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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM TECNOLOGIA DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL A MANIFESTAÇÃO OCULTA DA CRIAÇÃO NOS JOGOS DE NEGÓCIO Maria Elisa Toledo da Silva São Paulo 2010

A MANIFESTAÇÃO OCULTA DA CRIAÇÃO NOS JOGOS DE NEGÓCIO · cresceu 14% no Brasil no ano passado. O faturamento passou de 76,7 milhões de reais, em 2007, para 87,4 milhões, em

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM TECNOLOGIA

DA INTELIGÊNCIA E DESIGN DIGITAL

A MANIFESTAÇÃO OCULTA DA CRIAÇÃO

NOS JOGOS DE NEGÓCIO

Maria Elisa Toledo da Silva

São Paulo

2010

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em

Tecnologia da Inteligência e Design Digital

A MANIFESTAÇÃO OCULTA DA CRIAÇÃO

NOS JOGOS DE NEGÓCIO

Maria Elisa Toledo da Silva

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Tecnologia da Inteligência e Design Digital, sob a orientação da Professora Dra. Lucia Santaella.

São Paulo

2010

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MARIA ELISA TOLEDO DA SILVA

A MANIFESTAÇÃO OCULTA DA CRIAÇÃO NOS JOGOS DE NEGÓCIO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Tecnologia da Inteligência e Design Digital, sob a orientação da Professora Dra. Lucia Santaella.

Aprovado pela Banca Examinadora em ____________________________2010

BANCA EXAMINADORA

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“Eu gosto de jogar porque eu ganho”. Isabela Mazoni Hana – 9 anos.

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Agradecimentos À minha orientadora, Lucia Santaella, pelo privilégio de tê-la perto. Aos professores Aglaé Cecília Toledo Porto Alves, Sérgio Basbaum e Romero Tori pela construção de ideias, percepções e afetos. À parte oculta em mim: Dionísia Rosa Toledo, Elisabeth Toledo da Silva, Getúlio Balduíno da Silva, Ana Karina Toledo Knödler e Paula Regina Toledo da Silva. À parte acoplada: Christian Knödler e Michele Sene. À parte à parte: Aglaé e Otávio Toledo Porto Alves. Àqueles que me ajudaram diretamente na concretização deste trabalho: Catia Ckoiffmann, Ricardo Devai, Ana Elisa Antunes Viviani, Sueli Chaves Andrade e Helena Lima. A todos os amigos que acompanharam meu silêncio e distanciamento. À Aennova DecisionWare, pelo aprendizado contínuo sobre o mundo dos jogos de negócio. Ao programa de pós-graduação de Tecnologia da Inteligência e Design Digital da PUC-SP, pela completude de sua proposta.

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Resumo

O ser humano é a um só tempo físico, biológico, psíquico, cultural, social, histórico.

Edgar Morin

O presente trabalho visa caracterizar os jogos de negócio digitais como um

“espaço de criação” - conceito advindo das teorias do psicanalista inglês Donald Woods Winnicott. Segundo ele, o “espaço de criação” possibilita a relação compartilhada entre o indivíduo e a realidade que o cerca e estrutura formas singulares de cada ser humano se expor diante das situações do cotidiano. Somado a esse conceito, o olhar deste trabalho recai sobre a análise da relevante inserção dos jogos de negócio nos programas de educação corporativa das empresas. Nelas, o profissional encontra-se diante de diversas situações complexas atualmente apresentadas no seu cotidiano, relacionadas a questões perambulantes entre sujeito, corporação e sociedade. Neste contexto, buscaremos nos jogos pistas das manifestações ocultas da criação, considerando que tais pistas tendem a funcionar como um possível trampolim capaz de fazer com que os jogadores/colaboradores desenvolvam estruturas cognitivas diferenciadas, por meio da experiência prática e perceptiva. Recorreremos a concepções fenomenológicas merleau-pontyanas, justamente por acreditar que lidaremos com espaços repletos de identidades e sentidos e prontos para serem contemplados. O diálogo proposto neste estudo entre psicanálise, jogos de negócio e empresas procura contribuir com a forma do sentido e do sentir da experiência do jogo. Leva-se em conta que tais ambientes são espaços de emergência da criação humana, cujo objetivo é integrar-se a um modelo em constante mutação, de fluxos contínuos, em que o rizoma forma a base de tudo e faz com que o devir se torne a união de vários pensares que se confrontam entre si numa espécie de expansão sem fim. Palavras chaves: jogos, educação corporativa, psicanálise, espaço de criação.

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Abstract

This paper aims to depict digital business games as a space of creation - a concept arisen from the theories of the English psychoanalyst Donald Woods Winnicott. He said that the “space of creation” allows a shared relationship between the individual and the reality around him, and structures unique approaches based on the way every human being presents himself in face of everyday situations. In addition to this concept, this paper focuses on the analysis of relevant integration of games with business education programs in corporate business. Through these games, a professional is faced with many complex situations presented throughout daily life, related to wandering issues between the subject, the corporation and the society. In this context, we seek for clues that show an ulterior demonstration of creation, whereas such clues tend to function as a possible springboard to get the players/peers to develop particular cognitive structures, through practical experience and perception. We will also reflect upon Merleau-Pontyan phenomenological concepts, especially because we believe that we're dealing with spaces filled with identities and meanings and awareness to be analyzed. The dialogue proposed in this study between psychoanalysis, games and business corporations tend to contribute to shaping the meaning and the feeling of the game experience, taking into account that such environments are spaces where human creation can flourish, aiming to integrate into an ever-changing model, a continuous flowing model, in which the rhizome sets the ground for everything and makes what is about to come the gathering of several confronting thoughts in a kind of endless expansion. Keywords: games, corporate education, psychoanalysis, space of creation.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – America’s Army........................................................................................12

Figura 2 – Jogo da Cerveja.........................................................................................13

Figura 3 – Flabe...........................................................................................................62

Figura 4 – Full Throttle...............................................................................................63

Figura 5 – Flight Simulator.........................................................................................71

Figura 6 – Chocolatier Deluxe....................................................................................72

Figura 7 – Black and White........................................................................................78

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SUMÁRIO

AMBIENTAÇÃO.......................................................................................................10

CAPÍTULO 1 - APLICAÇÃO...................................................................................22

CAPÍTULO 2 – PEÇA PRINCIPAL........................................................................44

2.1 Espaço Potencial na Psicanálise................................................................44

2.2 Espaço Potencial como Espaço de Criação..............................................50

CAPÍTULO 3 – REGRAS.........................................................................................56

3.1 A Brincadeira.............................................................................................59

3.2 A Agonia.....................................................................................................64

3.3 A Intencionalidade do sujeito....................................................................74

CAPÍTULO 4 – NOVAS VERSÕES.........................................................................81

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................89

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Ambientação

As múltiplas possibilidades trazidas pelas Tecnologias de Informação e

Comunicação abrem espaço para um viver fluido, ou “líquido”, como nomearia

Bauman1, de forma que o viver torna-se um vai e vem constante entre a ação de fazer e

desfazer, de criar e de recriar valores. Dessa forma, atualmente, tanto o meio social

sofre profundas transformações na sua estrutura quanto os sujeitos interagentes tendem

a modificar o campo constituinte da sua forma perceber o mundo.

A análise dessa “interação meio-social – sujeitos” fornece bases para uma leitura

do sistema de signos envolvidos na interface humana com as mídias digitais, bem como

a forma como esta ligação marca a experiência dos indivíduos. Há muito se evidencia a

relevância das reflexões sobre como as tecnologias tomam seu lugar na cultura e na

forma como percebemos a realidade. Tais ponderações nos aproximaram da ideia de

que as tecnologias servem como um mero aparato e é a finalidade de seu uso que

garante algum tipo de significado para os sujeitos.

Esse modo que a tecnologia possui, de introduzir-se nas práticas do cotidiano pelas mais diversas portas, como objeto decorativo, eletrodoméstico, entretenimento, como instrumento regulador de estruturas de produção, como ferramenta para a comunicação, trabalho ou expressão - em síntese, operando a mediação de todas as instâncias da cultura-, implica na constatação de que, embora a novidade tecnológica guarde lá seu fascínio, os níveis em que se insere e os usos que adquire na cultura ultrapassam em muito o caráter novidadeiro que possa ter. (BASBAUM, 2005, p.127)

Uma das características ímpares, quando falamos da tecnologia, é o quesito

digital, dada a diluição de sua presença na cultura. O fato de salientarmos isso configura

a atuação completiva das mídias digitais no nosso dia-a-dia. De alguma forma, ao

interagirmos com o mundo digital, aparecem vetores dispostos em diferentes direções,

alterando o estado inicial do meio que, por sua vez, também altera as nossas estruturas

1 Sobre o conceito, conferir os escritos do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

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cognitivas, tendo um impacto direto na nossa forma de perceber. Neste estudo, tal

quesito complementará o termo “jogos de negócio”2, cuja saliência própria marca uma

forma de atuação ampla e complexa, justamente por contemplar o lúdico, a prática e a

estratégia. Os jogos dialogam com os seus apreciadores e têm uma marca efetiva ao se

fazer presente na sociedade. Analisaremos, adiante, os jogos corporativos no formato

digital. Todavia, para entender como os jogos, em geral, vão de forma avassaladora

cobrindo todas as camadas e nichos sociais, cabe realizarmos uma breve

contextualização.

Uma recente reportagem da Veja trouxe dados numéricos importantes para

demonstrar a amplitude da presença dos jogos no Brasil e no mundo. Segundo a

matéria,

embora incipiente, há um claro avanço de empresas nacionais sobre o mercado mundial de jogos eletrônicos, que movimenta 42 bilhões de dólares por ano em todo o mundo – no ramo do entretenimento, só perde para o cinema, com receita anual de 90 bilhões de dólares. Pesquisa realizada pela Associação Brasileira das Desenvolvedoras de Jogos Eletrônicos (Abragames), que reúne 42 companhias, indica que a produção nesse setor cresceu 14% no Brasil no ano passado. O faturamento passou de 76,7 milhões de reais, em 2007, para 87,4 milhões, em 2008. (MANFRIN, 2009)

Para atingir este lucrativo resultado os jogos se desenvolveram de forma rápida e

diversificada. Neste miolo, foi no desenrolar do século XX que teve início a história dos

jogos simuladores, sendo eles a marca da origem dos jogos de estratégia utilizados pelas

empresas. Vejamos:

Em 1947, foi desenvolvido um simulador de lançamento de mísseis e mais tarde

simuladores de vôo, como por exemplo, o American’s Army.

No jogo America’s Army (U.S. Army), soldados recrutados vivenciam as

regras do exército passando por diversas missões que envolvem os sete valores centrais

2 No capítulo I abordaremos qual é o nosso entendimento sobre o termo ‘Jogos de Negócio’ nesta pesquisa.

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do exército americano: lealdade, dever (ou obediência), respeito, serviço abnegado,

honra, integridade e coragem.

A década de 1950 foi marcada por projetos destinados a treinamentos de guerra,

estimulando o estudo de modelos complexos e a pesquisa sobre a vantagem de modelar

um ambiente semelhante à realidade. Na mesma década, Jay Forrester do MIT -

Massachusetts Institute of Technology - estruturou um modelo de dinâmica de sistemas

e se tornou um dos precursores deste conceito. Seus primeiros estudos destinavam-se à

estruturação da visão sistêmica de um trabalho realizado por gestores da GE – General

Electric. A partir de 1958, os jogos de negócio se voltaram para práticas de gestão e na

década de 1960, o Jogo da Cerveja, ainda hoje um dos ícones dos chamados jogos

simuladores de negócio, foi desenhado para simular a complexidade de uma cadeia de

produção, mais especificamente de supply-chain. O entendimento da relação entre

fábrica, distribuidor, atacadista e varejista é crucial para se sair bem no jogo.

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Imagens do Beer game retiradas do site http://www.beergame.org/software/screenshots

Os jogos de entretenimento, por sua vez, chegaram com novas abordagens e, na

década de 1980 asseguraram o aparecimento do conceito de herói e do sujeito

desacreditado que consegue vencer as dificuldades, dados os clássicos Super Mario da

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Nintendo e Alex Kidd do Master System, sem falar do Pac-man com sucesso garantido

pela suposta pergunta “Você tem fome de que?”, cuja característica era a de unir

simplicidade com foco total.

Na década de 1990, iniciou-se o desenvolvimento de jogos 3D e, de 2000 até

hoje, a tecnologia está a todo vapor e os game designers ganham mais espaço para

desenvolver jogos como The Sims, Spore, ou mesmo Wii Sports, até estratégias de

advergames para mobile, como o Papercraft. A importância da cultura do jogo é

revigorada, como apontam Santaella e Feitosa na introdução do livro Mapa do Jogo

(2009), quando em 2004 a Abragames foi fundada, e mais tarde, em 2008, a Academia

Européia de Games.

Em junho de 2009, o Caderno Link do Jornal O Estado de S. Paulo (2009) editou

uma matéria relacionada à amplitude que os jogos estavam tomando, incluindo o nosso

ponto-chave: os jogos de negócio. No mês seguinte, o Itaú Cultural, com a mostra

”Gameplay: uma conversa entre sistemas”, procurou abordar as diferentes formas com

que o jogador é levado a interagir com outros jogadores e com o próprio ambiente.

Usando a mão, a voz ou todo o corpo, a experiência do jogador é delineada dentro do

chamado gameplay. Tudo se passa em nome da diversão: necessidade ímpar de gozar a

vida.

Todo esse desenrolar garante reflexões acerca dos jogos de negócio hoje

desenvolvidos, em especial no que tange a estratégias visuais mais elaboradas,

narrativas contextualizadoras, interfaces diferenciadas e aplicação multiplayer e

blended. Recentemente, Paul Terry, vice-presidente da Novations Group, empresa que

desenha soluções relacionadas à gestão de talentos e geração Y, ministrou uma palestra

na qual associou o aprendizado dentro das corporações à lógica de jogar. Segundo ele,

em ambos, é preciso sustentar o fato de que o indivíduo quer e pode alcançar níveis

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mais complexos de conhecimentos, mas para isso precisa estar engajado e envolto em

desafios, esforços, realizações e conquistas.

Cursos de Administração ou MBA’s - Master of Business Administration -

utilizam jogos simuladores com o intuito de trabalhar as questões mencionadas acima.

Por exemplo, a PUC-SP, em seu programa de MBA, possui um módulo do curso

destinado à aplicação do simulador Capstone. Há 20 anos no mercado e utilizado no

mundo inteiro, o jogo fabricado pela BankRisc Consultoria e Treinamento permite a

visualização sistêmica entre diversas áreas: Pesquisa e Desenvolvimento, Marketing,

Finanças, Recursos Humanos e Operação. O jogador precisa pensar a longo prazo e

desenhar a melhor estratégia para a administração de uma empresa cujo produto são

sensores eletrônicos.

Permeando o desenvolvimento dos jogos, a mudança de paradigma sofrida pelas

empresas transformaram-nas hoje em pólos de inovação, gestão do conhecimento e

sustentabilidade de seus negócios. A ação inteligente dos colaboradores corrobora para

a sobrevivência das corporações que demandam cada vez mais pessoas capazes de

resolver problemas, de pensar as relações das relações de causa e efeito, e de enxergar o

formato sistêmico em que uma ação seguirá por uma grande cadeia, entendendo como

seu entrelaçamento sofrerá modificações constantes, apontando e reestruturando a

estratégia da empresa.

Em 2000, John D. Sterman discutiu “the skills required to develop your systems

thinking capabilities, how to create an effective learning process in dynamically

complex systems, and how to use system dynamics in organizations to adress important

problems”. (STERMAN, 2000, p. 5)

Com isso, ficamos diante da seguinte questão: o acolhimento de uma ideia, a

opinião pró-ativa, a crítica construtiva, a postura condizente, a maneira de se expressar

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positivamente, a permanência na empresa e o gosto pelo trabalho são itens capciosos

que possuem relação direta com o nó formado entre colaborador e empresa. Mais ainda,

com a compreensão do por que ser metaforicamente um nó e não um ponto e do motivo

pelo qual existem muitos outros nós. Trabalhar com meios capazes de tirar as pessoas

de um ‘estado normal’ de consciência e provocar uma tensão na rede de nós é o papel

dos programas de formação das empresas, que têm o intuito de fortalecer ainda mais

suas articulações para assim garantir a sustentabilidade de seu negócio na

historicamente chamada “era do conhecimento”.

O ponto que gostaríamos de colocar remete ao olhar do jogo como um desses

meios, agradando-nos a mixagem deles nas práticas cotidianas das corporações e

caminhando ao encontro da necessidade dos programas de educação corporativa se

repensarem, ampliando o leque de análise de como, atualmente, constrói-se um saber.

Trabalharemos, assim, com o fato de que os jogos de negócio digitais, em geral,

possuem três características fundamentais: visão estratégica, pensamento sistêmico e

reflexão sobre a ação. Esta pesquisa pretende elaborar o pensamento de que uma das

formas de as empresas fomentarem esses três pilares é justamente trabalhar com jogos

em seus programas de formação, uma vez que, neles, a posição dos sujeitos envolvidos

é regida rumo à adoção de estruturas cognitivas e perceptivas diferenciadas, assim como

de atos intensos de observação e de experiência. Os colaboradores/jogadores, ao se

fazerem presentes, combinam suas ações com os seus próprios valores e isso significa

trazer consigo a força de sua identidade, pensamentos e aspirações. Nesse contexto, o

jogo pode ser capaz de promover relações de antagonismos para os jogadores: prazer e

desprazer; abertura e fechamento; individualidade e grupo; amor e ódio, reprodução e

criatividade, introspecção e exteriorização, rigidez e fluidez, atribuindo assim uma

necessidade de interpretação e leitura de um ambiente a ser descoberto.

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Segundo o psicanalista britânico Donald Woods Winnicott (1896-1971), ao lidar

com relações como essas, o sujeito desenha a forma como o seu interior e seu exterior

dialogam, além disso, o estilo do desenho ajuda a determinar o psiquismo de cada um,

responsável por um viver equilibrado e consciente e pela forma de ser e estar no mundo.

O autor discorre ainda sobre o conceito de “espaço potencial”: aquele que existe entre o

sujeito e a realidade que o cerca, iniciando-se com a relação entre a mãe e o bebê, e

expandindo-se para a interface entre indivíduo e a sociedade. Indo além, o “espaço

potencial” corresponde a uma zona intermediária entre interior e exterior. Esse espaço

psíquico, livre de distância e tempo, permeia tanto a forma do sujeito perceber o

ambiente, a fim de obter um equilíbrio emocional, quanto a forma como o ambiente se

apresenta para ele. Nele, a vida é experimentada por meio de fenômenos transicionais

responsáveis por criar a ponte entre a ilusão - o não conhecimento sobre o objeto

externo - e a aceitação desse mesmo objeto, que nada mais é do que a realidade externa

a ser partilhada.

No início do século XXI, o pesquisador francês Jean Biarnès (2000) utilizou esse

mesmo conceito e ressaltou a importância do papel do professor mediando a interação

dos alunos com o aprendizado. Segundo o autor, os momentos de presença e ausência

do professor devem ser pensados como uma estratégia para a formação de sujeitos

singulares, capazes de perceber e conviver com a diversidade social.

Por sua vez, a pesquisadora Janet H. Murray (2003), que trabalhou com esses

mesmos conceitos analisando a narrativa no ciberespaço, disse:

[...] Para o bebê, o brinquedo ocupa uma posição psicológica ricamente ambígua, algo cintilante de emoção mas que, definitivamente, não é uma ilusão. Uma boa história tem a mesma função para os adultos, oferecendo-nos a segurança de alguma coisa exterior a nós mesmos sobre a qual podemos projetar nossos sentimentos. As histórias evocam nossos desejos e medos mais profundos, pois fazem parte dessa mágica região de fronteira. (MURRAY, 2003, p. 103)

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Com o objetivo de abordar o desenvolvimento intelectual sobre esse assunto,

esta pesquisa analisará o desabrochar dos “espaços de criação” (WINNICOTT, 1975),

cuja raiz é o “espaço potencial”. Em linhas gerais, pode-se entender que o “espaço

potencial” se refere à inter-área relacional entre interior e exterior e todos os

antagonismos que navegam por ela. O “espaço de criação”, por sua vez, é justamente a

passagem de uma interpretação de mundo passiva para uma observação e leitura crítica

e participativa, advindas de um conhecimento de si próprio e de um equilíbrio

emocional estruturado, sendo estes os resultados primários da relação com o “espaço

potencial” nos primeiros anos de vida dos seres humanos. Dessa forma, na dança entre o

previsto e o novo desenvolve-se a criatividade psíquica, muito bem descrita por Sonia

Parente (2007):

[...] Esta se refere ao desenvolvimento da capacidade de formar símbolos e encontrar formas de expressão por meio das próprias idéias, no diálogo com o mundo de realidade compartilhada. É o colorido dado pela maneira pessoal de apreender a realidade externa, devido ao processo de apercepção criativa, que organizará, até mesmo, a capacidade de perceber o que será, posteriormente, a externalidade do mundo. (PARENTE, 2007, p. 415).

O jogo será aqui estudado como um possível “espaço de criação”, haja vista a

chance dos colaboradores de trabalharem com formas próprias de expressão,

possibilitando a emergência da criatividade. O ato de criação se justifica dada a

continuidade existente entre conhecer a sua própria identidade e ter criticidade para

analisar e/ou criar algo, compreendendo o sentido de suas ações para o mundo e para si

mesmo. No decorrer deste estudo, vamos defender a ideia de que o jogo de negócio

caracteriza-se como um “espaço de criação” por ser um meio no qual as pessoas se

apropriam de um contexto para fins múltiplos e percebem a si mesmas dentro desse

contexto. O colaborador será jogador e colaborador; sua forma de ver, de pensar e de

agir serão exteriorizadas. O jogo permitirá um exercício cognitivo e a chance de

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vivenciar uma experiência significativa, contextualizada. O jogador estará em situação,

indagando, alcançando objetivos e também brincando.

Seja em programas de educação, na construção de narrativas on-line instigantes,

em programas de formação dentro das empresas, quem se faz presente são as pessoas.

Indivíduos que possuem um corpo capaz de perceber o mundo e têm sentimentos

antagônicos e ao mesmo tempo complementares; pessoas capazes de ler diferentes tipos

de cenários. Elas se emocionam ao ouvir a música de Nina Simone e ao ver a

coreografia de Ivaldo Bertazzo; elas desejam o proibido, convivem com o permitido e

buscam aquilo que lhes faz sentido. Cremos que o jogo de negócio tende a fazer com

que elas vejam uma situação e reflitam sobre a sua complexidade, retornando para si.

Formamos uma rede de relações. As empresas, para sobreviver no mercado

competitivo atual, precisam de colaboradores dotados de visão critica e sistêmica sobre

as suas ações e capazes de manter sua integridade e de se conhecer como indivíduos. As

gerações que chegam transbordam tecnologia e, por conseguinte, incorporam os jogos,

já que há uma grande velocidade no surgimento de novas ferramentas e uma forte

presença da cultura dos jogos. Os programas de formação precisam ser continuados e

devem trabalhar reflexão, formação e prática avançada em busca de satisfação, inovação

e pesquisa. O jogo de negócio, por mais sério que possa parecer, acorda o brincar,

relembra a criança, traz o lúdico, multiplica desafios nas telas do computador e faz da

tecnologia o seu disseminador. Nosso olhar recai sobre o fato de que sempre será

preciso sair do jogo e olhar o mundo.

O trabalho aqui apresentado busca a relação entre o humano, sua procura

incessante de entendimento do meio externo e os inúmeros sentidos que isto gera; os

programas de formação das empresas, responsáveis por entender que dentro delas há

este humano; e os jogos, nosso fantasioso “espaço de criação”.

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Os nomes dos capítulos formam o metajogo da estrutura deste trabalho. O

capítulo 1, Aplicação, refere-se ao local no qual nosso objeto de estudo, os jogos de

negócio digitais, pode ser implantado. Discorreremos sobre o contexto atual das

empresas, examinando sucintamente seu espaço e suas relações de poder e de saber.

Contextualizaremos o desenrolar dos programas de formação e como os jogos de

negócio digitais podem ser vantajosos para eles. Falaremos sobre o nosso entendimento,

sem deixar de apresentar fontes para um estudo mais apurado a respeito da polêmica

discussão sobre a conceituação do termo ‘jogo’. Apresentaremos também suas

principais características e, consequentemente, as condições benéficas para a empresa

em utilizá-los.

No capítulo 2, Peça Principal, apresentaremos o conceito fundamental

responsável por embasar as análises a serem realizadas. Nossa peça principal é o

“espaço de criação”, conceito advindo das mãos de Winnicott. O viés psicanalítico

deste capítulo apresenta a explicação de tal conceito e sua relação com outros de grande

relevância: o “espaço potencial” e os “objetos e fenômenos transicionais”. Queremos

mostrar para o leitor a complexidade dos sujeitos em sua relação consigo mesmos e com

o mundo e como esse intrincamento pode ser equilibrado com a construção de sua

autonomia.

Já no capítulo 3, Regras, apresentaremos as regras do nosso jogo, ou seja, as

abordagens que levam a crer que os jogos de negócio podem se caracterizar como

espaços de criação. Para isso, fomos à busca do que chamamos pistas da manifestação

oculta da criação nos jogos de negócio, sendo elas: a brincadeira, a agonia e a

intencionalidade do sujeito. Por fim, no capítulo 4, Novas versões, faremos os

apontamentos finais sobre os pensamentos esboçados na pesquisa.

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Este estudo tem caráter teórico ao analisar o jogo de negócio como um “espaço

de criação”, apresentando algumas características fundamentais e condizentes com o

novo olhar direcionado para as práticas educativas nas corporações.

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Capítulo 1 – Aplicação

[...] ela se limitava, para tornar às vezes sua vida mais interessante, a introduzir-lhe peripécias

imaginárias, que acompanhava apaixonadamente. Marcel Proust

Um ponto primeiro que se coloca é a prestigiada complexidade da relação entre

empresa e colaborador e seu sistema intrincado no qual cada parte tem a sua

peculiaridade. Quando muitos classificam tal relação como fechada, vertical, racional e

formatada – para citarmos apenas alguns pontos – um equívoco aparece, já que há algo

a mais: há o aberto, o irracional, o horizontal e o desformatado. Não obstante, a forma

rígida se evapora e, finalmente, alcança o complexo, sua razão primeira. O aclamado

fruto desta relação: a harmonia, o seu deleite: as relações de saber e de poder.

Atualmente, vivemos uma etapa da história que, segundo Pierre Levy (1999),

corresponde à globalização concreta das sociedades, que inventa um universal

totalizante. Isso significa que a humanidade, cuja existência e sabedoria perpassa todas

as ações relacionadas ao ser e estar no mundo, vive em conjunto com a total diversidade

produzida por ela mesma. Não obstante, a produção humana nos espaços corporativos

caminha atravessando essa diversidade e traduz a multiplicidade de nós possíveis de

serem construídos. Cabe a cada um aceitar o desafio, sempre à disposição, de sair do

pensamento inerte e transformar o dito “normal”, compreendendo, inclusive, a

importância do seu papel diante do cenário empresarial no qual se encontra.

A troca diária e o saber compartilhado presenteiam a empresa com a

multiplicação dos sentidos. O que é entendível por um, passa para o outro, que não

necessariamente precisa aceitar, mas deve ter a sabedoria de ouvir e desenvolver as suas

convicções sobre o assunto. Claro que tudo depende de quem fala o quê, para quem e

em qual situação. Ainda assim, a linguagem nos une e transforma nossos pensamentos

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em gestos, imagens e palavras. Apesar da não-fala ser uma importante fala, a linguagem

ainda assim será responsável por explicá-la. Isso nos leva a tomar

o gesto como um performar em que o percebido busca uma forma de completude, em que o perceber se completa no fazer incessante de mundo, a fala de algum modo continua e completa a tarefa da percepção, realizando-a como significação, tomada de posição e partilha. (BASBAUM, 2009 p.16, grifo do autor)

Para fortificar a troca dos saberes enaltecida pela linguagem criam-se laços de

confiança, por vezes frouxos em virtude da imposição de relações de poder audaciosas,

desestruturantes da nossa cômoda função. Dentro do modelo disciplinar empresarial, as

manifestações dos colaboradores virão a partir do momento em que eles se sintam

entretidos e engajados em situações nas quais sua participação faz sentido. Nossa fala

passa a ser o resultado de uma exposição cuja origem é a reflexão. Acabamos nos

aproximando da “estrutura estruturante” de Bourdieu (1972), aquela capaz de mexer

conjuntamente com a espontaneidade e a liberdade, com a razão e a pulsão. Segundo

Perrenoud (2001), “nosso habitus3 é constituído pelo conjunto de nossos esquemas de

percepção, de avaliação, de pensamento e de ação. Graças a essa ‘estrutura estruturante’

somos capazes de enfrentar, ao preço de acomodações menores, uma grande diversidade

de situações cotidianas” (p. 162). Com isso, notemos, a ação final do colaborador,

prática de seu trabalho cotidiano, abarca uma predisposição para se movimentar rumo à

verbalização e divisão dos pensamentos e das ideias cuja origem é a forma de perceber

do sujeito. Sendo assim, nesta ação sempre se colocará a incerteza e a empresa precisa

considerar este um fator ativo na sua lógica racional, a do discurso do “erro zero”, para

não afugentar a fala verdadeira de cada colaborador, coerente com quem ele é como

pessoa, cuja única certeza da vida é seu fim.

Entretanto, porque fala, o humano falta ser: está onde é, é onde não está, uma lição que a psicanálise não cansa de repetir e pode ser traduzida poeticamente na dicção de Oswald de Andrade: o ser humano é um animal que vive entre

3 Termo gerado por Tomás de Aquino e, posteriormente utilizado por Bourdieu.

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dois grandes brinquedos: o amor onde tudo ganha e a morte onde tudo perde. Para preencher essa brecha que o descarna, inventou o canto, a dança, o teatro, o circo, o jogo, as artes, a literatura, o cinema, a televisão etc. (SANTAELLA, 2007, p. 406)

Levemos em conta os quesitos: intenção, desejos e necessidades. Diante deles,

cabe o cuidado para que a falta de sincronia entre o que pensa o colaborador e o que

pensa a empresa não seja tratada de maneira punitiva. Acreditamos que, em qualquer

relação humana, esse tipo de tratamento gerará a revolta, a renúncia, por uma simples

questão de dignidade. Foucault, brilhantemente, nos fala das conseqüências de um

modelo disciplinar impositivo e autoritário capaz de gerar os conhecidos “corpos dóceis

e mentes desobedientes”.

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ´mecânica de poder´, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre os corpos dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos e obediência) (FOUCAULT, 1987, p. 119)

Se as empresas antes definiam a sua estratégia e precisavam de “funcionários”,

cujo vínculo maior estava nos trabalhos automáticos, demandando força, pontualidade e

rapidez, hoje, em sua maioria, elas precisam de colaboradores – o que não desconsidera

os pontos acima, mas os reestruturam numa outra lógica – e esses colaboradores devem

ser ouvidos, pois é na mente coletiva dessas pessoas que estarão os segredos do

negócio. Nesse sentido, também não são mais eficientes modelos de vigia com o

raciocínio do Panopticon de Benthan, que se baseava numa estrutura espacial

organizada de tal forma que as pessoas se sentiam vigiadas sem nem mesmo ter a

certeza de que alguém o fazia.

Tudo isso mexe nas políticas dentro da empresa, as quais precisam equilibrar a

disciplina, dada a regulação normativa das corporações, o poder, dado o fato de que

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todas as relações são relações de poder (como nos indica Foucault), o acaso e o

irracional, dado o fato de o saber ser sempre o desenho de um observador e as pessoas,

dada a sua complexidade. E por meio desse equilíbrio, o lugar de trabalho ocupará um

espaço na vida das pessoas. O lugar é fisicamente conhecido por todos e sua

organização possui uma simbologia própria; cada objeto tem sua localização e em seu

formato denota as relações de parceria e de poder existentes. Já o espaço que ele ocupa

possui a maleabilidade das intenções do diverso. Diversidade marcada tanto pela

quantidade de pessoas, quanto pelo volume de intenções de cada uma delas. “O

indivíduo com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de

uma relação de poder que se exerce sobre os corpos, multiplicidades, movimentos,

desejos, forças”. (FOUCAULT, 1979, p. 161-162)

Diante dos numerosos vínculos existentes entre colaborador e empresa, temos

em comum o fato de que todos, inegavelmente, precisam se esforçar para que o viver

fique mais tênue. Os terapeutas, psicólogos, psicanalistas podem listar a quantidade de

pessoas com 50 anos que chegam a um consultório achando que “perderam” grande

parte da vida, pois só trabalharam. No imediatismo da nossa sociedade o prazer está em

todo lugar, vamos desconsiderar uma análise maior dos resultados de tamanho

imediatismo e nos limitar a falar de uma de suas consequências: o trabalho também é

buscado como fonte de prazer. Como o futuro tornou-se as sensações do agora, as

pessoas, em sua maioria, querem gostar do que fazem, trabalhando com algo que, em

alguma instância da vida, as satisfaçam e lhes acrescente algo. Para as empresas, isso

indica um movimento interdependente: ao mesmo tempo em que o colaborador se doa,

ele quer algum tipo de retorno.

Na fase de desenvolvimento humano, o homem passa a ser visto como sujeito do desenvolvimento político, econômico e social. Dessa forma, resgata-se a dimensão afetiva da relação indivíduo-trabalho, dando espaço para a criatividade, autonomia profissional e interdependência, ação reflexiva e

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crítica, consenso e dissenso, espontaneidade e flexibilidade. (TONET; MOTA, 2006, p.541)

Uma vez na empresa, os saberes dos colaboradores ajudam a formatar

impressões e a garantir a sustentabilidade da organização. São comuns os dizeres sobre

as corporações a respeito de flexibilidade, adaptabilidade e inovação, isso porque a

criticidade do consumidor está mais apurada; ele quer cada vez mais produtos

personalizados. A empresa precisa pensar, diante de tantas alternativas, sobre o que

levaria o consumidor a buscar o seu serviço. A competitividade aumenta a sua força e as

corporações se adaptam às alterações de hábitos, às crises financeiras, flexibilizam

acordos e contratos e criam áreas de P&D – Pesquisa e Desenvolvimento.

Para tanto, suas bases são revigoradas com processos bem definidos - a gestão

de áreas perde espaço para a gestão de processos e o termo inter-áreas se concretiza

realmente; com estratégias claras - todos precisam acolher a ideia do caminho que a

empresa quer traçar; com recursos tecnológicos - os aparatos digitais cumprem muito

bem o papel de gerenciamento de dados, mesmo porque esse foi um dos motivos da sua

origem; e com colaboradores qualificados - como bem coloca Beck e Wade, autores

do clássico Got Game, “pessoas que diante das incertezas do nosso mundo precisam

realizar uma análise complexa dos fatos para que tenham mais chances de tomar

decisões assertivas pensando nos impactos e nas suas relações sistêmicas.” (MICHAEL;

CHEN, 2005, p.150)

Diante desta composição básica, justifica-se o direcionamento das pesquisas

recentes a respeito da cultura empresarial no sentido do pensamento de Howard (1995):

[...] apesar de sua inegável heterogeneidade, as transformações têm tornado o trabalho,

de uma forma geral, mais complexo, mais cognitivo, mais fluído, mais invisível, com

maior incerteza e interligado. (apud BASTOS, 2006, p.27)

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Esse modo de pensar a organização aparece sutilmente nas ações, pensamentos e

formas de expressão dos colaboradores a respeito do seu trabalho. Sem demagogias, o

elo entre colaborador e empresa abarca, em uma ponta, o entendimento e o abraçar de

sua “Missão, Visão e Valores”, ultrapassa o conhecimento técnico sobre o trabalho e

alcança o motivo que leva cada colaborador a fazer daquele o trabalho da sua vida.

Mesmo que seja num intervalo de tempo, ainda assim esse “delta T” será uma parte do

vivido. Vivido escolhido? É preciso refletir mais sobre o quanto é uma escolha ou não a

pessoa estar lá, ou mesmo o quanto é incoerente essa própria dualidade, já que sempre

seria uma escolha da própria pessoa.

A empresa precisa levar em conta que, ao estarmos no mundo e assimilarmos

que temos uma vida, faremos escolhas e percorreremos diversos patamares de

pensamentos: “o que estamos fazendo da vida? Por que trabalhamos naquela empresa?

O que nos agregam nossas atividades diárias? O que nos faz responder A ao invés de B

em um e-mail corporativo?” Temos assim a outra ponta, traduzida por: quem é esse

sujeito, o que ele quer, o que queremos para ele e por quê? Obviamente as pontas

desfazem qualquer forma longínqua e se unem no grafismo abstrato representante da

complexidade do ser e da instituição. Como a educação corporativa trabalhará com tal

complexidade? Podemos adicionar uma afirmação de Zabala (2002) para provocar a

questão: “o modo como se produzem as aprendizagens é resultado de processos que

sempre são singulares e pessoais.” Ainda mais, para Zarifian (1999), “o desafio é fazer

com que a organização seja não apenas qualificada e competitiva, mas também

“qualificante”, no sentido de oferecer diversas oportunidades de crescimento de seus

membros”. (apud FREITAS; BRANDÃO, 2006, p.101).

Será grande o debate e muitos outros autores poderiam ser citados, entretanto

não é nosso objetivo responder a esta pergunta. O que queremos é provocar e chamar a

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atenção para um ponto crucial: os programas de formação, em geral, colhem

necessidades de cursos sem conhecer quem são aquelas pessoas e sem escutar delas o

que elas querem.

Qualquer programa de formação precisa ir além de dados numéricos de nota

e/ou dos chamados “gaps de conhecimento”. Não iremos discorrer sobre o meio

acadêmico, mas cabem duas reflexões: o melhor aluno é aquele que tira a melhor nota?

Somente o professor pode definir que temas sua turma vai abordar? Na empresa mais do

que a definição do gestor, do RH4, ressalta-se a participação de cada colaborador não

apenas respondendo a uma avaliação de reação, mas opinando sobre o processo ou

atividade pontual da sua própria formação. Um fato comum para quem trabalha no setor

corporativo é o colaborador receber um aviso informando que naquela semana ele

precisa fazer determinado curso. Sem contexto, em geral, ele finaliza o curso e segue o

seu trabalho, vendo pouca relação entre eles ou mesmo não encontrando formas de

aplicação.

As mudanças atuais sofridas pelas organizações nos modelos de seus cursos vêm

ao encontro da criação de sentido para o colaborador e o intuito de agregar valor para

ele e para o seu trabalho. Torna-se cada vez maior a necessidade de buscar um

desenvolvimento cognitivo diferenciado para um perfil de corporação e de

colaboradores também diferenciado. Empresas movidas por inteligência, gestão de

pessoas, inovação, controle de qualidade, visão estratégica e resultado. Pessoas movidas

por desafios, trocas de experiências, formação, informação, valores e satisfação.

Levando isso em conta, consideramos válido discutirmos um pouco os principais

modelos de cursos, analisando com mais afinco aqueles mediados pela tecnologia.

4 Recursos Humanos.

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Partiu-se do curso presencial, massivamente estruturado em uma apresentação

de slides projetada para o público. As discussões eram feitas em cima da quantidade e

do tipo de informação que a projeção mostrava. A projeção deveria conter todo o

conteúdo ou era apenas um norteador da fala? Qual o uso mais adequado daquela mídia

digital que se tinha à disposição?

Com o advento de novas tecnologias, primeiramente, se analisavam as vantagens

financeiras e a reflexão sobre o uso da mídia ficava em segundo plano. O e-learning5 e

as plataformas de LMS - Learning Management System chegam com força trazendo:

redução de custo, maior uniformidade na passagem de informação e controle dos

colaboradores. As empresas ganharam uma figura premiada por ser mais barata que

cursos presenciais, conseguindo um alcance mais rápido de informação para uma

quantidade maior de pessoas e gerando em questão de minutos uma série de relatórios

recheados de dados como: em que momento do curso o colaborador parou, quantas e

quais questões ele acertou, quanto tempo ele levou para concluir, que dia e horário ele

finalizou. Com o e-learning, os colaboradores não precisam sair das suas estações de

trabalho e têm mais tempo destinado à realização de sua função.

A década de 1990 foi o seu ápice e rapidamente as poucas empresas

fornecedoras de e-learning, aquelas formadas para desenvolver os chamados cursos on-

line, começaram a se estruturar para atender a enorme demanda que vinha das grandes

corporações. As vantagens se mostraram interessantes, mas as críticas também vieram.

Cabe ressaltar algumas delas:

- Independentemente do objetivo ou mesmo do tipo de conteúdo, seja algo mais

informativo, formativo, comportamental etc., o que se criou foram cursos parecidos com

5 “E-learning is the use of infomation and computer technologies to create learning experiences.” (HORTON, 2006, p. 1)

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aquelas antigas apresentações de slides, só que com outro tipo de interação: o aluno

clica para que o texto apareça;

- Caíamos numa forma passiva de receber a informação, as estratégias pedagógicas

praticamente inexistiam, as empresas passaram a desenvolver o que chamaram de

“fábricas de conteúdo”, desconsiderando a estrutura didática e compensando-a com

recursos visuais arrasadores;

- Os profissionais desenvolvedores dos roteiros correspondiam a uma mão de obra

jovem, muitas vezes despreparada para estruturar um curso que precisava atingir um

objetivo e que tinha adultos como público-alvo;

- Em geral, sua estrutura instrucional era linear, parecendo uma reprodução on-line da

estrutura de materiais impressos como livros e apostilas.

Obviamente, a rápida mudança sofrida pelas empresas e o novo perfil de

profissional que se desenhou fez o e-learning se remodelar. Hoje, ele é de grande valia,

em especial, para cursos de cunho informativo. O presencial, a apostila on-line, o livro,

o e-learning começaram a conversar e a ter uma estrutura didática e instrucional

adequada com o formato de cada um. Os cursos on-line passaram a trabalhar mais com

metáforas, stoytelling, história em quadrinhos, estudo de caso e árvore de decisão.

Contudo, mesmo com esse desenvolvimento, algumas brechas permanecem, pois as

empresas precisam cada vez mais de pessoas capazes de tomar decisões rapidamente,

compreendendo o negócio da empresa como um todo. As corporações, para

funcionarem com eficiência, palavra-chave no cotidiano empresarial, precisam que seus

colaboradores entendam que o seu trabalho está interligado com o funcionamento geral

da corporação.

Agora, a questão é fazer com que nesse meio os colaboradores sejam entretidos

e se sintam pertencendo. Nesse ponto, os jogos aparecem como uma solução

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importante. Clarck Aldrich, autor do livro Simulations and the future of learning fala

sobre a estrutura básica do e-learning e como a chegada do game ocorre a partir do

momento em que a empresa precisa prover um meio para que o colaborador esteja

“envolved in what’s being taught, to actively weigh consequences and mull over

decisions.” (apud MICHAEL; CHEN, 2005, p.147)

A escolha de métodos não tradicionais não é feita com muita naturalidade: as

empresas avaliam custos, riscos e a real necessidade da mudança. Collins, fundador da

V3 Entertainment, diz que em geral as empresas não enxergam outras opções de

treinamento, escolhendo o que estão acostumadas, como o livro, o e-learning, o vídeo.

(apud MICHAEL; CHEN, 2005, p.174). Entretanto, cabe atentarmos para uma questão

fundamental na qual acreditamos: um modelo não exclui o outro. Pode-se ter desde

cursos com cunho mais informativo, cujo foco é passar determinada informação, até

cursos de cunho bastante prático e/ou reflexivo. Fundamentalmente, de acordo com o

propósito final que se quer atingir, escolhe-se o meio com cuidado para não haver

discrepâncias, como atingir um propósito de aplicação prática usando como meio um

curso com transmissão pura de informação.

Nesse contexto, a demanda pelo jogo hoje tem crescido, o que é identificado

como um dos possíveis meios utilizados pela empresa em projetos de educação

corporativa. Antes de analisarmos o que as pesquisas apontam sobre vantagens e

características que os jogos podem trazer para as empresas, faremos um breve

parênteses para passar ao leitor o que entendemos por “jogo” nesta pesquisa.6

6 Para aprofundar o conceito de jogo, o autor João Ranhel, no livro Mapa do Jogo, no capítulo, O conceito de jogo e os jogos computacionais, faz uma análise das principais definições de jogo dos seguintes autores: Stewart Culin, Johan Huizinga, Roger Caillois, Bernard Suits, Avedon $ Sutton-Smith, Chris Crowford, David Kelley, Salen & Zimmerman, Juul. No livro Estéticas Tecnológicas: novos modos de sentir, no capítulo Games e interatividade: em busca da felicidade, Romero Tori aponta alguns dos principais aspectos que os conceitos de jogo carregam consigo. Por fim, autores americanos que trabalham mais especificamente com business games são: Clarck Abt, Marck Prensky, Clarck Aldrich, John Beck a Mitchell Wade.

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Consideramos o jogo de negócio digital como a representação de um cenário

computadorizado, lúdico ou não, capaz de apresentar, em diferentes níveis, os

seguintes aspectos: experiência situacional, pensamento sistêmico e tomada de

decisão. Em linhas gerais, o primeiro item refere-se à ideia de o colaborador ser

colocado em situação, apresentando um objetivo atrelado a um desafio e a uma

jogabilidade imersiva e carismática. O segundo refere-se à presença das relações de

causa e efeito apresentadas no gameplay e o terceiro à visão estratégica e crítica do

jogador para julgar as ações mais adequadas.

É valioso citarmos algumas definições que se aproximam e/ou complementam

esta nossa opinião.

Para Juul (2003): “O jogo é um sistema formal baseado em regras, com

resultado variável e quantificável, no qual diferentes resultados são atribuídos por

diferentes valores, o jogador empenha esforço a fim de influenciar o resultado, o

jogador sente-se vinculado, e as consequências da atividade são opcionais e

negociáveis”. (apud SANTAELLA; FEITOSA, 2009, p.12)

Esta definição nos chama a atenção sobre a questão da atribuição de valores para

as ações do jogador e do cruzamento determinante dos diversos finais possíveis. Essa

calibragem de dados também está diretamente relacionada aos desafios presentes no

desenrolar do jogo e é um fator de suma importância nos jogos de negócio.

Pensemos agora em uma das categorias de jogo de Caillois, o Mimicry. Ela faz

com que os jogadores representem, se coloquem no lugar e interpretem. Esses

indivíduos/jogadores interagem em um ambiente que une a paidia com o ludus

(CAILLOIS, 2001) e reforça o caráter de espaço transicional dos jogos de negócio.

“Mimicry geralmente consiste na representação de um personagem ilusório e na adoção

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de seu respectivo comportamento. Esta categoria acontece em razão da ilusão

temporária que é capaz de criar”. (SANTAELLA; FEITOSA, 2009, p.7)

Já a colocação a seguir de David Michael e Sande Chen considera o fato de que

entretenimento e educação podem conviver num jogo, contudo a ideia de que é preciso

alcançar um objetivo didático não pode ser esquecida em prol de uma mecânica focada

em entretenimento: “A simple explanation that many profissionals use in this field, with

some reservations and qualifications, is: a serious game is a game in which education

(in its various forms) is the primary goal, rather than entertainment”. (MICHAEL;

CHEN, 2005, p.17)

Por fim, um conceito recente, de 2003, já enraizado numa cultura mais

tecnológica define jogo como: “um sistema no qual jogadores engajam-se em um

conflito artificial, definido por regras, que resultam em um resultado quantificável”.

(SALEN; ZIMMERMAN, 2003, p.96)

Não iremos adentrar a discussão sobre o conceito de jogo, contudo, além de

passar nosso entendimento e classificar algumas definições que se aproximam dele,

consideramos válido citar duas polêmicas discussões a respeito de os jogos de negócio

terem ou não caráter de divertimento e serem ou não uma atividade voluntária. De

forma geral, cremos que para que, um jogo seja visto como tal, não podemos analisar

características pontualmente, já que é um conjunto de elementos que o forma.

Especificamente sobre o divertimento, queremos chamar a atenção para o termo

carisma. O jogo não precisa ser engraçado ou voltado para o entretenimento para ser

divertido. Apostamos na palavra “carisma” para falarmos desse atributo de ‘bem estar’

artisticamente delineado pelo game design e suas estratégias. Sabemos o quão difícil é

traduzir o entendimento deste termo, da mesma forma como nos mostra o comentário de

Michael e Chen sobre o termo “fun’: “There are some people who will take expectation

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to this definition because it contains no references to ‘fun’. However, ‘fun’ is not an

ingredient or something you put in. Fun is a result.” (MICHAEL; CHEN, 2005, p.20).

Mesmo assim, consideramos o fato de que todo jogo precisa ter carisma.

Uma das clássicas características do jogo de Huizinga7 é ele ser uma atividade

livre. Porém, no caso das empresas, de modo geral, eles são obrigatórios. Como se

resolve esse paradoxo? Ao voltamos à questão de não nos restringirmos a um único

fator. Todavia, vemos duas formas desse ponto ser minimizado: a empresa ter um portal

de jogos aberto, ou seja, quando julgar necessário o colaborador acessará aquele que lhe

agregará valor; e/ou a obrigatoriedade de se vincular ao jogo que precisa ser jogado e o

período de tempo em que ele estará disponível, cabendo ao colaborador escolher a data

e horário que ele julgar apropriados para a realização.

Enfim, como dissemos, não queremos conceber uma nova definição de jogo.

Para isso, seria necessária uma grande e profunda análise das teorias já desenvolvidas.

Todavia, é importante que o leitor compreenda o nosso pensamento quando citamos

“jogo de negócio digital” e nossa opinião pontual sobre temas que consideramos

polêmicos e vinculados a respeito deste termo. Dessa forma, fechamos os parênteses

para prosseguir mediante o levantamento de algumas características dos jogos e/ou

benefícios que podem agregar valor aos projetos de educação corporativa.

1. Acelerar sem medo

Imagine a seguinte situação: você está andando de carro em alta velocidade e de

repente se depara com uma curva. Chove bastante e você terá que passar por ela. Na

curva, o carro começa a derrapar... O que fazer? Seu primeiro impulso, certamente, seria

7 Huizinga foi o pioneiro a definir jogos, seu nome é conhecido por pessoas de diversos perfis. Para o autor, “o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”. (1995, p.33)

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pisar no breque para tentar parar o carro, contudo, poucas pessoas sabem que o indicado

é acelerar. Num jogo, é possível vivenciar, mesmo que em baixa escala, as

consequências do breque e da aceleração, sentindo a reação do ambiente em cada uma

das opções de forma bem diferente do que seria se fossem passadas as leis físicas sem

contexto algum. Acelerar e com gosto! O jogo de negócio diferencia-se dos outros

formatos por revelar um conhecimento em ação e sobre a ação, mexendo com o

repertório do jogador e aguçando a sua curiosidade para o que lhe for desconhecido.

O “aprender fazendo” é um dos argumentos mais utilizados relacionado à

potencialidade de se ter um desenvolvimento cognitivo diferenciado por meio dos

jogos, todavia queremos juntar nesse discurso o significado da vivência. No jogo, os

desafios fazem com que os colaboradores identifiquem problemas e busquem solucioná-

los, dada a sua autonomia de tomar decisões e de manipular os dados, e como em sua

maioria o público é adulto, eles fazem escolhas com base em um repertório, carregando

consigo suas histórias de vida e visões de mundo, buscando atribuir um significado para

aquilo que são chamados a participar. Por isso, nossa proposta é caminhar para além da

contenda prática e tencionar no jogo o lado de uma experiência do sentido.

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo. (BONDIA, 2002, p. 27)

Caso aguçássemos essa tensão, atingir o “ensino voltado para a intervenção na

realidade” (ZABALA, 2002) poderia se concretizar. O jogo ajudaria nessa composição

disponibilizando um desafio dentro de um contexto, uma ambientação própria e

diversas influências de ações que fazem com que nenhuma escolha passe despercebida.

O jogador procurará, assim, coisas que criem um sentido para a sua permanência.

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Assim, deslocam-se as preocupações do o que ensinar para o como ensinar. Essa mudança implica em uma seleção de conteúdos feita a partir da compreensão do como as pessoas percebem a realidade, bem como dos aspectos da motivação e do interesse pelo que têm de aprender. (ZABALA, 2002)

2. Arriscar: “não sei por que, mas vou por aqui”

O pesquisador Jorge Albuquerque Vieira, no curso Metodologia da Pesquisa,

ministrado na PUC-SP no primeiro semestre de 2009, menciona a história de dois

alunos da época em que era Coordenador do curso de Física Quântica no RJ. Na sala,

eles eram os únicos alunos e sua postura diante do que estavam construindo junto ao

professor se dividia da seguinte forma: um deles, falante, opinava e discutia mais

enfaticamente; o outro ouvia durante um período considerável a discussão dos dois e,

pontualmente, dizia, sem geralmente expor algum tipo de argumento: “não podemos ir

por ai” ou “vamos seguir” ou “estamos nos esquecendo de alguma coisa”. O outro aluno

e o professor levavam em conta o comentário feito e, por vezes, acabavam descobrindo

que o colega tinha razão. Onde queremos chegar com esse caso? Quantas vezes nos

deparamos com situações em que não sabemos os motivos, mas ainda assim

acreditamos que aquele é, ou não, o caminho que devemos seguir, a escolha a ser feita.

Não sabemos explicar por quê, entretanto temos segurança e cremos.

Esta naturalidade vai de encontro com a necessidade constante da justificativa

das ações para que uma ideia seja válida. Aproveitar para ir simplesmente, com menos

riscos, com menos medo e sem se preocupar em formular explicações válidas, é algo

que se pode portar num jogo. E o impacto disso é termos a chance de exteriorizamos

melhor o fator tácito da nossa forma de compreensão.

3. Expor a camada de “eu”jogador

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Duas equipes estão jogando numa mesma sala, mas sem competir uma contra a

outra. No meio do jogo, um colaborador da equipe B pergunta para a equipe A como

eles tinham chegado a uma determinada região do cenário do jogo. Os integrantes se

dividiram; alguns queriam contar e outros não. As opiniões se chocaram com os

próprios perfis dos colaboradores e a outra equipe não foi ajudada. Num outro

momento, dentro da equipe A, uma integrante se manifestou dizendo que não estava

conseguindo ler os desafios e que não poderia ajudar na resolução deles. O restante do

grupo ignorou a colocação e finalizou o jogo sem a participação dela. No final,

justificaram dizendo que, como o tempo de jogo estava quase acabando, e eles estavam

perdendo, não haveria tempo para esperá-la.

Nesses dois casos, nota-se que os ‘mediadores’ de aplicações de jogos de

negócio podem analisar diferentes aspectos do colaborador durante o período em que

ele é ‘jogador’, sendo esta mais uma das diversas camadas descascadas do seu “eu”.

Derradeiramente, como saber onde começa uma e termina a outra? O jogador é aquela

pessoa que como todos teve ou tem uma mãe8 e, atualmente, trabalha como

colaborador na empresa em que realiza um curso, por meio de um jogo, no qual é o

jogador que não deixa de ser uma pessoa. Queremos dizer que

pessoas/colaboradores/jogadores são um mesmo indivíduo, “descascados”, mas ainda

assim o mesmo. Da mesma forma, se pensarmos num encontro de dois rios, não será

possível encontrar o começo e o fim de cada um. “Quem fala ou age? Sempre uma

multiplicidade, mesmo que seja na pessoa que fala ou age. Nós somos todos pequenos

grupos.” (FOUCAULT, 1979, p.70)

Dentro do jogo o colaborador poderá se ver e ver o escondido, criando novas

formas de fazer o que já estava acostumado a realizar, ou criando algo novo. Tudo isso

8 No sentido de ter uma origem elástica: uma vez esticada acomete nossa história de vida e nos acomete.

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ocorre de forma explicita e implícita, ou seja, algumas mudanças e reflexões ocorrem

nas ações diretas dos colaboradores, em alguma atitude ou em determinada forma de

pensar, outras vão desequilibrar, mexendo com a percepção do ambiente e da pessoa.

4. Juntar o Deus Cronos com seu filho Kairós

O fato é que a temporalidade dos jogos une pais e filhos. As duas figuras

mitológicas, o Deus Cronos, responsável pelo tempo certeiro, exato, inflexível, pré-

determinado, e seu filho Kairós, responsável por apresentar a fruição, o tempo incerto,

flexível, aberto, interno, determinado pela fome do prazer, garantem a contradição

temporal apresentada na interação das pessoas nos jogos, já que mesmo vivendo no

tempo do relógio, jogar possui um vínculo com um momento de prazer para o

indivíduo.

5. Sair do zoológico e entrar na floresta

Segundo Prensky9 “games can increase the level of engagement of the trainees

so that they want to play the game and they want to learn how to successfully complete

the game.” Complementando, Abt10 diz que os jogos fazem com que os jogadores

resolvam problemas, formulem estratégias e tomem decisões sem as conseqüências e os

erros da vida real. (apud Michael e Chen, 2005, p.176 e p. 25 – tradução nossa)

Ocorre que o conteúdo complexo de que fala Prensk é traduzido nos desafios

apresentados por Abt que, em geral, possuem relações sistêmicas. Analogicamente,

você sai de um zoológico onde os animais estão separados e classificados e adentra uma

floresta, onde finalmente compreenderá a riqueza que faltava. Essa opulência é

traduzida pela multiplicidade de relações e vínculos interdependentes de um sistema 9 Marc Prensky – Autor do livro Digital game-based learning. 10 Clarck Abt – Autor do livro Serious Game.

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aberto, belo, agonizante, encaixado, funcionando na desordem mantenedora de sua

própria ordem.

O jogo possui relações sistêmicas e mantém sua integralidade, unindo coesão

com flexibilidade e reconhecendo as funções de cada um de seus subconjuntos para,

enfim, criar um ambiente. Nesse sentido, o pensamento sistêmico se sobressai por ser

um eixo essencial para as imbricações determinantes do sucesso estrutural do jogo, bem

como do impacto na forma de pensar e agir do jogador. Pesquisador e modelador de

projetos que envolvem a dinâmica de sistemas, John D. Sterman, já em 2000, afirmava:

System dynamics is a method to enhance learning in complex systems. Just as an airline uses flight simulators to help pilots learn, system dynamics is, partly, a method for developing management flight simulators, often computer simulation models, to help us learn about dynamics complexity, understand the sources of policy resistance and design more effective policies. But learning about complexy dynamic systems requires more than technical tools to create mathematical models. System dynamics is fundamentally interdisplinary. (p. 4)

A dinâmica de sistemas enriquece o modelo do jogo, contudo sempre haverá um

grau de reducionismo referindo-se à impossibilidade do meio digital de ampliar as

manifestações da realidade. Neste trabalho levaremos em conta o fato de que a

experiência no jogo pode ser única, mas não é possível simular todos os requisitos

presentes no real.

6. Dançar com imagem, som e texto

O jogo forma uma trança entre imagem, som e texto. Santaella (2001) indicou

essas três matrizes da linguagem e do pensamento e como a partir delas derivam outras

formas de compreendermos e percebermos o nosso entorno. Levando em conta que

vivemos, hoje, numa sociedade plenamente imagética, o jogo vem ao encontro do visual

e do sonoro por propiciar interfaces, vídeos, ilustrações, design, sons e músicas

ambientados e articulados, muitas vezes, em uma composição artística. Ele também

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cruza com o verbal em suas narrativas capazes de causar deleite aos jogadores. É válido

ressaltar que a tensão imagem versus texto mexe com a nossa percepção no jogo e é

preciso buscar um equilíbrio entre eles, de forma que se complementem e façam com

que os jogadores tenham mais possibilidades de ter uma experiência imersiva no

ambiente.

O ponto da dicotomia existente entre a cultura do texto e a da imagem foi

trabalhada de forma singular por Vilém Flusser (2007), que chama a atenção para o

risco do pensamento conceitual ser perdido devido à amplitude alcançada pela cultura

da imagem. No nosso “mundo codificado” convivemos com representações imagéticas

impactantes na nossa forma de perceber o entorno:

[...] a diferença entre ler linhas escritas e ler uma pintura é a seguinte: precisamos seguir o texto se quisermos captar a sua mensagem, enquanto na pintura podemos apreender a mensagem primeiro e depois tentar decompô-la. Essa é, então, a diferença entre a linha de uma só dimensão e a superfície de duas dimensões: uma almeja chegar a algum lugar e a outra já está lá, mas pode mostrar como lá chegou. A diferença é de tempo, e envolve o presente, o passado e o futuro. (FLUSSER, 2007, p. 105)

Tomemos o exemplo das cores e seu apoderamento na cultura:

Evidentemente não se trata de um mero fenômeno estético, de um novo “estilo artístico”. Essa explosão de cores significa algo. O sinal vermelho quer dizer “stop!”, e o verde berrante das ervilhas significa “compre-me”. Somos envolvidos por cores dotadas de significados; somos programados por cores, que são um aspecto do mundo codificado em que vivemos. (FLUSSER, 2007, p. 128)

O olhar que lê peleja com o olhar que vê e nos jogos a leitura, que durante

décadas fez-se fortemente presente no desenvolvimento da história da ciência, da arte

etc., parece não se bastar. Atualmente, busca-se contar histórias somente com imagens.

A nossa percepção está a todo vapor e nossas escolhas são e serão a marca da nossa

cultura; os desenvolvedores de jogos – engenheiros de mundos como falaria Levy

(1999, p. 145) – e as empresas precisam se atentar para isso.

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7. Misturar, juntar, convergir

Não são somente os jogos que adentram as corporações, a emergência das

comunidades virtuais, das redes sociais, da Web 2.0, enfim, de todos os meios virtuais

possuidores de um caráter pró-ativo e atuante do sujeito, também marcam a nova

geração de formatos viáveis para desenvolver gestão do conhecimento, justamente pelo

fato de esses meios apresentarem um caráter vivo, ativo, mutante e cambiante.

Diante de todo um desenrolar de convergência midiática, as empresas usufruem

melhor dos meios tecnológicos em prol do desenvolvimento de seus colaboradores. É

válido analisar a função arrasadora que as comunidades on-line podem ter nas

organizações, potencializando formas de troca entre as pessoas envolvidas.

No setor corporativo existem diversos trabalhos que identificam os benefícios

trazidos pelas comunidades virtuais e pelas redes sociais. No texto Communities of

Practice: The Organizational Frontier, os autores Etienne Wenger e William Snyder

(2000) listam algumas características fundamentais das comunidades virtuais, tais

como: definir estratégias de atuação, iniciar uma nova linha de negócio, resolver

problemas rapidamente, multiplicar ações de boas práticas, fomentar o conhecimento do

profissional e ajudar na retenção e no desenvolvimento de talentos. Por sua vez,

Howard Rheingold, padrinho das comunidades virtuais, fala sobre a explosão da

“sabedoria das multidões e das comunidades inteligentes”, assim como James

Surowiecki diz: “as melhores decisões coletivas são produtos de desacordos e

contendas, e não de consenso e compromisso”11. Pensando na questão da inteligência

coletiva nas redes, a reportagem do HSM Management datada de 2008 insere um

parágrafo que diz: “sem que percebêssemos, a previsão virou pó. Em vez de sermos

11 Publicação na revista HSM Management 66 janeiro-fevereiro 2008 – Título Inteligência Coletiva nas Redes

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dominados pela inteligência artificial, passamos o bastão à inteligência social, formada

pelas redes que todos integramos.”

Os apontamentos acima tocam em uma questão fundamental: o coletivo

inteligente é uma fonte infinita de manifestações de todos os tipos feitas por diversos

perfis de pessoas. Sendo assim, obviamente, podemos pensar na união das redes sociais

com os jogos digitais ou mesmo na aplicação de jogos multiplayer dentro das empresas,

ambos inseridos nas estratégias dos programas de formação dos seus colaboradores. Até

porque as estratégias blended de formação de colaboradores ganham espaços cada vez

maiores por percorrerem informação, formação e prática. A partir dessa necessidade

aparecem os cursos presenciais, os cursos on-line (e-learning) em seus diferentes

formatos e, com o atual crescimento de demanda, os jogos de negócio.

A potencialidade da formação continuada por meio dos jogos apresenta-se como

uma saída para a atualização constante e para a inovação. A empresa pode reinventar o

seu modus operandi. Entretanto, como já apontamos, apesar dos benefícios parecerem

incríveis, é preciso, antes de tudo, analisar a cultura da empresa. Para sobreviver no

mercado atual, elas não têm como escapar das reflexões sobre o conhecimento atrelado

aos seus valores. Toda e qualquer mudança deve estar vinculada à “Missão, Visão e

Valores” da corporação e deve ter um caráter de desenvolvimento, não somente de

capacitação. Para que o conhecimento possa ser gerido ele precisa, primeiramente,

buscar sua erupção natural. De nada adianta o trabalho de formação se as intenções do

público não forem analisadas. O jogador colaborador passa a ser nosso agente criador.

A complexidade trazida pelos jogos, a ideia de criação como um ato evolutivo do ser

humano e o desenvolvimento cognitivo atrelado a uma situação prática contextualizada

clama pela observação e pela ação dos sujeitos.

O jogo é um fenômeno antropológico que se deve considerar no estudo do ser humano. É uma constante em todas as civilizações, esteve sempre unido à cultura dos povos, à sua história, ao mágico, ao sagrado, ao amor, à arte, à

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língua, à literatura, aos costumes, à guerra. (Murcia, 2005, p.9 apud Tonet e Mota, 2006, p. 549-550)

As empresas lidam com pessoas e suas ações sempre trarão graus de

subjetividade. Isso significa que elas precisam ser atraídas, desequilibradas, convidadas

a pensar criticamente, a observar, a aprender por meio de uma experiência significativa.

No jogo, certamente elas poderão se ligar à fantasia de serem captadas nas tramas do

enredo e/ou dos desafios. Terão que pensar e exercitar o agir consciente no ambiente

reconhecido como externo a elas. A mudança bate e volta, bate no meio e volta para

cada sujeito, num fluxo constante. “E pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou

‘argumentar’, como nos tem ensinado algumas vezes, mas, sobretudo é dar sentido ao

que somos e ao que nos acontece.” (BONDIA, 2002, p.21)

O colaborador é um complexo cultural e biológico que como primazia do

“estado” de viver terá que se expor ao mundo e caminhar incansavelmente nas trilhas

perceptivas dele mesmo e do que consideramos como o não-eu.

A teoria psicanalítica Winnicottiana nos ajuda a descrever esta trilha com

maestria, quando nos apresenta o conceito de “espaço potencial”, cuja característica

transicional aponta para o não físico, para o interconectado, praticamente uma mistura

não aparente, um elo. E, como dissemos, uma vez que a empresa hoje demanda

profissionais que saibam lidar com situações previstas e imprevistas, cabe entendermos

melhor este conceito para analisarmos posteriormente como ele se ligará com os anseios

e intencionalidades dos colaboradores e como estes, por sua vez, poderão, por meio dos

jogos de negócio, refletir sobre o seu caminhar.

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Capítulo 2 – Peça Principal

Não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário:

o mundo é aquilo que nós percebemos. Merleau Ponty

2.1. Espaço Potencial na Psicanálise

Em 1951, Donald Woods Winnicott escreveu o artigo intitulado “Objetos e

Fenômenos Transicionais’”. Os conceitos e idéias advindas das palavras do psicanalista

inglês mostraram como o ser humano constrói a ponte entre o seu interior e o meio

ambiente externo. A passagem de um lado para o outro da ponte ocorre graças a um

movimento fluído entre os diferentes sentidos. Os vetores presentes em todas as

posições são capazes de promover experiências sinestésicas nos sujeitos presentes nesta

relação dialógica ímpar entre dois mundos entrelaçados.

O autor que antes de se tornar psicanalista teve uma relevante vivência como

pediatra, estudou a natureza humana e o desenvolvimento emocional dos indivíduos

desde a mais tenra idade.

Parece-me adequado examinar a natureza humana através do estudo da criança. Mesmo que, quando saudável, o adulto continue a crescer, desenvolver-se e mudar até o instante de sua morte, existe uma constante já visível na criança e que persiste até o fim, assim como o rosto de uma criança permanece reconhecível ao longo de toda a sua vida. (WINNICOTT, 1990, p.25)

O foco do trabalho de Winnicott dirigiu-se para o estudo sobre a utilização de

“objetos e fenômenos transicionais” pelos bebês. Emerge daí a sua teoria sobre a

existência de um “espaço potencial”. Ele considerou que o bebê, do nascimento até os

seis meses, se encontra em um estágio de “dependência absoluta”, ou seja, não sabe

distinguir o “eu” do “não-eu”. Por exemplo, ao ser amamentado, ele não tem a

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referência de que aquela é a sua mãe e de que aquilo é um seio; mais ainda, não

reconhece que ambos não fazem parte dele. Ocorre um momento de ilusão e fantasia, no

qual o bebê pensa ter criado aquele “objeto” de forma a satisfazer a sua necessidade.

A segurança se apresenta como uma palavra-chave neste processo, no qual a

constituição do self integrado do sujeito tem sua fortificação no reconhecimento da

existência de um tempo e de um espaço, holding, no reconhecimento da existência de

um corpo próprio, handling e, por fim, no processo de fazer uso de “objetos

transicionais”.

Tais objetos e fenômenos de transição são nosso foco de análise. Eles serão

criados na fase de dependência absoluta para minimizar o crescimento de alguma

semente de frustração gerada devido a um prazer não saciado. Primeiramente, o bebê

precisa pensar que criou o seio da mãe, ou que a ponta do cobertor está lá para acariciá-

lo. Por outro lado, mais tarde, os objetos serão destruídos e precisam sobreviver à

destruição, pois isto indica que nesse momento eles serão percebidos como objetos

externos que têm utilidades específicas.

A fase de “dependência absoluta” tem sua importância, haja vista a necessidade

oriunda dos seres humanos de estruturarem um desenvolvimento emocional saudável.

Para isso, o papel da mãe ou da figura que represente a mãe é fundamental.

Durante esse período de dependência absoluta, a mãe, que age de maneira a estar disponível diante de uma excitação potencial do bebê, permite que este adquira, no correr das mamadas, a capacidade de assumir relações estimulantes com as coisas ou as pessoas. Em outras palavras, o ser humano torna-se capaz de experimentar emoções, sentimentos de amor ou de ódio, sem que eles representem uma ameaça potencial e sejam, necessariamente, uma fonte de angústia insuportável. (NASIO,1995, p.185).

Em desenvolvimentos posteriores, no estágio de “dependência relativa” (seis

meses até dois anos) e depois rumo à “independência”, o sujeito passa a sofrer

processos de desilusão, já que nem todos os seus desejos serão saciados pela mãe. Isso o

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ajudará a formar as bases do seu self verdadeiro e a interagir de forma saudável com o

mundo externo, levando em conta que enfrentará momentos de prazer e frustração e terá

que aprender a lidar com esses opostos. “[...] a principal tarefa da mãe (após propiciar

oportunidade para a ilusão) é a desilusão. Esta é preliminar a tarefa de desmame e

também continua sendo uma das missões dos pais e educadores”. (WINNICOTT, 1975,

p.28)

Retomando o exemplo da amamentação, o seio seria, assim, um “objeto

transicional” criado pelo bebê de forma ilusória e necessário para suprir a sua

necessidade primária. A falta da mãe tende a ser o principal meio para o advento da

frustração e a partir dela devem aparecer outros “objetos de transição”, como por

exemplo, o polegar que o bebê suga, a ponta do cobertor que ele usa para se acariciar

etc. O uso de tais objetos tende a acalmar, a ajudar no controle da ansiedade e a

fortalecer a integração do self do indivíduo.

[...] A criança está iniciando a transicionalidade, ingressando no espaço potencial, assim chamado por fazer parte do processo maturacional ligado à transição da dependência absoluta para a dependência relativa. Nesta etapa a criança elege um objeto ao qual parece estar particularmente aderida: é o chamado objeto transicional. (Orestes Neto, 2007, p. 410)

Mais tarde, a interação com tais objetos ajudará o sujeito a entender, conviver e

interpretar o mundo fora dele por meio de uma relação compartilhada entre ele e o

ambiente. O objetivo primordial é reconhecer a externalidade do mundo e agir de forma

emocionalmente segura e equilibrada com o que está ao alcance do sujeito.

Vladimir Safatle (2007) descreve a forma como Lacan também pensou a questão

do uso parcial de objetos pelos bebês. Segundo ele, nos primeiros estágios de vida não é

possível reconhecer tudo o que está externo à pessoa, fazendo com que as coisas sejam

percebidas parcialmente, como por exemplo, o seio, a voz, o olhar. Lacan denomina tais

objetos de “objetos a” que, por sua vez, derivam de “relações fantasmáticas”, as quais

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servem para suprimir as necessidades de prazer. O autor chega a afirmar que “não há

outra entrada para o sujeito no real a não ser o fantasma”. (LACAN, 1960-61, apud

SAFATLE, 2007, p. 69)

Sobre o “objeto a”, Saflate apresenta a seguinte passagem: “Algo que me

constitui e ao mesmo tempo me escapa.” (2007, p. 68) Tal expressão apresenta

similaridades com os “objetos transicionais” de Winnicott, dada a existência do fator de

abandono. Pode-se dizer que, num primeiro momento, o objeto nos complementa, pois

saciamos nosso desejo. A posteriori, ele é entendido como externo a nós, já que

formamos o meu “eu”, passando a entender o conceito, quando o objeto, então, nos

escapa.

Em linhas gerais, no processo de identificação do sujeito com o mundo, sempre

existirão fenômenos de transição capazes de ajudar o indivíduo a interpretar o seu

entorno. Saindo de um momento de onipotência em que somos o centro de tudo e os

fenômenos e objetos externos são fantasiados, alcançamos a maturidade de atuar no

meio em que nos encontramos. Identificamo-nos por meio de uma relação espaço,

temporal e corporal. Começamos com um balbuciar e na vida adulta interagimos com

situações lúdicas e criativas, a fim de compreender a externalidade do mundo.

Complementando com J. D. Nasio (1995, p.190): “o eu adquire a capacidade de utilizar

as carências para se enriquecer e a capacidade de vivenciar emoções sem risco de

aniquilamento.”

Uma vez analisada a interação e o uso de objetos transicionais e sua importância

no desenvolvimento emocional do sujeito e na constituição de seu self de forma

integrada, é importante compreender um pouco mais a fundo o próprio conceito de

“espaço potencial”. Nesse espaço, os objetos e fenômenos estão em trânsito, ou seja,

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transitam entre o ser e o não ser. O objeto ainda não é, mas pode ser qualquer coisa,

sendo, portanto, o objeto de segurança que restabelece o prazer.

Para compreender o conceito de “espaço potencial”, é preciso antes de tudo

romper com a idéia de espaço físico delimitado por uma medida de distância objetiva e

eficiente. Ele é amórfico, contempla a ambiguidade e engloba fatores como

subjetividade e objetividade, interiorização e exteriorização, realidade e fantasia. Nele

encontram-se as diferentes formas de identificação entre o sujeito (eu) e o seu entorno

(não-eu), re-significando o sujeito em si e a realidade que o cerca. O “espaço potencial”:

[...] constitui uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o individuo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas. (WINNICOTT, 1975, p.15)

Levando em conta que o ser humano se apresenta ao mundo como um ser

incompleto, inacabado e inconcluso, geralmente os sujeitos, para significar a sua

existência, buscam respostas que funcionam como protótipos de verdade dentro das

representações do real onde se situam. Embutidas no desenvolvimento emocional,

florescem nossas percepções e passamos a perceber a nós mesmos como parte

integrante do mundo. Aprendemos a estar em um mundo transbordante de memória,

imaginação, linguagem, criatividade, culturas, emoções, corpos e psiquismos.

Quantas realidades podem existir? Responder com exatidão a esse

questionamento vai de encontro com as questões ontológicas da humanidade,

entretanto, nosso ganho é analisá-la de forma focada na consideração feita por

Winnicott. Segundo ele, temos uma realidade interior, na qual estão nossas pulsões,

nossos desejos, nosso inconsciente, nosso self constituído, ou seja, tudo aquilo que, na

existência de uma fronteira com o mundo, estaria dentro de nós. Há também a realidade

exterior, aquilo que está fora do sujeito, o ambiente externo.

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Winnicott sugere ainda que somada a essas realidades, exista uma terceira,

representada por um mundo transicional, híbrido, que nasce da mistura entre o mundo

interior e exterior e faz emergir as manifestações conjuntas do psiquismo e do mundo,

no momento da passagem de significados e sentidos entre ambos. Esse novo meio seria

o “espaço potencial”.

Presume-se aqui que a tarefa de aceitação da realidade nunca é completada, que nenhum ser humano está livre da tensão de relacionar a realidade interna e externa, e que o alívio dessa tensão é proporcionado por uma área intermediária de experiência. [...] Essa área intermediária de experiência, incontestada quanto a pertencer à realidade interna ou externa (compartilhada), constitui a parte maior da experiência do bebê e, através da vida, é conservada na experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo e ao trabalho científico criador. (WINNICOTT, 1975, p. 29-30)

O “espaço potencial” passa a ser o espaço harmônico, uma lasca da realidade

dentro dela mesma capaz de promover interações dos indivíduos e de se autoestruturar

após sofrer rupturas. Para permanecer nesse espaço, os indivíduos precisam

compreender e agir diante das certezas e incertezas do meio e do seu próprio

pensamento.

Nesse contexto, o “espaço potencial” é o meio em que se faz possível a

experiência criadora de “objetos e fenômenos transicionais” nos primeiros estágios de

desenvolvimento da vida do sujeito. Com o tempo, ocorrerá a diferenciação do “eu” e

do “não eu”, incluindo assim o outro no plano de vida dele. A interação com o objeto

fará com que o sujeito se fortifique para vir a se relacionar com o mundo externo. O

bom uso do objeto garante a constituição do self e assim o futuro adulto capaz de

entender a sua vida e de produzir significado no contato com o ambiente. “(...) O

desenvolvimento da capacidade de usar o objeto constitui outro exemplo do processo de

amadurecimento, como algo que depende de um meio ambiente propício.”

(WINNICOTT, 1975, p.125)

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Permitir-se viver outras formas de interagir com o meio ou mesmo permitir-se

ver sua forma comumente utilizada para interagir nele. Em ambos, o ambiente é crucial

para determinar o desenvolvimento do sujeito envolvido. E mais ainda, o ambiente

precisa ser um local reconhecido e, para isso, deve ser percebido.

Ao se familiarizar com o espaço, o sujeito passa por processos relacionais entre

os seus desejos que buscam ser saciados e os aspectos vivos que emergem do próprio

ambiente. Na dança entre satisfação e frustração, as partes se associam e clamam por

um ato de criação, sendo este uma ação constante de todos os seres humanos pela busca

da confiança que significa segurança em ter autonomia. Autonomia não quer dizer

liberdade ou libertinagem e sim consciência de si mesmo.

Merleau-Ponty (2006) sabiamente nos diz que porque estamos no mundo:

estamos condenados a senti-lo. Somando-se isso à ideia de Winnicott de que estamos

condenados a buscar um significado para a vida, apercebendo-nos de nós mesmos e

percebendo o mundo externo a nós, abrimos a porta para o “espaço de criação”, que

busca atingir níveis maiores de consciência no viver criativo de cada ser humano.

2.2. Espaço Potencial como Espaço de Criação

As pessoas são um apanhado de tudo e, ao mesmo tempo, apresentam uma

singularidade que as tornam únicas. Se há algum tipo de quantidade, quantos de nós

estão neste momento tentando entender o mundo fora dessa membrana de soma que nos

cobre? Vivemos a incessante procura de achar um sentido para o entorno, como se cada

parte, interior e exterior, tentasse entender a outra e tais processos de interpretação

ficassem localizados num miolo, no meio a ser chamado de “espaço potencial”, capaz

de fazer transparecer a criação humana.

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Esse espaço persiste ao longo de toda a vida. Será ocupado por atividades lúdicas e criativas extremamente variadas. Terá por função aliviar o ser humano da constante tensão suscitada pelo relacionamento da realidade de dentro com a realidade de fora. (NASIO, 1995, p.194)

Nos primeiros estágios de desenvolvimento dos processos de maturação

humana, há o momento de controle mágico dos objetos feito pelo lactente; entretanto,

nos estágios subsequentes cabe ao espectador mediar o fluxo de ilusão e desilusão que o

lactente terá que sofrer. Para aprender a estar no mundo e se aperceber como integrante

do cosmos, o desenvolvimento emocional do indivíduo torna-se cada vez mais

individual e suas necessidades transformam-se em desejos maiores, constituindo o cerne

de sua personalidade.

Dessa forma, no início, a criatividade da criança vincula-se ao uso subjetivo de

um objeto transicional. Posteriormente, alcançará os meios da vida cultural, utilizados

como formas de transitoriedade entre as duas realidades.

[...] Só aos poucos iremos exigir do indivíduo em desenvolvimento um reconhecimento completo da distinção entre a realidade externa e a realidade psíquica interna; na verdade, um remanescente dessa substância intermediária continuará existindo na vida adulta, justamente ali onde se encontra aquilo que mais claramente distingue os seres humanos dos animais (religião, arte e filosofia). (WINNICOTT, 1990, p.178)

O “espaço de criação” é assim recheado de atos criativos que aliviam a tensão e

ajudam a decodificar o mundo. A criatividade é encontrar formas de expressão próprias

e transformar a realidade. É ser e estar no mundo com sabedoria. É olhar para dentro e

para fora de você mesmo. É viver.

A criatividade traz consigo a osmose da vida, a sua eterna transformação, sua

necessidade de equilíbrio. Dessa forma, o “espaço de criação” garante um pensar com

base na relação mutante da vida, capaz de multiplicar pensamentos e rechear

experiências que passam a ser únicas na finitude infinita, aquelas que valem a vida.

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Infinitude das possibilidades de vivências escolhidas para se ter o prazer.

Finitude do tempo cronometrado responsável por delimitar e limitar a experiência do

viver. O psiquismo interage com o meio ambiente externo e tenta brincar com esses

tempos, entender o real, transformar o sujeito em um eu socialmente construído. O

infinito das chances de prazer será sempre aberto, independente da finitude existencial.

O tempo do prazer está no universo e na nossa interação criativa com o mundo; por isso,

precisamos buscá-lo.

O “espaço de criação” chama por uma forma do sujeito de interpretar e lidar

com a realidade, pois nele é preciso lidar com os opostos e com as incertezas e ainda

criar soluções para sobreviver.

Neste constante viver e sobreviver, a incrível capacidade humana de se fazer

comunicar desenha uma grande teia, na qual cada entrelaçamento fortifica a

dependência do todo e alavanca a independência de cada uma de suas partes. Nesse

jogo, formam-se os grupos, surgem os discursos, aparecem as experiências e, junto com

elas, os pensamentos, os sentimentos e as emoções. O cognitivo toma forma, o

perceptivo percorre cada fio e o conhecimento emerge, levemente. Sem grandes

esforços, apresenta-se ao mundo e assina o quesito mutante do saber.

Como entender um complexo sistema psicossocial contendo, além de pessoas, entidades fundamentais para o sistema, mas que transcendem os indivíduos? Sistemas culturais, por exemplo, não podem ser reduzidos aos sistemas humanos que os contêm. A complexidade exige que possamos entender e modelar a interação entre as coisas e processos de naturezas muitas vezes bem diversas, sob pena de não captação do que há de fundamental nesses sistemas.” (SANTAELLA; VIEIRA, 2008, p.28)

Sistemas inteligentes ajudam as pessoas a tomar decisões e promovem um

sentimento de pertencimento, ou seja, você pertence a um lugar. Se nas páginas de As

Vinhas da Ira (1939), os leitores podem se aprofundar no ato discriminatório e na ação

psicológica ao mostrar o resultado do sentimento de não pertencimento, mesmo

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pensando nos benefícios e na estrutura nômade que isto pode ocasionar, dada a

possibilidade de estar em vários espaços ao mesmo tempo, o que queremos expressar

aqui é o resultado de não fazer parte, seja qual for o espaço ou o tempo vivido. E esse

sentir pode ser minimizado quando falamos de conscientização sobre as nossas ações na

interação com diferentes tipos de ambientes, na própria vida. O que sempre acontecerá é

a chamada “ontologia do observador” citada por Maturana e Varella (2001), em que

cada um olha o mundo de acordo com o seu repertório.

No livro O Brincar e a Realidade, Winnicott desenvolve a continuação de seus

estudos sobre “objetos e fenômenos transicionais” e volta-se para o discurso sobre como

eles serão dissolvidos nas relações humanas oriundas de atividades lúdicas, em especial

na brincadeira. Segundo o autor: “Há uma evolução direta dos fenômenos transicionais

para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado, e deste para as experiências

culturais.” (1975, p.76)

Para o psicanalista, o brincar é uma forma de se conhecer o mundo por meio da

fantasia do vivido no “espaço de criação”. Ele sempre se preocupou com a questão:

quem disse para os adultos que eles devem parar de brincar? A força de seu discurso se

baseia no fato de que o lúdico pertence ao humano. “A característica essencial que

desejo comunicar refere-se ao brincar como uma experiência, sempre uma experiência

criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver”.

(WINNICOTT, 1975, p.76)

No Livro de Ouro da Psicanálise (2007), Julio de Mello Filho mostra como a

teoria do espaço de Winnicott liga-se com o jogo e o brincar: [...] formula a existência

de um “espaço potencial”, de uma zona intermediária entre a realidade interna e a

realidade externa, onde se realizam o jogo e o brincar, origem de todas as atividades

sócio-criativas-culturais. (2007, p.399)

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Podemos considerar, assim, os produtos do “espaço potencial” como sendo a

imaginação, a criatividade e a subjetividade. A interação no ambiente tende a disparar

no sujeito o que está adormecido, mudando o sentido da experiência, sendo esta

entendida aqui como envolvimento, entrega, risco e criação.

Somos um grande sistema vivo e precisamos estar sempre em situação, em

contexto. Para recriar valores e buscar os campos nos quais nos sentimos plenos,

precisamos nos encontrar, mesmo que seja numa eterna tentativa de se ver em um

quadro feito especialmente para você.

Nossa criação emerge de um sentimento de pertencimento e desacomodação de

estruturas pré-determinadas. Parece que o esconderijo do discurso de Winnicott

relaciona-se com a amplitude de pedir para nós que sejamos “nós”, desvinculando-nos

da aceitação passiva trazida por Dostoievski (1821-1881) no livro Recordações da Casa

dos Mortos (2006), em que o autor escreve: “o homem é a criatura que pode se

acostumar a tudo (...).” (p. 19)

No “espaço de criação” é possível caminhar, ver e sentir as cores, as formas, as

imagens, os sons. Flutuamos no mar da complexidade. A criatividade abre o leque dos

pensamentos, memórias e criações humanas com o intuito de mexer com as condições

cognitivas do indivíduo, sua capacidade de elaboração, de interpretação e de

permanência.

A capacidade de elaboração é entendida aqui como enxergar novas formas de

vivenciar as experiências sentidas e partilhadas ao longo da vida. Elaborar é criar algo, o

que queremos é que seja algo próprio do indivíduo. É ele que deve ser capaz de

interpretar as leis, as regras, os conceitos e saber conviver com diferentes ideais.

Se a vida não tem sentido e se não se age como individuo atuante, o viver

criativo pode não existir. Ao longo de toda a vida seremos convidados a agir de forma

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emergente, inter-relacionando as realidades interna e externa, a fim de se aperceber,

perceber o ambiente, transformá-lo e analisá-lo criticamente.

Os pacientes psicóticos que pairam permanentemente entre o viver e o não viver forçam-nos a encarar esse problema, problema que realmente é próprio, não dos psiconeuróticos, mas de todos os seres humanos. Afirmo que esses mesmos fenômenos, que constituem a vida e a morte para nossos pacientes esquizóides, ou fronteiriços, aparecem em nossas experiências culturais. São essas experiências que fornecem a continuidade da raça humana que transcende a existência pessoal. Parto da hipótese de que as experiências culturais estão em continuidade direta com a brincadeira: a brincadeira daqueles que ainda não ouviram falar em jogos. (WINNICOTT, 1975, p.139)

Vimos que o “espaço potencial” se difunde pela cultura nas manifestações

lúdicas, cuja importância se salienta no sujeito enquanto ser-humano. Destacaremos

uma dessas ações e a analisaremos dentro do setor corporativo: o jogo.

Simpatizamos com a ideia de que o jogo em projetos de formação empresariais

pode se caracterizar como um “espaço de criação” no viés winnicottiano, pois, em

linhas gerais, nele é preciso que o jogador/colaborador coloque a sua forma, busque o

seu gesto e se expresse. Nele, o ser humano rascunha as suas ações, busca compreender

a externalidade e aceita que ela também o modifique. Durante todo esse processo, a

tríade jogo, jogador/colaborador e empresa fica em constante contração interferindo

sobremaneira um no outro. Este estudo irá convergir para o que será lançado no jogo a

partir desta contração. Assim, a partir de agora vamos revelar o que consideramos como

as pistas da manifestação oculta da criação nos jogos de negócio, considerando que as

marcas dos passos indicam o desenvolvimento de estruturas cognitivas diferenciadas.

Os jogadores criam habilidades por meio da experiência e o jogo passa a ser a

brincadeira da vida. Jogar é ordenar e desordenar as linhas; é enxergar as entrelinhas; é

a ação tomada, independente de certo ou errado; é definir os limites da liberdade dentro

da sua própria autonomia; é ter critério para fazer as melhores escolhas. Jogar é o fundo

do prazer escondido.

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Capítulo 3 – Regras

É possível que depois de experimentar tão grande número de sensações a alma não possa mais satisfazer-se com elas, mas apenas irritar-se,

e exija novas sensações, cada vez mais fortes, até o esgotamento total.

Dostoiévski

Vimos que os seres humanos buscam saciar os seus desejos e, por meio de um

espaço que existe em potencial, lidam com sensações antagônicas, tentando equilibrar

seu desenvolvimento emocional - um importante quesito responsável por constituir um

“self verdadeiro”. Com o passar dos anos compreendem a existência de algo externo a

eles e se deparam com diversas situações em que é preciso tomar decisões. O “espaço

potencial”, nesse sentido, vincula-se ao “espaço de criação”, sendo este a inter-área

responsável por fomentar o aparecimento da singularidade de expressão de cada ser

humano, de suas ações voltadas para perceber e transformar a realidade.

Ao divagarmos sobre os jogos, podemos considerar que a experiência do jogar

pode alcançar níveis cada vez mais apurados de experimentações “interior versus

exterior”. Primeiro, podemos citar o jogo no qual todos conhecem as regras e todos têm

a consciência de que estão jogando. Seria o jogo objetivo e jogado pelo todo. Outro

tipo é aquele jogado por uma parte que conscientemente sabe que fará os outros jogarem

o seu jogo e há a outra parcela que não sabe que o jogo está sendo jogado. Seria o jogo

meticuloso e jogado pela parte. Por fim, teríamos o jogo no qual as regras não foram

apresentadas e nem mesmo foi falado aos jogadores que aquilo é um jogo. Todavia, eles

sabem que estão jogando e, como é mais implícito do que explicito, a suavidade das

ações e dos discursos determina, praticamente, uma inteligência ímpar para sobreviver

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diante dele. Seria este, o jogo inconsciente, porém consciente e jogado pela parte

singular.

A consciência está no mundo e age sobre nós. O ser no mundo demanda um ato

criativo de entendimento desse mundo e o jogo aparece como um dos meios de

interagirmos com a realidade fora e dentro de nós. Temos a chance de dar o nosso tom e

ajustar o caos simulado com o nosso ritmo. O jogo, em aspectos micros, pode ser

aberto, múltiplo, imaginário, linear, não-linear, atômico, narrativo, lúdico, ordenado,

desordenado, relevante, saliente etc. e, num aspecto macro, transforma todos esses

antagonismos em algo único, complexo, que nunca será completo, mas que apresenta

diferentes facetas encontradas na realidade. A realidade é encontrar e lidar com tais

facetas; é ver que não vemos; é fruto do delírio coletivo; é, para Merleau-Ponty (2006),

“uma fonte infinita de sentidos”.

Se chamamos existência a esta vida própria, contingente e finita, a esta vida que não está determinada por nenhuma essência nem por nenhum destino, a essa vida que não tem nenhuma razão nem nenhum fundamento fora dela mesma, a essa vida cujo sentido se vai construindo e destruindo no viver mesmo, podemos pensar que tudo o que faz impossível a experiência faz também impossível a existência. (BONDIA, 2002, p. 28)

Nesse entrelaçamento interior e exterior, o significado da experiência emerge da

relação do sujeito consciente que percebe o mundo com sabedoria e do mundo que se

apresenta para ele. Diante disso, podemos dizer que, para aproveitar ao máximo o

ambiente do jogo, é preciso se permitir a abertura de conviver dentro e fora dele com a

constante entre a apercepção do jogador e o perceber do meio, assim como com o

equilíbrio das ambiguidades capazes de empurrar o sujeito rumo à manifestação no

mundo. Para Merleau-Ponty, vamos ao encontro de um mundo já banhado de sentidos; a

linguagem significará este mundo, transformando coisas em objetos e fazendo emergir a

ação comunicativa e, ao conceituar e descrever os sentidos, ela os modificam. Forma-se

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uma via dupla de significações e percepções e tudo passa a se encaixar em um campo de

relações.

Queremos mostrar aqui como o jogo de negócio, enraizado num campo de

relação transicional, visa ao aparecimento da singularidade do agir humano, semeando

características fundamentais de um “espaço de criação”:

• promoção do auto-conhecimento e do saber relacionar-se;

• desenvolvimento de habilidades para minimizar a tensão de decodificar o

mundo;

• busca de soluções próprias para permanecer no meio com sabedoria.

Nas entrelinhas desse agir, manifestam-se de maneira oculta, as pistas

reveladoras da criação. O escondido é a premissa básica do nosso viver; ele se refere às

bases do nosso caminhar, e para encontrá-lo precisamos experimentar a nós mesmos e

achar o nosso gosto. Quando isso ocorrer, o nosso aroma irá pairar pelos ambientes,

meios, espaços, mundos, encontrando outros e se transformando, mas ainda assim

permanecendo nosso, pois vamos querer renová-lo com novos gestos, graças ao passado

conhecido e o futuro porvir. A renovação chamará a criatividade, no viés Winnicottiano,

e assim se revelarão o que consideramos as pistas da manifestação oculta da criação

nos jogos de negócio. A saber:

• A brincadeira: encontrar rotas de fuga para a ludicidade desenquadrar o agir

humano.

• A agonia: ter que se enquadrar em um mundo, fazer parte.

• A intencionalidade do sujeito: reforçar ou desatar as arestas da peneira.

A seguir, analisaremos cada pista, identificando onde elas podem estar presentes

nos jogos de negócio. Mesmo realizando uma análise separada, consideramos que as

pistas estão imbricadas e navegam umas pelas outras, potencializando uma forma de

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experiência capaz de ter uma implicação cognitiva diferenciada e envolta por meio do

uso da tecnologia.

3.1. A Brincadeira

Nossa brincadeira, resultado da presença da subjetividade em nossas tomadas de

decisão diante da vida, é o solto e a leveza - os formadores da rota de fuga, a qual não

tem nenhuma conotação de fugir de algo, mas que se refere à emergência da passagem

da ludicidade e seu poder de desenquadramento. Um descanso para as adversidades da

vida, uma ajuda necessária para nos manter em sociedade, uma mão imaginária que

empurra o próximo passo. O ser humano vive tais momentos de forma despercebida, já

que eles estão dissolvidos no social.

A ‘leveza’ é uma das seis propostas para o novo milênio indicada por Ítalo

Calvino no final do século XX. Quando estamos dentro de uma situação é difícil a

analisarmos ou mesmo acharmos uma saída para um desafio que se apresenta. Calvino

nos mostra a importância de nos afastarmos de nós mesmos para nos vermos melhor.

Tornar mais leve. Sair e olhar de cima.

[...] nossos pontos cegos cognitivos são continuamente renovados e não vemos que não vemos, não percebemos que ignoramos. Só quando alguma interação nos tira do óbvio – por exemplo, quando somos bruscamente transportados a um meio cultural diferente-, e nos permitimos refletir, é que nos damos conta da imensa quantidade de relações que consideramos como garantida. (MATURANA; VARELLA; 2007, p. 264)

No jogo Where in the world is Carmen Sandiego's luggage (MicroMentor)

os responsáveis pelo atendimento ao cliente da companhia de aviação SAS

(Scandinavian Airlines) são os detetives responsáveis por recuperar a carteira da

famosa personagem Camen Sandiego. Com a metáfora do jogo, indiretamente o

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público tende a vivenciar situações em que deverá perceber a importância de se ter uma

boa relação com o cliente.

Caminhar pela rota de fuga garante um prazer dificilmente explicável e capaz de

alcançar sensações distantes da explicitação verbal. Isso talvez se justifique no fator de

risco, no grau de imprevisibilidade sobre o futuro, na abertura de escolher diferentes

atitudes, na simplicidade complexa da magia de sentir. O jogo nos presenteia com tais

fatores e por isso ele precisa de indivíduos capazes de experimentar o momento de cada

jogada com fruição, de forma que uma das diversas camadas do seu ”eu” abandone o

trivial e apareça para brincar.

O brincar é a base do jogar; ele sempre estará vinculado com a ideia curiosa que

este primeiro verbo representa. O jogar pode ter as normas e a temporalidade do relógio,

mas o brincar sempre estará lá e é uma pitada dele que faz o sentimento do jogador

navegar pelo tempo e pelo espaço de forma diferenciada. O jogo pode ter um tempo de

execução e um manual de regras, mas está em um lugar diferenciador. O cerne da

brincadeira faz o momento do jogar único, fluido e avassalador. O jogador não tem que

estar dentro do jogo, ele está lá, mesmo sentado na cadeira do lado de fora.

Em uma aplicação de jogo, presenciamos algo curioso numa empresa. Antes que

as equipes se formassem, o gestor do projeto conversou com os colaboradores

explicando todo programa no qual o jogo estava inserido. Durante a explicação, os

colaboradores, com cerca de 40 anos, sentados perto de quem se encontrava com os

materiais do jogo, ficavam olhando para as peças e não paravam de exclamar que

queriam jogar! A questão é: de onde vem isso? O que mais faria com que aquelas

pessoas quisessem pular o tempo para chegar no horário em que jogariam? Esse gesto

vai ao encontro do fato de que a linguagem do jogo é desenvolvida para chamar o

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espectador e assina o caráter lúdico, subjetivo e atrativo do meio. A linguagem é uma

forma de encantamento e os jogadores, indiretamente, podem, por meio dela, no jogo,

criar uma autodireção da própria fantasia.

Uma vez imerso no mundo do jogo, o colaborador tende a usar seu repertório

para definir as suas ações ao mesmo tempo em que pode arriscar e se dar ao luxo de

tentar o inesperado, o esdrúxulo. Os resultados são diversos, todavia o enriquecimento

está no fato de que o ser humano constrói e inventa. O jogo permite, assim, um espaço

para a brincadeira de transpor o limite entre o que o habitual lhe possibilita viver e o que

se poderia fazer fora dele.

Liga-se, por meio do desejo do indivíduo, o mundo das representações com o

seu imaginário. No filme O Escafandro e a Borboleta (2007), maravilhosamente o

personagem principal, Jean-Dominique Bauby, divagando sobre com o que dele mesmo

poderia ser contado, diz: “tenho minha memória e minha imaginação” - dois atributos

bárbaros de nossa vertente humana. Posso estar onde quiser, posso relembrar algo do

passado e repetir a cena diversas vezes e posso também inventar situações nunca

ocorridas: “[...] o indivíduo não é chamado de louco e pode usufruir, no exercício da

religião ou na prática e apreciação das artes, do descanso necessário aos seres humanos

em sua eterna tarefa de discriminar entre os fatos e a fantasia”. (WINNICOTT,1990,

p.127)

No Fable (Lionhead Studios) é possível, dentro da lógica de RPG do jogo, fazer

escolhas baseadas em fatos vividos ou criar novas. Todas as ações determinam o que

habilidades o jogador desenvolverá, assim como sua aparência física, reputação e

caráter.

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Nos jogos também veremos jogadas com desenvoltura, que mesmo tensionadas

pela resolução dos desafios, ainda assim não deixam de lado o desejo dos jogadores

para que elas tenham a sua graça. Imagine num jogo de sinuca a decisão sobre a escolha

do local certo para bater na bola. A fim de encontrar o ponto exato da bola para que ela

seja encaçapada, usa-se a objetividade do cálculo do ângulo e a subjetividade de olhar o

lugar em que a bola ‘brilha’; acredita-se que aquele é o ponto certo e ainda busca-se a

beleza da jogada e seu gracejo, para, enfim, definir a bola escolhida. O olhar para o

ambiente, o ato de observação, a contemplação do espaço e as ações desencadeadas por

esses processos fazem com que o jogador aprenda com o ambiente - o ambiente ensina

algo sobre como lidar com ele e como estar presente no espaço em que ele ocupa.

Para permanecer no jogo Full Throttle (LucasArts), o jogador/motoqueiro

precisa prestar bastante atenção em tudo o que ocorre ao seu redor. Ficando atendo ele

poderá encontrar pistas, dialogar com as pessoas certas e encontrar objetos escondidos,

ele conseguirá ir muito longe.

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Diante do que apresentamos a respeito da pista brincadeira, nossa mensagem se

resume ao fato de fomentarmos o desejo e sermos criativos para sobrevivermos nesse

grande sistema aberto, ao qual estamos sujeitos e precisamos da desconstrução, do

desenquadramento. Apontamos o jogo como uma partícula responsável pelo viver

imaginativo e criativo desse sistema.

[...] a criatividade e suas origens, a autenticidade, a espontaneidade e o sentir-se real próprios do verdadeiro self, temas que [Winnicott] procurou elaborar para tentar responder à seguinte questão: ”Sobre o que versa a vida?” (CELERI, 2007, p.434)

Nossa brincadeira criativa mexe com a beleza dos vários tons, como os do mar,

como os da música, e a uniformidade enquadrada vem da necessidade da vivência

equilibrada desta diversidade e não da busca em vão de uma só cor ou um só tom.

3.2. A Agonia

Temos que estar e por meio de um movimento agonizante percebemos um

mundo encoberto por nós mesmos. Somos pessoas com extrema dificuldade em dizer

quem somos, e como não sabemos ao certo o que é ser, acabamos “estando”

continuamente12. Neste movimentar nos enquadramos, aceitamos que fazemos parte do

mundo e nos instalamos. Convivemos com um desconforto interessante, estamos sem

nunca ter total compreensão do entorno. Muitas vezes suplicamos pela mudança, antes

mesmo de qualquer entendimento. Entretanto, esses receios se transformam em algo

diferente quando o incômodo cede lugar ao alívio e assim se chega à agonia, nada

menos do que a tensão a ser minimizada no nosso processo de decodificação do mundo.

Ela é porosa, nos completa, nos ajuda a alcançar o que Winnicott apontou: formas de

12 Veremos mais adiante como esse estar contínuo se ligará as invenções das intenções de cada indivíduo para sobreviver.

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sermos criativos (entendido aqui como consciente) em relação às adaptações deste

mundo.

No começo do século XX, Eisenstein pensou na questão do enquadramento,

colocando-o como a ruptura da noção de um direcionamento de diversos pontos de vista

pelo olhar da câmera a fim de que o espectador observe fatos específicos. Ao contrário,

sua ideia refere-se à construção de cenas com o uso da câmera para que se atinja não

uma unidade dos fatos, mas uma unidade do pensamento: “[...] trata-se de compor

visualmente ‘quadros’, privilegiando as configurações plásticas capazes de fornecer a

relação mais apropriada entre os elementos ao nível da significação desejada.”

(XAVIER, 2005, p.132).

Observa-se que, mais do que gerar uma ação por meio de pontos de vista que

serão filmados, é preciso fazer com que o espectador construa um ponto de vista com

base na filmagem de diversas ações, que têm vida. Levando isso em conta, nossa forma

de perceber se altera demandando mais de nós mesmos. Do nosso olhar para a cena

nascerá o “distinto”, cuja extensão tende a alcançar o “algo em comum”, isso porque

nenhum distinto conseguirá percorrer uma linha reta e, assim, ao encontrar outra,

mesmo que seja passando por ela para seguir seu rumo, formará um ponto de

intersecção. Não conseguiremos ser um ou outro, ou seja, sermos totalmente comuns ou

distintos, e na interface entre as linhas nos enquadramos numa rede simultaneamente

assimétrica e ordenada.

Com efeito, se simplesmente supomos que há um mundo que é objetivo e fixo, não é possível entender como funciona nosso sistema em sua dinâmica estrutural, pois ele exige que o meio especifique o seu funcionamento. Por outro lado, se não afirmamos a objetividade do mundo, parece que estamos dizendo que tudo é pura relatividade, que tudo é possível na negação de toda e qualquer legalidade. (MATURANA; VARELLA; 2007; p.263).

Nesse “estar” ordenador da desordem, ou desordenador da ordem, arrumamos

maneiras de não estarmos onde não queremos. Para isso, além da nossa memória e

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imaginação, usamos as mídias para nos transportarmos. Não estamos no quarto, estamos

no cenário do livro; não estamos na aula, estamos falando com nosso amigo on-line; não

estamos no metrô, estamos no mundo do jogo, muitas vezes fazendo-nos esquecer a

estação na qual teríamos que sair do trem. Com o uso da tecnologia, raramente ficamos

num lugar onde não queremos estar. Neste estudo não cabe avaliarmos os impactos

disso para as pessoas e para a sociedade, aqui queremos chamar a atenção para o fato de

que o jogo é exatamente um desses meios em que saímos de onde estamos para

estarmos onde o jogo nos leva. E a vida nesse novo meio aproxima-se do nosso “espaço

de criação”, já que o jogador tende a formar uma unidade diante de uma realidade nova:

concebe essa realidade externa, busca dar forma às suas ações, procura compreender o

mundo do jogo - buscando vencer desafios como forma de permanecer no meio - e

aceita que ele o modifique.

A vida no jogo sempre acaba e recomeça. Ela pode ser virtual (na concepção de

Levy (1996), sendo aquilo que existe em potencial), digital. Ela faz parte da realidade, é

capaz de revelar “o” algo escondido, “o” ainda não criado, a ideia a ser amadurecida, a

consciência que ainda não aconteceu. Para obtermos tal revelação, passamos pelos

momentos agônicos do jogar que juntos geram prazer: perder, arriscar, recuperar e

enfrentar desafios. Cabe aqui a reflexão já trazida por Dostoiévisk em O Idiota: o

caminho percorrido para obter o ápice total pode ser melhor que o próprio ápice. No

jogo, talvez esse caminho seja o elã do abraçar dos seus usuários.

Pensemos em um estádio de futebol. Nele, o ápice do jogador, e sem dúvida do

torcedor, são os momentos que precedem o gol. A tensão e a angústia desse intervalo de

tempo são fundamentais e, segundo Huizinga (2008, p.13), esses dois quesitos são os

pontos chaves para que sejamos enfeitiçados e o jogo tornar-se apaixonante. Quando a

missão é cumprida, ou seja, quando a bola alcança a rede, o momento torna-se único,

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singular. O sentir alcança um estado amplo e faz com que absolutamente tudo o que

esteja acontecendo ao redor, tanto no que está dentro do sujeito, quanto no que ocorre

na sua vida exterior, acabe se diluindo e naquele intervalo de tempo o jogo como um

todo ganhe um valor incomensurável. Não poderíamos sair do Estádio sem dizer que lá

dentro ocorreu um processo de criação.

Assim como no jogo de futebol, queremos demonstrar como a tensão e a

angústia permeiam os jogos de negócio. Os colaboradores que sabem qual caminho

seguir, mas que não conseguem explicitar verbalmente, podem pensar em jogadas que

os ajudem. Aqueles fechados em suas próprias funções podem ver as relações e o fluxo

de uma única decisão. Aqueles que encontram informações onde as pessoas só veem

ruídos também terão o seu espaço. Dessa forma, beiramos o nosso “espaço de criação”,

já que o momento agonizante levará o colaborador/jogador a buscar uma solução, a

pensar em inúmeras alternativas para dissolvê-lo.

Na constituição dos jogos e no seu desenrolar os dados são tecidos

conjuntamente. Este é um aspecto fundamental para ser exposto, haja vista a ligação de

todo o funcionamento do jogo com a complexidade das relações existentes nesse tecido.

Sem informações separadas, sem conteúdos modularizados, sem a certeza absoluta,

agora vamos falar de um espaço complexo. Ressaltamos, como já dissemos, que além

de a complexidade dos jogos não poder ser comparada com a da vida real, os sistemas

complexos não garantem a certeza do mundo. O homem tem a sua complexidade

própria, impossível de ser modelada sem respondermos o que “eu sou” e “o que é

consciência”. Respostas como estas são capazes de deixar em êxtase neurologistas e

adeptos da Inteligência Artificial.

[...] a complexidade é efetivamente o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresenta com traços inquietantes do emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambigüidade, da incerteza [...]. (MORIN, 2007, p.13)

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Os jogos podem alcançar representações cada vez mais fiéis à realidade, mas não

podem ser considerados como tal. Por meio deles o jogador vê um protótipo da sua

própria história e pode conquistar novas habilidades a partir do momento em que faz

uma releitura do seu fazer, do seu pensar e do seu agir. O jogo pode seguir o seu próprio

ritmo, mas a vida fora dele será sempre mais rica.

Levando esses aspectos em conta, John Sterman fala sobre a amplitude

alcançada pela lógica do pensamento sistêmico, uma vez que nos ajuda a compreender

relações complexas, e sua limitação, já que nunca serão maiores do que a complexidade

da realidade e da cognição humana. (2000, p.37-39)

O nível de complexidade dos jogos está diretamente ligado não só aos modelos

matemáticos que serão aplicados como também à ação do jogador diante de uma

realidade que se força em sua direção. Ao representar o real, a modelagem de tais

sistemas mexe com pressupostos capazes de garantir a interação do sujeito com o

ambiente à sua volta: a relação de causa e efeito, responsável por delimitar leis gerais e

regras de convívio; a relação de espaço, tempo e matéria, responsável por garantir o

estar no mundo; a relação de possibilidade e mudança, responsável por delimitar o

devir.

Assim, na realização da sequência didática mais bem planejada, uma parte da ação está sob controle de esquemas de percepção, de pensamento e de decisão que escapam à previsão e mesmo à consciência clara. (PERRENOUD, 2001, p. 166)

A complexidade dos jogos de negócio se aproxima da dinâmica de relações

existentes entre os dados a serem modelados para o jogo. O mistério de se ter vários

pedaços e imbricá-los para um fim, colando os pedaços para que eles se relacionem,

garante a ternura dinamicamente oculta de um cenário que pode ser representado, o que

não significa que é uma cópia ou que será possível na realidade. A lógica irracional do

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pensamento humano é modelada para uma simulação digital do seu funcionamento.

Trabalha-se o chamado pensamento sistêmico e as relações configuradas por ele, as

quais não podem ser julgadas independentemente, mas no contexto em que ocorrem,

levando em conta o seu histórico. Transforma-se a interpretação de determinadas regras

de negócio em um plano interativo, no qual mergulhamos nos conceitos ou indicadores,

indo para dentro, e os integramos, indo para o lado.

Este mapa parece ilimitável pela abrangência digital, todavia possui um limite

considerável. Vejamos: partimos da premissa de que para construir o ambiente em que o

jogador estará alguém explicará como este ambiente funciona na realidade. Imaginemos

um jogo baseado em regras de negócio de um cenário real. Ora, o discurso deste

observador é a sua forma de perceber; por sua vez, quem irá construir o jogo terá

percebido o perceber do outro, mas do seu jeito. Nessas passagens teremos

simplesmente o limite do ilimitável perceber de cada sujeito envolvido. Outro ponto a

ser considerado é: o quanto conseguiremos ir para dentro e para o lado? Pensemos nas

pessoas e no quanto elas conseguem ir para dentro delas mesmas - Nietzsche nos roga

esse movimento - e em quanto caminham para o lado e constroem interações saudáveis

com outras pessoas, bem não é tão fácil se movimentar, assim, quanto conseguimos

adentrar na lógica de um indicador e/ou na conceituação de um termo se eles são o

nosso ponto de vista – ponto de experiência como colocaria Basbaum – vindo do que

conhecemos e do que não conhecemos sobre nós. Em resumo, levando em conta sua

amplitude e limitação, a tradução da complexidade de uma realidade simulada baseia-se

no teor sistêmico dos hiperlinks do nosso pensamento e no turbilhão de “porquês” e de

“senãos” presente nele.

Na verdade a arte do pensamento sistêmico está em ver através da complexidade, enxergando as estruturas subjacentes que gerem a mudança. Pensamento sistêmico não significa ignorar a complexidade. Ao contrário, significa organizá-la em uma história coerente que lance uma luz sobre as

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causas dos problemas e sobre as formas que eles podem ser solucionados de maneira duradoura. (SENGE, 2008 p.155)

A chance de irmos mais além em relação a pensar nos resultados possíveis do

encontro de diversas variáveis, nos é ajudada com o uso da tecnologia, mas cabe

colocarmos, ultrapassando uma lógica de banco de dados, os diferentes estilos de jogo

para as empresas. O jogador pode ser desde um Gerente de Vendas, que cuidará de uma

região numa cidade fictícia, analisando pontos de venda, merchandizing, headcount,

consumo, distribuição etc., até um capitão de barco, que precisa vender suas

mercadorias e que terá que passar por conflitos entre os marinheiros, roubo de carga,

dilemas das crenças. De qualquer forma, diante de um estar situado, ele interage em um

ambiente para tomar decisões capazes de alterar o comportamento geral do jogo.Os

desenvolvedores de jogos, no momento de construir este ambiente, precisam calibrar os

dados para que ele não perca credibilidade: “[...] simulations that are too politically

correct can lose touch with he organization’s actual culture and appear laughable”.

(MICHAEL; CHEN, 2005, p. 159)

No jogo Objetion! (Transmedia) é possível interagir com um promotor distrital

e testemunhas em um julgamento. O jogador terá que analisar um caso ocorrido. Com o

seu conhecimento sobre interrogatórios ele deve fazer objeções corretas às perguntas

que julgar inapropriadas.

A versão mais atualizada do Flight Simulator (Microsoft) contém uma

diversidade muito grande de aeroportos do mundo inteiro para escolher e diversos tipos

de aeronaves. O jogador consegue se imaginar em uma aeronave com todos os seus

instrumentos de controle e navegação. Para voar ele tem dados geográficos de todo o

globo e para os jogadores que quiserem é possível buscar na internet os dados reais

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como o clima.

No jogo Chocolatier Deluxe (PlayFirst) a lógica de gerenciamento é usada para

estruturar uma metáfora: construir o ‘império’ de fábricas de chocolates. Para isso, o

jogador visita locais para a compra de matéria prima e busca de novos comércios,

controlando a oferta e a demanda dos produtos, e fazendo negócios.

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Se pensarmos no jogo de negócio sendo por si só um sistema, devemos observar

as três características comuns a todos os sistemas: ser aberto, ter memória e elaborar

algo. 1. Sabe-se que o jogo forma uma estrutura interna que está sujeita a perturbações e

crises. Sua tendência ao imprevisível orna com o fato de que a criação é um ato

evolutivo, manifesta-se segundo uma crise, podendo seguir a teoria de Evolon de

Werner Mende (1981), buscando um equilíbrio diante de situações a serem enfrentadas.

2. A memória tem a abrangência da memória do próprio computador. 3. Na era marcada

pelo digital, o sistema é cada vez mais aberto e tem cada vez mais memória, mas como

está a nossa capacidade de elaboração? O papel do jogo de negócio é criar mecanismos

de elaboração, ora se aproximando o mais perto possível da realidade do jogador, ora se

afastando dela, fomentando uma sede pela descoberta, encontrando o limiar entre a

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tensão e a fluidez dos riscos, de forma que o jogador tenha que interpretar o ambiente e

se dispor diante dele.

No jogo de negócio haverá o risco de não permanecermos. Todavia, como é

possível quebrar nossas barreiras físicas e psicológicas, sempre teremos uma camada de

“eu” mais protegida. A impossibilidade de controle absoluto garante a reflexão

constante do sujeito, e a autopoiese (MATURANA; VARELA, 2001) do jogo promove

processos de criação, análise e observação do jogador. Isso pode ser visto como uma

vantagem. Quantas vezes a reflexão sobre si mesmo e/ou sobre a sua ação foi inviável?

Perrenoud (2001, p.169) já dissertou sobre como não podemos simplesmente

interromper a vida, como se tivéssemos o mesmo poder de parar de ler um livro, ver um

filme, parar um jogo de basquete para refletir sobre que ação deve-se tomar.

A reflexão sobre a ação flui dentro da abertura com que os dados serão

direcionados pelos jogadores e nesta fluidez apresenta-se a emergência do caos numa

constante dinâmica. A autonomia do jogador vai sendo construída diante da interação

entre sujeito (jogador) e meio (jogo). Devemos nos aproximar cada vez mais do tipo de

interatividade indicada por Santaella: “A interatividade não apenas como experiência ou

agenciamento do interator, mas como possibilidade de co-criação de uma obra aberta e

dinâmica, em que o jogo se reconstrói diferentemente a cada ato de jogar”. ( 2007,

p.411)

Uma vez dominado pelo jogador o ambiente pode ser um local onde será

possível ver outras relações: você se mistura, se transforma, participa e, quando volta,

volta para você; você sempre será você: “[...] seja qual for o grau de importância que

atribuirmos ao ambiente, o indivíduo permanece, e dá ao ambiente um sentido.”

(WINNICOTT, 1990, p.119)

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Inventamos com o corpo que dispomos no mundo em que estamos. Estamos em

um ambiente, estamos em algum momento de alguma história, estamos num meio. E na

agonia buscamos sentido dentro do nosso estar situado no mundo.

3.3. A Intencionalidade do sujeito

O que e como se posicionará fora e dentro da cena e como em ambos

conseguiremos dizer “eu sou”? Seremos aquilo que aparece explicitamente e aquilo que

está escondido, seremos isso junto, e nessa agonia fruída ou nesse prazer aflito nos

movemos em direção ao mundo, porque temos que fazê-lo, e para nos mantermos sãos

faremos do nosso jeito, mediando os nossos quereres. Quando o ato de criação casa com

os termos “dar o seu tom”, “encontrar a sua voz”, “desenhar a sua forma”, as crias são

as nossas intenções e nesse ninho a união entre enquadramento e desenquadramento

fantasia, verbaliza (transforma em palavras) e imagina (transforma em imagens) as

intenções do sujeito.

Cremos que nosso movimento diante do mundo é empurrado pelas nossas

intenções que buscam dinamicamente aquilo que querem. Na fenomenologia

merleaupontyana, sabe-se que porque estamos no mundo somos condenados a senti-lo e

a intenção dos sujeitos dirige seus corpos incessantemente em direção a esse mundo. O

conjunto deste corpo, ele inteiro, ele como essa massa partilhada e coligada, relaciona-

se de forma “não pura” com o meio em que se encontra. Nessa relação, cada gesto é um

fazer mundo recheadíssimo de sentidos. O gesto completará o perceber e a percepção

rodará como fundamento do sentido.

Neste estudo, consideramos que esses gestos trazem consigo as nossas intenções

e o conjunto delas marca a diferença entre os fazeres dos sujeitos. Estes vão além do

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que o ambiente lhes oferece, exteriorizando suas ações sem perder contato com a sua

subjetividade. No perceber do meio, a intenção dos sujeitos garante a relevância do que

será salientado. Traçamos correspondências com aquilo que nos chama a atenção de

alguma forma, ou seja, salientamos do mundo aquilo que queremos.

Nossa interação com o mundo alimenta ora o fato de apertarmos as arestas de

uma peneira, permitindo que se passe apenas aquilo que julgamos importante para nós,

ora o fato de desatarmos as arestas, com um nível diferente de critério, paciência e

sabedoria. O ganho está na forma como as escolhas do que passará pela peneira serão

apuradas. Na escolha de apertar ou desatar as arestas, além das nossas preferências, não

podemos esquecer da chamada humanidade.

Nossos costumes e nossos automatismos não dizem respeito apenas a nossos gestos, a nossos atos concretos, observáveis. Englobam também nossas percepções, nossas emoções, nosso funcionamento psíquico. (PERRENOUD, 2001, p.161)

Diante disso, ao pensarmos na relação jogador e jogo, a simbiose entre eles

estrutura gestos com uma performance enquadrada e também movimenta o corpo

situado numa performance desestruturante, ou seja, desenquadrada. Consideramos que a

partir do momento em que o jogador/colaborador tiver uma intenção, ele poderá

perceber o meio e notar a si mesmo; pensar, refletir e agir para fazer as suas jogadas e

destacar coisas em um ambiente contextualizado. Vejamos alguns aspectos desta

consideração

Num movimento constante, o jogo possibilita ao sujeito rever, refletir dentro de

um espaço de criação - espaço harmônico, uma lasca da realidade dentro dela mesma

capaz de promover interações dos indivíduos e de se autoestruturar após sofrer rupturas.

Para permanecer nesse espaço, os indivíduos precisam compreender e agir diante das

certezas e incertezas do meio e do seu próprio pensamento. No jogo, há a possibilidade

de se estar presente, de ser o espectador de você mesmo, de vivenciar encontros: do

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sujeito com o seu interior, com o outro e com o ambiente. O jogador passa a ser a

pessoa descrita pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2004), aquela que não tem

“ligações indissolúveis e definitivas”.

O jogo lida com a busca pela própria identidade e por uma vida mais tranquila.

Nele há uma dança entre percepção, raciocínio, reflexo e foco. A interação ocorre pelo

interesse e pelo prazer do sujeito. Ambos florescem da feliz ambiguidade trazida por

“momentos desafiadores versus ambiente seguro”. É mais fácil jogar do que viver. O

jogo é envolvente e garante um risco menor; isso significa que errar no jogo tem uma

consequência menor do que na vida fora dele. Nele todas as nossas experiências

quebram com a ideia de que temos apenas uma vida.

A maioria das pessoas já deve ter passado por inúmeras situações na vida em

que pensou: “e se eu tivesse feito diferente?” Salvas as devidas proporções, no jogo o

colaborador se permite seguir a combinação e o caminho que ele deseja.

No MIT, JohnSterman criou um “micromundo”em software de computador sobre a história do caso da People Express, chamado “Simulador de Vôo da People Express”. [...] permite aos estudantes experimentarem uma ampla gama de políticas e estratégias na tentativa de explorar a vantagem inicial da People Express em termos de custo e posição no mercado. Eles experimentam promoções de marketing e reduções de preço. Experimentam a contratação de mais pessoal de serviço e menos pessoal de serviço. Tentam não expandir a frota com tanta rapidez e tentam expandi-la mais rapidamente. Experimentam redefinir o “escopo” dos serviços da People, a fim de incluir mais ou menos serviços pela mesma tarifa básica. (SENGE, 2008 p.162)

Mais do que “testar” diferentes decisões, gostamos da ideia de que isso possa

inferir uma mudança de intenção que, salientada pelo aspecto “em situação”, tende a

ajudar o próprio sujeito a responder a indagação: “o que você quer” e “por que você

quer?”. Obviamente, no jogo podemos encontrar problemas de construção de sentido,

uma vez que neste meio pode “faltar mundo”, todavia cremos no aumento das

possibilidades de saliências gerado por ele dado o contexto em que o jogo é inserido, a

situação apresentada ao jogador, o interesse gerado por meio de um cenário próximo ou

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afastado da realidade, a busca pela solução de desafios e pela permanência, o esforço e

as implicações do reconhecimento de um novo meio, e a forma como a mensagem

principal adentra os jogadores.

No jogo Black and White (Lionhead Studios ) o jogador faz o papel metafórico

de Deus e, dependendo das suas escolhas, pode deixar os habitantes da vila do jogo

calma, nervosa, irritada, amedrontada etc. Além disso, o jogador terá que “criar” uma

criatura (animal) que será a sua conexão com o mundo.

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Dessa forma, quando falamos em construção de sentido, nos baseamos nas

experiências dos sujeitos e na forma como eles buscam significado para as suas ações.

Esse significado não é gerado pelo computador, basta uma análise criteriosa dos estudos

sobre Inteligência Artificial, os quais debatem sobre o fato de que o computador

manipula informação e não significado. Uma das críticas de Searle à IA é justamente o

fato de o computador não ter uma intenção, mas advém de uma história de vida

marcada pela cultura e pela forma que percebemos o mundo.

Assim, para sobressaltar algo num grande plano de fundo, os jogos, mais do que

processar informação, precisam ter um significado e um sentido para que o

jogador/colaborador tenha um desenrolar cognitivo. Para isso, contamos com duas

ajudas fundamentais. Os construtores de jogos, mais do que representar dados, precisam

entender a funcionalidade e a intencionalidade dos aspectos a serem experenciados.

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Além disso, a apresentação do curso e/ou do programa de formação no qual o jogo se

insere deve seguir um desenho pedagógico e instrucional, que, por sua vez, precisa ser

claro para os colaboradores. Estes devem ser “chocados”, no sentido de ter uma

intenção diante do que é apresentado e, junto a compreender o que se passa no jogo para

estruturar o que fará e quanto tempo ficará lá, também vão sentir todos os movimentos

que trarão sentido à sua ação de jogar.

Daí, surge a relação com os três indicadores da complexidade de Morin (2007).

Primeiramente, o fator dialógico. No jogo, eu observo aquilo que eu percebo, há um

diálogo constante da pessoa com ela mesma e com o que está externo a ela. Esses

diálogos são marcados pela dança dos opostos que se complementam. O pensamento vai

ao encontro do princípio dialógico – pensamento chama a presença de outro pensamento

– e promove um movimento de tensão – não tem uma resposta pronta – já que é sempre

pronto para ser alterado. Em segundo, o fator recursivo. É certo que o jogador faz o

jogo, assim como o jogo faz o jogador. Essa contínua relação está presente em toda

interação “sujeito versus meio ambiente”, sendo que no jogo a organização primária de

dados é preservada e o caos a ser criado tende a manter esta organização ao mesmo

tempo em que altera outras estruturas, incluindo a nossa própria (emocional e cultural).

Em terceiro, o fator hologramático. O todo (ambiente macro do jogo) interfere nas

partes (jogadores, fases, subsistemas) e se algo se ausenta; o todo não é mais o mesmo.

However, learning about complex systems when you also live in them is difficult. We are all passengers on an aircraft we must not only fly but redesign in flight. (STERMAN, 2000, p.4)

Quando falamos em pensamento sistêmico, complexidade, percepção, intenção

nos aproximamos do termo “construção”, pois você constrói uma forma de pensar, uma

maneira de resolver, constrói relações e constrói o mundo. O tempo passa a ser

despercebido e você só o reconhece quando faz uma retrospectiva do início da

experiência já, há muito, vivida. E, assim, a construção marca o sujeito. Para sempre.

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Essa construção também enriquece o nosso repertório e amplia nossos parâmetros de

comparação. Com eles delimitamos o contorno das futuras escolhas para depois forçar

os traços e pintar com as cores que quisermos, caso contrário a regra básica seria seguir

o pré-determinado. Mas e se esse pré-determinado não tiver um significado para o

sujeito?

Com isso queremos nos aproximar da ideia de que a construção no jogo é uma

ação do sujeito ativo que se movimenta na direção do meio que deverá ser

desconcertante para chamar a sua atenção. Retomamos, assim, o pensamento de que a

intenção diante de uma situação se formará num ambiente em que tanto a agonia quanto

a brincadeira estejam entrelaçados. Os jogadores têm intenções e, da mesma forma que

num ensaio de dança, os seus passos no jogo devem ultrapassar a lógica e alcançar um ir

por ir, “sem pensar”: os movimentos simplesmente vão e cravam nossas pegadas em

jogadas. A grande ambigüidade está no fato de que ao final do jogo, basta desligar um

botão.

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Capítulo 4 – Novas versões

Há muitas maneiras de construirmos a nossa jornada, escolhermos os nossos

passos e estabelecermos um diálogo com outras pessoas. Caminhando num estar

conjunto, a singularidade de cada indivíduo torna humanamente impossível seguirmos

um mapa único. Na incerteza sobre nós e na dúvida sobre o meio a segurança não virá

com a igualdade do caminhar. Talvez ela se manifeste a partir do momento em que cada

um souber mais a respeito de si. Na verdade, ela nunca virá e por isso resolvemos

inserir na nossa trilha saídas contra a efemeridade da vida. Na forma como o mundo se

manifesta para nós e na forma como nós atingimos esse mundo não há um jeito fixo,

pré-estipulado, e entre esse lá e cá adentramos num túnel guardador dos fenômenos que

entrelaçam sujeito e meio. No nosso estar no mundo buscamos o mínimo de segurança

para nos mantermos, para constituirmos o nosso self, para lidarmos com as frustrações,

para mudarmos de lugar sem nos atropelar e sem atropelar os outros. Constituímos um

eu e passamos a perceber o não-eu; primeiro criamos o ambiente e depois o recriamos.

Winnicott nos ensina que esta criatividade é o viver e nele usamos um espaço em

potencial capaz de misturar o eu e o não-eu, impulsionando para os dois lados o

equilíbrio das nossas sensações. Ora, neste viver os sujeitos tomam sua posição de

forma a serem reconhecidos diante de um emaranhado e usam sua criatividade para

aliviar a tensão do viver e a compreensão do entorno, graças ao desenvolvimento de

uma consciência própria.

O que nos falta é, sem dúvida, a coragem e também uma espécie de vigilância [...], uma disposição a manter-se em alerta, a aproveitar toda oportunidade de compreender um pouco melhor quem somos. (PERRENOUD, 2001, p. 183)

O semblante de cada um continuamente se altera, dependendo da situação, da

colocação, do querer, do entendimento, do perceber, e tende a indicar o estilo de um

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próximo gesto. Na decodificação do mundo os indivíduos devem se espremer com o

intuito de dar vazão a uma forma de se expressar, assinando sua atuação. Compreender

o meio em que se está não é tarefa fácil, afinal o meio é vivo, tão vivo quanto nós. Os

dois são uma incógnita e um rebate sobre o outro. Encontrar a sua forma de estar no

mundo e suprir a aceitação de que as coisas não têm um só jeito são tarefas primárias

para se alcançar uma maneira própria de gozar a vida. Assim, abrem-se as cortinas para

o “espaço de criação”, dada a exigência incessante de lidar com os seguintes quesitos: a

relação de entendimento do meio, a busca por soluções de problemas como forma de

permanência, a complexidade e a tendência ao indeterminado.

Diante desse contexto, dos diversos pensamentos e das inúmeras reflexões

advindas com esta pesquisa, cremos que os jogos de negócio digitais se caracterizam

como um “espaço de criação” – na concepção de Winnicott – já que nele encontramos o

que nós classificamos como as pistas manifestadoras da criatividade: a brincadeira, a

agonia e a intencionalidade do sujeito. Assim sendo, o jogo pode ser capaz de

desenvolver nos jogadores/colaboradores habilidades cognitivas diferenciadas, já que a

experiência do jogar alimenta o lúdico, desenquadrando nosso agir; oferece desafios e

múltiplas formas de nos mantermos, enquadrando nosso estar; e estimula atos de

observação e reflexão, promovendo a busca pelas nossas intenções, o saber relacionar-

se e o autoconhecimento.

A estripulia do desenquadramento é o jogo e está no jogo. Ela desfaz a rotina

usual das ações dos colaboradores ao mesmo tempo em que leva o lúdico e um ser e

fazer diferentes para dentro de um cenário fictício. A empresa pode usufruir de uma

metáfora que afaste o colaborador do seu contexto e o permita ver-se de fora, de uma

linguagem narrativa envolvente que o leve com maestria até o final do jogo, do fato dele

poder ser outra pessoa que não ele próprio, de um visual artístico e das mensagens

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subliminares das imagens. Na brincadeira, o pensamento segue um caminho líquido, a

experimentação tem um leque de possibilidades, os sentidos são fundados e infundados.

Os jogadores transitam em vias antagônicas de sensações e exteriorizam a sua

subjetividade. Para tomar uma decisão, junta-se o que foi vivido, observa-se o que se

sente - qual afeto, qual respeito, qual dedicação se colocam. Porque antes de se tomar

uma decisão é preciso mergulhar neste mundo e em seu eterno impasse de ser

desafortunadamente deixado de lado diante dos quesitos rapidez e urgência. O

desenquadramento nos torna levemente presentes e nos arremete com o seu carisma.

Contudo, nem só de ar vive o ser humano. Se formos leves demais talvez

fiquemos com os pés bem longe do chão; se formos fixos demais talvez nossos pés

fiquem cravados na terra e não consigamos caminhar. No cotidiano social nos

enterramos, andamos, voamos de maneira absolutamente intrincada e por conta deste

elo nenhuma maneira é melhor ou pior, acabamos fazendo as pazes com o mundo, ou

melhor, com um mundo - aquele que seremos capazes de perceber.

Nossas experiências poderiam se localizar no eixo zero da abscissa, tendendo ao

equilíbrio e ao controle. Como se perder seguindo numa linha reta? Perder o rumo seria

muito difícil, mas e se perdêssemos os parâmetros de comparação das nossas sensações?

Como saber o que é demasiadamente interessante, bom, apaixonante, se não sabemos

profundamente o que é a frustração, a desesperança, o desdém? Afinal, a amplitude

das sensações será esticada quando as experenciarmos lá em cima e lá embaixo do eixo.

As intensidades serão diferentes entre permanecer no zero e se movimentar como onda,

contudo, cremos que o jogo como um “espaço de criação” trabalha com antagonismos

ondulares que, obviamente, não excluem o eixo zero, mas convivem com ele,

harmonicamente, até porque não poderíamos ir lá pra cima ou lá pra baixo se ele não

existisse. Para a experiência do jogar, cabe recordarmos do comentário feito por

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Marcoullier, responsável pelo business game da empresa Cyberlore: “Regardless, game

developers have a huge competitive advantage when it comes to creating engaging

experiences”. (MICHAEL; CHEN, 2005, p.169).

A cautela do enquadramento é o jogo e está no jogo. Ao mesmo tempo em que

será preciso estar, tem-se bom senso para se adaptar ao meio e agir conforme suas

regras. A empresa pode usufruir do fato de os colaboradores buscarem alternativas para

vencer o jogo, procurando interagir no ambiente, analisando-o e pensando nas

implicações de suas ações como um todo. A visão estratégica e a forma como lidam

com as relações sistêmicas podem trazer grandes ganhos para o contexto corporativo.

Tais ambientes de jogo podem se aproximar daqueles similares ao que o colaborador já

trabalha, por exemplo, um jogo para revendedores de uma indústria farmacêutica cujo

objetivo seja vender a maior quantidade de remédios possíveis para médicos

hospitalares, e podem também se afastar da vivência do colaborador, por exemplo, um

jogo para líderes de uma empresa alimentícia cujo objetivo seja ser o promoter (líder)

de uma famosa banda de música.

A emergência da intencionalidade do sujeito sacode os quereres dos indivíduos,

fazendo-os sair de sua bolha protetora para se manifestar no mundo com sabedoria,

construindo a singularidade das suas intenções. O jogo de negócio estrutura-se como

uma amostra situacional e tende a gerar uma experiência de sentido. O jogador vê-se em

Flow, “um estado mental no qual a pessoa funde ação e consciência desconectando-se

de seu entorno e engajando-se numa atividade que passa a ser um fim em si mesma”

(TORI, 2008, p.447), e define suas intenções, brinca com elas, indo do provável ao

improvável, abrindo um leque de possibilidades de vivências para refletir não só sobre o

que quer, mas sobre o que sabe e o que não sabe.

O conhecimento do conhecimento obriga. Obriga-nos a assumir uma atitude de permanente vigília contra a tentação da certeza, a reconhecer que nossas certezas não são prova da verdade, como se o mundo que cada um vê fosse o

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mundo e não um mundo que construímos juntamente com os outros. [...] o ponto central é que assumir a estrutura biológica e social do ser humano equivale a colocar no centro a reflexão sobre aquilo de que ele é capaz e que o distingue. Equivale a buscar as circunstâncias que permitem tomar consciência da situação em que se está – qualquer que seja ela – e olhá-la a partir de uma perspectiva mais abrangente, a partir de uma certa distância. (MATURANA; VARELA, 2007, p.267)

O “espaço potencial” de Winnicott liga o ser humano ao meio em que ele vive,

seus anseios psíquicos e biológicos juntam-se aos da cultura do espaço em que está e,

por meio de objetos e eventos de transição, os indivíduos vão de forma branda

compreendendo a si e ao mundo. Vimos que mais do que se relacionar com o “não-eu”

o esforço particular é de conhecer o próprio “eu” - a relação de ambos tenciona todos os

seres a serem criativos no seu fazer. O “espaço de criação” dá as mãos ao “espaço

potencial”, pois ele é o alicerce para que os indivíduos, neste ser e estar no mundo de

forma consciente, formatem os seus gestos e na sua presença manifesta criem maneiras

singulares de transformar a realidade em que vivem. Acreditamos que esta

transformação mexe com a criação e recriação de sentidos e com a forma como

percebemos o mundo em que vivemos. Assim, para darmos aos nossos gestos a nossa

cara sendo criativos no nosso viver, os enquadramos e desenquadramos de acordo com

o apontamento de nossas intenções. Os jogos possuem a brincadeira da existência de

uma rota de fuga para a ludicidade de desenquadrar o agir humano; possuem a agonia

de enquadrar o nosso agir, nos fazendo estar, nos amarrando em um meio no qual

buscamos permanecer e, por fim, possui o caráter impar de recepcionar diversas

intenções.

Para as empresas o jogo é uma ótima fonte de expressão, entretanto, para que

aproveitem todas as potencialidades trazidas é preciso que elas cultuem a abertura das

manifestações expressivas dos colaboradores. Obviamente, depois dessa abertura a

diferentes ideias e discursos, filtram-se aqueles aplicáveis à estratégia da corporação.

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Caso a abertura se feche, provavelmente a empresa não será sustentável a longo prazo,

já que esta ruptura não combina com a fluidez, a emergência de mudança, a busca de

soluções inteligentes e o advento da sociedade do conhecimento, atualmente tão em

voga no discurso do setor corporativo. A empresa considera o “humano” dos

colaboradores e eles consideram o rumo a ser traçado por ela. Ela faz com que ele

pertença e ele faz com que ela se desenvolva, pois acredita e vê prazer naquilo que fará

para ajudá-la. Altera-se o caráter dos programas de educação corporativa e a amplitude

que eles podem alcançar. Acreditamos na característica expansiva da empresa e do jogo

e em como esta união tende a favorecer uma metamorfose no sujeito e no meio em que

ele interage. Os colaboradores poderão atuar satisfatoriamente num universo on-line e

traduzir o seu aprendizado para a sua vida real. A avaliação dessa tradução é algo a ser

pensado, e mesmo não compondo nosso objetivo neste estudo, salientamos a

importância de se refletir a respeito desse quesito.

Traçando uma correspondência do jogo como um “espaço de criação”, como

avaliar o impacto do jogar nos sujeitos envolvidos? Poderíamos, claro, avaliar se a

necessidade da empresa que a levou a oferecer aquele jogo foi sanada. Por exemplo, um

jogo desenvolvido para liderança com o intuito de reduzir o turnover de funcionários

pode ser avaliado em cima dessa redução. Outro jogo cujo objetivo da empresa é

descobrir o método de gestão dos colaboradores, pode ser avaliado de acordo com o

resultado do jogo: aqueles que focam em resultado e aqueles que se preocupam com

bem-estar, satisfação e sabem lidar com imprevistos.

Jairo E. Borges-Andrade, quando nos fala sobre a avaliação integrada e

normativa, cita Hamblin13 e sua divisão sobre os três níveis de efeito de longo prazo da

avaliação:

13 Charles Hamblin – filósofo e pesquisador australiano.

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Comportamento no cargo, ou utilização no trabalho, pelos participantes, dessas competências; Organização, ou mudanças que podem ter ocorrido no funcionamento da organização em que trabalham esses participantes; Valor final, ou alterações na produção ou nos serviços prestados por estar organização, ou outros benefícios sociais e econômicos. (HAMBLIN, 1978 apud BORGES-ANDRADE, 2006, p. 344-345)

Ainda assim, precisaríamos de um estudo mais criterioso sobre esse tema.

Partiríamos do fato de que a avaliação da eficiência do jogo para as corporações talvez

se aproxime mais, na verdade, do movimento de cada jogador em descrever e contrapor

intenções.

Além da avaliação, outro fator mereceria maior atenção. Os jogos de negócio

tendem a reproduzir a concepção-mor das empresas de competitividade. Ora, uma

cultura na qual isso seja fortemente enraizado no cotidiano dos colaboradores pode

gerar alguns desvios dos valores relacionados com a ideia de colaboração. Ao nosso ver,

as empresas devem aproveitar mais os jogos como ferramentas de colaboração, como,

aliás, a indústria do entretenimento já o faz, a fim de alimentar em cada pessoa a

importância dela perceber o outro, notar que ele tem um papel fundamental e que ela

precisa agir para ela e para ele.

Imaginemos um jogo no qual o objetivo é cuidar do outro, a lógica do “cada um

por si” se desfaz diante da nova ordem “todos juntos”. Genghis Khan, grande

estrategista e líder do exército mongol, em uma de suas estratégias de guerra, conseguiu

ultrapassar a Muralha da China juntando seu exército e fazendo-os lutar em conjunto em

nome da causa maior que os levaram para aquela batalha. Dizer que uma flecha sozinha

se arrebenta, mas todas juntas não, é simples, porém fazer com que isso adentre a forma

de ser das pessoas é algo bem mais complexo. A competitividade exarcebada pode gerar

não uma luta conjunta, mas uma luta onde cada um deve ser melhor do que o outro. O

jogo pode ir para os dois lados. Cabe às empresas analisarem a sua própria cultura e o

objetivo que desejam alcançar.

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Sem amor, sem a aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade. Qualquer coisa que destrua ou limite a aceitação do outro, desde a competição até a posse da verdade, passando pela certeza ideológica, destrói ou limita o acontecimento do fenômeno social. (Maturana e Varella; 2007, p.269)

Por sua vez, a tendência tecnológica dos jogos - controles que captam

movimentos, formação de comunidades on-line de desenvolvimento, ferramentas

geradoras de jogos multiplayer e cooperative player mode - precisa adentrar as

empresas de forma que os próprios colaboradores ajudem na atualização do jogo, ou

mesmo, que sejam os próprios criadores, que eles joguem com personagens reais

(outros colaboradores) e não com personagens criados para o jogo, assim como também

se unam numa plataforma on-line e articulem estratégias juntos para vencer. O impacto

da tecnologia não deve passar despercebido. Como já apontou MacLuhan em 1964,

“não é ao nível das ideias e dos conceitos que a tecnologia tem os seus efeitos; são as

relações dos sentidos e os modelos de percepção que ela transforma pouco a pouco e

sem encontrar a menor resistência.” (2001, p. 64) Diante disso, devemos nos atentar

para onde ela está nos levando.

Adentramos no contexto atual das empresas e identificamos aspectos favoráveis,

à luz do “espaço de criação”, a respeito da inserção dos jogos de negócios digitais em

seus programas de formação. Contudo, tanto no presente quanto no devir, o impacto dos

jogos, ainda mais aqueles mediados por uma mídia digital, precisa ser visto e revisto

com cuidado. A afirmação de que os jogos digitais tendem a gerar a promoção de uma

experiência de sentidos, não exclui o repensar contínuo sobre como essa promoção

impacta e impactará no nosso perceber.

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