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A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA * SILVIA ALEXIM NUNES ** I. A FORMULAÇÃO DE UM PROJETO É no século XIX que se constitui, no Brasil, uma medicina voltada para o controle do meio social e da população. Ela faz parte de uma tecnologia disciplinar surgida num determinado momento histórico com o objetivo de gerir a vida dos indivíduos, num projeto de normalização e controle do corpo social.) Com a transferência do centro do poder português para a cidade do Rio de Janeiro e a organização de um novo aparelho estatal que provocou mudanças no conjunto da sociedade, tiveram início reformulações institucionais que possibili- taram a adequação da sociedade a uma nova ordem industrial e capitalista. A organlzação social brasileira - estruturada desde a Colônia num sistema senhorial- se caracterizava, nesse momento, pela existência de uma população que * Extraído de Medicina Social e Regulação do Corpo Feminino, tese de mestrado apresentada pela autora ao Instituto de Medicina Social da Universidade do &tado do Rio de Janeiro em 1982. ** Psicanalista, membro do Circulo Psicanalítico do Rio de Janeiro. 1. Ver POUCA ULT M., Vigiar e punir e MPolítica de saúde no século XVill" in Microfísica do poder.

A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

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Page 1: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A MEDICINA SOCIAL E A QUESTAtildeO FEMININA

SILVIA ALEXIM NUNES

I A FORMULACcedilAtildeO DE UM PROJETO

Eacute no seacuteculo XIX que se constitui no Brasil uma medicina voltada para o controle do meio social e da populaccedilatildeo Ela faz parte de uma tecnologia disciplinar surgida num determinado momento histoacuterico com o objetivo de gerir a vida dos indiviacuteduos num projeto de normalizaccedilatildeo e controle do corpo social)

Com a transferecircncia do centro do poder portuguecircs para a cidade do Rio de Janeiro e a organizaccedilatildeo de um novo aparelho estatal que provocou mudanccedilas no conjunto da sociedade tiveram iniacutecio reformulaccedilotildees institucionais que possibilishytaram a adequaccedilatildeo da sociedade a uma nova ordem industrial e capitalista

A organlzaccedilatildeo social brasileira - estruturada desde a Colocircnia num sistema senhorial- se caracterizava nesse momento pela existecircncia de uma populaccedilatildeo que

Extraiacutedo de Medicina Social e Regulaccedilatildeo do Corpo Feminino tese de mestrado apresentada pela autora ao Instituto de Medicina Social da Universidade do amptado do Rio de Janeiro em 1982

Psicanalista membro do Circulo Psicanaliacutetico do Rio de Janeiro

1 Ver POUCA ULT M Vigiar e punir e MPoliacutetica de sauacutede no seacuteculo XVill in Microfiacutesica do poder

Vo11 1 199150 PHYSIS Revista de Coletiva

ou estava diretamente ligada ao sistema produtivo ou era dele violentamente excluiacuteda buscando formas marginais secundaacuterias de subsistecircncia capital o marginalizado foi mantido em tamanha indefIniccedilatildeo que experimenshytou com frequumlecircncia um processo desagregador2 Na medida em que essa massa social se tomava majoritaacuteria com a desagregaccedilatildeo gradual do sistema escravocrata senhorialtomou-se necessaacuterio buscar novas de enquadramento para ela hlauguraram-se entatildeo diferentelt procedimentos de contenccedilatildeo edisci plina sem que isso tenha significado uma efetiva inserccedilatildeo na produccedilatildeo principaI3

Dessa forma durante o seacuteculo XIX constituiacuteram-se lentamente mecanismos disciplinares se modificaram expandiram na virada do hnpeacuterio para a Repuacuteblica Foi nesse contexto que se organizou uma medicina social no Brasi14

No momento em que o crescimento desordenado da populaccedilatildeo e das atividades econocircmicas da cidade se tornou um problema poliacutetico criando um meio desorganizado que podia colocarem a proacutepria sede do surgiu nos discursos meacutedicos a proposta de uma medicina social voltada para atuar nos possiacuteveis focos de transmissatildeo de doenccedilas 5 Cria-se uma medicina que em tudo interveacutem que um esquadrinhamento total do social visando a controle completo e permanente indiviacuteduos das instituiccedilotildees de os setores SOCiaiS regulando os elementos que possam determinar uma deterioraccedilatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo

Jaacute na metade do seacuteculo XIX um meacutedico tentou atraveacutes de um esquadrinharnento total do meio social as de deterioraccedilatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo Um projeto de intervenccedilatildeo sanitaacuteria na organizaccedilatildeo da cidade e dos indiviacuteduos cuja desordem era encarada como causa de doenccedila e mortalidade Debatia-se necessidade de hospitais ceshy

escolas quarteacuteis bordeacuteis faacutebricas etc considerados focos de transmissatildeo de doenccedilas6 As moradias o abastecimento de aacutegua a alimentaccedilatildeo - tudo se tornou objeto de uma postura preventivista dessa medicina que buscava diminuir o iacutendice de enfermidades atraveacutes urna atuaccedilatildeo junto agraves possiacuteveis fontes de produccedilatildeo

BIRMAN Formaccedilotildees imaginaacuterias dispositivos criminalidade Relatoacuterio pesquisa mimeografado IMSfUERJ Rio de Janeiro 1982

3 Idem

Idem

5 Idem

6 MACHADO R Danaccedilatildeo da norma Graal Rio de Janeiru 1978

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 51

Nesse contexto a higiene no interior da famiacutelia adquire importacircncia capital Observa-se uma tentativa de intervenccedilatildeo nos costumes e haacutebitos familiares visando agrave reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre pais e fIlhos baseando o controle familiar no assessoramento da infacircncia e no controle de mortalidade e natalidade Os cuidados com as crianccedilas devem iniciar-se desde o momento da concepccedilatildeo e prolongar-se por toda a infacircncia Os sistemas de a1ianccedila entre homens e mulheres passam a merecer atenccedilatildeo especial O compromisso essencial do casal deve ser com os filhos e as atividades domeacutesticas sexuais e sociais devem estar voltadas para a proteccedilatildeo da vida e da sauacutede das crianccedilas Nessa perspectiva os papeacuteis sociais de homens e mulheres satildeo discutidos A higiene inaugura um novo discurso sobre a condiccedilatildeo feminina e masculina visando agrave preservaccedilatildeo da vida e da sauacutede Eacutepreciso que homem e mulher se convertam agraves funccedilotildees de pai e de matildee

A partir da preocupaccedilatildeo com a crianccedila e a fanulia a higiene comeccedila a falar da mulher que passa a receber atenccedilatildeo especial Buscando diminuir os iacutendices de mortalidade infantil a medicina descobre a relaccedilatildeo entre matildee e filho Estabeleceshyse um paralelo entre aleitamento mercenaacuterio e mortalidade ponto de partida para que surja um projeto de intervenccedilatildeo meacutedica que tentaraacute regular toda a vida da mulher Com argumentos bioloacutegicos cientiacuteficos os meacutedicos tentam demonstrar que a mulher deve se situar no lar e na maternidade Em relaccedilatildeo agrave senhora agrave mulher de famiacutelia a questatildeo que se coloca eacute a de resgataacute-la da submissatildeo total ao pai para um novo lugar dentro da organizaccedilatildeo familiar A medicina se volta para essa mulher - que era mantida reclusa desvalorizada e sem qualquer tipo de autonomia - e passa a valorizaacute-la como esposa e matildee como agente familiar do projeto meacutedico de perpetuaccedilatildeo e proteccedilatildeo da infacircncia No momento em que a preocupaccedilatildeo baacutesica eacute a preservaccedilatildeo da natalidade e a contenccedilatildeo da mortalidade tomar a mulher mais operante em suas funccedilotildees maternas delegando-lhe um novo estatuto dentro da famiacutelia eacute uma das estrateacutegias do projeto meacutedico que a defme como um de seus objetos pri vilegiados A partir de agora ela deve ser acompanhada no seu dia-a-dia submetida a uma vigilacircncia meacutedica necessaacuteria para tomaacute-la capaz de desempenhar da melhor maneira possiacutevel a grande tarefa que lhe foi confiada O estudo da condiccedilatildeo feminina eacute considerado um dos pontos fundamentais da perspectiva higiecircnica da medicina

~A mulher pois deve ser considerada de uma maneira minuciosa atendendo ao sabido grau de importacircncia de que se acha revestidag

7 FREIRE COSTA J Ordem meacutedica e normafamiliarGraal Rio de Janeiro 1983

8 V ALE LV Mulher e matrimocircnio medicamente considerados Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de laneiro 1847 p 1

Vol 1 Nuacutemero 11991 52 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

De iniacutecio pode-se notar que o discurso meacutedico coloca o sexo feminino como aquele que a natureza fez mais adequado aos cuidados com a infacircncia Torna-se assim cientiacutefico o velho mito segundo o qual a mulher teria sido feita para o lar e o homem para o trabalho Com isso se relativiza o poder total do pai sobre a crianccedila que pode se tornar inadequado ao bom desenvolvimento desta Os meacutedicos reconhecendo a utilidade da mulher enquanto agente dos cuidados com as crianccedilas procuram estabelecer uma alianccedila com a matildee atraveacutes de uma valorishyzaccedilatildeo de seu estatuto dentro da famiacutelia9bull

Com o argumento da natureza tenta-se justificar de founa incontestaacutevel esse tipo de colocaccedilatildeo e com isso impedir que se possa refutar o novo lugar dado agrave mulher na estrutura familiar Natildeo se trata no entanto de colocaacute-la em posiccedilatildeo livre de dominaccedilatildeo mas sim de submeter tambeacutem o pai a uma nova ordem meacutedica A mulher natildeo se toma liberada por esse tipo de proposiccedilatildeo da medicina mas eacute recolocada em uma nova founa de relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo atraveacutes da transferecircncia de uma tutela paterna para uma tutela higiecircnica O que se observa nos textos meacutedicos natildeo eacute o surgimento de um saber que a coloque como algueacutem capaz de se igualar socialmente ao homem mas ao contraacuterio a organizaccedilatildeo de um discurso que justifica positivamente a ideacuteia de inferioridade feminina Dessa founa a medicina agora fala pela mulher e diz como ela eacute e de que founa ela deve viver

Segundo os meacutedicos tudo na organizaccedilatildeo bioloacutegica da mulher estaacute voltado para a procriaccedilatildeo e eacute a partir desse fato que a natureza a toma inferior ao homem Para se tomar o depositaacuterio de um feto a mulher eacute algueacutem cujos demais oacutergatildeos natildeo merecem grande atenccedilatildeo da natureza que aperfeiccediloa apenas o seu aparelho reproshydutor Em sua constituiccedilatildeo fiacutesica e moral tudo o mais eacute fraacutegil pouco desenvolvido sempre relegado a segundo plano

~Toda a constituiccedilatildeo moral da mulher diz Virey ~resulta da fraqueza inata de seus oacutergatildeos tudo eacute subordinado a esse princiacutepio pelo qual a natureza quis tomar a mulher inferior ao homem1O

No entanto apesar de tratar a mulher como um ser inferior os discursos meacutedicos natildeo datildeo nesse momento nenhum caraacuteter patoloacutegico ou anocircmalo a essa

9 Jacques Donzelot mostra a importacircncia que teve a alianccedila entre a medicina e a mulher para a reorganizaccedilatildeo do modelo familiar na Franccedila DONZELOT J A poliacutecia dasfaml7ias Graal Rio de Janeiro 1980

10 MONTEIRO DE BARROS IF Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher e sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medida uu Riu ue Janeiro H54l p 7

1

A Medicina Social e Questatildeo Peminina 53

inferioridade Ao contraacuterio essa determinaccedilatildeo bioloacutegica eacute considerada uma artimanha da natureza para possibilitar agrave rnulher cumprir convenientemente suas funccedilotildees jaacute que esta sua caracteriacutestica mais fraacutegil eacute que lhe permitiria desempenhar o papel matildee Nesse sentido sua limitaccedilatildeo natildeo pode ser considerada um defeito e sim uma virtude que a toma apta a cuidar de um ser igualmente fraacutegil

A fraqueza e a sensibilidade satildeo as qualidades dominantes e distintas da mulher( ) essa organizaccedilatildeo era como jaacute dissemos indispensaacutevel ao sexo qual a natureza devia confiar o depoacutesito da espeacutecie humana ainda fraco e impotente

Para comprovar a inferioridade feminina como urn fato constitucional detershyminado biologicamente a medicina amplia a ideacuteia da diferenccedila anatocircmica para o psiquismo postulando uma diferenccedila mental

k bullbull desde mais tenra infacircncia o esqueleto de um sexo eacute bem diferente do outro e essa diferenccedila existindo igualmente na maior parte dos oacutergatildeos natildeo poderia por consequumlente deixar achar-se caraacuteter moral eacute sempre influenciado pela conformaccedilatildeo fiacutesica 12

A partir dessa suposta diferenccedila moral a medicina postula uma tendecircncia a adotar comportamentos fomlas de vida diversas daquelas comuns ao homem Eacute isso que faz com quedentro da sociedade a mulher natildeo tenha responsabilidades se dedicando passatempos a ocupaccedilotildees mais delicadas mais friacutevolas condizentes com as caracteriacutesticas de seu sexo Como a medicina necessita fixar a mulher papel matemo utilizando-se para isso de uma perspectiva que a enquadre nesse modelo qualquer tentativa de usar outro tipo de abordagem para explicar a inferioridade soeial feminina eacute vivamente atacada pelos higienistas

~Muitos filoacutesofos fazendo da organizaccedilatildeo primitiva lecircm observado sua fraqueza fiacutesica como resultado do gecircnero de vida que a sociedade lhe impotildee e sua inferioridade citncias depende unicamente de sua maacute mas noacutes pensamos de outra maneira e julgamos que nosso estado social deve ser considerado aqui antes como efeito do que como cltltllta[1

11 MONlEIRO DE HARROS Ir Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1845 p9

12 PEREIRA MI Generalidades sobre o fiacutesico e o moral da mulher Tese apresentada agrave Faculdade Medicina Rio Ianeiro 1 p

13 MONTEIRO DE BARROS IF opcit pS

Vol 1 Nuacutemero 1 199154 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute clara a tentativa meacutedica de dar uma justificativa positiva para a situaccedilatildeo da mulher na sociedade todas as teses tentam tomar esse argumento irrefutaacutevel o que demonstra uma clara perspectiva de manter a mulher num determinado lugar social Suas caracteriacutesticas fiacutesicas satildeo minuciosamente estudadas e consideradas como fatores determinantes de sua capacidade moral e intelectual as mulheres satildeo por exemplo consideradas mais sensiacuteveis impressionaacuteveis voluacuteveis inconstantes extremosas graciosas pois seu sistema nervoso possui maior quantidade de tecido celular ou entatildeo satildeo tidas como seres nascidos para amar e ser amados por causa da pequena estatura e das formas arredondadas e lisas Portanto discutindo as diferenccedilas bioloacutegicas entre homens e mulheres tratando estas uacuteltimas comO seres inferiores a medicina as reduz agrave condiccedilatildeo de reprodutoras negando a elas com um discurso que as toma inaptas a outras funccedilotildees qualquer outro tipo de atividade na famiacutelia ou na sociedade de um modo geral

Segue-se portanto que as ciecircncias as artes as invenccedilotildees natildeo devem merecer muito a atenccedilatildeo do belo sexo( ) uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstraccedilatildeo matemaacutetica e as distraccedilotildees pueris entre a volubilidade de seus pensamenshytos e a estabilidade de uma questatildeo fiacutesica14

Ora considerada tatildeo importante diante das necessidades da vida a mulher precisa de algum tipo de apoio para que possa manter-se e sobreviver e para auxiliaacute-la nessa tarefa nada mais adequado do que a vida em famiacutelia e o conviacutevio com um marido A medicina reforccedila entatildeo outro axioma em relaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo feminina segundo o qual o matrimocircmio lhe eacute uacutetil e necessaacuterio O casamento eacute considerado fundamental para a mulher natildeo por razotildees sociais afetivas ou sexuais mas por uma necessidade bioloacutegica

Daiacute vem segundo creio a necessidade de admitir como verdade fixa e irrecushysaacutevel que a mulher eacute dominada pela precisatildeo de uniatildeo e o homem pelo desejo do goZO15

A questatildeo do casamento abre espaccedilo para que a medicina decirc tambeacutem fundashymento cientiacutefico para outra ideologia sobre a mulher a sexualidade seria para ela menos importante do que para o homem o desejo feminino se transforma em uma necessidade conjugal

14 PEREIRA M J op cit p 9

15 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico-legais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1842 p3

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

Vol 1 Nuacutemero 1 199156 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

Vol 1 Nuacutemero 1 199160 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 2: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vo11 1 199150 PHYSIS Revista de Coletiva

ou estava diretamente ligada ao sistema produtivo ou era dele violentamente excluiacuteda buscando formas marginais secundaacuterias de subsistecircncia capital o marginalizado foi mantido em tamanha indefIniccedilatildeo que experimenshytou com frequumlecircncia um processo desagregador2 Na medida em que essa massa social se tomava majoritaacuteria com a desagregaccedilatildeo gradual do sistema escravocrata senhorialtomou-se necessaacuterio buscar novas de enquadramento para ela hlauguraram-se entatildeo diferentelt procedimentos de contenccedilatildeo edisci plina sem que isso tenha significado uma efetiva inserccedilatildeo na produccedilatildeo principaI3

Dessa forma durante o seacuteculo XIX constituiacuteram-se lentamente mecanismos disciplinares se modificaram expandiram na virada do hnpeacuterio para a Repuacuteblica Foi nesse contexto que se organizou uma medicina social no Brasi14

No momento em que o crescimento desordenado da populaccedilatildeo e das atividades econocircmicas da cidade se tornou um problema poliacutetico criando um meio desorganizado que podia colocarem a proacutepria sede do surgiu nos discursos meacutedicos a proposta de uma medicina social voltada para atuar nos possiacuteveis focos de transmissatildeo de doenccedilas 5 Cria-se uma medicina que em tudo interveacutem que um esquadrinhamento total do social visando a controle completo e permanente indiviacuteduos das instituiccedilotildees de os setores SOCiaiS regulando os elementos que possam determinar uma deterioraccedilatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo

Jaacute na metade do seacuteculo XIX um meacutedico tentou atraveacutes de um esquadrinharnento total do meio social as de deterioraccedilatildeo da sauacutede da populaccedilatildeo Um projeto de intervenccedilatildeo sanitaacuteria na organizaccedilatildeo da cidade e dos indiviacuteduos cuja desordem era encarada como causa de doenccedila e mortalidade Debatia-se necessidade de hospitais ceshy

escolas quarteacuteis bordeacuteis faacutebricas etc considerados focos de transmissatildeo de doenccedilas6 As moradias o abastecimento de aacutegua a alimentaccedilatildeo - tudo se tornou objeto de uma postura preventivista dessa medicina que buscava diminuir o iacutendice de enfermidades atraveacutes urna atuaccedilatildeo junto agraves possiacuteveis fontes de produccedilatildeo

BIRMAN Formaccedilotildees imaginaacuterias dispositivos criminalidade Relatoacuterio pesquisa mimeografado IMSfUERJ Rio de Janeiro 1982

3 Idem

Idem

5 Idem

6 MACHADO R Danaccedilatildeo da norma Graal Rio de Janeiru 1978

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 51

Nesse contexto a higiene no interior da famiacutelia adquire importacircncia capital Observa-se uma tentativa de intervenccedilatildeo nos costumes e haacutebitos familiares visando agrave reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre pais e fIlhos baseando o controle familiar no assessoramento da infacircncia e no controle de mortalidade e natalidade Os cuidados com as crianccedilas devem iniciar-se desde o momento da concepccedilatildeo e prolongar-se por toda a infacircncia Os sistemas de a1ianccedila entre homens e mulheres passam a merecer atenccedilatildeo especial O compromisso essencial do casal deve ser com os filhos e as atividades domeacutesticas sexuais e sociais devem estar voltadas para a proteccedilatildeo da vida e da sauacutede das crianccedilas Nessa perspectiva os papeacuteis sociais de homens e mulheres satildeo discutidos A higiene inaugura um novo discurso sobre a condiccedilatildeo feminina e masculina visando agrave preservaccedilatildeo da vida e da sauacutede Eacutepreciso que homem e mulher se convertam agraves funccedilotildees de pai e de matildee

A partir da preocupaccedilatildeo com a crianccedila e a fanulia a higiene comeccedila a falar da mulher que passa a receber atenccedilatildeo especial Buscando diminuir os iacutendices de mortalidade infantil a medicina descobre a relaccedilatildeo entre matildee e filho Estabeleceshyse um paralelo entre aleitamento mercenaacuterio e mortalidade ponto de partida para que surja um projeto de intervenccedilatildeo meacutedica que tentaraacute regular toda a vida da mulher Com argumentos bioloacutegicos cientiacuteficos os meacutedicos tentam demonstrar que a mulher deve se situar no lar e na maternidade Em relaccedilatildeo agrave senhora agrave mulher de famiacutelia a questatildeo que se coloca eacute a de resgataacute-la da submissatildeo total ao pai para um novo lugar dentro da organizaccedilatildeo familiar A medicina se volta para essa mulher - que era mantida reclusa desvalorizada e sem qualquer tipo de autonomia - e passa a valorizaacute-la como esposa e matildee como agente familiar do projeto meacutedico de perpetuaccedilatildeo e proteccedilatildeo da infacircncia No momento em que a preocupaccedilatildeo baacutesica eacute a preservaccedilatildeo da natalidade e a contenccedilatildeo da mortalidade tomar a mulher mais operante em suas funccedilotildees maternas delegando-lhe um novo estatuto dentro da famiacutelia eacute uma das estrateacutegias do projeto meacutedico que a defme como um de seus objetos pri vilegiados A partir de agora ela deve ser acompanhada no seu dia-a-dia submetida a uma vigilacircncia meacutedica necessaacuteria para tomaacute-la capaz de desempenhar da melhor maneira possiacutevel a grande tarefa que lhe foi confiada O estudo da condiccedilatildeo feminina eacute considerado um dos pontos fundamentais da perspectiva higiecircnica da medicina

~A mulher pois deve ser considerada de uma maneira minuciosa atendendo ao sabido grau de importacircncia de que se acha revestidag

7 FREIRE COSTA J Ordem meacutedica e normafamiliarGraal Rio de Janeiro 1983

8 V ALE LV Mulher e matrimocircnio medicamente considerados Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de laneiro 1847 p 1

Vol 1 Nuacutemero 11991 52 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

De iniacutecio pode-se notar que o discurso meacutedico coloca o sexo feminino como aquele que a natureza fez mais adequado aos cuidados com a infacircncia Torna-se assim cientiacutefico o velho mito segundo o qual a mulher teria sido feita para o lar e o homem para o trabalho Com isso se relativiza o poder total do pai sobre a crianccedila que pode se tornar inadequado ao bom desenvolvimento desta Os meacutedicos reconhecendo a utilidade da mulher enquanto agente dos cuidados com as crianccedilas procuram estabelecer uma alianccedila com a matildee atraveacutes de uma valorishyzaccedilatildeo de seu estatuto dentro da famiacutelia9bull

Com o argumento da natureza tenta-se justificar de founa incontestaacutevel esse tipo de colocaccedilatildeo e com isso impedir que se possa refutar o novo lugar dado agrave mulher na estrutura familiar Natildeo se trata no entanto de colocaacute-la em posiccedilatildeo livre de dominaccedilatildeo mas sim de submeter tambeacutem o pai a uma nova ordem meacutedica A mulher natildeo se toma liberada por esse tipo de proposiccedilatildeo da medicina mas eacute recolocada em uma nova founa de relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo atraveacutes da transferecircncia de uma tutela paterna para uma tutela higiecircnica O que se observa nos textos meacutedicos natildeo eacute o surgimento de um saber que a coloque como algueacutem capaz de se igualar socialmente ao homem mas ao contraacuterio a organizaccedilatildeo de um discurso que justifica positivamente a ideacuteia de inferioridade feminina Dessa founa a medicina agora fala pela mulher e diz como ela eacute e de que founa ela deve viver

Segundo os meacutedicos tudo na organizaccedilatildeo bioloacutegica da mulher estaacute voltado para a procriaccedilatildeo e eacute a partir desse fato que a natureza a toma inferior ao homem Para se tomar o depositaacuterio de um feto a mulher eacute algueacutem cujos demais oacutergatildeos natildeo merecem grande atenccedilatildeo da natureza que aperfeiccediloa apenas o seu aparelho reproshydutor Em sua constituiccedilatildeo fiacutesica e moral tudo o mais eacute fraacutegil pouco desenvolvido sempre relegado a segundo plano

~Toda a constituiccedilatildeo moral da mulher diz Virey ~resulta da fraqueza inata de seus oacutergatildeos tudo eacute subordinado a esse princiacutepio pelo qual a natureza quis tomar a mulher inferior ao homem1O

No entanto apesar de tratar a mulher como um ser inferior os discursos meacutedicos natildeo datildeo nesse momento nenhum caraacuteter patoloacutegico ou anocircmalo a essa

9 Jacques Donzelot mostra a importacircncia que teve a alianccedila entre a medicina e a mulher para a reorganizaccedilatildeo do modelo familiar na Franccedila DONZELOT J A poliacutecia dasfaml7ias Graal Rio de Janeiro 1980

10 MONTEIRO DE BARROS IF Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher e sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medida uu Riu ue Janeiro H54l p 7

1

A Medicina Social e Questatildeo Peminina 53

inferioridade Ao contraacuterio essa determinaccedilatildeo bioloacutegica eacute considerada uma artimanha da natureza para possibilitar agrave rnulher cumprir convenientemente suas funccedilotildees jaacute que esta sua caracteriacutestica mais fraacutegil eacute que lhe permitiria desempenhar o papel matildee Nesse sentido sua limitaccedilatildeo natildeo pode ser considerada um defeito e sim uma virtude que a toma apta a cuidar de um ser igualmente fraacutegil

A fraqueza e a sensibilidade satildeo as qualidades dominantes e distintas da mulher( ) essa organizaccedilatildeo era como jaacute dissemos indispensaacutevel ao sexo qual a natureza devia confiar o depoacutesito da espeacutecie humana ainda fraco e impotente

Para comprovar a inferioridade feminina como urn fato constitucional detershyminado biologicamente a medicina amplia a ideacuteia da diferenccedila anatocircmica para o psiquismo postulando uma diferenccedila mental

k bullbull desde mais tenra infacircncia o esqueleto de um sexo eacute bem diferente do outro e essa diferenccedila existindo igualmente na maior parte dos oacutergatildeos natildeo poderia por consequumlente deixar achar-se caraacuteter moral eacute sempre influenciado pela conformaccedilatildeo fiacutesica 12

A partir dessa suposta diferenccedila moral a medicina postula uma tendecircncia a adotar comportamentos fomlas de vida diversas daquelas comuns ao homem Eacute isso que faz com quedentro da sociedade a mulher natildeo tenha responsabilidades se dedicando passatempos a ocupaccedilotildees mais delicadas mais friacutevolas condizentes com as caracteriacutesticas de seu sexo Como a medicina necessita fixar a mulher papel matemo utilizando-se para isso de uma perspectiva que a enquadre nesse modelo qualquer tentativa de usar outro tipo de abordagem para explicar a inferioridade soeial feminina eacute vivamente atacada pelos higienistas

~Muitos filoacutesofos fazendo da organizaccedilatildeo primitiva lecircm observado sua fraqueza fiacutesica como resultado do gecircnero de vida que a sociedade lhe impotildee e sua inferioridade citncias depende unicamente de sua maacute mas noacutes pensamos de outra maneira e julgamos que nosso estado social deve ser considerado aqui antes como efeito do que como cltltllta[1

11 MONlEIRO DE HARROS Ir Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1845 p9

12 PEREIRA MI Generalidades sobre o fiacutesico e o moral da mulher Tese apresentada agrave Faculdade Medicina Rio Ianeiro 1 p

13 MONTEIRO DE BARROS IF opcit pS

Vol 1 Nuacutemero 1 199154 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute clara a tentativa meacutedica de dar uma justificativa positiva para a situaccedilatildeo da mulher na sociedade todas as teses tentam tomar esse argumento irrefutaacutevel o que demonstra uma clara perspectiva de manter a mulher num determinado lugar social Suas caracteriacutesticas fiacutesicas satildeo minuciosamente estudadas e consideradas como fatores determinantes de sua capacidade moral e intelectual as mulheres satildeo por exemplo consideradas mais sensiacuteveis impressionaacuteveis voluacuteveis inconstantes extremosas graciosas pois seu sistema nervoso possui maior quantidade de tecido celular ou entatildeo satildeo tidas como seres nascidos para amar e ser amados por causa da pequena estatura e das formas arredondadas e lisas Portanto discutindo as diferenccedilas bioloacutegicas entre homens e mulheres tratando estas uacuteltimas comO seres inferiores a medicina as reduz agrave condiccedilatildeo de reprodutoras negando a elas com um discurso que as toma inaptas a outras funccedilotildees qualquer outro tipo de atividade na famiacutelia ou na sociedade de um modo geral

Segue-se portanto que as ciecircncias as artes as invenccedilotildees natildeo devem merecer muito a atenccedilatildeo do belo sexo( ) uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstraccedilatildeo matemaacutetica e as distraccedilotildees pueris entre a volubilidade de seus pensamenshytos e a estabilidade de uma questatildeo fiacutesica14

Ora considerada tatildeo importante diante das necessidades da vida a mulher precisa de algum tipo de apoio para que possa manter-se e sobreviver e para auxiliaacute-la nessa tarefa nada mais adequado do que a vida em famiacutelia e o conviacutevio com um marido A medicina reforccedila entatildeo outro axioma em relaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo feminina segundo o qual o matrimocircmio lhe eacute uacutetil e necessaacuterio O casamento eacute considerado fundamental para a mulher natildeo por razotildees sociais afetivas ou sexuais mas por uma necessidade bioloacutegica

Daiacute vem segundo creio a necessidade de admitir como verdade fixa e irrecushysaacutevel que a mulher eacute dominada pela precisatildeo de uniatildeo e o homem pelo desejo do goZO15

A questatildeo do casamento abre espaccedilo para que a medicina decirc tambeacutem fundashymento cientiacutefico para outra ideologia sobre a mulher a sexualidade seria para ela menos importante do que para o homem o desejo feminino se transforma em uma necessidade conjugal

14 PEREIRA M J op cit p 9

15 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico-legais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1842 p3

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

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um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

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de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

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mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 3: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 51

Nesse contexto a higiene no interior da famiacutelia adquire importacircncia capital Observa-se uma tentativa de intervenccedilatildeo nos costumes e haacutebitos familiares visando agrave reorganizaccedilatildeo das relaccedilotildees entre pais e fIlhos baseando o controle familiar no assessoramento da infacircncia e no controle de mortalidade e natalidade Os cuidados com as crianccedilas devem iniciar-se desde o momento da concepccedilatildeo e prolongar-se por toda a infacircncia Os sistemas de a1ianccedila entre homens e mulheres passam a merecer atenccedilatildeo especial O compromisso essencial do casal deve ser com os filhos e as atividades domeacutesticas sexuais e sociais devem estar voltadas para a proteccedilatildeo da vida e da sauacutede das crianccedilas Nessa perspectiva os papeacuteis sociais de homens e mulheres satildeo discutidos A higiene inaugura um novo discurso sobre a condiccedilatildeo feminina e masculina visando agrave preservaccedilatildeo da vida e da sauacutede Eacutepreciso que homem e mulher se convertam agraves funccedilotildees de pai e de matildee

A partir da preocupaccedilatildeo com a crianccedila e a fanulia a higiene comeccedila a falar da mulher que passa a receber atenccedilatildeo especial Buscando diminuir os iacutendices de mortalidade infantil a medicina descobre a relaccedilatildeo entre matildee e filho Estabeleceshyse um paralelo entre aleitamento mercenaacuterio e mortalidade ponto de partida para que surja um projeto de intervenccedilatildeo meacutedica que tentaraacute regular toda a vida da mulher Com argumentos bioloacutegicos cientiacuteficos os meacutedicos tentam demonstrar que a mulher deve se situar no lar e na maternidade Em relaccedilatildeo agrave senhora agrave mulher de famiacutelia a questatildeo que se coloca eacute a de resgataacute-la da submissatildeo total ao pai para um novo lugar dentro da organizaccedilatildeo familiar A medicina se volta para essa mulher - que era mantida reclusa desvalorizada e sem qualquer tipo de autonomia - e passa a valorizaacute-la como esposa e matildee como agente familiar do projeto meacutedico de perpetuaccedilatildeo e proteccedilatildeo da infacircncia No momento em que a preocupaccedilatildeo baacutesica eacute a preservaccedilatildeo da natalidade e a contenccedilatildeo da mortalidade tomar a mulher mais operante em suas funccedilotildees maternas delegando-lhe um novo estatuto dentro da famiacutelia eacute uma das estrateacutegias do projeto meacutedico que a defme como um de seus objetos pri vilegiados A partir de agora ela deve ser acompanhada no seu dia-a-dia submetida a uma vigilacircncia meacutedica necessaacuteria para tomaacute-la capaz de desempenhar da melhor maneira possiacutevel a grande tarefa que lhe foi confiada O estudo da condiccedilatildeo feminina eacute considerado um dos pontos fundamentais da perspectiva higiecircnica da medicina

~A mulher pois deve ser considerada de uma maneira minuciosa atendendo ao sabido grau de importacircncia de que se acha revestidag

7 FREIRE COSTA J Ordem meacutedica e normafamiliarGraal Rio de Janeiro 1983

8 V ALE LV Mulher e matrimocircnio medicamente considerados Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de laneiro 1847 p 1

Vol 1 Nuacutemero 11991 52 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

De iniacutecio pode-se notar que o discurso meacutedico coloca o sexo feminino como aquele que a natureza fez mais adequado aos cuidados com a infacircncia Torna-se assim cientiacutefico o velho mito segundo o qual a mulher teria sido feita para o lar e o homem para o trabalho Com isso se relativiza o poder total do pai sobre a crianccedila que pode se tornar inadequado ao bom desenvolvimento desta Os meacutedicos reconhecendo a utilidade da mulher enquanto agente dos cuidados com as crianccedilas procuram estabelecer uma alianccedila com a matildee atraveacutes de uma valorishyzaccedilatildeo de seu estatuto dentro da famiacutelia9bull

Com o argumento da natureza tenta-se justificar de founa incontestaacutevel esse tipo de colocaccedilatildeo e com isso impedir que se possa refutar o novo lugar dado agrave mulher na estrutura familiar Natildeo se trata no entanto de colocaacute-la em posiccedilatildeo livre de dominaccedilatildeo mas sim de submeter tambeacutem o pai a uma nova ordem meacutedica A mulher natildeo se toma liberada por esse tipo de proposiccedilatildeo da medicina mas eacute recolocada em uma nova founa de relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo atraveacutes da transferecircncia de uma tutela paterna para uma tutela higiecircnica O que se observa nos textos meacutedicos natildeo eacute o surgimento de um saber que a coloque como algueacutem capaz de se igualar socialmente ao homem mas ao contraacuterio a organizaccedilatildeo de um discurso que justifica positivamente a ideacuteia de inferioridade feminina Dessa founa a medicina agora fala pela mulher e diz como ela eacute e de que founa ela deve viver

Segundo os meacutedicos tudo na organizaccedilatildeo bioloacutegica da mulher estaacute voltado para a procriaccedilatildeo e eacute a partir desse fato que a natureza a toma inferior ao homem Para se tomar o depositaacuterio de um feto a mulher eacute algueacutem cujos demais oacutergatildeos natildeo merecem grande atenccedilatildeo da natureza que aperfeiccediloa apenas o seu aparelho reproshydutor Em sua constituiccedilatildeo fiacutesica e moral tudo o mais eacute fraacutegil pouco desenvolvido sempre relegado a segundo plano

~Toda a constituiccedilatildeo moral da mulher diz Virey ~resulta da fraqueza inata de seus oacutergatildeos tudo eacute subordinado a esse princiacutepio pelo qual a natureza quis tomar a mulher inferior ao homem1O

No entanto apesar de tratar a mulher como um ser inferior os discursos meacutedicos natildeo datildeo nesse momento nenhum caraacuteter patoloacutegico ou anocircmalo a essa

9 Jacques Donzelot mostra a importacircncia que teve a alianccedila entre a medicina e a mulher para a reorganizaccedilatildeo do modelo familiar na Franccedila DONZELOT J A poliacutecia dasfaml7ias Graal Rio de Janeiro 1980

10 MONTEIRO DE BARROS IF Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher e sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medida uu Riu ue Janeiro H54l p 7

1

A Medicina Social e Questatildeo Peminina 53

inferioridade Ao contraacuterio essa determinaccedilatildeo bioloacutegica eacute considerada uma artimanha da natureza para possibilitar agrave rnulher cumprir convenientemente suas funccedilotildees jaacute que esta sua caracteriacutestica mais fraacutegil eacute que lhe permitiria desempenhar o papel matildee Nesse sentido sua limitaccedilatildeo natildeo pode ser considerada um defeito e sim uma virtude que a toma apta a cuidar de um ser igualmente fraacutegil

A fraqueza e a sensibilidade satildeo as qualidades dominantes e distintas da mulher( ) essa organizaccedilatildeo era como jaacute dissemos indispensaacutevel ao sexo qual a natureza devia confiar o depoacutesito da espeacutecie humana ainda fraco e impotente

Para comprovar a inferioridade feminina como urn fato constitucional detershyminado biologicamente a medicina amplia a ideacuteia da diferenccedila anatocircmica para o psiquismo postulando uma diferenccedila mental

k bullbull desde mais tenra infacircncia o esqueleto de um sexo eacute bem diferente do outro e essa diferenccedila existindo igualmente na maior parte dos oacutergatildeos natildeo poderia por consequumlente deixar achar-se caraacuteter moral eacute sempre influenciado pela conformaccedilatildeo fiacutesica 12

A partir dessa suposta diferenccedila moral a medicina postula uma tendecircncia a adotar comportamentos fomlas de vida diversas daquelas comuns ao homem Eacute isso que faz com quedentro da sociedade a mulher natildeo tenha responsabilidades se dedicando passatempos a ocupaccedilotildees mais delicadas mais friacutevolas condizentes com as caracteriacutesticas de seu sexo Como a medicina necessita fixar a mulher papel matemo utilizando-se para isso de uma perspectiva que a enquadre nesse modelo qualquer tentativa de usar outro tipo de abordagem para explicar a inferioridade soeial feminina eacute vivamente atacada pelos higienistas

~Muitos filoacutesofos fazendo da organizaccedilatildeo primitiva lecircm observado sua fraqueza fiacutesica como resultado do gecircnero de vida que a sociedade lhe impotildee e sua inferioridade citncias depende unicamente de sua maacute mas noacutes pensamos de outra maneira e julgamos que nosso estado social deve ser considerado aqui antes como efeito do que como cltltllta[1

11 MONlEIRO DE HARROS Ir Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1845 p9

12 PEREIRA MI Generalidades sobre o fiacutesico e o moral da mulher Tese apresentada agrave Faculdade Medicina Rio Ianeiro 1 p

13 MONTEIRO DE BARROS IF opcit pS

Vol 1 Nuacutemero 1 199154 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute clara a tentativa meacutedica de dar uma justificativa positiva para a situaccedilatildeo da mulher na sociedade todas as teses tentam tomar esse argumento irrefutaacutevel o que demonstra uma clara perspectiva de manter a mulher num determinado lugar social Suas caracteriacutesticas fiacutesicas satildeo minuciosamente estudadas e consideradas como fatores determinantes de sua capacidade moral e intelectual as mulheres satildeo por exemplo consideradas mais sensiacuteveis impressionaacuteveis voluacuteveis inconstantes extremosas graciosas pois seu sistema nervoso possui maior quantidade de tecido celular ou entatildeo satildeo tidas como seres nascidos para amar e ser amados por causa da pequena estatura e das formas arredondadas e lisas Portanto discutindo as diferenccedilas bioloacutegicas entre homens e mulheres tratando estas uacuteltimas comO seres inferiores a medicina as reduz agrave condiccedilatildeo de reprodutoras negando a elas com um discurso que as toma inaptas a outras funccedilotildees qualquer outro tipo de atividade na famiacutelia ou na sociedade de um modo geral

Segue-se portanto que as ciecircncias as artes as invenccedilotildees natildeo devem merecer muito a atenccedilatildeo do belo sexo( ) uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstraccedilatildeo matemaacutetica e as distraccedilotildees pueris entre a volubilidade de seus pensamenshytos e a estabilidade de uma questatildeo fiacutesica14

Ora considerada tatildeo importante diante das necessidades da vida a mulher precisa de algum tipo de apoio para que possa manter-se e sobreviver e para auxiliaacute-la nessa tarefa nada mais adequado do que a vida em famiacutelia e o conviacutevio com um marido A medicina reforccedila entatildeo outro axioma em relaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo feminina segundo o qual o matrimocircmio lhe eacute uacutetil e necessaacuterio O casamento eacute considerado fundamental para a mulher natildeo por razotildees sociais afetivas ou sexuais mas por uma necessidade bioloacutegica

Daiacute vem segundo creio a necessidade de admitir como verdade fixa e irrecushysaacutevel que a mulher eacute dominada pela precisatildeo de uniatildeo e o homem pelo desejo do goZO15

A questatildeo do casamento abre espaccedilo para que a medicina decirc tambeacutem fundashymento cientiacutefico para outra ideologia sobre a mulher a sexualidade seria para ela menos importante do que para o homem o desejo feminino se transforma em uma necessidade conjugal

14 PEREIRA M J op cit p 9

15 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico-legais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1842 p3

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

Vol 1 Nuacutemero 1 199156 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

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A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

Vol 1 Nuacutemero 1 199164 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 4: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vol 1 Nuacutemero 11991 52 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

De iniacutecio pode-se notar que o discurso meacutedico coloca o sexo feminino como aquele que a natureza fez mais adequado aos cuidados com a infacircncia Torna-se assim cientiacutefico o velho mito segundo o qual a mulher teria sido feita para o lar e o homem para o trabalho Com isso se relativiza o poder total do pai sobre a crianccedila que pode se tornar inadequado ao bom desenvolvimento desta Os meacutedicos reconhecendo a utilidade da mulher enquanto agente dos cuidados com as crianccedilas procuram estabelecer uma alianccedila com a matildee atraveacutes de uma valorishyzaccedilatildeo de seu estatuto dentro da famiacutelia9bull

Com o argumento da natureza tenta-se justificar de founa incontestaacutevel esse tipo de colocaccedilatildeo e com isso impedir que se possa refutar o novo lugar dado agrave mulher na estrutura familiar Natildeo se trata no entanto de colocaacute-la em posiccedilatildeo livre de dominaccedilatildeo mas sim de submeter tambeacutem o pai a uma nova ordem meacutedica A mulher natildeo se toma liberada por esse tipo de proposiccedilatildeo da medicina mas eacute recolocada em uma nova founa de relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo atraveacutes da transferecircncia de uma tutela paterna para uma tutela higiecircnica O que se observa nos textos meacutedicos natildeo eacute o surgimento de um saber que a coloque como algueacutem capaz de se igualar socialmente ao homem mas ao contraacuterio a organizaccedilatildeo de um discurso que justifica positivamente a ideacuteia de inferioridade feminina Dessa founa a medicina agora fala pela mulher e diz como ela eacute e de que founa ela deve viver

Segundo os meacutedicos tudo na organizaccedilatildeo bioloacutegica da mulher estaacute voltado para a procriaccedilatildeo e eacute a partir desse fato que a natureza a toma inferior ao homem Para se tomar o depositaacuterio de um feto a mulher eacute algueacutem cujos demais oacutergatildeos natildeo merecem grande atenccedilatildeo da natureza que aperfeiccediloa apenas o seu aparelho reproshydutor Em sua constituiccedilatildeo fiacutesica e moral tudo o mais eacute fraacutegil pouco desenvolvido sempre relegado a segundo plano

~Toda a constituiccedilatildeo moral da mulher diz Virey ~resulta da fraqueza inata de seus oacutergatildeos tudo eacute subordinado a esse princiacutepio pelo qual a natureza quis tomar a mulher inferior ao homem1O

No entanto apesar de tratar a mulher como um ser inferior os discursos meacutedicos natildeo datildeo nesse momento nenhum caraacuteter patoloacutegico ou anocircmalo a essa

9 Jacques Donzelot mostra a importacircncia que teve a alianccedila entre a medicina e a mulher para a reorganizaccedilatildeo do modelo familiar na Franccedila DONZELOT J A poliacutecia dasfaml7ias Graal Rio de Janeiro 1980

10 MONTEIRO DE BARROS IF Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher e sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medida uu Riu ue Janeiro H54l p 7

1

A Medicina Social e Questatildeo Peminina 53

inferioridade Ao contraacuterio essa determinaccedilatildeo bioloacutegica eacute considerada uma artimanha da natureza para possibilitar agrave rnulher cumprir convenientemente suas funccedilotildees jaacute que esta sua caracteriacutestica mais fraacutegil eacute que lhe permitiria desempenhar o papel matildee Nesse sentido sua limitaccedilatildeo natildeo pode ser considerada um defeito e sim uma virtude que a toma apta a cuidar de um ser igualmente fraacutegil

A fraqueza e a sensibilidade satildeo as qualidades dominantes e distintas da mulher( ) essa organizaccedilatildeo era como jaacute dissemos indispensaacutevel ao sexo qual a natureza devia confiar o depoacutesito da espeacutecie humana ainda fraco e impotente

Para comprovar a inferioridade feminina como urn fato constitucional detershyminado biologicamente a medicina amplia a ideacuteia da diferenccedila anatocircmica para o psiquismo postulando uma diferenccedila mental

k bullbull desde mais tenra infacircncia o esqueleto de um sexo eacute bem diferente do outro e essa diferenccedila existindo igualmente na maior parte dos oacutergatildeos natildeo poderia por consequumlente deixar achar-se caraacuteter moral eacute sempre influenciado pela conformaccedilatildeo fiacutesica 12

A partir dessa suposta diferenccedila moral a medicina postula uma tendecircncia a adotar comportamentos fomlas de vida diversas daquelas comuns ao homem Eacute isso que faz com quedentro da sociedade a mulher natildeo tenha responsabilidades se dedicando passatempos a ocupaccedilotildees mais delicadas mais friacutevolas condizentes com as caracteriacutesticas de seu sexo Como a medicina necessita fixar a mulher papel matemo utilizando-se para isso de uma perspectiva que a enquadre nesse modelo qualquer tentativa de usar outro tipo de abordagem para explicar a inferioridade soeial feminina eacute vivamente atacada pelos higienistas

~Muitos filoacutesofos fazendo da organizaccedilatildeo primitiva lecircm observado sua fraqueza fiacutesica como resultado do gecircnero de vida que a sociedade lhe impotildee e sua inferioridade citncias depende unicamente de sua maacute mas noacutes pensamos de outra maneira e julgamos que nosso estado social deve ser considerado aqui antes como efeito do que como cltltllta[1

11 MONlEIRO DE HARROS Ir Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1845 p9

12 PEREIRA MI Generalidades sobre o fiacutesico e o moral da mulher Tese apresentada agrave Faculdade Medicina Rio Ianeiro 1 p

13 MONTEIRO DE BARROS IF opcit pS

Vol 1 Nuacutemero 1 199154 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute clara a tentativa meacutedica de dar uma justificativa positiva para a situaccedilatildeo da mulher na sociedade todas as teses tentam tomar esse argumento irrefutaacutevel o que demonstra uma clara perspectiva de manter a mulher num determinado lugar social Suas caracteriacutesticas fiacutesicas satildeo minuciosamente estudadas e consideradas como fatores determinantes de sua capacidade moral e intelectual as mulheres satildeo por exemplo consideradas mais sensiacuteveis impressionaacuteveis voluacuteveis inconstantes extremosas graciosas pois seu sistema nervoso possui maior quantidade de tecido celular ou entatildeo satildeo tidas como seres nascidos para amar e ser amados por causa da pequena estatura e das formas arredondadas e lisas Portanto discutindo as diferenccedilas bioloacutegicas entre homens e mulheres tratando estas uacuteltimas comO seres inferiores a medicina as reduz agrave condiccedilatildeo de reprodutoras negando a elas com um discurso que as toma inaptas a outras funccedilotildees qualquer outro tipo de atividade na famiacutelia ou na sociedade de um modo geral

Segue-se portanto que as ciecircncias as artes as invenccedilotildees natildeo devem merecer muito a atenccedilatildeo do belo sexo( ) uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstraccedilatildeo matemaacutetica e as distraccedilotildees pueris entre a volubilidade de seus pensamenshytos e a estabilidade de uma questatildeo fiacutesica14

Ora considerada tatildeo importante diante das necessidades da vida a mulher precisa de algum tipo de apoio para que possa manter-se e sobreviver e para auxiliaacute-la nessa tarefa nada mais adequado do que a vida em famiacutelia e o conviacutevio com um marido A medicina reforccedila entatildeo outro axioma em relaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo feminina segundo o qual o matrimocircmio lhe eacute uacutetil e necessaacuterio O casamento eacute considerado fundamental para a mulher natildeo por razotildees sociais afetivas ou sexuais mas por uma necessidade bioloacutegica

Daiacute vem segundo creio a necessidade de admitir como verdade fixa e irrecushysaacutevel que a mulher eacute dominada pela precisatildeo de uniatildeo e o homem pelo desejo do goZO15

A questatildeo do casamento abre espaccedilo para que a medicina decirc tambeacutem fundashymento cientiacutefico para outra ideologia sobre a mulher a sexualidade seria para ela menos importante do que para o homem o desejo feminino se transforma em uma necessidade conjugal

14 PEREIRA M J op cit p 9

15 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico-legais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1842 p3

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

Vol 1 Nuacutemero 1 199156 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

Vol 1 Nuacutemero 1 199160 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

Vol I Nuacutemero 1 199162 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

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Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

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ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 5: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

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A Medicina Social e Questatildeo Peminina 53

inferioridade Ao contraacuterio essa determinaccedilatildeo bioloacutegica eacute considerada uma artimanha da natureza para possibilitar agrave rnulher cumprir convenientemente suas funccedilotildees jaacute que esta sua caracteriacutestica mais fraacutegil eacute que lhe permitiria desempenhar o papel matildee Nesse sentido sua limitaccedilatildeo natildeo pode ser considerada um defeito e sim uma virtude que a toma apta a cuidar de um ser igualmente fraacutegil

A fraqueza e a sensibilidade satildeo as qualidades dominantes e distintas da mulher( ) essa organizaccedilatildeo era como jaacute dissemos indispensaacutevel ao sexo qual a natureza devia confiar o depoacutesito da espeacutecie humana ainda fraco e impotente

Para comprovar a inferioridade feminina como urn fato constitucional detershyminado biologicamente a medicina amplia a ideacuteia da diferenccedila anatocircmica para o psiquismo postulando uma diferenccedila mental

k bullbull desde mais tenra infacircncia o esqueleto de um sexo eacute bem diferente do outro e essa diferenccedila existindo igualmente na maior parte dos oacutergatildeos natildeo poderia por consequumlente deixar achar-se caraacuteter moral eacute sempre influenciado pela conformaccedilatildeo fiacutesica 12

A partir dessa suposta diferenccedila moral a medicina postula uma tendecircncia a adotar comportamentos fomlas de vida diversas daquelas comuns ao homem Eacute isso que faz com quedentro da sociedade a mulher natildeo tenha responsabilidades se dedicando passatempos a ocupaccedilotildees mais delicadas mais friacutevolas condizentes com as caracteriacutesticas de seu sexo Como a medicina necessita fixar a mulher papel matemo utilizando-se para isso de uma perspectiva que a enquadre nesse modelo qualquer tentativa de usar outro tipo de abordagem para explicar a inferioridade soeial feminina eacute vivamente atacada pelos higienistas

~Muitos filoacutesofos fazendo da organizaccedilatildeo primitiva lecircm observado sua fraqueza fiacutesica como resultado do gecircnero de vida que a sociedade lhe impotildee e sua inferioridade citncias depende unicamente de sua maacute mas noacutes pensamos de outra maneira e julgamos que nosso estado social deve ser considerado aqui antes como efeito do que como cltltllta[1

11 MONlEIRO DE HARROS Ir Consideraccedilotildees gerais sobre a mulher sua diferenccedila do homem e sobre o regime da mulher durante a prenhez Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1845 p9

12 PEREIRA MI Generalidades sobre o fiacutesico e o moral da mulher Tese apresentada agrave Faculdade Medicina Rio Ianeiro 1 p

13 MONTEIRO DE BARROS IF opcit pS

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Eacute clara a tentativa meacutedica de dar uma justificativa positiva para a situaccedilatildeo da mulher na sociedade todas as teses tentam tomar esse argumento irrefutaacutevel o que demonstra uma clara perspectiva de manter a mulher num determinado lugar social Suas caracteriacutesticas fiacutesicas satildeo minuciosamente estudadas e consideradas como fatores determinantes de sua capacidade moral e intelectual as mulheres satildeo por exemplo consideradas mais sensiacuteveis impressionaacuteveis voluacuteveis inconstantes extremosas graciosas pois seu sistema nervoso possui maior quantidade de tecido celular ou entatildeo satildeo tidas como seres nascidos para amar e ser amados por causa da pequena estatura e das formas arredondadas e lisas Portanto discutindo as diferenccedilas bioloacutegicas entre homens e mulheres tratando estas uacuteltimas comO seres inferiores a medicina as reduz agrave condiccedilatildeo de reprodutoras negando a elas com um discurso que as toma inaptas a outras funccedilotildees qualquer outro tipo de atividade na famiacutelia ou na sociedade de um modo geral

Segue-se portanto que as ciecircncias as artes as invenccedilotildees natildeo devem merecer muito a atenccedilatildeo do belo sexo( ) uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstraccedilatildeo matemaacutetica e as distraccedilotildees pueris entre a volubilidade de seus pensamenshytos e a estabilidade de uma questatildeo fiacutesica14

Ora considerada tatildeo importante diante das necessidades da vida a mulher precisa de algum tipo de apoio para que possa manter-se e sobreviver e para auxiliaacute-la nessa tarefa nada mais adequado do que a vida em famiacutelia e o conviacutevio com um marido A medicina reforccedila entatildeo outro axioma em relaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo feminina segundo o qual o matrimocircmio lhe eacute uacutetil e necessaacuterio O casamento eacute considerado fundamental para a mulher natildeo por razotildees sociais afetivas ou sexuais mas por uma necessidade bioloacutegica

Daiacute vem segundo creio a necessidade de admitir como verdade fixa e irrecushysaacutevel que a mulher eacute dominada pela precisatildeo de uniatildeo e o homem pelo desejo do goZO15

A questatildeo do casamento abre espaccedilo para que a medicina decirc tambeacutem fundashymento cientiacutefico para outra ideologia sobre a mulher a sexualidade seria para ela menos importante do que para o homem o desejo feminino se transforma em uma necessidade conjugal

14 PEREIRA M J op cit p 9

15 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico-legais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1842 p3

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

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um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 6: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vol 1 Nuacutemero 1 199154 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute clara a tentativa meacutedica de dar uma justificativa positiva para a situaccedilatildeo da mulher na sociedade todas as teses tentam tomar esse argumento irrefutaacutevel o que demonstra uma clara perspectiva de manter a mulher num determinado lugar social Suas caracteriacutesticas fiacutesicas satildeo minuciosamente estudadas e consideradas como fatores determinantes de sua capacidade moral e intelectual as mulheres satildeo por exemplo consideradas mais sensiacuteveis impressionaacuteveis voluacuteveis inconstantes extremosas graciosas pois seu sistema nervoso possui maior quantidade de tecido celular ou entatildeo satildeo tidas como seres nascidos para amar e ser amados por causa da pequena estatura e das formas arredondadas e lisas Portanto discutindo as diferenccedilas bioloacutegicas entre homens e mulheres tratando estas uacuteltimas comO seres inferiores a medicina as reduz agrave condiccedilatildeo de reprodutoras negando a elas com um discurso que as toma inaptas a outras funccedilotildees qualquer outro tipo de atividade na famiacutelia ou na sociedade de um modo geral

Segue-se portanto que as ciecircncias as artes as invenccedilotildees natildeo devem merecer muito a atenccedilatildeo do belo sexo( ) uma incompatibilidade manifesta existe entre a abstraccedilatildeo matemaacutetica e as distraccedilotildees pueris entre a volubilidade de seus pensamenshytos e a estabilidade de uma questatildeo fiacutesica14

Ora considerada tatildeo importante diante das necessidades da vida a mulher precisa de algum tipo de apoio para que possa manter-se e sobreviver e para auxiliaacute-la nessa tarefa nada mais adequado do que a vida em famiacutelia e o conviacutevio com um marido A medicina reforccedila entatildeo outro axioma em relaccedilatildeo agrave condiccedilatildeo feminina segundo o qual o matrimocircmio lhe eacute uacutetil e necessaacuterio O casamento eacute considerado fundamental para a mulher natildeo por razotildees sociais afetivas ou sexuais mas por uma necessidade bioloacutegica

Daiacute vem segundo creio a necessidade de admitir como verdade fixa e irrecushysaacutevel que a mulher eacute dominada pela precisatildeo de uniatildeo e o homem pelo desejo do goZO15

A questatildeo do casamento abre espaccedilo para que a medicina decirc tambeacutem fundashymento cientiacutefico para outra ideologia sobre a mulher a sexualidade seria para ela menos importante do que para o homem o desejo feminino se transforma em uma necessidade conjugal

14 PEREIRA M J op cit p 9

15 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico-legais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1842 p3

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

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um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

Vol 1 Nuacutemero 1 199160 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 7: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina SS

Para reforccedilar a ideacuteia que o casamento deve ser considerado uma necessi~ dade decorrente de fragilidade constitucional da mulher minimizando a questatildeo sexual os meacutedicos datildeo como exemplo a situaccedilatildeo das prostitutas que apesar de possuiacuterem vida sexual ativa apresentam muitas vezes doenccedilas tipificadas como monomanias amorosas O mesmo ocorre com mulheres que tecircm filhos fora da uniatildeo legal ou ainda solteiras A existecircncia desse tipo dc monomania prova que a satisfaccedilatildeo sexual natildeo considerada importante na vida feminina c sim satisfaccedilatildeo conjugal Ora se a falta do casamento eacute um fator provaacutevel de adoecimento seu incentivo passa a ser encarado como uma medida profilaacutetica

Tendo pois a moccedila chegado agrave idade nuacutebil quando ela for dotada de um temperashymento ardente e apaixonado o matrimocircnio deve ser proposto e favorecido do modo que for possiacutevel6

Construindo um discurso sobre a condiccedilatildeo feminina no qual a mulher eacute considerada voltada para maternidade a medicina ao mesmo tempo em que delega agrave mulher uma nova importacircncia dentro do modelo familiar a reduz ao papel de esposa e matildee atribuindo a essa perspectiva um aspecto cientiacutefico

No entanto a pattir da virada da deacutecada de 1870 a preocupaccedilatildeo meacutedica sofre uma importante modificaccedilatildeo Apesar de persistir a perspecti va da higiene puacuteblica a ecircnfase do projeto meacutedico volta-se principalmente para uma perspectiva formaccedilatildeo de um novo tipo de indiviacuteduo para o aprimoramento da populaccedilatildeo para a melhoria da raccedila Nagraveo satildeo atacadas apenas as condiccedilotildees de produccedilatildeo de doenccedilas mas se passa promover a sauacutede tentando produzir indi viacuteduos fiacutesica e moralmente adequados a um determinado projeto social Natildeo se trata mais apenas de proteger o Estado contra os problemas colocados pelas doenccedilas mas sobretudo de exlcmJinaacute-las pela promoccedilatildeo de um novo corpo social como se pode programar os animais para objetivos determinados a medicina vai se propor a programar tambeacutem os indiviacuteduos

Noacutes vemos a cada passo homens cuidando dos animais para deternlinados fins uns satildeo destinados agrave caccedila outros agraves corridas outros a fornecerem alimentaccedilatildeo de sua carne e outros enfim para trabalhos especiais por meio de certo regime exerciacutecio moradia de Iodas as circunstacircncias que uma estu~

dada pode determinar Por que tambeacutem natildeo estudaremos um meio de aperfeiccediloar a nossa raccedila uma higitTle proacutepria Soacute higiene faraacute de uma crianccedila deacutebil

16 VIANNA AF Consideraccedilotildees higieacutenicas e meacutedico~le8ais sobre o casamento relativamente agrave mulher Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina Rio Janeiro 842 8

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um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

Vol 1 Nuacutemero 1 199160 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

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honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

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Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 8: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

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um homem robusto corrigindo as maacutes disposiccedilotildees que natildeo encontram remeacutedio na medicina17

Produzir um novo tipo de indiviacuteduo mais adequado a um determinado projeto poliacutetico de organizaccedilatildeo da sociedade eacute nesse momento o objetivo fundashymental O que se propotildee natildeo eacute apenas uma preservaccedilatildeo populacional mas uma intervenccedilatildeo direta sobre a formaccedilatildeo das individualidades um controle que deve operar diretamente sobre seus corpos para adestraacute-los e disciplinaacute-los a fim de obter simultaneamente sua docilizaccedilatildeo e o aumento de sua produtividade Um projeto meacutedico que faz parte de uma tecnologia de gestatildeo populacional calcada numa perspectiva de disciplinarizaccedilatildeo e normalizaccedilatildeo da populaccedilatildeo

Nesse momento a instituiccedilatildeo psiquiaacutetrica ganha um lugar de relevo nos discursos meacutedicos Preocupando-se basicamente com o aspecto da formaccedilatildeo moral dos indiviacuteduos o saber psiquiaacutetrico se expande voltando-se para uma perspectiva especiacutefica de higiene moral complementando uma tarefa que a higiene puacuteblica inaugurou de forma bastante eficiente A psiquiatria se constitui enquanto projeto social em uma nova modalidade de higiene que se passa no niacutevel dos sentimentos das emoccedilotildees e das paixotildees 18

Nessa perspectiva ganha vulto a noccedilatildeo psiquiaacutetrica de degeneraccedilatildeo psiacutequica uma desordem nos centros nervosos capaz de produzir tais perturbaccedilotildees no pensamento e nos sentimentos que tomaria os indiviacuteduos pouco aptos agrave vida

O degenerado eacute todo aquele que vitorioso ou vencido na luta pela existecircncia por defeitos hereditaacuterios ou por lesotildees adquiridas do caraacuteter ou por funcionamento ataacutevico psiacutequico fica improdutivo ou nocivo agrave sociedade 19

A noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo trazida pela psiquiatria amplia consideravelmente a estrateacutegia meacutedica O risco de que algueacutem sucumba aos aspectos degenerati vos que possui justifica um maior aprofundamento da intervenccedilatildeo meacutedica na vida dos indiviacuteduos A partir do estudo de problemas como a alienaccedilatildeo mental e a criminalidade a psiquiatria diz que na base desses quadros existe uma maacute formaccedilatildeo uma deficiecircncia fiacutesica e mental que explica esses comportamentos Uma constituiccedilatildeo degenerada liga louco e criminoso Esse aspecto constitucional

17 SILVA AS Higiene da primeira infacircncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 8

18 Ver BIRMAN J A psiquiatria como discurso da moralidade Graal Rio de Janeiro 1979

19 OLIVEIRA L Da degeneraccedilatildeo psquica Tese apresentada agrave Faculdade de Medicin do Rio de Janeiro~ 1895 p 1

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

Vol I Nuacutemero 1 199162 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

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Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 9: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 57

anocircmalo ganha relevacircncia nos discursos meacutedicos de entatildeo O degenerado eacute algueacutem que sucumbiu a um processo civilizatoacuterio deficiente pennanecendo num estaacutegio anterior apresentando ainda caracteres selvagens constituindo-se numa ameaccedila ao desenvolvimento social natildeo soacute pelo fato de que seus atos podem prejudicar outros indiviacuteduos como tambeacutem por se tratar de um portador de caracteriacutesticas passiacuteveis de transmissatildeo hereditaacuteria o que pode levar a um processo de degradaccedilatildeo social Para prevenir a expansatildeo desse tipo de anomalia e corrigir as maacutes fonnashyccedilotildees a higiene mental se torna um dos pilares da estrateacutegia do projeto meacutedico de higiene social

Apoiada nessas teorias a medicina cria um novo tipo de patologia que abre espaccedilo para que se trate todo e qualquer desvio de comportamento como sinal de degeneraccedilatildeo psiacutequica Criam-se assim novos objetos de intervenccedilatildeo na tentativa de circunscrever os efeitos noci vos que os portadores dessas caracteriacutesticas podem trazer agrave estrateacutegia de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral do povo Criminosos prostitutas alienados histeacutericos negros escra vos desviantes sexuais infanticidas satildeo exemplos de indiviacuteduos que a medicina trata como produtos degenerados da populaccedilatildeo Eacute este o ponto de partida para uma tentativa de intervenccedilatildeo em todo e qualquer comportamento que natildeo corresponda aos ideais higieacutenicos

Nesse contexto a importacircncia da famiacutelia assume novas proporccedilotildees Lugar onde o indiviacuteduo se constitui a famiacuteli a torna-se fundamental como possiacutevel foco de transmissatildeo de estigmas degenerativos e ao mesmo tempo local privilegiado para corrigir toda e qualquer anomalia A questatildeo da infacircncia as relaccedilotildees familiares as fonnas de alianccedila os papeacuteis sexuais os lugares sociais tudo isso passa a ser pensado de acordo com essa nova perspecti va A preocupaccedilatildeo com a crianccedila natildeo estaacute mais baseada no binocircmio nascimento-morte trata-se agora de protegecirc-la ao maacuteximo das condiccedilotildees que possam feri-la ou depravaacute-la A fonnaccedilatildeo de uma infacircncia fiacutesica e moralmente sadia capaz de responder agraves necessidades sociais eacute o principal tema dos debates meacutedicos e o fio condutor de um novo projeto de higiene infantil Com o objetivo de preparar as crianccedilas para um futuro livre de aspectos degenerativos e consequumlentemente para alcanccedilar um desenvolvimento adequado a higiene social propotildee regras minuciosas cuidados constantes modishyficaccedilotildees nos haacutebitos familiares e mudanccedilas no sistema educacional com vistas a garantir uma boa fonnaccedilatildeo fiacutesica e moral para cada futuro cidadatildeo

~Preparar o coraccedilatildeo e o espiacuterito de modo a fazer do indiviacuteduo um ser moral eacute o fim da educaccedilatildeo que iniciada na famiacutelia completa-se na Paacutetria20

20 SIMOtildeES AAHigiene da primeira illfacircncia Tee apreehtda agrave Faculdade de Medicina do

Rio de Janeiro 1882 p 37

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

Vol 1 Nuacutemero 1 199164 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 10: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

1 Nuacutemero 158 PHYSIS - Revista Sauacutede Coletiva

A questatildeo educaccedilatildeo moral eacute portanto um pontos chaves dos discursos meacutedicos sobre os cuidados com a infacircncia

Para atingir esses objetivos muitos costumes familiares satildeo atacados e outros incentivados Pai e matildee devem educar as crianccedilas visando aperfeiccediloar suas potencialidades conter seus instintos anti-sociais Desde a tenra infacircncia a educaccedilatildeo deve basear-se nos princiacutepios da moral higiecircnica os haacutebitos devem ser ensinados em cada momento para que fiquem desde cedo intcmalizados de uma maneira geral o processo educativo deve constituir~se em uma fonna de disciplina dos desejos e das paixotildees Outro tema que ganha nova importacircncia nesse instante eacute casamento sistemas alianccedilas tamshybeacutem devem estar de acordo com essa nova perspectiva de aperfeiccediloamento fiacutesico e moral dos indi viacuteduos Baseados nos princiacutepios da degeneraccedilatildeo hereditariedade os meacutedicos justificam a necessidade de intervir nas uniotildees conjugais para promover regeneraccedilatildeo do caraacuteter evitando proliferaccedilatildeo taras e anomalias e controlando possiacuteveis desvios Mas natildeo eacute apenas para proteger as crianccedilas esses princiacutepios devem observados pois uniatildeo eonjugal deve ter por fim contribuir tambeacutem para o aprimoramento do casal e a atenuaccedilatildeo de suas imshyperfeiccedilotildees homens e mulheres com suas caracteriacutesticas diversas e complemenshytares devem se auxiliar proteger e aperfeiccediloar mutuamente O casamento quando se realiza sob a eacutegide dos preceitos da higiene traz consequumlecircncias positivas para toda a sociedade

em relaccedilatildeo ao indiviacuteduo agrave espeacutecie e agrave sociedade o casamento dominado preceitos da satilde higiene preenche seus beneacuteficos resultados 21

Os casamentos baseados em interesses familiares satildeo cada mais atacados por natildeo levarem em conta essa perspectiva profilaacutetica Observa-se uma tentativa mais contundente de colocar ordem famiacutelia o controle meacutedico medida que se propotildee que nenhuma decisatildeo dessa espeacutecie seja tomada sem apreciaccedilatildeo meacutedica Critica-se por exemplo o haacutebito de os indiviacuteduos se casarem dentro de unIa mesma famiacutelia sem levar em conta a opiniatildeo meacutedica como um dos fatores de proliferaccedilatildeo de taras degenerativas

~Para a infelicidade da sociedade certos princiacutepios de famiacutelia e o fato de os meacutedicos natildeo serem consultados a respeito fazem com que diaacutetese em uma famiacutelia

21 LOPES DE FIGUEIREDO JADos casamentos do ponto de vista higiecircnico in Dos diagnoacutesticos dos tumores dos testiculoso Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 76

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 11: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 59

de se extinguir se acentue cada vez mais em consequumlecircncia dos casamentos entre indiviacuteduos da mesma farmlia22

Para que se obtenha uma alteraccedilatildeo nos costumes fallUacuteliares considerados pershyniciosos ao projeto de regeneraccedilatildeo social aparecem propostas de modificaccedilatildeo na legislaccedilatildeo de forma que praacuteticas como casamentos com grandes diferenccedilas de idade casamentos na idade precoce ou avanccedilada e outros casos nos quais a proliferaccedilatildeo de estigmas degenerativos possa levar a problemas mais graves sejam impedidas atraveacutes de medidas que proiacutebam sua recorrecircncia

A medicina enfatiza a necessidade de se estabelecerem laccedilos conjugais calcados nos princiacutepios da higiene O casamento nessa perspectiva eacute considerado o pilar de uma organizaccedilatildeo social voltada para a preservaccedilatildeo populacional Qualquer outro tipo de uniatildeo e formas diversas de vid~ que fujam a esse modelo passam a ser muito criticados como atos contra a natureza humana como acontece com o celibato e a poligallUacutea que passam a ser vistos como formas de vida que podem levar ao enfraquecimento fiacutesico e moral dos indiviacuteduos

No entanto o casamento natildeo eacute recomendado aleatoriamente sob quaisquer circunstacircncias no caso dos indiviacuteduos portadores de doenccedilas e de aspectos constishytucionais degenerados ele deve ser contra-indicado

Tem-se visto por heranccedila passar de pais a filhos natildeo soacute os defeitos inatos como os adquiridos() As diaacuteteses de todo o gecircnero podendo passar de pais a filhos contra-indicam o casamento 23

No cerne dessa questatildeo encontra-se a necessidade de impedir os casamentos que possam representar uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social Como medida preventiva os meacutedicos propotildee a instituiccedilatildeo de exames preacute-nupciais obrigatoacuterios Esse tipo de discurso que se estende por toda a Primeira Repuacuteblica desembocar na deacutecada de 1920 num projeto claramente eugecircnico24 Nesse conshytexto a questatildeo feminina se coloca de outra forma A preocupaccedilatildeo com a mulher se exacerba e os trabalhos voltados para seus problemas se modificam

Com a desestruturaccedilatildeo do sistema senhorial observa-se de um lado o cresshycimento de uma parcela da populaccedilatildeo feminina que se situa agrave margem do binocircmio senhor-escravo e que possui um tipo de vida natildeo tatildeo restrito como se poderia espeshy

22 fREITAS DRUMOND AM ~Dos casamentos sob o ponto de vista higiecircnico in Phtisica pulmonar Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1880 p 225

23 LOPES DE FIGUEIREDO op cit p7

24 Ver FREIRE COSTA J Histoacuteria da Psiquiatria no Brasil Documentaacuterio Rio de Janeiro 1976

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raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

Vol I Nuacutemero 1 199162 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

Vol 1 Nuacutemero 1 199164 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 12: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vol 1 Nuacutemero 1 199160 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

raro Mulheres saiacutedas de camadas mais baixas da populaccedilatildeo escravas libertas messhyticcedilas e brancas pobres subsistem com certa autonomia chegando mesmo a formar um contingente nada despreziacutevel da populaccedilatildeo economicante ativa25 Por outro lashydo nas camadas dominantes a reclusatildeo feminina parece se relativizar e apesar de natildeo existir uma modificaccedilatildeo significativa em sua posiccedilatildeo social o processo de urbanizaccedilatildeo e o ambiente da cidade propiciavam agraves mulheres um maior contato social Comeccedilam entatildeo a ser vistas em outros locais aleacutem de igrejas e festividades a possuir alguma liberdade de movimento chegando mesmo a existir uma ou outra que se toma emancipada econocircmica e intelectualmente26 O seacuteculo XIX trouxe portanto gradativamente uma seacuterie de modificaccedilotildees na vida das mulheres das cishydades existindo mesmo um nascente movimento feminista nas uacuteltimas deacutecadasY

Toda essa mudanccedila no comportamento feminino toda a tendecircncia a sair da reclusatildeo do lar cria mais um obstaacuteculo para a estrateacutegia global da medicina O tipo de vida levado pelas mulheres as suas atividades sociais e produtivas se tomam alvos de criacuteticas e das preocupaccedilotildees meacutedicas Dentro da estrateacutegia de regeshyneraccedilatildeo social o aparecimento de um tipo de mulher mais voltado para o mundo externo agrave casa eacute um problema novojaacute que as mulheres aparecem com novas formas de vida podendo tomar-se uma grande ameaccedila ao ideal de esposa e matildee Nesse momento os discursos meacutedicos aprofundam os estudos sobre a natureza feminina transformando em anomalia as peculiaridades desse sexo numa tentativa de cirshycunscrevecirc-lo a um determinado padratildeo Os textos meacutedicos mudam de tom e constroem um novo tipo de saber sobre a mulher tentando demonstrar que se por um lado ela estaacute voltada para o amor eacute tambeacutem capaz de se tomar autora de grandes atos anti-sociais O sexo feminino natildeo seraacute mais a partir de agora o lugar das virtudes e dos bons sentimentos mas tambeacutem e principalmente um lugar onde maus instintos podem se desenvolver Tomando como base o estudo de fenocircmenos sociais como aborto infanticiacutedio prostituiccedilatildeo e loucura detectam-se sinais de uma monstruosidade peculiar a toda e qualquer mulher Vemos entatildeo intensificar-se uma corrente segundo a qual o sexo feminino possui uma base degenerada que predispotildee ao aparecimento de comportamentos anti-sociais por ter sido submetido a um processo civilizatoacuterio inadequado que o tomou menos desenvolvido

25 ~Era bastante alta a percentagem de mulheres que participavam dasatividades econocircmicasem 1872 Mesmo excluindo-se as que se ocupavam dos serviccedilos domeacutesticos as mulheres representavam 374 da forccedila de trabalho efetiva total da naccedilatildeo SAFFIOTII IBH A mulher na sociedade de classes mito e realidade Vozes Petroacutepolis 1979 p 239

26 HAHNER JE A mulher no Brasil Civilizaccedilatildeo Brasileira Rio de Janeiro 1978

21 Idem p 79

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

Vol I Nuacutemero 1 199162 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

Vol 1 Nuacutemero 1 199164 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

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Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 13: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 61

Foram as contingecircncias da vida civilizada erradamente orientada que fizeram pela longa sedimentaccedilatildeo dos anos a inferioridade fiacutesica da mulher28

Natildeo estariam portanto na dependecircncia apenas da biologia as deficiecircncias da mulher mas tambeacutem de um tipo de civilizaccedilatildeo que natildeo Ilhe deu maiores oportunidades de ter um bom desenvolvimento Comparando-a com o homem utilizando-se de estudos antropoloacutegicos a medicina vai reafirmar a ideacuteia de inferioridade feminina dando-lhe agora novas coresjaacute que transfonna a diferenccedila entre os sexos em sinal de anomalia da mulher Essa inferioridade deixa entatildeo de ser considerada sinal de uma fragilidade compatiacutevel com as funccedilotildees do sexo e passa a ser pensada como um sinal de que a mulher possui um tipo primitivo degenerado anti-social mais aproximado do selvagem e do criminoso

~A investigaccedilatildeo antropoloacutegica demonstra que nas raccedilas mais adiantadas os lobos frontais satildeo mais desenvolvidos( ) o cracircnio feminino aproxima-se menos do que se pode chamar o tipo frontal do que o masculino( ) na mulher os lobos lateral e posterior do cracircnio tecircm maior superfiacutecie do que no homem Era esse o tipo craniano do criminoso29

Comparando a mulher ao homem preacute-histoacuterico dando ao sexo feminino um lugar de degenerado os meacutedicos combatem violentamente qualquer outro tipo de abordagem que veja a mulher sob um prisma diferente Criticam por exemplo a ideacuteia veiculada por romances e poemas de que as mulheres seriam mais sensiacuteveis que o homem propotildee-se entatildeo que na verdade a mulher possui uma menor capacidade de dominar seus sentimentos

Eacuteessa ideacuteia de uma constituiccedilatildeo feminina de base degenerada que vai nortear todo o projeto meacutedico de intervenccedilatildeo junto agrave mulher a partir do fmal do seacuteculo Esse tipo de visatildeo possui uma grande forccedila e aspectos vantajosos para a estrateacutegia meacutedica ao mesmo tempo em que ajuda fixaacute-la num detenninado papel justifica (jaacute que toma o sexo feminino uma ameaccedila ao projeto de regeneraccedilatildeo social) um maior controle da camada feminina da populaccedilatildeo numa tentati va mais contundente de evitar desvios e ampliar suas potencialidades

II - O PERFIL FEMININO E AS FORMAS DE DESVIO

Vemos surgir portanto um discurso meacutedico que coloca a mulher como um ser pleno de caracteriacutesticas degeneradas virtualmente perigoso para o projeto de

28 SPARANO L O sexo em patologia (a questatildeo feminia) Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1916 p 20

29 Idem

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

Vol 1 Nuacutemero 1 199164 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 14: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

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aperfeiccediloamento da espeacutecie Tal discurso pretende circunscrever os comportamenshytos femininos anti-sociais dentro de limites inoacutecuos de modo a produzir um rendimento oacutetimo de suas funccedilotildees dentro da sociedade

Dada a importacircncia atribuiacuteda ao comprometimento da mulher a medicina a partir do momento em que comeccedila a sentir ameaccedilado o seu projeto de regeneraccedilatildeo popular aprofunda estudo caracteriacutesticas femininas passando a pensartodos os seusmiddot aspectos de forma minuciosa e demonstrando a cada passo a primitividade de sua constituiccedilatildeo

Partindo do pressuposto de que o organismo da mulher apresenta particularishydades pouco desenvolvidas a medicina a classifica como raccedila inferior

~A mulher ainda observa hoje no estado fisioloacutegico os vestiacutegios de uma espeacutecie que deu origem agrave raccedila humana3o

Dessa forma tenta-se demonstrar positivamente que todo o seu organismo possui caracteriacutesticas inferiores Natildeo apenas como no primeiro momento quando seu fiacutesico mais arredondado e fraacutegil voltado para a procriaccedilatildeo constituiacutea o ponto

apoio para um discurso de inferiorizaccedilatildeo fragilizaccedilatildeo anatocircmica compatiacutevel com a maternidade A diferenccedila agora se daacute em outro niacutevel o que se coloca eacute a

de que essa inferioridade estaacute ligada a um aspecto de natildeo-evoluccedilatildeo da mente dos pensamentos e sentimentos Assim o ceacuterebro possui volume peso e forma inferiores os gacircnglios e a medula satildeo mais desenvolvidos como em estaacutegios

e mentalidade natildeo desenvolve adequadamente A mulher eacute portanto o indiviacuteduo adulto que natildeo cresceu

~o ceacuterebro da mulher liga-se em relaccedilatildeo ao passado ao ceacuterebro do selvagem em relaccedilatildeo ao presente ao ceacuterebro da crianccedila Assim se demonstra que a fraqueza do sexo feminino natildeo reside no fiacutesico( ) A diferenccedila estaacute na mentalidade O homem primitivo a crianccedila de hoje e a mulher feitas certas restriccedilotildees relativas ao meio representam a infacircncia da humanidadej

Apesar de essa ideologia meacutedica considerar que o problema da mulher estaacute ligado agrave sua histoacuteria e ao desenvolvimento da civilizaccedilatildeo sua inferioridade se toma aquisiccedilatildeo orgacircnica jaacute que de acordo com as teorias da eacutepoca esses aspectos

se constituem passam a ser transmitidos hereditariamente Tendo experishymentado uma evoluccedilatildeo deficiente e sofrido uma estagnaccedilatildeo constitucional a

30 LIVIO DE CASTRO T mulhere sociogenia Guanabara Rio de Janeiro 1894 p

lL ldJn p 95

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mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

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primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

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MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

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Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

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Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

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ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 15: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 63

mulher ganha da medicina um status infantil tomando-se algueacutem que natildeo estaacute apto a cuidar de si mesmo que natildeo alcanccedilou a maioridade

~Foi isso que se deu com a mulher O meio em que se exerceu sua atividade mental foi sempre idecircntico ao da espeacutecie no seu periacuteodo primitivo ou infantil Ela natildeo teve incentivos para chegar agrave maioridade e conservou-se ateacute hoje crianccedila32

A partir dessa perspectiva a medicina diz que a mulher natildeo tem condiccedilotildees de gerir a proacutepria vida Entatildeo se observa um movimento vigoroso no sentido de fixaacuteshyla numa detenuinada posiccedilatildeo social Se no primeiro momento para que a medicina pudesse dotar a mulher de algum poder dentro da fatmlia foi necessaacuterio consideraacuteshyla a mais adequada para a guarda dos filhos tendo para isso que lhe delegar um novo estatuto que implicava alguma autoridade o movimento agora parece inverso Suas caracteriacutesticas natildeo satildeo valorizadas Ao contraacuterio satildeo desqualificadas a um tal ponto que de acordo com essa visatildeo quase nada parece demonstrar que a mulher seja capaz de exercer alguma funccedilatildeo social Natildeo eacute um discurso que procura dar-lhe alguma legitimaccedilatildeo ao contraacuterio pretende tomaacute-la inapta ao exerciacutecio de qualquer tipo de poder a um tal ponto que em vez de trataacute-la como algueacutem com potencialidades a toma impotente e incapaz com tendecircncia a ser dominada

Uma escravidatildeo de muitos mil anos eacute mais que bastante para fazer do servilismo uma tendecircncia orgacircnica inata e foi essa a escravidatildeo da mulher3J

Dessa forma a mulher possuidora de uma estrutura tatildeo precaacuteria toma-se no pensamento meacutedico um grande perigo para a evoluccedilatildeo da espeacutecie jaacute que participa mais do que o pai na constituiccedilatildeo dos filhos e de suas predisposiccedilotildees moacuterbidas Ao mesmo tempo essa constituiccedilatildeo doentia que determina a existecircncia de uma seacuterie de desvios sociais femininos que podem ser explicados fisiologicamente Tenta-se demonstrar que se algumas mulheres natildeo respondem adequadamente aos seus papeacuteis tradicionais eacute por causa dessa organizaccedilatildeo fiacutesica e mental inferior A falta de zelo com os filhos e a famiacutelia a natildeo-amamentaccedilatildeo das crianccedilas as diversas formas de loucura o aborto e o infanticiacutedio o adulteacuterio a prostituiccedilatildeo a vida desregrada satildeo demonstraccedilotildees de que a mulher quando pouco cuidada pode sucumbir agrave sua fragilidade Quando por exemplo a medicina estuda as diferentes formas de alienaccedilatildeo mental e o sem-nuacutemero de consequumlecircncias que este estado pode trazer para a organizaccedilatildeo social jaacute que se constitui em mais uma fonte de

32 Idem p 144

33 Idm p_ 114

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

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Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

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ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 16: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

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desagregaccedilatildeo a questatildeo feminina tem um lugar especial Ressaltando algumas formas de doenccedila mental tiacutepicas das mulheres os discursos meacutedicos atribuem ao sexo feminino maior predisposiccedilatildeo para a loucura em funccedilatildeo de sua constituiccedilatildeo fiacutesica mais sujeita a abalos morais

MA hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino( ) este fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas34

Fazendo o mesmo tipo de raciociacutenio na questatildeo do aleitamento infantil a medicina mostra que a matildee que natildeo amamenta o seu filho eacute tambeacutem algueacutem que sucumbe a seus aspectos degenerados tornando-se passiacutevel de ser tratada como uma criminosa voltada apenas para seus desejos e caprichos

M A matildee que natildeo aleita o seu filho eacute como diz o doutor Kubom criminosa ou infeliz A primeira eacute aquela que encara os deveres da maternidade como um fardo muito pesado que lhe embaraccedila em seus divertimentos eacute a jovem e elegante senhora que tem medo de prejudicar a sua beleza e a elegacircncia do seu talho 35

Nessa perspectiva trecircs figuras femininas aparecem como modelos de mulher que por seus aspectos degenerados se tornam francamente anti-sociais Natildeo constituem contudo como no primeiro momento tipos especiais femininos mas demonstram a existecircncia de uma base degenerada comum a todas as mulheres Satildeo elas a infanticida a louca e a prostituta

1 - A mulher criminosa

Os trabalhos meacutedicos que mostram de maneira mais contundente a que ponto de selvageria pode chegar uma mulher e que grau de periculosidade existe em cada elemento do sexo feminino satildeo os que discutem o aborto e o infanticiacutedio Nessa eacutepoca tais temas satildeo tratados de forma bastante diferente da que aparece no iniacutecio do seacuteculo quando natildeo se observa um interesse maior em dotar a mulher criminosa de caracteriacutesticas perversas ao contraacuterio fatores sociais doenccedilas mentais e tentativa de preservaccedilatildeo da honra familiar satildeo considerados atenuantes para o crime e como tal de maneira geral reconhecidos nos textos meacutedicos A questatildeo

34 RODRIGUES OUVEIRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 pl0

3S MARTINS JF Higiene do primeira infdncia Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de lAnccedilIacutero 1882 p 9

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 17: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 65

primordial no primeiro momento eacute a preocupaccedilatildeo com a sobrevivecircncia das crianccedilas Esses atentados aparecem colocados entre os fatores que contribuiriam para um aumento da mortalidade infantil A mulher autora de um ato violento natildeo eacute ainda especialmente considerada numa perspectiva patologizante

A partir da deacutecada de 1870 as discussotildees sobre esses crimes se modificam inteiramente Os discursos se tomam muito mais contundentes e o julgamento meacutedico contribui para uma classificaccedilatildeo mais rigorosa e a adoccedilatildeo de penalidades mais violentas Considera-se por exemplo o infanticiacutedio muito mais grave do que qualquer outro tipo de homiciacutedio porque se tem certeza da inocecircncia da viacutetima e porque se trata de um ente incapaz da menor resistecircncia Outro movimento bastante claro eacute uma tentativa de reforccedilar a ideacuteia de que esses delitos atentam contra a ordem puacuteblica Tomam-se mais incisivos os ataques contra o costume das famiacutelias de procederem a esses atos e mais veementes os pedidos de uma legislaccedilatildeo mais riacutegida A defesa da honra deixa de ser circunstacircncia atenuante como acontecia no iniacutecio do seacuteculo e passa a ser considerada agravante Mas a grande novidade que aparece nos textos no fmal do seacuteculo eacute o tratamento dado agraves mulheres que cometem esses crimes Antes consideradas umas pobres-coitadas que para resguardar sua honra e a de sua famiacutelia ou para natildeo trazer ao mundo filhos que natildeo teriam condiccedilotildees de cuidar chegavam a mataacute-los tomam-se agora seres monstruosos perversos capazes das maiores atrocidades

~Sendo nosso intuito nesse capiacutetulo tornar bem patente ao julgamento de todo o elevado grau de perversidade que preside sempre ao infanticiacutedio a grande depresshysatildeo moral que afeta a mulher que o pratica 36

Observa-se portanto uma perspectiva de adoecimento da criminosa Em algumas teses os meacutedicos consideram as mulheres que cometem abortomiddot ou infanticiacutedio tipos femininos especiais Mas o que se toma mais presente enquanto corrente de pensamento e mais aceito pela maioria dos meacutedicos eacute a ideacuteia de que a mulher que chega a cometer esses crimes natildeo eacute muito diferente das demais sendo apenas o resultado da constituiccedilatildeo feminina degenerada Todas as mulheres tecircm uma soacute base constitucional fraacutegil e selvagem que pode levar a esse tipo de atrocidade o oacutedio matemo que pode levar ao assassinato de um filho natildeo eacute uma situaccedilatildeo especial eacute o ~jnal de uma falta de moralidade presente em todos os indiviacuteduos do sexo feminino

36 MILITAtildeO PACHECO A Do infantidio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio ele JAneiro 1892 p 13

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 18: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vol I Nuacutemero I 199166 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Aparecem poreacutem alguns casos natildeo de amor mas de oacutedio materno que satildeo apresentados como objeccedilatildeo Eacute um engano Nem sagraveo exceccedilotildees nem contrariam obshyservaccedilotildees anteriores 37

A partir dessas constataccedilotildees o tratamento dado a essas mulheres toma-se muito mais riacutegido e as explicaccedilotildees dadas a esse comportamento refletem o movimento para situaacute-las em uma categoria patoloacutegica As causas determinantes desses atos satildeo consideradas ligadas a uma degradaccedilatildeo do contingente feminino que preocupado egoisticamente com seus proacuteprios interesses sem Uma moral bem constituiacuteda que permita voltar-se para interesses sociais daacute vazatildeo a seus instintos animais natildeo hesitando em livrar-se de qualquer empecilho que ameace o seu bemshyestar eacute a mulher casada que engravida na ausecircncia do marido a mulher frequumlenshytadora de acontecimentos sociais que natildeo quer aparecer graacutevida a mulher de vida faacutecil perturbada no exerciacutecio de sua profissatildeo por uma gestaccedilatildeo inoportuna a amaacutesia que se vecirc surpreendida a mulher de menores recursos cujo orccedilamento seria desequilibrado pela vinda de uma crianccedila Essas mulheres que sucumbindo agraves suas fraquezas matam os proacuteprios filhos satildeo consideradas seres despreziacuteveis dignos dos piores castigos numa clara tentativa de atemorizaccedilatildeo e demonstraccedilatildeo de que a fragilidade feminina tem que ser contida Os meacutedicos discutem o tratamento dado agraves mulheres pelas leis penais Se alguns mais exaltados pedem a pena maacutexima e lamentam a natildeo-existecircncia da pena de morte a maioria procura tomar as penas mais pesadas e abolir as atenuantes existentes tomando-as fatores agravantes

~Quando a proacutepria matildee for a autora do assassinato seraacute punida com penas mais brandas Mas perguntamos noacutes quando uma matildee for tatildeo perversa que mate o fruto de suas proacuteprias entranhas natildeo recuando muitas vezes diante dos meios os mais vioshylentos natildeo deveria constituir esse fato uma circunstacircncia das mais agravantesT38

A defesa da honra tambeacutem natildeo pode ser admitida como atenuante de um crime pois uma mulher que engravida fora do casamento mantendo relaccedilotildees iliacutecishytas jaacute eacute uma mulher sem honra Ela comete um duplo crime -adulteacuterio e infanticiacuteshydio - existindo portanto duas provas de sua depravaccedilatildeo moral Em vez de um afroushyxamento isso exige maior rigor das leis penais atraveacutes de um aumento de sua pena

Se a mulher procurou se ver livre do seu filho para ocultar a desonra eacute este um argumento contraproducente natildeo tem razatildeo de ser visto que essa mulher natildeo tem

37 CASTROL TL op cit p 141

38 BARCELOS JF Do infanticiacutedio Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de ]allciru 1692 p 13

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 19: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 67

honra alguma nem coisa que dela se aproxime pois que jaacute ela natildeo a possuiacutea quando entreteve relaccedilatildeo quenatildeo podia ter39

Tratando o comportamento dessas mulheres como uma patologia moral partindo de grandes crimes para demonstrar o tipo de monstruosidade de que pode ser capaz uma mulher a medicina abre espaccedilo para um tipo de discurso no qual essa mulher que sucumbe a suas bases degeneradas eacute tratada como exemplo do perigo virtual da condiccedilatildeo feminina Baseando-se nisso diz que todo e qualquer comporshytamento feminino que extravase ou natildeo corresponda ao ideal de esposa e matildee eacute um siacutembolo da patologia feminina

~A mulher original que se torna proeminente pela sua extraordinaacuteria devassidatildeo pelo grande desejo de jogar pelo gosto infrene de pintar escrever viajar etc eacute capaz de matar seu proacuteprio filho 40

Toda mulher que abandona seus sagrados deveres familiares ou que natildeo os cumpre adequadamente de acordo com o modelo meacutedico eacute considerada uma criminosa em potencial cuja selvageria superou os preceitos morais e humanos Criminalizando a figura feminina a medicina tenta contribuir para uma estrateacutegia de garantir a permanecircncia da mulher nos papeacuteis sociais que lhe satildeo determinados

2 - A prostituta

A questatildeo da prostituta tambeacutem sofre algumas modificaccedilotildees a partir do fmal do seacuteculo Considerado de grande importacircncia pelo perigo que representa para a sociedade por suas funestas consequumlecircncias fiacutesicas e morais o fenocircmeno da prostituiccedilatildeo eacute significativo nos discursos meacutedicos O estudo de suas causas e consequumlecircncias se aprofunda os projetos de regulaccedilatildeo se ampliam e ao mesmo tempo a tentativa de analisar o tipo de mulher que constitui essa camada feminina ganha novos contornos

Em primeiro lugar os meacutedicos satildeo unacircnimes em falar do crescimento desenshyfreado da prostituiccedilatildeo principalmente no Rio de Janeiro Como causas desse fenocircmeno citam-se alguns fatos a vinda de homens e mulheres de vida mais licenciosa de outros paiacuteses a escravatura que mantinha mulheres em situaccedilatildeo de vida puacuteblica clandestina ou por necessidade de sobrevivecircncia ou por serem obrigadas por seus senhores a existecircncia de bailes teatros semilicenciosos e casas de jogos que propiciavam toda sorte de libertinagens Eacute claro que essa situaccedilatildeo

39 MILITAtildeO PACHECO A op cit p 11

40 Idem p 14

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 20: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vol 1 Nuacutemero 11991 68 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

MAPA CLASSIFICATIVO DA PROSTITUICcedilAO DA CIDADE DO RIO DE J ANEIR041

12 gecircnero das prostitutas Floristas trabalhadoras Modistas

Costureiras

1~ classe da s Vendedoras de chamtos Difiacuteceis Figurantes de teatro

Comparsas etc

gecircnero prostitutas IsladaS cm casas ociosas [ arlstocratlcas

Reunidas em hoteacuteis Prostituiccedilatildeo aristocraacuteticos Puacuteblica

2 classe das Prostitutas de coleacutegios Faacuteceis [ Prostitutas de sobrados

Prostitutas estalagens Prostitutas de bordeacuteis

classe Inferiores Faciacutelimas [ Reformadas ou gastas

Dezungus

Classe boas condiccedilotildees Viuacutevas

[ Casadas Di vorciadas Solteiras

Prostituiccedilatildeo Cladestina Em baixas condiccedilotildees Uumluvres

libertas Escravas etc

Classe Praacuteticas antifaacutesicas Doutrinas lesbianas nas mulheres [ Coitos contra a

natureza Onanismo

Sodomia ou prostituiccedilatildeo rPederastas ati vos masculina lassivos mistos

41 FERRAZ DE MACEDO F De prostituiccedilatildeo em geral e em particular da cjdade do Rio de Janeiro profilaxia da siacutefilis Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro HSl2 74

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 21: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina (f)

alarmante tomava imperiosa aos olhos da medicina uma accedilatildeo reguladora normativa dessas praacuteticas com vistas a combater as possibilidades de degradaccedilatildeo social que poderiam sobrevir a um estado de coisas tatildeo calamitoso Para se realizar esse projeto procede-se a um estudo minucioso das diferentes de prostishytuiccedilatildeo bastante mais abrangente do que aqueles apresentados na primeira metade do seacuteculo Eacute surpreendente o grau de minuacutecia a que chega essa anaacutelise desde meretriz de salatildeo ateacute a prostituiccedilatildeo masculina e agraves praacuteticas masturshybatoacuterias como se pode observar no quadro apresentado em uma dessas teses

O aprimoramento dessa classif1caccedilatildeo demonstra a grande necessidade catalogar e regular toda e qualquer forma de atividade sexual fora do laccedilo conjugal Ao mesmo tempo as diferentes praacuteticas sexuais passam tambeacutem a ser assimiladas a praacuteticas libertinas que devem merecer um tratamento especial Outro aspecto portante desse quadro eacute quanto ao tipo de mulher que procura essas ati vidades que pertencem aacutes mais diferentes origens moccedilas brancas ou negras livres ou escravas artistas estrangeiras jovens ou idosas casadas ou solteiras ricas ou pobres As

razotildees sociais que fazem com que essas mulheres de diferentes inserccedilotildees sociais se voltem para prostituiccedilatildeo satildeo analisadas cuidadosamente assim como suas praacuteticas licenciosas sua influecircncia sobre a sociedade suas caracteriacutesticas mentais crenccedilas viacutecios e virtudes Tenta-se descrever todos os seus passos abrangendo a totalidade seu cotidiano sua forma de vida local de trabalho haacutebitos costumes Mas apesar das especificidades e das diferentes medidas que essa pluralidade de formas de prostituiccedilatildeo pode demandar no que concerne agrave questatildeo da causa mais importante se coloca o problema da desagregaccedilatildeo social de uma civilizaccedilatildeo imperfeita que leva as mulheres a um comportamento degradado Os discursos meacutedicos natildeo defendem mais a ideacuteia de que essas mulheres constituam um tipo feminino especial ou possuam uma constituiccedilatildeo anormal completamente antagoacutenica ao tipo feminino geral negativo da matildee a prostituta natildeo eacute mais o negativo do fenuacutenino O que pretende mostrar que toda e qualquer mulher dependendo de condiccedilotildees objetivas mais ou menos propiacutecias pode se voltar para a prostituiccedilatildeo jaacute que sua condiccedilatildeo pouco desenvolvida pennite que cm algumas circunstacircncias elas degenerem de vez

As moccedilas brasileiras especialmente as filhas do Rio de Janeiro quase todas franzinas deacutebeis delicadas satildeo de uma susceptibilidade nervosa que espanta() Daiacute se chega facilmente ii possibilidade as flagelar uma ninfomania cujas consequecircncias satildeo das mais tristes e dignas de compaixatildeo42

42 Idem p 129

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

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neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 22: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

Vol I Nuacutemero 11991 70 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Eacute a susceptibilidade constitucional da mulher que pode levaacute-la agrave degradaccedilatildeo e ao viacutecio O caraacuteter da prostituta eacute idecircntico ao das demais A diferenccedila eacute que aqueles sucumbem agrave sua estrutura deficiente Elas natildeo satildeo exceccedilatildeo mas continnaccedilatildeo da regra natildeo satildeo variante mas consequecircncia A prostituiccedilatildeo eacute o resultado de fatores ambientais nocivos sobre a constituiccedilatildeo primitiva da mulher

As propostas meacutedicas para controle desse fenocircmeno satildeo mais ou menos as mesmas do primeiro momento circunscrevecirc-las num determinado local submetecircshylas a vigilacircncia sanitaacuteria e policial e aplicar sobre elas uma legislaccedilatildeo reguladora Este tripeacute que possibilita disciplinar a praacutetica da prostituiccedilatildeo

3 - A loucura feminina

O problema da loucura e da alienaccedilatildeo constitui dentro da medicina higiecircnica um capiacutetulo fundamental Como dissemos anterionnente a questatildeo da higiene social soacute aparece com o desenvolvimento da psiquiatria e a valorizaccedilatildeo da noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica Esta noccedilatildeo abre espaccedilo para se falar de indiviacuteduos portadores de uma constituiccedilatildeo moacuterbida A loucura e a alienaccedilatildeo mental satildeo entatildeo consideradas uma consequumlecircncia dessa degeneraccedilatildeo psiacutequica que existe sempre nesses indi viacuteduos Antes uma pessoa poderia ter episoacutedios de loucura e remissotildees que a tomassem novamente luacutecida Agora uma vez louca sempre louca A loucura eacute uma comprovaccedilatildeo da existecircncia da degeneraccedilatildeo As caracteriacutesticas constitucioshynais do louco satildeo as caracteriacutesticas do degenerado Elas resultam de deficiecircncias orgacircnicas hereditaacuterias que em detenninadas circunstacircncias levam ao fenocircmeno patoloacutegico

~A causa que domina o desenvolvimento das afecccedilotildees mentais a causa das causas eacute a degeneraccedilatildeo orgacircnica hereditaacuteria congecircnita ou adquirida permanente ou momentacircnea e que se traduz por uma suscepti bil i dade especial do sistema nervoso Essa suscetibilidade se manifesta sob a influecircncia de causas externas que facilmente atuam e que satildeo inerentes ao meio em que vive o indiviacuteduo predisposto43

Ora se para a loucura ocorrer eacute preciso que haja predisposiccedilatildeo moacuterbida de um organismo que jaacute carrega estigmas degenerativos eacute claro que um organismo como o da mulher cheio de deficiecircncias estaraacute mais sujeito a essa afecccedilatildeo do que o organismo do homem Os estudos das afecccedilotildees mentais na mulher tentam demonstrar o fato de que a mulher estaacute mais proacutexima do louco

43 A VELAR ANDRADE LCResponsabilidades legais das histeacutericas Tese apresentada agrave faCulllaue de Mtuumllclna elo RIO ele Janeiro lllllll p 86

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 23: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 71

~A hereditariedade da loucura poreacutem afeta mais os indiviacuteduos do sexo femishynino() esse fato eacute de faacutecil explicaccedilatildeo em vista da idiossincrasia moral da mulher que a expotildee mais do que o homem agraves diversas lesotildees nervosas 44

Ao mesmo tempo as teorias psiquiaacutetricas dizem que a degeneraccedilatildeo psiacutequica eacute consequecircncia tambeacutem de uma civilizaccedilatildeo defeituosa que natildeo possibilita um bom amadurecimento do organismo do indiviacuteduo Ora se a degeneraccedilatildeo pode proshyduzir a loucura por via de consequumlecircncia uma civilizaccedilatildeo errocircnea leva a esse estado Este tambeacutem eacute considerado um fator que aumenta a possibilidade de a mulher adoecerjaacute que ela por causa de um processo civilizatoacuterio rudimentar que a deixa proacutexima a seres inferiores fica ainda mais proacutexima do louco Para comprovar e melhor estudar a maior predisposiccedilatildeo moacuterbida do sexo feminino para a loucura e as neuroses em geral dois assuntos satildeo privilegiados loucura puerperal e histeria

A loucura puerperal um tipo de loucura que se desenvolve durante o periacuteodo que se estende do momento da concepccedilatildeo ateacute o momento da extinccedilatildeo do fluxo laacutecteo abre espaccedilo para que se aprofunde a questatildeo da mulher que adoece O sexo feminino que normalmente jaacute possui uma estrutura prestes a desintegrar-se na gravidez quando estaacute carregando dentro de si um novo indiviacuteduo deve merecer ainda mais atenccedilatildeo Quando enlouquece uma mulher graacutevida oferece maior perigo para a regeneraccedilatildeo social jaacute que pode colaborar para aumentar degeneraccedilatildeo da populaccedilatildeo por estar em ligaccedilatildeo direta com uma crianccedila A existecircncia desse tipo de afecccedilatildeo ganha por isso grande relevacircncia no pensamento meacutedico Seu estudo vai retomar a problemaacutetica da constituiccedilatildeo feminina Antes pensada como uma afecccedilatildeo diretamente ligada ao estado graviacutedico e ao parto a loucura puerperal eacute agora vista como um fenocircmeno que depende da organizaccedilatildeo fiacutesica e mental da mulher Se esse estado propicia o surgimento da doenccedila eacute uma demonstraccedilatildeo de que todo cuidado deve ser tomado durante esse periacuteodo Qualquer estiacutemulo maior qualquer mudanccedila na vida da mulher pode propiciar a eclosatildeo do quadro cliacutenico Logo se a mulher normalmente deve ser cercada de todos os cuidados quando em fase de procriaccedilatildeo deve ter esses cuidados redobrados Para evitar essas consequumlecircncias moacuterbidas a mulher graacutevida deve ser resguardada de todo contato com o mundo de modo a natildeo alterar seu jaacute precaacuterio equiliacutebrio

As pancadas as quedas bem como os desgostos e todas as paixotildees violentas e deprimentes deveratildeo ser cuidadosamente observados 4S

44 RODRIGUES OUVElRA OS Loucura puerperal Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1882 p 10

45 Idem p 66

Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

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Vol 1 Nuacutemero 1 199172 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

Todo cuidado eacute pouco para prevenir que aquela que fonua a crianccedila e a acompanha na primeira infacircncia natildeo funcione como um agente de contaminaccedilatildeo e degeneraccedilatildeo da espeacutecie Como as causas que podem levar ao adoecimento satildeo as mais variadas indo desde fatores fiacutesicos a emocionais e morais passando por traumagravetismo e qualquer tipo de excessos do cotidiano o programa de nonuas que a mulher deve seguir para evitar esse mal funciona de fonua a restringir a totalidade de sua vida

Em relaccedilatildeo agrave histeria o interesse natildeo eacute menor Embora esta afecccedilatildeo natildeo esteja diretamente ligada agrave procriaccedilatildeo a partir do fmal do seacuteculo ela eacute frequumlentemente discutida e considerada um modelo privilegiado de degeneraccedilatildeo feminina Os trabalhos sobre histeria procuram basicamente demonstrar que ela estaacute ligada ao fenocircmeno da degeneraccedilatildeo e criticam violentamente qualquer teoria que pretenda estabelecer outra concepccedilatildeo sobre as suas causas Combatem-se ideacuteias correntes de que a histeria teria a ver com uma disfunccedilatildeo de oacutergatildeos genitais femininos tais como problemas uterinos ou mesmo continecircncia sexual A questatildeo da histeria natildeo seria um problema localizado e sim ligado agrave constituiccedilatildeo dos doentes aproxima-se na verdade de outros fenocircmenos ligados agrave degeneraccedilatildeo como por exemplo a criminalidade

Sob o ponto de vista fisioloacutegico o criminoso seria notaacutevel por um enfraquecishymento da sensibilidade podendo afetar vaacuterias formas De fato sua sensibilidade afetiva eacute nula ou pervertida Como as histeacutericas satildeo instaacuteveis vaidosas dadas agrave vinganccedila e agrave crueldade inclinadas a orgias de todas as espeacutecies um dos caracteres mais constantes eacute a preguiccedila ou a incapacidade de aplicaccedilotildees para um trabalho regular 46

Ora se a histeacuterica apresenta caracteriacutesticas similares agraves do criminoso e se este tem um tipo de enfraquecimento ou perversatildeo observaacutevel nos indiviacuteduos degenerashydos deduz-se que a histeacuterica eacute uma degenerada psiacutequica Esse fato marca defmitivamente a ideacuteia de que a histeria eacute basicamente uma doenccedila feminina De maneira geral as teses falam da histeria como um apanaacutegio da mulher raramente se vecirc uma referecircncia a um histeacuterico ao contraacuterio os trabalhos sobre o tema se referem ao portador da doenccedila como a histeacuterica Encontramos por exemplo trabalhos que pretendem estudar a doenccedila como um todo com seu tiacutetulo no feminino - A responsabilidade legal das histeacutericas ou O deliacuterio nas histeacutericas - ou entatildeo descriccedilotildees de caracteriacutesticas cliacutenicas da doenccedila cujo sujeito tambeacutem estaacute no feminino

-+ltiacute A YCLAK ANDKAD~ LC op CIt p tJ

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

Page 25: A MEDICINA SOCIAL E A QUESTÃO FEMININA · No entanto, apesar de tratar a mulher como um ser inferior, os discursos médicos não dão, nesse momento, nenhum caráter patológico

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 73

histeacutericas satildeo raparigas de uma vivacidade intelectual precoces em excesso com uma fisionomia expressiva impressionaacuteveis coquetes procurando fixar sobre a atenccedilatildeo de todos presentes47

Ao mesmo tempo vaacuterios desses trabalhos apresentam estatiacutesticas que demonstram como a histeria atinge preferencialmente as mulheres

~Jaacute eacute conhecido segundo afirmaremos adiante e por todos sabido que a histeria eacute mais frequumlente na mulher que no homem segundo a nossa estatiacutestica apresentamos 678 casos de ataque histeacuterico pertencendo sexo masculino apenas 72 e sexo feminino os demais que satildeo 606 nuacutemero incontestavelmente maior Isso quer dizer que aos homens tocam apenas 8 iL 48

Ajustit1cativa meacutedica para o fenocircmeno de a doenccedila ser muito mais frequumlente na mulher eacute a estmtura fiacutesica e mental desta A histeria como as demais fonnas de degeneraccedilatildeo psiacutequica resulta de um problema hereditaacuterio e de adaptaccedilatildeo Um organismo deacutebil uma intervenccedilatildeo ou parada no desenvol vimento constituem suas causas principais

~De fato todas as causas da histeria podem se resumir nos dois fatores hereditarshyiedade e adaptaccedilatildeo 49

Ora a mulher pela sua proacutepria histoacuteria eacute algueacutem que natildeo sofreu adaptaccedilatildeo adequada e teve suas caracteriacutesticas fraacutegeis tomadas hereditaacuterias Logo por sua proacutepria fisiologia ela se encontra mais exposta agrave doenccedila Daiacute a maior frequumlecircncia de casos de histeria no sexo feminino

Ora a caracteriacutestica da histeria sob o ponto de vista etioloacutegico eacute a paralisia cerebral e a hipercinesia medular( ) A grande frequumlecircncia na mulher de uma moleacutestia que se caracteriza pela inibiccedilatildeo cerebral explica-se pela condiccedilatildeo anatomofisioloacutegica5O

A questatildeo da histeria ocupa um lugar privilegiado nos discursos meacutedicos jaacute que pode favorecer dois movimentos taacuteticos da medicina reforccedila ideacuteia de que

47 PAULA L O deUrio nas histeacutericas Tese apresentada Faculdade de Medicina do Rio Janeiro 1889 p 4

48 MULLER P O pithiatismo Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

49 FERNANDES FIGUEIRA A Histeria Tese apresentada agrave Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro 1886 p 41

o CICi 10 L op Ct p

Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

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Vol 1 Nuacutemero 1 199174 PHYSIS - Revista de Sauacutede Coletiva

neuroses estatildeo diretamente ligadas agrave problemaacutetica da degeneraccedilatildeo dos indiviacuteduos e demonstra atraveacutes da relaccedilatildeo mulher-histeria que o sexo feminino tem uma estrutura mais primitiva jaacute que eacute mais atingido por uma afecccedilatildeo com essas caracteriacutesticas Dessa forma se diz que - apesar de natildeo ser uma exclusividade feminina o que colocaria em primeiro plano a questatildeo do sexo e natildeo a da degeneraccedilatildeo - a histeria estaacute mais presente nas mulheres por fatores constitucionshyais Mais ainda todas as mulheres podem sucumbir a essa afecccedilatildeo

Se a histeria resulta de uma falecircncia no controle dos aspectos degenerados das mulheres quando ela ocorre se toma um risco para a sociedade Algumas alteraccedilotildees das histeacutericas podem constituir um perigo para a estrateacutegia meacutedica de regulaccedilatildeo social Entregues a seus instintos elas natildeo possuem limites para o seu desregrashymento que pode contribuir grandemente para o caos social Isso se observa por exemplo nas alteraccedilotildees que podem ocorrer em sua sexualidade

~Quanto agraves perversotildees sexuais agrave masturbaccedilatildeo agrave inversatildeo do senso genital o amor leacutesbico etc( ) satildeo muito mais frequumlentes nas histeacutericas cuja imaginaccedilatildeo eacute desreshygrada e superexcitada como em todos os degenerados a necessidade do coito normal pode ser tambeacutem patologicamente exagerada e vecirc-se entatildeo as raparigas ou mulheres casadas tomarem-se verdadeiras messalinas51

Podendo portanto por um transtorno na sexualidade partir para comporshytamentos perversos as histeacutericas ameaccedilam violentamente o ideal de esposa e matildee e consequumlentemente a ordem social Adulteacuterio e prostituiccedilatildeo com todo o seu cortejo de consequumlecircncias funestas satildeo as ameaccedilas maiores que recaem sobre essas mulheres

~A histoacuteria eacute o iniacutecio de um caminho misterioso triste e mau Frequentemente ela eacute que conduz a mulher para um abismo adulteacuterio ou prostituiccedilatildeo52

Uma proposta francamente preventivista em relaccedilatildeo agrave histeria aparece no projeto da medicina Baseados numa ideacuteia de periculosidade virtual do contingente feminino os meacutedicos procuram localizar aquelas que podem adoecer mais facilmente Partindo do estudo do caraacuteter das histeacutericas falam das particularidades femininas que podem levar a uma crise histeacuterica As mulheres portadoras de determinadas caracteriacutesticas passam a ser consideradas futuras doentes

51 PAULA L op cit p 6

52 MULLER Jgt op CU p 34

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina 75

~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

Vol I Nuacutemero I 199176 PHYSIS Revista de Sauacutede Coletiva

ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

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~Afinna Regis que principalmente no sexo feminino os futuros histeacutericos se fazem notar pelas caracteriacutesticas particulares Satildeo na maioria dos casos moccedilas de uma grande vivacidade intelectual precoces em excesso impressionaacuteveis coquetes preocupando-se em especial em prender sobre si a atenccedilatildeo alheia haacutebeis em mentir sujeitas aleacutem disso aos terrores noturnos e aos pesadelos53

Ai daquelas que vivazes ou sujeitas a pesadelos fonnam esse contingente que estaria predestinado a doenccedilas devem ser constantemente vigiadas controlashydas reeducadas afastadas de qualquer fator que possa desencadear o quadro ou de outros indiviacuteduos que possam com ela se enfraquecer a provaacutevel histeacuterica se torna uma iminente ameaccedila social

Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapacitada a gerir sua proacutepria vida Ao mesmo tempo trata como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee A mulher passa a ser tratada como algueacutem que deve estar pennanentemente sob controle meacutedico que deve regular cada um de seus passos No afatilde de controlar e prevenir toda a possibilidade de degeneraccedilatildeo os meacutedicos propotildeem medidas de nonnalizaccedilatildeo que vatildeo desde um projeto de educaccedilatildeo para a mulher ateacute um esquadrinhamento minucioso de seu dia-a-dia Um programa de educaccedilatildeo e controle feminino que deve funcionar como mecanismo de disciplinarizaccedilatildeo de seu corpo e de seu caraacuteter com vistas a adestraacute-los o melhor possiacutevel para a vida em sociedade

RESUMO

A Medicina Social e a Questatildeo Feminina

Este trabalho pretende analisar o tipo de saber sobre a mulher produzido pela medicina a partir da constituiccedilatildeo de uma medicina social no seacuteculo XIX no Rio de Janeiro Podemos observar a constituiccedilatildeo de um discurso sobre o sexo feminino que calcando-se na noccedilatildeo de degeneraccedilatildeo psiacutequica vai trataacute-lo como possuidor de uma base degenerada podendo portanto sucumbir agraves mais terriacuteveis ameaccedilas Esse tipo de discurso que descreve a mulher como um ser doentio capaz de fazer mal a si e a toda sociedade viabiliza a tentativa de tornaacute-la cada vez mais incapaz de gerir sua proacutepria vida tratando como patoloacutegico qualquer comportamento que natildeo corresponda ao modelo de esposa e matildee

53 COUTINHO DA SILVEIRA EB Haveraacute loucura histeacuterica Tese apresentada agrave FalIldde de Medicino do Rio d e Janeiro I Y18 p 47

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ABSTRACT

Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere

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Social Medicine and the Womans Question

The papcr analyzcs the kind ofknowlcdge 00 womcn that has beeo produced by medical science sioce the fonnation of social medicine in Rio de Janeiro in the ninetccnth century We can observe the emergence of a discourse conceming the feminine sex a discourse that rests on the notian af psychic degenerateness and that would come to view the female sex as possessing a degenerate base and thus as liable to succumb to the most terrible menaces Ibis type of discourse which paints woman as an unwholcsome bcing capablc ofhanning hcrself and alI society would serve to ground the effort to make women ever more incapable ofmaoaging their own lives and to treat any behavior that fails to correspond to that of a model wife and mother as pathological

RESUME

1a lIcdedne Sociale et Question Feminine

Ce travail a pour hut d analyser le type de savoir produit sur la fcmme par la meacutedecine agrave partir dela constitution dune meacutedecine sociale a Rio de Janeiro au XIXeme siecle On peut alors observer la fonnation de tout un discours concemant Je sexe feacuteminin ou agrave partir de la ootion deacutegeacuteneacuteration psychique ce sexe apparait comme fondamentalement deacutegeacuteneacutereacute capable de succomber aux plus terribles menaces Ce type de discours ou la femme est deacutecrite comme un ecirctre maladif capable dc porter preacutejudice agrave soimeme ct agrave toutc la socieacuteteacute va pennettre le surgissement d une tendance visant agrave la priver progressivement tout pouvoir de geacuterer sa propre vie et va classer comme pathologique tout comportement eacutechappant au modele deacutepouse et de mere