que a lngua, sendo um fenmeno de natureza eminentemente social, deve estar sempre

    relacionada a seu contexto de uso, adequando-se situao comunicativa e aos interlocutores.

    Sob essa perspectiva, analisaremos primeiramente a lngua sob a tica da sociolingstica

    variacionista. nosso objetivo apresentar a lngua como uma realidade heterognea e social,

    destacando sua adequao constante ao contexto de uso e aos interlocutores.

    Posteriormente, discutiremos mais detidamente o uso da linguagem no contexto jurdico.

    Nesse sentido, iremos avaliar o que tem sido proposto como simplificao da linguagem jurdica.

    Como veremos, a questo que se interpe no simplesmente abolir a tecnicidade intrnseca ao

    contexto forense ou transgredir a norma culta da lngua portuguesa. Na realidade, o que se

    prope somente a conscincia de que a lngua, sendo uma realidade heterognea e social,

    constitui-se de uma dinamicidade que lhe peculiar e deve, pois, se adequar aos interlocutores

    com a inteno de garantir o princpio mximo da comunicabilidade.

    1. LNGUA: UMA REALIDADE HETEROGNEA E SOCIAL

    A lngua no utilizada de forma homognea por todos os seus falantes. O uso de uma

    lngua varia de poca para poca, de regio para regio, de classe social para classe social e

    assim por diante. Nem individualmente podemos afirmar que o uso seja uniforme. Dependendo

    da situao, uma mesma pessoa pode usar diferentes variedades de uma s forma da lngua.

    Os processos de mudana lingstica indicam que as lnguas se encontram, no decurso

    tempo, em um constante fluxo de transformao, isto , as lnguas humanas no constituem

    realidades estticas e homogneas. Sendo assim, estruturas e palavras que existiam em uma

    determinada poca no ocorrem mais ou, ento, tm sua forma, sua funo ou seu significado

    modificados.

    Embora esse fenmeno seja uma realidade que caracterize qualquer lngua, os falantes

    no conseguem perceber sua dinamicidade, j que toda mudana se apresenta como um

    processo lento e gradual, que nunca atinge a lngua, em sua totalidade, de uma s vez. A

    configurao histrica de qualquer lngua constri-se, pois, a partir de um complexo jogo de

    manuteno e permanncia, reforando a imagem de estabilidade que os falantes, geralmente,

    tm a seu respeito (cf. CUNHA, 2007).

  • Com o advento da Sociolingstica, no final da dcada de sessenta, consolidou-se a

    concepo de que existe uma relao intrnseca entre lngua e sociedade. Encontramos em

    Labov (1972) a fundamentao dessa relao, juntamente a um modelo analtico que visava

    possibilidade de sistematizar a variao existente na lngua falada.

    Assumindo a tarefa de estudar a covariao sistemtica da estrutura lingstica e da

    estrutura social ou, at mesmo, uma relao de causalidade entre essas dimenses (BRIGHT,

    1974:17; BYNON, 1977:199), a sociolingstica pde promover um redirecionamento dos estudos

    lingsticos, tratando a lngua como um sistema heterogneo. A posio da sociolingstica em

    relao ao tratamento da mudana lingstica vem a ser nitidamente contrria aos modelos tanto

    do estruturalismo como do gerativismo, uma vez que ela no exclui os fatores scio-histricos na

    compreenso central da mudana lingstica (cf. MATTOS E SILVA, 1999).

    Sob essa perspectiva, a variao lingstica pode ser percebida sob quatro diferentes

    perspectivas, a saber: a) a variao diacrnica; b) a variao diatpica; c) a variao diastrtica;

    c) a variao diafsica.

    Entende-se por variao diacrnica (do grego: dia + khronos = "atravs de" + "tempo") as

    mudanas pelas quais a lngua passa ao longo do tempo. Como a lngua um fenmeno de

    natureza eminentemente social, natural que, assim como a sociedade, ela se modifique como o

    tempo. A mudana lingstica est relacionada, assim, ao (des)aparecimento de palavras e s

    alteraes fonticas, morfo-sintticas e semnticas.

    Por sua vez, a variao diatpica (do grego: dia + topos = "atravs de" + "lugar") est

    relacionada variao da lngua de acordo com o espao. Isto quer dizer que a lngua apresenta,

    de acordo com a regio, uma grande variabilidade. Essa variao da lngua de acordo com a

    regio est diretamente ligada a fatores scio-histricos, tais como fluxos migratrios e contatos

    lingsticos. A variao diatpica pode facilmente ser percebida por qualquer falante brasileiro,

    visto que o Brasil, um pas de dimenso continental, apresenta uma grande variao no uso da

    lngua de acordo com a regio. No caso do Brasil, essa questo fica ainda mais latente, j que o

    contato lingstico vivenciado aqui envolveu a lngua portuguesa trazida pelos colonizadores

    lusitanos, as lnguas indgenas, as lnguas africanas, alm das lnguas faladas pelos imigrantes

    que provieram das mais diversas regies do mundo, tais como franceses, italianos, poloneses,

    japoneses, alemes etc.

    J a variao diastrtica (do grego: dia + stratos = "atravs de" + "nvel") compreende

    fatores de natureza social, tais como nvel de escolaridade, idade e sexo do falante. A linguagem

    , portanto, influenciada diretamente pela estrutura social. De acordo com Le Page (1980), a

    linguagem o ndice por excelncia da identidade, e as escolhas lingsticas esto intimamente

    associadas s mltiplas dimenses constitutivas da identidade social e aos mltiplos papis

    sociais que o usurio assume na comunidade de fala.

    Por fim, a variao diafsica (do grego: dia + phasis = "atravs de" + "discurso") refere-se

  • s diferenas observadas na fala de um mesmo indivduo, de acordo com a situao

    comunicativa em que ele se encontra, ou seja, so diferenas lingsticas determinadas pelas

    condies extra-verbais que cercam o ato de fala, como, por exemplo, o assunto tratado, o tipo de

    ouvinte, a relao entre os interlocutores, o estado emocional do falante, o grau de formalidade

    do discurso.

    Vemos, pois, que a lngua dinmica e que comporta uma grande multiplicidade de

    variedades lingsticas. Nesse contexto, cabe sociolingstica a funo de demonstrar como

    cada variedade lingstica desde a mais formal at a menos formal est diretamente

    relacionada ao contexto de uso.

    2. UMA BREVE NOTA SOBRE O FORMALISMO DA LINGUAGEM FORENSE

    Arrudo (2005) aponta, de forma bastante clara, os exageros que tm sido cometidos por

    muitos operadores do Direito. Segundo ela, os textos jurdicos contam em demasia com a

    presena de palavras e expresses que so acessveis somente queles que integram a rea.

    Nesse caso, muito comum a utilizao de vocbulos considerados rebuscados em vez de

    palavras que j fazem parte do repertrio lingstico de qualquer falante da lngua. Ou seja,

    muitos operadores do Direito optam por utilizar palavras que no so de conhecimento do

    cidado comum quando existem, para os mesmos contextos de uso, outros vocbulos de fcil

    compreenso por qualquer usurio da lngua em particular.

    Com o propsito de ilustrar esse extremo formalismo, a autora aponta exemplos de

    expresses que, com bastante freqncia, tm estado presentes na rea jurdica:

    Tabela I Termos que caracterizam a linguagem jurdica de acordo com Arrudo (2005)

    Glossrio usado correntemente nos tribunais e em peas jurdicas

    Significado dos vocbulos

    Abroquelar Fundamentar

    Apelo extremo Recurso extraordinrio

    Arepago Tribunal

    Autarquia Ancilar Instituto Nacional de Previdncia Social

    Crtula chquica Folha de talo de cheques

    Com espeque no artigo Com base no artigo

    Com fincas no artigo Com base no artigo

    Com supedneo no artigo Com base no artigo

    Consorte suprstite Vivo(a)

    Digesto obreiro Consolidao das leis do trabalho (CLT)

    Diploma provisrio Medida provisria

    Ergstulo pblico Cadeia

    Estipndio funcional Salrio

    Estribado no artigo Com base no artigo

  • Egrgio Pretrio Supremo Supremo Tribunal Federal

    Excelso Sodalcio Supremo Tribunal Federal

    Exordial Petio Inicial

    Fulcro Fundamento

    Indigitado Ru

    Pea incoativa Petio Inicial

    Pea increpatria Petio Inicial

    Pea-ovo Petio Inicial

    Pea vestibular Petio Inicial

    Proemial delatria Denncia

    Remdio herico Mandado de segurana

    A partir desses exemplos, percebemos que a linguagem usada por muitos juristas pode ser

    considerada um dos fatores responsveis pelo distanciamento entre a justia e o cidado comum.

    A esse respeito, vejamos o que afirma MELO (2007):

    o desenvolvimento da tcnica jurdica fez com que surgissem termos no-usuais para os leigos. A linguagem jurdica, no entanto, no mais hermtica para o leigo que qualquer outra linguagem cientfica ou tcnica. A esto, apenas para exemplificar, a medicina, a matemtica e a informtica com seus termos to peculiares e to esotricos quanto os do Direito. Ocorre que o desenvolvimento da cincia jurdica se cristalizou em instrumentos e instituies cujo uso reiterado e cuja preciso exigiam termos prprios: servido, novao, sub-rogao, enfiteuse, fideicomisso, retrovenda, evico, distrato, curatela, concusso, litispendncia, aqestros (esta a forma oficial), etc. so termos sintticos que traduzem um amplo contedo jurdico, de emprego forado para um entendimento rpido e uniforme. O que se critica, e com razo, o rebuscamento gratuito, oco, balofo, expediente muitas vezes providencial para disfarar a pobreza das idias e a inconsistncia dos argumentos. O Direito deve sempre ser expresso num idioma bem-feito; conceitualmente preciso, formalmente elegante, discreto e funcional. A arte do jurista declarar cristalinamente o Direito.

    Como ainda destaca Arrudo (2005), a perpetuao do juridiqus no Brasil pode ter uma

    explicao de carter sociolgico, uma vez que o texto jurdico praticamente ilegvel uma

    caracterstica tipicamente brasileira. Segundo ela, basta comparar textos jurdicos produzidos no

    Brasil com textos produzidos na Espanha ou em Portugal, aps a queda do franquismo e do

    salazarismo, para se perceber que os textos produzidos nestes pases utilizam a linguagem de

    forma mais clara e objetiva, sempre com a inteno de permitir a compreenso do maior

    nmero possvel de destinatrios. Na Espanha e em Portugal, teria ocorrido, nesse sentido, uma

    democratizao da palavra, coincidente com a prpria redemocratizao poltica.

    No caso do Brasil, h, portanto, um grande paradoxo entre a linguagem utilizada e a

    funo social que caracteriza a rea jurdica. Como sabemos, o Direito encontra-se inserido na

    vida social, tendo como funo primordial regular condutas que podem comprometer os

    interesses fundamentais e primrios do homem: sua vida, sua famlia, sua propriedade, sua

    integridade fsica. Entretanto, o que percebe constantemente o uso de uma linguagem que

    distancia e que, por vezes, at mesmo segrega quem no pertece rea jurdica.

  • 3. DISCUTINDO A LINGUAGEM JURDICA

    Quando se discute o excessivo rebuscamento da linguagem jurdica, o que comumente se

    percebe so juzos de valor e consideraes pautadas apenas na observao. De um modo

    geral, no so comuns trabalhos que tratem sistematicamente essa questo sob uma perspectiva

    lingstica, ou seja, h uma carncia de trabalhos que analisem a linguagem jurdica como parte

    integrante da relao linguagem/sociedade.

    Essa , portanto, a inteno deste trabalho, j que pretendemos confirmar que o

    importante para a redao forense no a presena de uma linguagem sofisticada, mas sim a

    clareza, a conciso e a consistncia dos argumentos utilizados (cf. SOUZA et al., 2006).

    necessrio enfatizar, entretanto, que no se deve confundir a presena de uma linguagem mais

    simples e direta com a transgresso norma culta ou com o abandono do jargo tcnico da rea

    jurdica. Tanto o padro formal da lngua quanto a linguagem tcnica so imprescindveis aos

    textos elaborados na rea jurdica, como em qualquer cincia.

    Se, por um lado, a norma culta deve ser respeitada e o jargo jurdico necessrio, por

    outro lado, o que se observa um exagero no tecnicismo e nas escolhas lexicais, visto que os

    termos jurdicos se tornam, na maior parte das vezes, um desafio para os leigos. A esse respeito,

    Souza et al. (2006:3) afirmam o seguinte:

    quem no for da rea jurdica ter srias dificuldades em entender termos tcnicos, especficos, inclusive, na maioria das vezes, j ultrapassados, trazidos do Direito Romano, h sculos. Tal estilo rebuscado, apelidado de juridiqus, em vez de permitir o entendimento sobre o assunto, bloqueia qualquer possibilidade de conhecimento.

    Esse distanciamento entre o cidado comum e o Direito no inerente

    contemporaneidade. H muitos sculos, os juristas tm avaliado e discutido como o uso de uma

    linguagem extremamente rebuscada impede que os cidados, de um modo geral, compreendam

    efetivamente a norma jurdica. De acordo com Crcova (1998:14), existe, portanto, uma

    opacidade na linguagem jurdica, visto que entre o Direito e o seu destinatrio existiria uma

    barreira opaca que os distanciaria, impossibilitando que o cidado comum, diante da prtica

    jurdica, compreenda seus processos e instrumentos. Sob essa perspectiva, um dos principais

    fatores propulsores dessa no-compreenso do cidado comum em relao ao texto legal a

    presena macia de arcasmos lingsticos, vocbulos exageradamente hermticos e

    preciosismos vazios de significao.

    Voltamos aqui, ento, questo do tecnicismo da linguagem jurdica. importante deixar

    claro que o que se critica no a presena de uma linguagem tcnica na rea do Direito, j que

    toda profisso apresenta termos tcnicos que so compreendidos, na maioria das vezes, apenas

    por profissionais da rea. A crtica feita ao apego de muitos juristas ao preciosismo e ao

  • rebuscamento gratuitos na redao forense.

    Com base no escopo terico-metodolgico da sociolingstica, outra questo merece

    destaque: a mutabilidade da linguagem. Como ressalta Lvy-Bruhl (1988:29), o Direito no pode

    desprezar o carter mutvel que acompanha toda a sociedade seja, de maneira geral, nos

    indivduos que a compem, seja, de maneira mais especfica, na linguagem que utilizam. Sendo

    assim, parece incoerente que no haja, por parte de muitos operadores do Direito, a conscincia

    de que a linguagem jurdica deve acompanhar seu tempo. fundamental, nesse sentido, que a

    linguagem jurdica no priviligie em demasia um lxico demasiadamente arcaico e construes

    sintticas reconhecidamente obsoletas.

    Sob essa perspectiva, a AMB Associao dos Magistrados Brasileiros lanou, no ano

    de 2005, uma campanha voltada para para simplificar a linguagem jurdica utilizada por

    magistrados, advogados, promotores e outros operadores da rea. Para a entidade, a

    reeducao lingstica nos tribunais e nas faculdades de Direito, com o uso de uma linguagem

    mais simples, direta e objetiva, est entre os grandes desafios para que o Poder Judicirio fique

    mais prximo dos cidados (ASSOCIAO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS, 2005). A

    campanha teve como foco inicial os estudantes de Direito. Por meio de palestras, a associao

    divulgou a iniciativa em quatro Estados brasileiros (Rio de Janeiro, So Paulo, Minas Gerais e

    Paran) e no Distrito Federal. Outra iniciativa foi o lanamento de um manual que contivesse

    alguns termos e expresses que no so acessveis ao cidado comum e sua respectiva

    traduo.

    CONCLUSO

    Analisando mais detidamente a linguagem jurdica, comprovamos a existncia de um

    apego extremo a uma linguagem extremamente formal por parte de muitos operadores do Direito.

    Esse formalismo, caracterizado pelo uso de palavras e expresses que no integram o lxico do

    cidado comum, acaba atuando, na maioria da vezes, como um entrave ao acesso justia.

    Nesse contexto, procuramos demonstrar, a partir do escopo terico da Sociolingstica,

    que a lngua deve sempre se adequar ao contexto de uso, tendo como funo primordial atender

    aos interlocutores e exercer o princpio bsico da comunicabilidade.

    A linguagem jurdica deve primar, portanto, pela clareza e pela coerncia, a partir do uso

    da norma culta da lngua e da consistncia dos argumentos utilizados. Dessa forma, sem abdicar

    do uso de termos tcnicos, que so fundamentais a qualquer rea do conhecimento, devem os

    operadores do Direito, quando possvel, evitar termos e expresses que no so acessveis ao

    cidado comum, privilegiando os vocbulos que integram o lxico de qualquer falante da lngua,

    pertencente ou no rea jurdica.

  • Uma forma de alcanar esse objetivo seria, nesse sentido, a existncia de propostas como

    a da AMB Associao dos Magistrados Brasileiros , que visem, por exemplo, elaborao de

    cartilhas e manuais que promovam uma maior proximidade entre a rea jurdica e os cidados

    comuns.

    Sob essa perspectiva, fica claro que a iniciativa de utilizar uma linguagem mais acessvel

    deve ser realizada, de forma sistmtica, tanto pelos juristas que j exercem a prtica forense h

    algum tempo como, principalmente, por todos os novos profissionais que se graduam a cada ano

    nas universidades do pas. O objetivo, pois, deve ser garantir que o Direito exera, de forma

    efetiva, sua funo social atravs de uma linguagem que no se restrinja ao conhecimento de

    poucos.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    ASSOCIAO DOS MAGISTRADOS BRASILEIROS. O judicirio ao alcance de todos: noes

    bsicas de juridiqus. 1. ed. Braslia: AMB/Ediouro, 2005.

    ARRUDO, B. Juridiqus no banco dos rus. Revista Lngua Portuguesa. Ano I, n. 2, 2005.

    BRIGHT, W. As dimenses da sociolingstica. In: FONSECA, M. S. V. & NEVES, M. F. (orgs.).

    Sociolingstica. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, 1974.

    BYNON, T. Historical Linguistics. London: Cambridge University Press, 1977.

    CRCOVA, C. M. A opacidade do Direito. So Paulo: LTR, 1998.

    CUNHA, P. F. A. Possessivos de terceira pessoa na lngua portuguesa nos sculos XIII e XIV.

    Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.

    FONSECA, M. S. V. & NEVES, M. F. (orgs.). Sociolingstica. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado

    Tijuca, 1974.

    LABOV, W. Sociolinguistic patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972.

    LE PAGE, R. B. Projection, Focursing and Diffusio. York Papers in Linguistics, 1980.

    LVY-BRUHL, H. Sociologia do Direito. So Paulo: Martins Fontes, 1988.

    MATTOS E SILVA, R. V. Orientaes atuais da lingstica histrica brasileira. DELTA vol. 15,

    1999.

    MELO, V. R. Hermetismo jurdico: tecnicidade da linguagem pode afastar sociedade da Justia.

    Revista Consultor Jurdico. Disponvel em: www. conjur.estadao.com.br Acesso em 20 de ago.

    de 2007.

    SOUZA, A. E. et al. Argumentao jurdica: teoria e prtica. Rio de Janeiros: Freitas Bastos

    Editora, 2006.