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Quinta-feira, 18 de março: uma manifestação estranha e comovente toma conta do Centro Histórico de Salvador. Quase mil pessoas, com bandeiras e faixas, apitos e carta- zes, caminham juntas, sob olhares curiosos dos turistas. Um mês antes, no dia 22 de fevereiro, domingo de Carna- val, uma cena semelhante: centenas de crianças, velhos, jo- vens e adultos percorrem uma das principais avenidas da cidade. Eles carregam em sacolas ou sacos de lixo tudo o que possuem. Dos prédios e das ruas recebem gestos de apoio e solidariedade. Depois de 2 quilômetros de estrada chegam à sede de um tradicional clube da elite baiana. “É aqui!”, grita Idelmário de Jesus. E a marcha pára. Mas quem são? O que pretendem? Para onde vão? Eles são a conse- qüência, terrível e previsí- vel, de cinco séculos de in- justiça e resignação, de histórias queimadas e mal contadas. Eles são os inte- grantes do Movimento dos Sem Teto de Salvador, o MSTS. Os invisíveis. A marcha do domingo de Carnaval ocupou a sede do Clube Português. Não houve problemas para entrar. Os dois vigilantes, surpresos, apenas observaram a destruição de um cadeado velho, na porta principal. Todos entraram lentos, mas decididos. E ali mes- mo, ainda com seus objetos pessoais nas mãos, foram forma- das equipes para cuidar da segurança, alimentação e limpe- za. O clube, localizado na orla, tem aproximadamente 2.000 metros quadrados, está abandonado há anos e acumula uma dívida junto à prefeitura de 6 milhões de reais. Desde aquele dia, 405 pessoas, entre elas 81 crianças, vivem naquele lugar. A caminhada de 18 de março não terminou em nenhum clube, terreno ou edifício abandonado. O objetivo era ou- tro. Era apenas uma “passeata pedagógica”. Os sem-teto, guiados por dois professores universitários, passaram por centenas de estátuas e monumentos históricos da capital. E, durante cinco horas, debateram sobre a vida (a oficial e a silenciada) de cada um daqueles personagens. Para João Dantas, 48 anos, um dos coordenadores do MSTS, “o gran- de mérito do Movimento Sem Terra foi transformar as pes- soas mais marginalizadas em sujeitos políticos, e isso aconteceu porque lá há uma constante reflexão sobre nos- sos personagens históricos e de que lado cada um estava. Queremos fazer isso também aqui, no MSTS”, revela. Entre uma estátua e outra, os sem-teto mandaram, com os gritos de ordem, recados ao prefeito, ao governador e ao presidente da República: “Imbassahy, Paulo Souto e Lula Lá, nós queremos teto pra morar”. “É ou não é piada de sa- lão? Tem dinheiro pra banqueiro, mas não tem pra habita- ção.” E mais: “Nossa luta é pra valer, queremos teto pra vi- ver”. A marcha terminou na praça Castro Alves, com dis- cursos e um recital de poesia. Segundo estudos da Câmara Brasileira da Construção, existem no Brasil 20,2 milhões de sem-teto. Só na capital baiana, o déficit habitacional é de 150.000 casas e um terço dos domicílios está em favelas ou loteamentos irregulares. A saída para essa situação, dizem os integrantes do MSTS, é lutar por uma reforma urbana. Para eles, as mar- chas e ocupações são formas legítimas de pressão política e um meio de sensibilizar o governo e a sociedade. Além disso, explica Pedro Cardoso, 40 anos, outro dos coordena- dores do Movimento, “a luta pela moradia é apenas um mecanismo na busca pela justiça, liberdade e igualdade. Não queremos apenas um teto para morar, queremos de- senvolver valores de solidariedade e cooperação. Queremos levantar discussões sobre nossas raízes e nossa realidade, para que a gente possa entender o porquê de nossa situa- ção e o caminho para superá-la”. O tom do desafio pode parecer quixotesco, mas poucos duvidam de sua importância e urgência. Quanto maior é a exclusão social, mais assustadores são os números sobre a violência urbana. Para ter idéia, só nos dois primeiros me- ses deste ano, 159 pessoas foram assassinadas na Bahia. AS CRIANÇAS O Movimento dos Sem-Teto de Salvador foi criado em 20 de julho do ano passado. Não surgiu de forma organizada nem planejada. “Depois de muitos despejos e muitas porra- das da polícia, a gente viu a necessidade de fortalecer a luta”, explica Pedro Cardoso. Na época, eram 720 integran- tes. Hoje, apenas oito meses depois, já são mais de 15.000 pessoas cadastradas. E o movimento não pára de crescer. “Nossa organização surge porque cansamos de acreditar em promessas. Nós não queremos um Estado paternalista, queremos um Estado justo, onde cada um faça a sua parte”, argumenta Idelmário Proença de Jesus, de 39 anos. É por isso que, numa área já cedida pela prefeitura, os sem-teto a marcha dos Fernando Evangelista PELAS RUAS DE SALVADOR CAMINHAM CENTENAS DE PESSOAS TENDO NA MÃO SACOS DE LIXO COM TUDO O QUE POSSUEM. NÃO TÊM ONDE MORAR, NEM MESMO NA AREIA. SÃO O RESULTADO DE QUINHENTOS ANOS DE EXPLORAÇÃO E DE EXCLUSÃO Pedro Cardoso O acampamento dos sem-teto na capital baiana: longe do folclore carnavalesco FOTOS: FERNANDO EVANGELISTA invisíveis

A marcha dos invisiveis

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Fernando Evangelista • Revista Caros Amigos, edição nº 85 • Salvador, Brasil • Reportagem sobre o Movimento Sem Teto de Salvador

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Page 1: A marcha dos invisiveis

Quinta-feira, 18 de março: uma manifestação estranha e

comovente toma conta do Centro Histórico de Salvador.

Quase mil pessoas, com bandeiras e faixas, apitos e carta-

zes, caminham juntas, sob olhares curiosos dos turistas.

Um mês antes, no dia 22 de fevereiro, domingo de Carna-

val, uma cena semelhante: centenas de crianças, velhos, jo-

vens e adultos percorrem uma das principais avenidas da

cidade. Eles carregam em sacolas ou sacos de lixo tudo o

que possuem. Dos prédios e das ruas recebem gestos de

apoio e solidariedade. Depois de 2 quilômetros de estrada

chegam à sede de um tradicional clube da elite baiana. “É

aqui!”, grita Idelmário de Jesus. E a marcha pára.

Mas quem são? O que

pretendem? Para onde

vão? Eles são a conse-

qüência, terrível e previsí-

vel, de cinco séculos de in-

justiça e resignação, de

histórias queimadas e mal

contadas. Eles são os inte-

grantes do Movimento

dos Sem Teto de Salvador,

o MSTS. Os invisíveis.

A marcha do domingo

de Carnaval ocupou a sede do Clube Português. Não houve

problemas para entrar. Os dois vigilantes, surpresos, apenas

observaram a destruição de um cadeado velho, na porta

principal. Todos entraram lentos, mas decididos. E ali mes-

mo, ainda com seus objetos pessoais nas mãos, foram forma-

das equipes para cuidar da segurança, alimentação e limpe-

za. O clube, localizado na orla, tem aproximadamente 2.000

metros quadrados, está abandonado há anos e acumula uma

dívida junto à prefeitura de 6 milhões de reais. Desde aquele

dia, 405 pessoas, entre elas 81 crianças, vivem naquele lugar.

A caminhada de 18 de março não terminou em nenhum

clube, terreno ou edifício abandonado. O objetivo era ou-

tro. Era apenas uma “passeata pedagógica”. Os sem-teto,

guiados por dois professores universitários, passaram por

centenas de estátuas e monumentos históricos da capital.

E, durante cinco horas, debateram sobre a vida (a oficial e

a silenciada) de cada um daqueles personagens. Para João

Dantas, 48 anos, um dos coordenadores do MSTS, “o gran-

de mérito do Movimento Sem Terra foi transformar as pes-

soas mais marginalizadas em sujeitos políticos, e isso

aconteceu porque lá há uma constante reflexão sobre nos-

sos personagens históricos e de que lado cada um estava.

Queremos fazer isso também aqui, no MSTS”, revela.

Entre uma estátua e outra, os sem-teto mandaram, com

os gritos de ordem, recados ao prefeito, ao governador e ao

presidente da República: “Imbassahy, Paulo Souto e Lula

Lá, nós queremos teto pra morar”. “É ou não é piada de sa-

lão? Tem dinheiro pra banqueiro, mas não tem pra habita-

ção.” E mais: “Nossa luta é pra valer, queremos teto pra vi-

ver”. A marcha terminou na praça Castro Alves, com dis-

cursos e um recital de poesia. Segundo estudos da Câmara

Brasileira da Construção, existem no Brasil 20,2 milhões de

sem-teto. Só na capital baiana, o déficit habitacional é de

150.000 casas e um terço dos domicílios está em favelas ou

loteamentos irregulares.

A saída para essa situação, dizem os integrantes do

MSTS, é lutar por uma reforma urbana. Para eles, as mar-

chas e ocupações são formas legítimas de pressão política

e um meio de sensibilizar o governo e a sociedade. Além

disso, explica Pedro Cardoso, 40 anos, outro dos coordena-

dores do Movimento, “a luta pela moradia é apenas um

mecanismo na busca pela justiça, liberdade e igualdade.

Não queremos apenas um teto para morar, queremos de-

senvolver valores de solidariedade e cooperação. Queremos

levantar discussões sobre nossas raízes e nossa realidade,

para que a gente possa entender o porquê de nossa situa-

ção e o caminho para superá-la”.

O tom do desafio pode parecer quixotesco, mas poucos

duvidam de sua importância e urgência. Quanto maior é a

exclusão social, mais assustadores são os números sobre a

violência urbana. Para ter idéia, só nos dois primeiros me-

ses deste ano, 159 pessoas foram assassinadas na Bahia.

AS CRIANÇASO Movimento dos Sem-Teto de Salvador foi criado em 20

de julho do ano passado. Não surgiu de forma organizada

nem planejada. “Depois de muitos despejos e muitas porra-

das da polícia, a gente viu a necessidade de fortalecer a

luta”, explica Pedro Cardoso. Na época, eram 720 integran-

tes. Hoje, apenas oito meses depois, já são mais de 15.000

pessoas cadastradas. E o movimento não pára de crescer.

“Nossa organização surge porque cansamos de acreditar

em promessas. Nós não queremos um Estado paternalista,

queremos um Estado justo, onde cada um faça a sua parte”,

argumenta Idelmário Proença de Jesus, de 39 anos. É por

isso que, numa área já cedida pela prefeitura, os sem-teto

a marcha dosFernando Evangelista

PELAS RUAS DE SALVADOR CAMINHAM CENTENAS DE PESSOAS TENDO NA MÃO SACOS DE LIXO COM TUDO O QUE POSSUEM. NÃO TÊM ONDE MORAR, NEM MESMO NA AREIA. SÃO O RESULTADO DE QUINHENTOS ANOS DE EXPLORAÇÃO E DE EXCLUSÃO

Pedro Cardoso

O acampamento dos sem-teto na capital baiana: longe do folclore carnavalesco

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invisíveis

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trabalham em mutirão para construir as casas. “O Estado

faz a sua parte, nós fazemos a nossa”, completa Idelmário.

O MSTS é formado por empregadas domésticas, traba-

lhadores da construção civil, catadores de lixo e desempre-

gados. A maioria são mulheres, 70 por cento, aproximada-

mente. Embora as lideranças sejam ligadas à religião cató-

lica, boa parte dos integrantes freqüenta igrejas evangéli-

cas. Muitas dessas pessoas moravam de aluguel, mas fo-

ram despejadas por não terem pago a locação. Outras mo-

ravam em albergues ou em uma casa com várias famílias.

Algumas viviam em lugares em risco de desabamento, ou-

tras viviam nas ruas.

Já são mais de dezesseis áreas, entre prédios e terrenos,

ocupadas pelo Movimento na capital baiana. O primeiro e

maior desses acampamentos fica próximo ao Aeroporto

Internacional Deputado Luís Eduardo Magalhães. Ali, 648

famílias estão à espera de uma casa. O acampamento, que

parece uma grande favela, foi construído na encosta de

um morro. O calor, as ruelas íngremes e os barracos gruda-

dos uns nos outros ampliam a sensação de aperto e des-

conforto. São centenas de “casas” de lona preta e madeira.

Algumas são feitas apenas de papelão, nenhuma delas tem

mais de 2 metros quadrados.

Ao chegar lá, peço para falar com o coordenador do

acampamento. “Não, meu amigo”, responde um senhor,

sentado na entrada, “aqui quem manda é uma mulher. A

coordenadora é a Graça.” Com o meu bloco de notas nas

mãos e a máquina fotográfica pendurada no pescoço, vou

atrás dela. Antes de encontrar a coordenadora sou aborda-

do por uma menina.

– Você é gringo? – ela pergunta.

– Não – respondo.

– Mas parece, pela cara e pelas fotos, são os gringos que

batem foto.

Eu dou uma risada, mas ela permanece séria.

– Qual é o teu nome?

– Me chamo Lavinha dos Santos Menezes.

E me mostra seis dedos miúdos marcados de poeira.

– Essa é a minha idade – ela diz.

– Seis anos! – digo, surpreso. – Você mora aqui?

– Moro, mas não é pra sempre, não.

De repente, do nada, começam a aparecer crianças de

todos os cantos: da esquerda, da direita... um mundaréu

delas, quase todas negras. E perguntam de onde sou, quem

sou, pedem foto, “uma foto com o meu irmão”, “faz uma

foto da minha boneca?”, “uma foto da bola de futebol?”,

“uma foto do cachorro?” “faz uma foto da minha casa?”

Vou caminhando. No chão, misturam-se lama e lixo. Ao

avistar a coordenadora,

me sinto aliviado, a salvo.

As crianças vão se disper-

sando, em busca de algu-

ma coisa mais divertida

para fazer.

– Seja bem-vindo –

cumprimenta Maria das

Graças Dias, a Graça. – Foi

aqui que tudo começou.

A coordenadora con-

ta, com olhos vivos e voz

decidida, a história da-

quele acampamento e daquelas pessoas. Mostra o seu

barraco, onde está escrito, acima da porta: “Deus é fiel”.

Conta que no primeiro dia deste ano um incêndio destruiu,

em poucos minutos, 32 barracos. Conta do sonho de

montar uma cooperativa dos acampados, conta das reu-

niões, brigas e acordos com os órgãos públicos, fala sobre

as misérias e as belezas do Brasil:

– O que falta para o país dar certo não é competência,

o que falta é honestidade na política, falta caráter aos ho-

mens públicos.

Perto de nós está Vivaldo José dos Santos, de 81 anos.

– Olha, no meu tempo, eram os homens que manda-

vam e as mulheres obedeciam, agora é o contrário – diz,

rindo, com uma voz rouca e sonora.

Vivaldo é um dos mais ativos participantes do Movi-

mento. Entre seus feitos, que ele mesmo narra, sem cansa-

ço e sem modéstia, está a marcha de 21 de agosto do ano

passado. Em comemoração ao Dia Nacional de Luta pela

Moradia, os sem-teto percorreram 32 quilômetros.

– Eu estava lá – conta, com entusiasmo.

Dona Clementina Maria de Jesus, sua amiga, é outra

presença constante nas manifestações. Ela tem 82 anos.

– Meu maior sonho é ter o que nunca tive, uma casinha.

Dona Clementina começou a trabalhar, nas fazendas da

Bahia, com 5 anos de idade. Hoje é aposentada, recebe 240

reais mensais.

Observo, andando entre os barracos, que não existem

banheiros no acampamento. Os sem-teto fazem suas ne-

cessidades em sacolas e jogam nas únicas duas latas de

lixo oferecidas pela prefeitura. Aliás, essas latas são a úni-

ca presença do poder público naquela área. Ao contrário

dos acampamentos do

Movimento Sem Terra,

aqui não há escolas nem

depósitos onde se guar-

dam alimentos e remé-

dios. A última atividade

para crianças foi um co-

ral de Natal, organizado

por algumas mulheres

acampadas.

Pergunto a Graça qual

é o maior problema que

eles enfrentam.

– É a falta de alimento. Muita gente passa fome aqui.

Mas, em seguida, como se não suportasse o discurso da

autopiedade, ela diz que sobre uma área cedida pela pre-

feitura aos sem-teto estão sendo construídas 350 casas.

– Isso é o resultado das nossas lutas – comemora.

OS ARTISTASÉ estranho. Em meio à miséria extrema, onde tudo fal-

ta, as pessoas parecem manter a cabeça erguida.

– Ter entrado nesse Movimento foi a melhor coisa que

me aconteceu, tenho crescido e aprendido muito aqui –

diz a acampada Luciana Moura Gonçalves, de 29 anos. –

Agora, eu tenho a esperança concreta de ter uma casa.

Ela revela que, quando não está nas reuniões ou em

passeatas, usa o tempo livre para escrever letras de músi-

ca. Peço que cante alguma coisa. Luciana vai até o barraco

e traz uma das suas composições, inspirada no samba

clássico de Luís Antônio e J. Júnior. Ela conta e canta:

– Lá vem Maria,/ lata d’água na cabeça,/ água barrenta

da fonte do seu José,/ pois não há água no sertão tempo de

seca,/ então Maria pega água onde tiver.

Luciana canta com ritmo e poesia, tem uma voz doce e

bonita. A música tem quatro estrofes e termina assim:

– Lá vem Maria, que alegria,/ há uma certeza nos olhos

CAROS AMIGOSA B R I L2 0 0 4 19

O Clube Português, ocupado por 405 pessoas, das quais 81 são crianças

Maria das Graças Dias

Dona Clementina Maria de Jesus

evangelista 1 30.03.04 8:30 PM Page 19

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dessa mulher/ que terá chuva na terra seca/ para Maria

plantar tudo o que puder.

Luciana não é única artista naquele acampamento

dos sem-teto. Tem o Raimundo Nonato, que, com palha

de dendê, faz cadeiras, mesas, sofás, armários; tem a Sô-

nia dos Reis, que faz bonecas de pano e lã; tem uma ou-

tra senhora que faz todo tipo de roupa com material re-

ciclado; tem os meninos que fazem, com latas velhas,

uma orquestra de percussão. E tem o alagoano José de

Andrade, de 27 anos, artista plástico. Ele me mostra fo-

tos de uma maquete de navio e uma representação da

Última Ceia, de 2 metros de largura, esculpida em madei-

ra de jacarandá.

– Todas as duas obras foram vendidas – diz o autor,

orgulhoso.

Pergunto a José

como ele foi parar no

MSTS. Quem responde

é Edna Santiago, de 25

anos, sua mulher, mãe

de cinco filhos e grávida

de oito meses. Ela conta

que a família morava

numa área pública, no

centro de Salvador, já

havia alguns anos.

– Até que chegaram

alguns funcionários da prefeitura e destruíram nossa

casa – relembra.

Depois de vender a geladeira, a televisão e o fogão, eles

foram viver na praia. Ficaram lá dez dias, até serem ex-

pulsos, uma vez mais. O dinheiro da venda dos eletrodo-

mésticos, que somava pouco mais de 60 reais, já tinha

terminado. Foi aí que ingressaram no Movimento.

– Tivemos sorte – diz Edna.

Faz uma pausa e completa:

– Agora, nossa dor dói menos.

O ESTADODesde o final do ano passado, o Ministério das Cida-

des elabora um plano de desenvolvimento urbano para

todas as regiões metropolitanas do país, com enfoque

em onze grandes cidades. São elas: Curitiba, Porto Ale-

gre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, For-

taleza, Belém, Manaus, os arredores do Distrito Federal e

Salvador. Ao todo, estão previstos investimentos de 12,1

bilhões de reais. As ações serão centradas em saneamen-

to, transporte e habitação. O governo estima que as no-

vas moradias, provenientes desse plano, beneficiem

710.000 famílias em todo o Brasil.

Além disso, muitos municípios já são contemplados

com recursos do Programa de Subsídio Habitacional (PSH).

Esse programa deveria viabilizar a construção de milhares

de casas (de dois quartos e sala), estimadas, cada uma, em

9.000 reais. Funciona assim: o governo federal contribui

com dois terços do valor para a construção da casa (6.000

reais). Os governos municipais e estaduais fornecem o res-

tante, em forma de terreno e infra-estrutura (3.000 reais).

O problema, diz Pedro Cardoso, “é que só o material para

construção da casa vale 9.000 reais. E não tem nenhuma

construtora que queira entrar nesse negócio”.

Para o secretário de Habitação de Salvador, Fernando

Medrado, “6.000 reais não resolvem o problema”. Segun-

do ele, desde 1986, quando foi extinto o Banco Nacional

de Habitação (BNH), o Brasil está carente de uma políti-

ca séria e eficaz nessa área. “A luta do MSTS é legítima e

importante porque pressiona o governo a criar soluções

permanentes e não paliativas. Além disso, eles sabem

dialogar e agem com responsabilidade”, reconhece.

Durante vários dias visitei prédios e terrenos ocupa-

dos pelos sem-teto. Exceto os coordenadores, nenhum

dos integrantes ouviu falar dos programas de moradia

do governo.

O COTIDIANOFinal de tarde. À beira-mar, em volta de uma das qua-

tro piscinas cheias de água podre, vermes e mosquitos do

Clube Português, conversei com a sem-teto Didirlane

Santos Cardoso, de 6 anos. A mesma idade de Lavinha,

do acampamento do aeroporto. Depois de alguns minu-

tos, num diálogo difícil e monossilábico, Didirlane se pôs

a falar e não parou mais: “Eu morava na casa da minha

avó Maria, depois morei na casa do seu Juca, depois na

casa do seu Pinho, agora moro aqui. Aqui é bom quando

eu brinco, porque quase sempre eu tenho que lavar os

pratos, arrumar a casa,

sou eu que varro a casa,

sabe? Uma menina rou-

bou uma bolsinha que

eu tinha com todo o di-

nheiro, era dinheiro de

mentira, mas era meu,

né? A gente tinha televi-

são mas queimou, mi-

nha mãe tinha telefone

mas vendeu. Meu maior

sonho? É ter roupa.

Roupa e brinquedo”.

Enquanto as mulheres lavam roupa, no tanque impro-

visado, os homens jogam futebol num campo, ainda bem

conservado, do lado oposto. As roupas ficam estendidas

numa cerca, em volta da quadra de basquete. Cada espa-

ço, dos dois andares do clube, agora é um quarto. Cada pe-

daço de pano, uma parede. E cada presente, uma bênção.

A coordenadora Lúcia Gonçalves dos Santos, 40 anos,

acampada junto com outras 153 famílias numa antiga fá-

brica de tecidos, mostra-me uma carta, em forma de diá-

rio, de uma sem-teto de 17 anos. Está escrito: “Ganhei

um cochão no movimento dia 03-03-2004 adorei apesar

que é usado mais prá quem não tinha nenhum um usa-

do tá ótimo. Dá pra eu e o amor meu nos deitarmos. De-

pois nós compramos um melhor. Ganhei também da

coordenadora um pacote de fraldas e uma mamadeira.

Fiquei muito feliz, ganhei algo novo”.

Além de enfrentar todas essas ausências e carências,

os sem-teto têm de lidar, ainda, com suas próprias con-

tradições. No acampamento do aeroporto, por exemplo,

a comissão encarregada de fazer a segurança era ligada

ao tráfico de drogas. Eram comuns brigas, ameaças de

morte, chantagens. Um homem quase morreu espanca-

do depois de um desentendimento com os traficantes.

São pequenas leis que proíbem o uso de drogas, armas

e bebidas nos acampamentos. Além do contrato de con-

vivência, os sem-teto decidiram que todos os que estão e

quiserem ingressar no MSTS devem apresentar um docu-

mento com os antecedentes criminais, conhecido entre

eles como o “nada-consta”. Segundo os acampados, por

causa dessas ações, boa parte dos problemas se resolveu.

Outro exemplo, dos desafios cotidianos, foi o que

aconteceu no dia 28 de fevereiro, no acampamento do

Clube Português. Às 13 horas, Tânia Maria dos Santos

Silva, de 47 anos, começou a sentir fortes dores e falta de

ar. Ela tinha problemas no rim, fazia hemodiálise e toma-

va remédios todos os dias. Os acampados, inclusive a

única filha, grávida de sete meses, saíram com ela no

colo, pedindo ajuda às pessoas que passavam em frente

ao clube. Ninguém ajudou. Um grupo de sem-teto foi em

direção à Pizza Hut, a poucos metros do acampamento.

Foi uma correria geral. Os clientes, brancos e bem vesti-

dos, fugiram assustados, pensando que era assalto.

Ao contrário da marcha de Carnaval, em que as pes-

soas demonstravam simpatia e solidariedade, dessa vez

ninguém teve coragem de se aproximar. Depois de vários

minutos, sem saber o que fazer, os sem-teto bloquearam

com pneus, mesas velhas e todos os outros objetos que

encontraram pelo caminho a avenida em frente ao clube.

Foi só assim que uma senhora ofereceu apoio. Nesse mes-

mo instante, por causa da confusão, chegou uma viatura

da Polícia Militar. Depois de uma tensa explicação, os po-

liciais levaram Tânia para o hospital. Mas já era tarde. Ela

morreu poucos minutos depois.

Tânia Maria Santos Silva era mãe solteira. Perdeu os

pais com 13 anos. Aos 23, os únicos dois primos que ti-

nha morreram. Ela morava, até ingressar no Movimento,

numa zona miserável de Salvador. Recebia, como empre-

gada doméstica, 210 reais mensais. Destes, 100 reais

eram para pagar o aluguel do barraco. O resto, 110 reais,

era para sobreviver: pagar a luz e a água, comprar a comi-

da e os remédios. Naquela semana, os remédios de Tânia

tinham acabado.

No dia seguinte à morte de Tânia, outro problema.

Como pagar o caixão de 250 reais? E o dinheiro com car-

tório, remoção do corpo e coroa de flores? Eram mais 90

reais. Ninguém tinha aquele dinheiro. A coordenação do

MSTS, depois de muitas dúvidas e discussões, contatou

um vereador que negociou a dívida com a funerária. Por

decisão unânime, em assembléia, os sem-teto mudaram

o nome do Clube Português. Agora, aquele local se cha-

ma Tânia Maria Santos Silva.

As manchetes dos principais jornais do país, no dia em

que Tânia morreu, revelavam que o PIB brasileiro, em

2003, foi o pior dos últimos dez anos. A economia enco-

lheu, o desemprego, a miséria, a fome e a violência aumen-

taram. Com isso, aumentaram os contingentes dos sem-

teto, dos sem-terra, dos sem nada. A esses números, os ho-

mens do governo federal, eleitos com o compromisso his-

tórico de transformar a política econômica, responderam,

seguros e sorridentes: “Não vamos mudar os rumos. Esta-

mos no caminho certo”.

Fernando Evangelista é jornalista. Dirigiu o documen-

tário Reações em Marcha, sobre o Movimento Sem Terra.

[email protected]

José de Andrade

Didirlane Santos Cardoso

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