238

A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf
Page 2: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

AMEGERADOMADA

William ShakespeareTEXTO INTEGRAL

TRADUÇÃO: ALEX MARINS

Page 3: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf
Page 4: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CRÉDITOS

© Copyright desta tradução: Editora Martin Claret,2007Título original: The Taming of the Shrew(1593-1594)

IDEALIZAÇÃO E COORDENAÇÃOMartin Claret

MIOLORevisãoMª de Fátima C. A. MadeiraLucyana R. Oliveira Torchia

TraduçãoAlex Marins

Projeto Gráfico

Page 5: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

José Duarte T. de Castro

Direção de ArteJosé Duarte T. de Castro

DigitaçãoGraziella Gatti Leonardo

Editoração EletrônicaEditora Martin Claret

Fotolitos da CapaOESP

PapelOff-Set, 70g/m²

Impressão e AcabamentoPaulus Gráfica

Page 6: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Editora Martin Claret Ltda. – Rua Ale-grete, 62 – Bairro Sumaré CEP: 01254-010 –São Paulo – SPTel.: (0xx11) 3672-8144 – Fax: (0xx11) 3673-7146www.rnartinclareteoin.br / [email protected]

Agradecemos a todos os nossos amigos e colabo-radores — pessoas físicas e jurídicas — que de-ram as condições para que fosse possível a publi-cação deste livro.

Este livro foi impresso na primavera de 2007.

Page 7: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

A Megera DomadaDramatis Personae

Um LORDE, personagens do PrólogoCristóvão SLY, funileiro, personagens do PrólogoHOTELEIRA, PAJEM, COMEDIANTES,CAÇADORES e SERVIDORES, personagens doPrólogoBATISTA, rico fidalgo de PáduaVICÊNCIO, velho fidalgo de PisaLUCÊNCIO, filho de Vicêncio, apaixonado por Bi-ancaPETRUCHIO, fidalgo de Verona, pretendente deCatarinaGRÊMIO, HORTÊNCIO, pretendentes de BiancaTRÂNIO, BIONDELLO, criados de Lucêncio

Page 8: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

DRÚMIO, CURTIS, criados de PáduaUm PEDAGOGO imitando VicêncioCATARINA, a megera, filha de BatistaBIANCA, filha de batistaUma VIÚVAALFAIATE, MASCATE e CRIADOS de Batista ede Petruchio

CENA: Pádua e a casa de campo de Petruchio

Page 9: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PRÓLOGO

CENA I

Diante de uma cervejaria numa charneca.Entram a Hoteleira e Sly.

SLY — Juro que vou dar-vos uma surra.

HOTELEIRA — Estás precisando de umtronco, vagabundo!

Page 10: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

SLY — Sois uma sem-vergonha: os Sly nãosão vagabundos. Olhai nas crônicas; chegamoscom Ricardo, o Conquistador. Logo paucaspallabris1, deixai o mundo rodar: Cessa²!

HOTELEIRA — Não quereis pagar os co-pos que quebrastes?

SLY — Não, nem um centavo³. Por SãoJerônimo, sai daqui; vai para tua cama gelada eaquece-te lá!

HOTELEIRA — Conheço o remédio. Voubuscar um guarda. (Sai.)

SLY — Podes ir buscar um, dois, três que eulhes responderei com a lei na mão4; não arreda-rei uma polegada; que venha e com delicadeza!(Deita-se no chão e dorme. Soam as trompasde caça. Entra um Lorde, vindo da caça, segui-do por Caçadores e Criados.)

Page 11: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LORDE — Caçador, encarrego-te de cuidarbem de meus cães, principalmente de Buliçoso;o pobre animal está muito inchado! Prende oNebuloso com a cadela de latido profundo. Nãoviste, rapaz, corno o Prateado se portou bem nocanto da sebe quando o rasto foi de todo per-dido? Não quero perder este cão nem por vintelibras.

PRIMEIRO CAÇADOR — Ora, o Carri-lhão é tão bom quanto ele, milorde; latiu à me-nor perda da caça e hoje, por duas vezes, en-controu a pista mais difícil. Acreditai-me, é omelhor cão.

LORDE — És um imbecil. Se Eco fossemais um pouco rápido, eu acho que valeria do-ze iguais a Carrilhão. Mas providencie para quecomam bem e cuide deles todos. Quero caçaramanhã de novo.

Page 12: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PRIMEIRO CAÇADOR — Está bem, mi-lorde.

LORDE — Que é isso? Está morto ou em-briagado? Vê, está respirando?

SEGUNDO CAÇADOR — Está respiran-do, milorde. Se não estivesse esquentado pelacerveja, seria uma cama bem fria para dormirtão profundamente.

LORDE— Que monstruoso animal! Pareceum porco dormindo! Ó morte sinistra, como évergonhosa e repulsiva a tua imagem!... Meusamigos, quero divertir-me com esse bêbado.Que achais? Se fosse transportado para um lei-to, envolvido em lençóis macios e se acordassecom anéis nos dedos, um deliciosíssimo ban-quete ao lado da cama, e perto dele solícitosservidores ao seu redor quando despertar, nãoesquecia o mendigo sua própria condição?

Page 13: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PRIMEIRO CAÇADOR — Certamente,milorde, creio ele não pode escolher.

SEGUNDO CAÇADOR — Ficará espanta-díssimo quando acordar.

LORDE — Como de um sonho enganosoou de uma vã fantasia... Levantai-o, pois, ecombinaremos bem a brincadeira. Transportai-o cuidadosamente para meu mais belo quarto eenfeitai-o com meus quadros mais licenciosos.Perfumai-lhe a asquerosa cabeça com cálidaságuas perfumadas, e queimai madeiras odorífe-ras para perfumar o aposento. Procurai-me mú-sicos que, quando ele despertar, deixem ouviruma melodia doce e celeste. Se por acaso fa-lar, estai dispostos a cumprir-lhe as ordens erespondei fazendo uma respeitosa reverência:“Que deseja Vossa Excelência?” Um de vós seapresentará com uma bacia de prata cheia deágua de rosas e juncada de Flores. Outro tra-

Page 14: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

rá um jarro; um terceiro, uma toalha adamas-cada e dirá: “Vossa Senhoria deseja refrescaras mãos?” Um outro já lhe esteja à disposiçãocom um rico guarda-roupa e lhe pergunte comque traje ele deseja vestir-se. Fale-lhe outro doscães e cavalos e da esposa que se encontra de-solada vendo-o doente. Persuadi-o de que este-ve lunático' e se afirma ser o que é, respondei-lhe que ele sonha, porque é nada menos do queum poderoso senhor. Fazei assim, amáveis se-nhores, e fazei-o com jeito. Será a brincadeiramais engraçado do mundo, se vos conduzirdescom discrição.

PRIMEIRO CAÇADOR — Milorde,garanto-vos que representaremos tão bem nos-so papel, que nosso leal zelo o fará acreditar da-quilo que lhe dissermos.

LORDE — Levai-o cuidadosamente ecolocai-o na cama; e quando acordar, cada um

Page 15: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

deverá estar a postos. (Saem Servidores levan-do Sly. Soa uma trombeta'.) Rapaz, vai ver quetrombeta é esta que está tocando. (Sai um Cri-ado.) Sem dúvida, algum nobre gentil-homemque, viajando por etapas, deseja aqui descansar.(Volta o Criado.) Então? Quem é?

CRIADO — Com a permissão de Vossa ex-celência, são comediantes que estão oferecendoserviço a Vossa Senhoria.

LORDE — Dize-lhes que entrem. (Entramos comediantes.) Então, camaradas? Sede bem-vindos!

COMEDIANTES — Estamos muito agra-decidos a Vossa Excelência.

LORDE — Pretendeis passar a noite comi-go?

Page 16: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

UM COMEDIANTE — Se Vossa Senhoriaquiser aceitar nossos serviços.

LORDE: — Com todo meu coração.Lembro-me desse rapaz desde uma vez que ovi representar o papel de primogênito de um fa-zendeiro. Era uma peça em que fazíeis admira-velmente bem a corte a uma nobre dama. Nãome lembro de vosso nome, mas sem dúvida opapel foi habilmente marcado e naturalmenterepresentado.

UM COMEDIANTE— Creio que Vossa Se-nhoria queira referir-se a Soto7.

LORDE — É isso mesmo, estavas excelen-te. Bem, chegais na hora certa. Tanto mais apropósito porque estou preparando uma brinca-deira na qual podeis prestar-me um grande ser-viço. Há aqui um lorde que vos verá representaresta noite; mas tenho dúvidas de vossa atitude;

Page 17: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

temo que, notando-lhe a atitude estranha (por-que Sua Excelência nunca assistiu a uma pe-ça), sereis tomados de algum acesso de alegria,e que ele se sinta assim ofendido. Porque, pos-so dizer-vos senhores, se notar que estais rindo,ficará zangado.

UM COMEDIANTE — Não temais, milor-de; saberemos conter-nos, ainda que fosse ele apessoa mais ridícula do mundo.

LORDE — Vamos, rapaz, leva-os para a co-pa e dá a cada um deles uma cordial boa-vin-da. Que nada lhes falte de quanto minha ca-sa possa fornecer. (Sai um Criado com os Co-mediantes.) E tu, vai procurar meu pajem Bar-tolomeu, e dize-lhe que se vista dos pés à ca-beça como uma dama8. Feito isto, leva-o pa-ra o quarto do bêbado, chama-o de “senhora”e testemunha-lhe a maior obediência. Dize-lhede minha parte que, se quiser conquistar mi-

Page 18: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

nha amizade, tome nobres atitudes como já te-rá tido ocasião de observar nas grandes damasdiante dos maridos. Que se mostre respeitosocom o bêbado; fale-lhe recatadamente, em vozbaixa, com humilde cortesia, e lhe diga: “Quese digna Vossa Excelência ordenar?” “Em quepode vossa dama, vossa humilde esposa, mos-trar seus deveres e testemunhar seu amor?” Eem seguida, com ternos abraços e beijos tenta-dores, inclinando a cabeça sobre o peito dele,deixe correr lágrimas de alegria vendo seu po-bre senhor restabelecido, pois durante sete anosnão se julgou sempre melhor do que um mise-rável e imundo mendigo. E se o rapaz não ti-ver o dom das mulheres, de deixar cair à vonta-de um dilúvio de lágrimas, uma cebola conse-guirá perfeitamente imitá-las, a qual, cuidado-samente escondida num guardanapo, dar-lhe-á,mesmo que não queira, um olhar lacrimejante.Que tudo isto seja feito com a maior rapidezque puderes. Daqui a pouco te darei mais ins-

Page 19: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

truções. (Sai um Criado.) Estou certo de que orapaz usurpará perfeitamente a graça, a voz, oporte e o andar de uma dama de qualidade. Es-tou ansioso para ouvi-lo chamar o bêbado deesposo e para ver como meus servidores conte-rão o riso quando prestarem homenagem a es-se simples rústico. Vou dar-lhes conselhos. Fe-lizmente, minha presença bastará para conter oexcessivo bom humor que, de outro modo, pas-saria dos limites aconselháveis. (Saem.)

Page 20: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CENA II

Quarto em casa do Lorde9.Entra Sly, na parte superior, com servido-

res;uns trazem ricos trajes, outros, uma bacia,

um jarroe vários objetos de toucador. Entra o Lorde.

SLY — Pelo amor de Deus, uma caneca decerveja fraca.

PRIMEIRO SERVIDOR — Vossa Senhorianão deseja beber um cálice de xerez?

SLY — Sou Cristóvão Sly! Não me chameisnem de Excelência nem de Senhoria. Jamais be-bi xerez em minha vida, e, se quiserdes dar-me

Page 21: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

conservas, dai-me conservas de carne de boi.Não me pergunteis jamais qual a roupa que de-sejo vestir, pois não tenho mais gibões do quecostas, mais meias do que pernas, mais sapatosdo que pés. Às vezes, mesmo, tenho mais pésdo que sapatos, ou tenho sapatos que deixamver meus dedos pelos buracos da gáspea.

LORDE — Que o céu livre Vossa Excelên-cia desse humor fantástico! Oh! é possível queum homem tão poderoso, de tão alto berço, go-zando de uma tal fortuna e de uma tão alta con-sideração, esteja possuído por um espírito tãoindigno?

SLY — Como! Quereis tornar-me louco?Não sou Cristóvão Sly, filho do velho Sly deBurton-heath, mascate de nascimento, cartona-geiro por educação, guarda de ursos por trans-mutação, e agora, por profissão, funileiro? Per-guntai a Mariana Hacket, a gorda cervejeira de

Page 22: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Wincot10, se não me conhece. Se ela não dis-ser que lhe devo quatorze pence de cerveja pu-ra, considerai-me como o velhaco mais menti-roso da cristandade. Como! Não estou deliran-do. Aqui está...

TERCEIRO SERVIDOR — Oh! É isto quedesola vossa dama!

SEGUNDO SERVIDOR — Oh! É isto queacabrunha vossos servidores!

LORDE — É isto que faz com que vossosparentes fujam de vossa casa, onde são comoque repelidos por vossas estranhas loucuras. Ó,nobre lorde! Pensa em teu nascimento. Chamade volta do desterro tuas antigas ideias e des-terra esses sonhos abjetos e degradantes. Olhacomo teus servidores te acompanham, prontosa servir-te, cada um nas suas atribuições, aomenor sinal teu. Desejas ouvir música? Escu-

Page 23: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

tai, Apoio está tocando (Música.) e vinte rou-xinóis cantam nas gaiolas. Ou preferes dormir?Vamos transportar-te para urna cama mais ma-cia do que o leito voluptuoso preparado paraSemíramis. Dize que queres passear, nós ata-petaremos o caminho. Ou preferes andar a ca-valo? Teus cavalos serão encilhados com arne-ses de ouro e pérola. Gostas de falcoaria? Terásfalcões que voarão mais alto do que a cotoviamatutina. Preferes a caça? Teus cães farão comque o céu retumbe de latidos e que seja evoca-do o eco estridente das cavernas!

PRIMEIRO SERVIDOR — Dize que que-res caçar lebres. Teus galgos são tão rápidosquanto os cervos de grande fôlego; sim, maisligeiros do que a corça.

SEGUNDO SERVT.DOR — Gostas de qua-dros? Vamos procurar-te imediatamente umAdônis pintado junto de um regato e uma Cite-

Page 24: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

réia, toda oculta nos juncais, que seu hálito pa-rece mover e acariciar, como se os ondeantescaniços brincassem com a brisa.

LORDE — Nós te mostraremos Io, no mo-mento em que, ainda virgem, foi seduzida esurpreendida; o quadro parece tão vivo que seacredita estar vendo a coisa.

TERCEIRO SERVIDOR — Ou Dafne er-rando através de uma floresta de espinhos,arranhando-lhe as pernas, que se poderá jurarque ela sangra e que, diante dessa cena, Apoio,desolado, chora, tão fielmente foram produzi-dos o sangue e as lágrimas.

LORDE — És um lorde e nada mais do queum lorde! Tens uma esposa muito mais bela doque todas as mulheres destes tempos decaden-tes.

Page 25: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PRIMEIRO SERVIDOR — Antes que as lá-grimas que ela derramou por ti tivessem inun-dado seu rosto encantador com torrentes inve-josas, ela era a mais bela criatura do mundo emesmo agora ainda não é inferior a nenhuma.

SLY — Sou lorde e tenho por esposa seme-lhante dama? Estou sonhando? Ou sonhei atéagora? Não estou dormindo. Vejo, ouço, falo,sinto perfumes suaves e toco em brandas coi-sas. Por minha vida! Sou lorde de verdade enão funileiro, nem Cristóvão Sly! Bem, tragamnossa dama aqui em nossa presença. E, aindauma vez, uma caneca de cerveja fraca.

SEGUNDO SERVIDOR — Vossa Grande-za não deseja lavar as mãos? Oh! Como esta-mos contentes vendo vosso juízo restabelecido!Oh! Se puderdes reconhecer, uma vez por to-das, quem sois vós! Há quinze anos estais mer-

Page 26: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

gulhado em um sonho, e até mesmo acordadoparecíeis estar dormindo.

SLY — Há quinze anos! Na verdade, quebelo sono! E não falei durante todo esse tempo?

PRIMEIRO SERVIDOR — Oh! sim, mi-lorde, mas somente palavras incoerentes, pois,embora estivésseis aqui neste esplêndido quar-to, pretendíeis ainda que tínheis sido atiradopela porta, e ofendíeis a hoteleira ou fazíeisameaças de citá-la em justiça, porque vos traziacântaros de greda e não garrafas lacradas. Àsvezes, chamáveis Cecília Hacket.

SLY — Sim, a criada da cervejaria.

TERCEIRO SERVIDOR — Como! Senhor,não conheceis a cervejaria, nem semelhantecriada, nem tampouco esses homens que nome-ais como Estevão Sly, o velho João Naps de

Page 27: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Grécia, Pedro Turf e Henrique Pimpinela e ou-tros vinte nomes semelhantes de homens quenunca existiram e que jamais foram vistos!

SLY — Enfim, Deus seja louvado pelo felizrestabelecimento!

TODOS — Amém.

SLY — Muito obrigado, nada terás a perder.(Entra o Pajem, vestido de dama de qualidadee acompanhado por Servidores.)

PAJEM — Como está passando meu nobrelorde?

SLY — Ora, estou passando muito bem,pois aqui há bastantes provisões. Onde está mi-nha esposa?

PAJEM — Ei-la aqui, nobre lorde. Que que-res com ela?

Page 28: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

SLY — Sois minha mulher e não me cha-mais de vosso esposo? Meus criados devemchamar-me de senhor; para vós sou vosso mes-tre.

PAJEM — Meu esposo e meu senhor, meusenhor e meu esposo. Sou vossa esposa com to-da obediência.

SLY — Sei disso muito bem. Como devochamá-la?

LORDE — Madama.

SLY — Alice Madama ou Joana Madama?

LORDE — Madama e nada mais. É assimque os lordes chamam suas damas.

SLY — Madama, minha esposa, dizem quesonhei e dormi durante mais de quinze anos.

Page 29: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PAJEM — Sim, e esses quinze anos me pa-receram trinta, tendo estado todo esse tempolonge de vosso leito.

SLY — É muito... Criados, deixai-me sócom ela. Senhora, tirai vossa roupa e vinde lo-go para a cama.

PAJEM — Permiti-me que vos suplique,três vezes nobre lorde, que vos digneis deescusar-me por uma ou duas noites, ou, ao me-nos, até que o sol se ponha. Vossos médicosordenaram expressamente, sob pena de causar-vos uma recaída, que não compartilhe ainda devosso leito. Espero que essa razão me serviráde escusa.

SLY — A situação é tal que terei que fazergrande esforço para esperar tanto tempo; masnão quero recair novamente nos meus sonhos.

Page 30: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Esperarei, pois, a despeito da carne e do san-gue. (Entra um Mensageiro.)

MENSAGEIRO — Os comediantes de Vos-sa Excelência, tendo tido conhecimento de vos-so restabelecimento, vieram representar umaencantadora comédia, pois assim determinaramvossos médicos vendo o muito que a tristezacongelou vosso sangue e que a melancolia éa nutriz do frenesi. Por conseguinte, pensaramque seria bom que escutásseis uma peça quedispusesse vosso espírito à alegria e ao regozi-jo, os quais previnem mil males e prolongam avida.

SLY — Muito bem! Concordo! Que a repre-sentem! Uma comédia11 não é algo semelhan-te às brincadeiras de Natal ou às acrobacias desaltimbancos?

Page 31: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PAJEM — Não, meu bondoso senhor; é deestofo mais agradável.

SLY — Como! Um estofo caseiro?

PAJEM — É uma espécie de estória.

SLY — Bem, vamos ver isso. Vamos, mada-ma, minha mulher, sentai-vos ao meu lado, dei-xai o mundo girar. Nunca seremos mais jovens.(Fanfarra.)

Page 32: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ATO I

CENA I

Uma praça pública de Pádua.Entram Lucêncio e seu criado Trânio.

LUCÊNCIO — Trânio, já que para satisfazermeu vivo desejo de ver a formosa Pádua, berçodas artes, cheguei à fértil Lombardia, aprazíveljardim da grande Itália e, graças ao amor e per-missão de meu pai, encontro-me amparado por

Page 33: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

sua boa vontade e por tua boa companhia, meufiel servidor a toda prova, respiremos aqui umpouco e comecemos com felicidade um cursode sabedoria e de estudos engenhosos. Pisa, cé-lebre pela gravidade de seus cidadãos, deu-meo ser, como o deu a meu pai, mercador de gran-des relações, chamado Vicêncio, descendentedos Bentivoglio. O filho de Vicêncio, educadoem Florença, realizará as esperanças fundadasnele, ao adornar sua fortuna com ações virtuo-sas. E assim, Trânio, durante o tempo de meusestudos, aplicar-me-ei à virtude e àquela parteda filosofia que trata da felicidade que a virtu-de procura especialmente. Dize-me o que pen-sas, pois abandonei Pisa e vim a Pádua comoum homem que deixa um charco pouco profun-do para mergulhar num oceano e procura comânsia estancar a sede.

TRÂNIO —Mi perdonate, meu gentil amo.Em tudo compartilho vossos sentimentos, feliz

Page 34: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

em que prossigais assim em vossa resolução deaspirar as doçuras da doce filosofia. Somente,meu bom senhor, enquanto admiramos esta vir-tude e esta disciplina moral, não nos converta-mos, por favor, em estoicos ou insensíveis. Nãosejamos tão devotos das restrições de Aristóte-les, que consideremos Ovídio como um pros-crito digno de ser repudiado. Julgai a lógicacom o conhecimento que tenhais dela e praticaia retórica em vossa conversação ordinária; cul-tivai a música e a poesia para estimular-vos; sótomeis das matemáticas e da metafísica o quepossa digerir vosso estômago; não traz provei-to aquilo que não agrada. Em uma palavra, se-nhor, estudai o que mais vos agradar.

LUCÊNCIO — Muito obrigado, Trânio, porteu excelente conselho. Biondello, se te encon-trasses nestas paragens, poderíamos tomar ime-diatamente nossas medidas e procurar um al-bergue para receber dignamente os amigos que

Page 35: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

não tardaremos a encontrar. Mas paremos umpouco: quem são essas pessoas?

TRÂNIO — Meu amo, sem dúvida uma de-legação para dar-nos as boas-vindas na cidade.(Entram Batista, Catarina, Bianca, Grêmio eHortênsio. Lucêncio e Trânio permanecem àparte, sem tomar parte na cena.)

BATISTA — Senhores, não me importuneismais; conheceis minha firme resolução de nãoconceder a mão de minha filha mais moça, semantes haver encontrado marido para a mais ve-lha. Se um de vós ama Catarina, como vos co-nheço e quero bem, terá minha permissão paracortejá-la à vontade.

GRÊMIO — (À parte.) Seria preferívellevá-la em carreta12! É muito rude para mim.Vamos ver, Hortênsio: servirá para vossa espo-sa?

Page 36: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Por favor, senhor, quereisconverter-me em alvo do ridículo destes pre-tendentes?

HORTÊNSIO — Pretendentes, senhorita!Que pretendeis significar com isto? Não haverápretendentes para vós, enquanto não fordesmais amável e doce.

CATARINA — Na verdade, senhor, nadatendes a temer. Não estais ainda no meio do ca-minho de meu coração. De outro modo, não du-videis de que meu único cuidado seria pentearvossa cabeça com urna tripeça, borrar-vos a ca-ra e tratar-vos como um idiota!

HORTÊNSIO — De demônios semelhantes,livrai-nos, é, bom Deus!

GRÊMIO — E a mim também, bom Deus!

Page 37: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Silêncio, patrão! Estamos as-sistindo a um bom passatempo. Essa moça estácompletamente louca ou é assombrosamenteinsolente.

LUCÊNCIO — Mas, estou vendo, no silên-cio da outra, a timidez e a reserva de uma docevirgem. Silêncio, Trânio!

TRÂNIO — Muito bem dito, senhor! Fique-mos quietos e olhai à vontade.

BATISTA — Senhores, que meus atos res-pondam em breve o que disse... Bianca, entra enão fiques desgostosa, boa Bianca, pois não teamarei menos por causa disso, minha filha.

CATARINA — Que menina mais mimada!...Seria melhor meter um dedo no olho dela queela responderia.

Page 38: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIANCA — Minha irmã, ficai contentecom meu descontentamento! Senhor, submeto-me, humildemente, à vossa vontade. Meus li-vros e instrumentos me servirão de companhia;estudarei e praticarei sozinha com eles.

LUCÊNCIO — Escuta, Trânio! Minerva es-tá falando!

HORTÊNSIO — Signior Batista, sereis tãooriginal? Sinto que nossa boa vontade seja acausa do pesar de Bianca.

GRÊMIO — Quereis encarcerá-la, SigniorBatista, por causa deste demônio do inferno efazê-la responsável pela língua da irmã?

BATISTA — Cavalheiros, conformai-vos.Minha resolução é inquebrantável. Retira-te,Bianca. (Sai Bianca.) Como sei que ela faz damúsica, dos instrumentos e da poesia sua maior

Page 39: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

delicia, trarei para minha casa professores ca-pazes de instruir-lhe a juventude. Se vós, Hor-tênsio, ou vós, Signior Grêmio, conheceis al-guns em condição, apresentai-os aqui, pois se-rei muito afável e generoso com os homens ins-truídos, a fim de que minhas filhas recebamuma boa educação. E com isto, adeus. Catarina,podeis ficar, porque é com Bianca com quemtenho mais que conversar. (Sai.)

CATARINA — Como! E eu creio que possotambém ir embora. Não posso? Será que vãocortar-me as horas? Como se, aparentemente,eu não soubera o que é preciso agarrar e o queé preciso deixar! Ora! (Sai.)

GRÊMIO — Podeis ir reunir-vos à mulherdo diabo! Vossas qualidades são tão boas, queninguém quer nada convosco. O amor dela nãoé tão grande, Hortênsio; mas nós podemos so-prar nossos dedos, e deixa-lo perfeitamente je-

Page 40: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

juar. Nosso bolo está cru de ambos os lados13.Adeus! Entretanto, pelo amor que tenho porminha suave Bianca, se conseguir arranjar umhomem erudito, capaz de ensinar-lhe os conhe-cimentos que lhe causam prazer, eu o enviareiao pai dela.

HORTÊNSIO — Eu também, Signior Grê-mio; mas, permiti-me urna palavra, por favor.Embora a natureza de nossa querela não noshaja permitido ainda entabular conversa, sabeiagora, após reflexão, que interessa a nós am-bos, que (se quisermos ter acesso, entretanto, anossa bela amada e sermos afortunados rivaisno amor de Bianca) há uma coisa na qual deve-mos aplicar-nos especialmente.

GRÊMIO — Qual é ela, por favor?

HORTÊNSIO — Ora, senhor, arranjar ummarido para a irmã dela.

Page 41: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — Um marido! Ou um demônio!

HORTÊNSIO — Estou dizendo um marido.

HORTÊNSIO — Efetivamente, como di-zeis, pouco há a escolher

GRÊMIO — E eu, um demônio. Acreditas,Hortênsio, que, apesar da fortuna do pai, have-rá homem tão louco para procurar casamentono inferno?

HORTÊNSIO — Grêmio, embora seja aci-ma de vossa paciência e da minha suportar-lheos desaforos, acreditai, meu caro, que existembons rapazes no mundo (a questão é achá-los),que a aceitariam com todos os defeitos e umbom dote.

GRÊMIO — Não sei o que responder, mas,se tivera que apanhar o dote com essa condição,

Page 42: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

preferiria ser açoitado todas as manhãs no pe-lourinho.

HORTÊNCIO — Efetivamente, como di-zeis, ouço há a escolher entre maçãs podres.Mas, vinde; como este obstáculo legal nos tor-na amigos, mantenhamos esta amizade até odia em que, tendo encontrado um marido paraa filha mais velha de Batista, tenhamos devol-vido a liberdade à mais moça, para escolher oseu, e fiquemos rivais novamente. Doce Bian-ca! Feliz o homem a ela destinado! Ao corredormais rápido, o anel14. Que achais, Signior Grê-mio?

GRÊMIO — Estou de acordo e entregarei omelhor cavalo de Pádua a quem lhe fizer a cor-te, a seduzir, casar com ela, dormir com ela etornar a casa livre dela! Vamos. (Saem Grêmioe Hortênsio.)

Page 43: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Por favor, senhor, dizei-me seé possível que o amor se apodere tão repentina-mente de um homem?

LUCÊNCIO — Ó Trânio, antes que eu ti-vesse a experiência, nunca teria acreditado quefosse possível, nem mesmo provável! Mas, vê:enquanto aqui estava olhando despreocupada-mente, senti o efeito do amor na despreocupa-ção. E agora, confesso-te com toda a franqueza,a ti, meu confidente, que me é tão caro quantoAna15 à rainha de Cartago, Trânio, ardo, desfa-leço, sucumbo, Trânio, se não conseguir o amordessa jovem e modesta donzela. Aconselha-me, Trânio, pois estou certo de que o farás.Ajuda-me, Trânio, porque sei que o queres.

TRÂNIO — Senhor, agora não é o momen-to para censurar-vos. Não se bane uma afeiçãodo coração com reprimendas. Se o amor vos fe-

Page 44: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

riu, só vos resta fazer uma coisa: redime te cap-tus quam queas minimo16.

LUCÊNCIO — Muito obrigado, rapaz,prossegue. O que tu dizes me satisfaz. Paraconsolar-me, basta ouvir teus conselhos.

TRÂNIO — Senhor, olháveis tão ternamen-te para a jovem que talvez não reparastes no es-sencial.

LUCÊNCIO — Oh! sim. Notei-lhe nas fei-ções a doce beleza, semelhante à da filha deAgenor17, que obrigou o grande Júpiter ahumilhar-se diante dela e a beijar com os joe-lhos as margens de Creta.

TRÂNIO — Não vistes mais nada? Não no-tastes como a irmã começou a resmungar e le-vantou uma tal tormenta, que os ouvidos mor-tais dificilmente podiam suportar o barulho?

Page 45: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Trânio, vi que se moviamseus lábios de coral e que perfumava o ar com arespiração. Tudo que vi nela era celeste e doce!

TRÂNIO — Vamos, já está na hora de fazê-lo sair do êxtase. Despertai, por obséquio, se-nhor. Se amais esta jovem, que vossos pensa-mentos e todo vosso engenho se encaminhempara conquistá-la. A situação está neste pé. Airmã mais velha é tão maldita e má, que até queo pai se haja desembaraçado dela, vosso amorviverá castamente no lar. Por este motivo, pren-deu a mais moça, a fim de que não seja impor-tunada pelos pretendentes.

LUCÊNCIO — Ah, Trânio! Como ele é umpai cruel! Mas não notaste que ele se preocupaem arranjar-lhe preceptores hábeis para instruí-la?

Page 46: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Sem dúvida que sim, senhor, eagora o plano já está elaborado.

LUCÊNCIO — Já o possuo, Trânio.

TRÂNIO — Senhor, juraria que nossas idei-as se combinam e se confundem numa só.

LUCÊNCIO — Conta-me, primeiro, a tua.

TRÂNIO — Vós sereis o professor e vosencarregareis de instruir a jovem. Eis o vossoprojeto.

LUCÊNCIO — Isto mesmo. Pode ser postoem execução?

TRÂNIO — Impossível. Quem iria repre-sentar vosso papel e seria aqui, em Pádua, filhode Vicêncio? Quem manteria a casa, se ocupa-ria com os livros, receberia os amigos, visitariaos compatriotas e os convidaria aos jantares?

Page 47: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Basta18. Acalma-te. Meuplano está pronto. Embora não tenhamos sidovistos em casa alguma e ninguém saiba dis-tinguir pelos nossos rostos o criado do patrão,mesmo assim, tu serás o patrão, Trânio, e fica-rás no meu lugar; manterás uma casa, lerás tra-tamento e criados como se eu mesmo os tives-se. Eu serei outro homem, um florentino, umnapolitano, ou um pobre-diabo de Pisa. Estádecidido; assim será feito. Trânio, tira tua rou-pa imediatamente, toma meu chapéu e minhacapa de corl9. Quando Biondello chegar, ficaráàs tuas ordens; mas quero recomendar-lhe antesde mais nada que tenha cuidado com a língua.

TRÂNIO — É necessário. Numa palavra,senhor, já que assim vos agrada e me compro-meti a obedecer-vos — pois quando partimosvosso pai me encarregou expressamente: “Obe-dece a meu filho”, disse-me ele, se bem queo entendesse, suponho, num sentido diferente

Page 48: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

—, sinto prazer em ser Lucêncio, porque tenhogrande amizade por Lucêncio.

LUCÊNCIO — Sê Lucêncio, Trânio, peloamor de Lucêncio, e permite-me que me con-verta em escravo para conquistar essa donzela,cuja repentina contemplação enfeitiçou meusolhos. Aqui está chegando o tratante. (Entra Bi-ondello.) Por onde andaste, rapaz?

BIONDELLO — Por onde andei? Ora, es-sa! Onde estais vós? Senhor, meu companhei-ro, Trânio, roubou vossas roupas? Ou será queroubastes as dele? Ou vos roubastes mutua-mente? Por favor, o que aconteceu?

LUCÊNCIO — Aproximai-vos, rapaz! Nãoé hora de gracejar. Por conseguinte, mudai deatitude. Aqui vosso camarada Trânio, parasalvar-me a vida, vestiu minhas roupas e tomoumeu lugar, e, eu, para minha salvaguarda, fi-

Page 49: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

quei com as dele; pois, logo ao chegar, houveuma contenda, matei um homem e tenho receiode ser descoberto. Ordeno-vos que lhe obede-çais, como for preciso, enquanto vou afastar-me daqui para salvar minha vida. Vós me com-preendeis?

BIONDELLO — Eu, senhor? Nem um pou-co.

LUCÊNCIO — E nem a menor alusão aTrânio em vossa boca. Trânio se converteu emLucêncio.

BIONDELLO — Melhor para ele! Quiseraque houvesse acontecido comigo!

TRÂNIO — Eu também queria, rapaz, sepor causa disso Lucêncio se casasse com a filhamais moça de Batista! Mas, eu vos aconselho,por respeito não a mim, mas a meu patrão, que

Page 50: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

vos conduzais com discrição em toda espéciede sociedade. Quando estiver sozinho, serei en-tão Trânio; mas, em qualquer outro lugar, souvosso patrão Lucêncio!

LUCÊNCIO — Vamos embora, Trânio. Sóte falta fazer uma coisa. Vais colocar-te entre onúmero dos pretendentes dela. Se me perguntaspor quê, basta que saibais que minhas razõessão boas e importantes. (Saem. Falam os per-sonagens do Prólogo.)

PRIMEIRO SERVIDOR — Milorde, estaiscochilando. Não estais prestando atenção à pe-ça.

SLY — Estou sim, por Santa Ana! Uma boapeça, não há dúvida. Ainda vai continuar?

PAJEM — Milorde, mal acaba de começar.

Page 51: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

SLY — Uma excelente obra-prima, senhoradama. Quisera que já tivesse acabado.(Assentam-se e prestam atenção.)

CENA II

Diante da casa de Hortênsio, em Pádua.Entram Petruchio e seu criado Grúmio

PETRUCHIO — Verona, despeço-me de tipor algum tempo para ver meus amigos em Pá-dua, especialmente o preferido e mais fiel detodos, Hortênsio. Se não me engano, aqui estáa casa dele. Vem aqui, Grúmio! Vamos, bate!

GRÚMIO — Bater, senhor! Em quem devobater? Alguém ofendeu Vossa Excelência20?

Page 52: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Vilão, estou te dizendo pa-ra bater aqui e pronto!

GRÚMIO — Bater-vos aí, senhor? Por quê?Quem sou eu, senhor, para bater-vos aí?

PETRUCHIO — Vilão, estou dizendo parabater-me nesta porta e bate bem, senão te abri-rei a cabeça de pancadas!

GRÚMIO — Meu amo se tornou brigão...Se vos batesse agora, bem sei que daqui a pou-co levaria a pior.

PETRUCHIO — Não queres bater? Palavrade honra, tratante, se não quiseres bater, voutorcer-te as orelhas! Quero ver se sabes solfejaro sol e o fá! (Torce-lhe as orelhas.)

GRÚMIO — Socorro, senhores, socorro!Meu patrão está doido!

Page 53: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Agora, tocarás quando eute mandar, tratante! Vilão! (Entra Hortênsio.)

HORTÊNCIO — Que há? Que aconteceu?Meu velho amigo Grúmio! E meu bom amigoPetruchio! Como estais passando em Verona?

PETRUCHIO — Signior Hortênsio, vindespara fazer a paz? Com tutto il core ben trovato,posso dizer-vos.

HORTÊNSIO — Alia nostra casa ben ve-nuto, molto honorato signor mio Petruchio.Levanta-te, Grúmio, levanta-te! Vamos resol-ver esta briga.

GRÚMIO — Não. Pouco importa tudo queele alegue em latim! Dizei-me se não é paramim um motivo legal para deixar-lhe o serviço.Escutai, senhor. Ele mandou que batesse nele ecom pancadas bem fortes. Bem, seria conveni-

Page 54: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ente que um criado procedesse assim com o pa-trão, que, tanto quanto possa saber, tenha, tal-vez, mais ou menos trinta e dois anos? QuiseraDeus que eu lhe houvesse batido primeiro! Sóassim Grúmio não teria levado a pior!

PETRUCHIO — Vilão estúpido! Bom Hor-tênsio, ordenei a este ordinário que batesse navossa porta e não pude conseguir que ele fizes-se nada.

GRÚMIO — Bater na portal... Ó céus! Nãohaveis ordenado claramente: “Rapaz, bate-meaqui, bate-me bem forte aqui, bate-me bem ebate-me com toda a força”? E agora pretendeisque se tratava de “bater na porta”21?

PETRUCHIO — Vai embora ou não falesnada, estou te avisando.

Page 55: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Paciência, Petruchio. Souo fiador de Grúmio. Sem dúvida, é uma discus-são lamentável entre ele e vós, vosso antigo, fi-el e divertido servidor Grúmio. E agora, dizei-me, querido amigo, que vento feliz vos trouxeda velha Verona aqui a Pádua?

PETRUCHIO — O vento que dispersa osjovens através do mundo para buscar novida-des longe do lar, onde se adquire pouca experi-ência. Em poucas palavras, Signior Hortênsio,eis a minha situação: Antônio, meu pai, acabade morrer e eu me lancei nesse labirinto paracasar-me bem e prosperar o melhor que puder.Possuo coroas na minha bolsa, bens em casa eassim parti para o estrangeiro, desejando ver omundo.

HORTÊNSIO — Petruchio, queres que tefale sem rodeios? Queres que te apresente auma esposa irritadiça e desagradável? Apenas

Page 56: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

terás que agradecer-me o oferecimento: e, en-tretanto, eu te prometerei que será rica, e muitorica. Mas, tu és tão meu amigo que não poderiadesejar-te ver casado com ela.

PETRUCHIO — Signior Hortênsio, entreamigos como nós, poucas palavras bastam. Eassim, se conheces uma mulher bastante ricapara converter-se em esposa de Petruchio, co-mo a riqueza é o estribilho de minha cançãomatrimonial, seja ela tão feia quanto a amantede Florênci22, tão velha quanto a Sibila23 e tãoabominável e bravia quanto Xantipa de Sócra-tes, ou, pior ainda, não me espantará, ou, aomenos, não embotará o fio da paixão, mesmoque seja tão furiosa como o mar Adriático. Ve-nho para casar-me ricamente em Pádua; e secasar-me ricamente em Pádua, casar-me-ei comtoda a felicidade.

Page 57: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Notai, senhor, que vos dissefrancamente o que pensa. Sendo assim, dai-lheouro em abundância, casai-o com uma bone-ca, com uma figurinha, de joia, ou uma ve-lhota desdentada, embora tenha tantas doençasquanto cinquenta e dois cavalos. Ora, ninguémachará mal, desde que encontre dinheiro.

HORTÊNSIO Petruchio, já que levamos ascoisas tão longe, continuarei o que por brinca-deira havia começado. Posso arranjar-te, Petru-chio, uma esposa bastante rica, jovem, formosae educada, como convém a uma dama de quali-dade. Seu único defeito (e bastante grave) con-siste em ser intoleravelmente brusca, irritada evoluntariosa, a um ponto tal que, mesmo queminha situação fosse pior do que é, nem poruma mina de ouro eu me casaria com ela.

PETRUCHIO — Basta, Hortênsio! Não co-nheces a virtude do ouro. Dize-me o nome do

Page 58: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

pai dela, e é quanto basta. Porque pretendoabordá-la, embora grite tão alto quanto um tro-vão quando rasga as nuvens do outono.

HORTÊNSIO — O pai dela é Batista Mino-la, gentil-homem afável e cortês. Ela se chamaCatarina Minola, famosa em Pádua pela línguaterrível.

PETRUCHIO — Conheço o pai dela, bemque não a conheça, e ele conhecia muito meufalecido pai. Não dormirei, Hortênsio, enquan-to não a vir. Desculpai, pois, a liberdade que to-mo de deixar-vos tão depressa logo neste pri-meiro encontro, a não ser que queiraisacompanhar-me até lá.

GRÚMIO — Por favor, senhor, deixai-opartir enquanto durar este capricho. Por minhapalavra, se ela o conhecesse tão bem quanto oconheço, julgaria perfeitamente inútil fazer-lhe

Page 59: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

reprimendas. Pode chamá-lo quantas vezes qui-ser de tratante ou coisa semelhante, porque na-da lhe adiantará; mas, assim que ele começar,não recuará diante da maior insolência.Garanto-vos, senhor, que se ela resistir um mo-mento que seja, ele lhe deixará a marca norosto e a desfigurará de modo que não mais teráolhos para ver do que os de um gato. Não o co-nheceis, senhor.

HORTÊNSIO — Espera Petruchio, devo ircontigo, porque meu tesouro está debaixo daguarda de Batista. Mantém sob custódia a joiade minha vida, a filha mais moça, a bela Bian-ca, ele a oculta de mim, bem como de outrosmais que a cortejam e que são meus rivais emamor. Supondo, coisa impossível por causa dosdefeitos dos quais já te falei, que Catarina pu-desse ser pedida em casamento, Batista tomouessa resolução: ninguém terá acesso até Bianca,

Page 60: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

enquanto a maldita Catarina não encontrar ummarido.

GRÚMIO — Catarina, a amaldiçoada! Lin-do título para uma donzela e de todos o pior!

HORTÊNSIO — Agora, meu amigo Petru-chio vai prestar-me um favor; consistirá emapresentar-me disfarçado com um traje grave,ao velho Batista, como hábil professor de músi-ca que se oferece para instruir Bianca. Ao me-nos, com este estratagema, terei a liberdade eo prazer de namorá-la e falar-lhe, sem que nin-guém desconfie.

GRÚMIO — Não há a menor patifaria! Ve-de como combinam os jovens para enganar osvelhos! (Entram Grêmio e Lucêncio disfarça-dos.) Olhai, senhor! Olhai ao vosso lado! Quemvem aí? Hein?

Page 61: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Silêncio, Grúmio, é meurival. Petruchio, fiquemos de longe um mo-mento.

GRÚMIO — Um belo mancebo e um beloamoroso!

GRÊMIO — Oh! muito bem! Examinei anota24. Ouvi bem, senhor, eu os quero ricamen-te encadernados, e todos livros de amor! Tendecuidado para que não lhe façam outra leitura,vós me compreendeis. Além disto e fora das li-beralidades do Signior Batista, eu acrescentareialgumas larguezas. Tomai também vossos pa-péis, e que eles sejam muito bem perfumados,pois aquela a quem se destinam é mais perfu-mada do que o próprio perfume. Qual será o as-sunto de vossa lição?

LUCÊNCIO — Tudo quanto ler para ela re-dundará em vosso favor, em favor de meu pro-

Page 62: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

tetor, podeis ficar certo; e isto tão certamentequanto estivésseis em meu lugar; sim e talvezempregue termos mais persuasivos do que vós,senhor, a não ser que sejais um sábio.

GRÊMIO — Oh! a ciência! Que coisa é is-to?

GRÚMIO — Que asno é este galo selva-gem!

PETRUCHIO — Silêncio, tolo!

HORTÊNSIO — Psiu, Grúmio! Deus vosguarde, Signior Grêmio!

GRÊMIO — Tenho grande prazer deencontrar-vos, Signior Hortênsio. Sabeis paraonde estou me dirigindo?... Para a casa de Ba-tista Minola. Prometi-lhe procurar cuidadosa-mente um professor para a bela Bianca, e tive

Page 63: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

a boa sorte de cair sobre este jovem que, pelosconhecimentos e maneiras, é um mestre comoele precisa, muito lido em poesia e em outroslivros, nos bons livros, posso garantir-vos.

HORTÊNSIO — Está bem. E eu encontrei,também, um gentil-homem que me prometeuencontrar um excelente músico para instruirnossa amada. Assim, não ficarei atrás em meudever para com a bela Bianca, a quem tantoamo.

GRÊMIO — E por mim também, comomeus atos provarão.

GRÚMIO — E como seus sacos o provarão.

HORTÊNSIO — Grêmio, o momento não épara jogarmos nosso amor ao vento. Escutai-me, e, se fordes razoável, tenho uma notíciamuito boa para nós ambos. Aqui está um cava-

Page 64: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

lheiro que encontrei por acaso, e que, de acordocomigo, segundo sua conveniência, vai procu-rar fazer a corte à maldita Catarina; sim e casar-se com ela, se lhe convier o dote.

GRÊMIO — Assim dito, assim feito, estámuito bem. Ele já está ciente de todos os defei-tos dela, Hortênsio?

PETRUCHIO — Sei que ela é uma insupor-tável faladeira. Se for só isso, senhores, não ve-jo perigo algum.

GRÊMIO — Não? E dizeis assim, amigo?De que país sois vós?

PETRUCHIO — Nasci em Verona, filho dovelho Antônio. Falecido meu pai, minha fortu-na é suficiente para mim, e espero ver bons elongos dias.

Page 65: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — Ó senhor! Tal vida com umatal mulher, seria terrível! Mas, se tendes valor,em nome de Deus, avante! Aqui estou paraajudar-vos em tudo o que puder. Mas, ides fa-zer a corte a essa gata selvagem?

PETRUCHIO — Quero eu viver!

GRÚMIO — Far-lhe-á a corte? Certamente!Ou eu a enforcarei!

PETRUCHIO — Para que vim aqui, senãocom essa intenção? Pensais que com um poucode barulho vão aturdir minhas orelhas? Já nãoouvi em meu tempo rugir os leões? Já não sentio mar, agitado pela ação dos ventos, raivar co-mo um javali furioso, todo suado de espuma?Já não ouvi o canhão troar nos campos de bata-lha e a artilharia do céu no firmamento? Já nãoescutei no meio de um combate travado os res-sonantes gritos de alarma, o relinchar dos cor-

Page 66: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

céis e o clangor das trombetas? E me falas dalíngua de uma mulher, que não faz no ouvido ametade do barulho de uma castanha ao estalarno fogo de um lavrador? Ora, ora, guardai vos-sos espantalhos para fazerem medo às crianças.

GRÚMIO — Porque não tem medo de nada.

GRÊMIO — Escutai, Hortênsio: este cava-lheiro chega felizmente, segundo minha almapressente, tanto para seu próprio bem, quantopara o nosso.

HORTÊNSIO — Prometi-lhe que contribui-ríamos para os gastos que lhe causem a con-quista, sejam quais forem eles.

GRÊMIO — Concordo, desde que ele con-siga conquistá-la.

Page 67: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Queria estar também segurode um bom jantar. (Entra Trânio, ricamentetrajado, em companhia de Biondello.)

TRÂNIO — Cavalheiros, Deus esteja con-vosco! Se não for indiscrição, quereis dizer-me,por favor, qual o caminho mais curto para ir àcasa do Signior Batista Minola?

BIONDELLO — Aquele que tem duas be-las filhas? É esse por quem perguntais?

TRÂNIO — Ele mesmo, Biondello.

GRÊMIO — Escutai, senhor. Não quereisfalar a...

TRÂNIO — Talvez, a um e a outra, senhor.Que tendes com isso?

PETRUCHIO — Não será à que está sem-pre zangada, por favor?

Page 68: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Não gosto das zangadas, se-nhor. Biondello, vamos embora.

LUCÊNCIO — Bom começo, Trânio.

HORTÊNSIO — Senhor, uma palavra antesde partirdes. Sois pretendente à mão da jovemde quem falais, sim ou não?

TRÂNIO — E se assim for, haveria algumaofensa?

GRÊMIO — Não, desde que sem mais umapalavra vos retireis daqui.

TRÂNIO — Por que, senhor? Não são as ru-as tão livres para vós quanto para mim?

GRÊMIO — Mas assim não é a jovem.

TRÂNIO — Por que razão, por obséquio?

Page 69: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — Pela razão, se desejais sabê-la,de que é a eleita do coração do Signior Grêmio.

HORTÊNSIO — É também a do SigniorHortênsio.

TRÂNIO — Calma, meus senhores. Se for-des gentis-homens, tende a bondade de escutar-me com paciência. Batista é um nobre gentil-homem, a quem meu pai não era totalmentedesconhecido; e mesmo que a filha dele fossemenos bela do que é, poderia ainda ter novospretendentes, estando eu entre eles. A filha dabela Leda25 teve milhares de adoradores; logo,bem pode ter um a mais a encantadora Bianca.Ela o terá. Lucêncio quer entrar na fila, mesmoque o próprio Paris se apresentasse como rival.

GRÊMIO — Como! Este fidalgo fará comque todos nós calemos?

Page 70: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Senhor, deixai-o que se vá;sei que vai ficar logo cansado.

PETRUCHIO — Hortênsio, para que ser-vem todas essas palavras?

HORTÊNSIO — Senhor, desculpai a liber-dade de minha pergunta: vistes algum dia a fi-lha de Batista?

TRÂNIO — Não, senhor; mas sei que temduas filhas, uma famosa pela má língua e a ou-tra pela encantadora modéstia.

PETRUCHIO — Senhor, senhor, a primeiraé para mim, não vos ocupeis com ela.

GRÊMIO — Sim, deixemos este trabalhopara o grande Hércules e ela sobrepujará os do-ze trabalhos de Alcides.

Page 71: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Senhor, compreendei oque há sobre o caso. A mais moça das filhas, aquem fazeis alusão, se encontra vigiada por umpai que proíbe todo acesso aos pretendentes enão quer prometê-la a nenhum homem enquan-to a irmã mais velha não estiver casada. Logo,a mais moça só então ficará livre e não antes.

TRÂNIO — Se for assim, senhor, se sois ohomem que virá em auxilio de todos, não só demim como dos outros, e se romperdes o gelo erealizardes a proeza de triunfar da mais velhae libertar a mais moça, permitindo nosso aces-so até ela, ficai seguro de que o homem quea possuir não será tão malnascido a ponto demostrar-se ingrato convosco.

HORTÉSSIO — Senhor, falais bem, e bemraciocinais; como vossa intenção á ser preten-dente, deveis, como nós, manifestar-vos agra-

Page 72: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

decido a este cavalheiro, a quem todos estamosaltamente penhorados.

TRÂNIO — Senhor, não serei fraco. Paracomeçar, eu vos proponho passarmos juntos es-ta tarde e esvaziarmos garrafas à saúde de nos-sa amada. Façamos como os advogados que,adversários encarniçados diante do juiz, co-mem e bebem como amigos.

GRÚMIO e BIONDELLO — Oh! excelenteproposta! Camaradas, partamos!

HORTÊNSIO — A proposta é, sem dúvida,boa e que assim seja. Petruchio, serei vosso benvenuto. (Saem.)

Page 73: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ATO II

CENA I

Sala da casa de Batista, em Pádua.Entram Catarina e Bianca.

BIANCA — Bondosa irmã, nem a mim nema vós mesma, façais a injúria de tratar-me comourna criada e como escrava. Acho que é umacoisa indigna. Quanto a estes outros adornos,soltai-me as mãos, porque eu mesma os despren-derei. Sim, todos os meus vestidos, até minha

Page 74: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

anágua. Farei tudo o que me mandares, pois co-nheço meus deveres para com minha irmã maisvelha.

CATARINA — Entre todos os teus preten-dentes, eu te ordeno que me digas quem maisamas; procura não dissimular.

BIANCA — Acreditai-me, minha irmã, en-tre todos os homens vivos, ainda não encontreium rosto especial ao qual possa preferir a umoutro.

CATARINA — Mentes, pequena. Não éHortênsio?

BIANCA — Se vós o amais, minha irmã,juro aqui interceder em vosso favor para que oconsigais.

Page 75: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Oh! Então, creio que pre-feris um mais rico. Grêmio vos agradaria paraque vos fizesse bela.

BIANCA — Por causa dele tendes invejade mim? Vamos, estais brincando e agora bempercebo que nada mais fizestes do que brincar.Peço-vos, Catarina26, soltai-me as mãos.

CATARINA — Se isto é uma brincadeira, oresto também era. (Bate em Bianca. Entra Ba-tista.)

BATISTA — Então? Que é isto? De ondevem esta insolência?... Bianca, retira-te. Pobrepequena! Está chorando. Vai retomar tua agu-lha. Não te metas mais com ela. Não tens ver-gonha, mesquinha de espírito endemoninhado?Por que a maltratas, se nunca te fez mal algum?Quando trocou contigo uma palavra descortês?

Page 76: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — O silêncio dela me insulta equero vingar-me. (Corre atrás de Bianca.)

BATISTA — Como! Em minha presença?Vai para dentro, Bianca. (Sai Bianca.)

CATARINA — Como! Não podeissuportar-me! Agora estou vendo. Ela é vossotesouro. Deve arranjar um marido. Dançareidescalça no dia do casamento dela; e, peloamor que lhe tendes, levarei macacos para o in-ferno27. Não me faleis! Vou trancar-me até queencontre uma ocasião para vingar-me! (Sai.)

BATISTA — Existiu algum dia um homemtão desditoso quanto eu? Mas, quem está che-gando aí? (Entram Grêmio, Lucêncio, vestidocomo homem de condição modesta; Petruchio,em companhia de Hortênsio, em traje de músi-co; e Trânio com Biondello, trazendo um alaú-de e livros.)

Page 77: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — Bom dia, vizinho Batista.

BATISTA — Bom dia, vizinho Grêmio.Deus vos guarde, senhores!

PETRUCHIO — E vós também, prezadosenhor. Por favor, não tendes uma filha cujo no-me é Catarina, bela e virtuosa?

BATISTA — Tenho uma filha, senhor, cha-mada Catarina.

GRÊMIO — Começais muito bruscamente;procedei com mais método.

PETRUCHIO — Estais sendo injusto comi-go, Signior Grêmio! Deixai-me agir. Senhor,sou um cavalheiro de Verona, que, tendo ouvi-do falar da beleza de vossa filha, de seu espí-rito, de sua afabilidade, de sua pudica modés-tia, de suas raras qualidades e da doçura de seus

Page 78: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

modos, tem a ousadia de mostrar-se em vossacasa, hóspede atrevido, para que seus olhos se-jam testemunhas do que lhe foi repetido tão fre-quentemente. E, como introdução a meu aco-lhimento, apresento-me a vós com um de meusservidores (apresentando-lhe Hortêncio), ver-sado em música e matemática, que instruirávossa filha nestas ciências, que já sei não lhesão desconhecidas. Aceitai-o, para que não mesinta ofendido. Ele se chama Lício e nasceu emMântua.

BATISTA — Sede bem-vindo, senhor, e eletambém, em consideração a vós. Mas, quanto aminha filha Catarina, estou certo de que ela nãopoderá convir-vos, o que me faz ficar desolado.

PETRUCHIO — Vejo que vossa intenção éde não vos separardes dela, ou então que minhacompanhia vos desagrada.

Page 79: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Não leveis a mal minhas pa-lavras. Falo o que sinto. De onde sois, senhor?Que nome devo dar-vos?

PETRUCHIO — Petruchio é meu nome, fi-lho de Antônio, homem bem conhecido em to-da a Itália.

BATISTA — Conheço-o muito bem. Sedebem-vindo em consideração a ele.

GRÊMIO — Petruchio, agora que lá falas-tes, permiti, por favor, que nós, pobres peticio-nários, também falemos. Um momento! Estaismaravilhosamente apressado!

PETRUCHIO — Oh!... Perdoai-me, SigniorGrêmio; estou disposto a acabar.

GRÊMIO — Não duvido, senhor; mas, ar-riscais o êxito de vossa causa. Vizinho, eis aqui

Page 80: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

um presente que vos será muito agradável, es-tou certo disto. Para recompensar-vos de umasimpatia de que me haveis dado tantas provas,apresso-me a apresentar-vos este jovem sábio(apresentando-lhe Lucêncio), que durante lon-go tempo estudou em Reims, tão versado emgrego, latim e outras línguas, como seu colega,em música e matemática. Chama-se Câmbio.Por favor, aceitai os serviços dele.

BATISTA — Mil agradecimentos, SigniorGrêmio. Bem-vindo, bondoso Câmbio. Mas,amável senhor (dirigindo-se a Trânio), tendeso aspecto de estrangeiro. Poderia tomar a liber-dade de perguntar-vos a causa de vossa vinda?

TRÂNIO — Perdoai-me, senhor; sou euquem deve pedir-vos desculpa por minha liber-dade. Estrangeiro nesta cidade, tenho a ousadiade pretender a mão de vossa filha, a bela e vir-tuosa Bianca. Conheço vossa firme resolução

Page 81: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

de garantir primeiro a irmã mais velha. Só pe-ço um favor: quando conhecerdes minha famí-lia, dar-me-eis o mesmo acolhimento igual aosoutros pretendentes e me concedais livre aces-so e favor como ao resto. Quanto à educaçãode vossas filhas, aqui vos ofereço este simplesinstrumento e esta pequena coleção de livrosgregos e latinos. Se quiserdes aceitá-los, terãogrande valor.

BATISTA — Lucêncio é vosso nome? Deonde sois, por favor?

TRÂNIO — De Pisa, senhor; filho de Vi-cêncio.

BATISTA — Poderoso homem de Pisa.Conheço-lhe bem a reputação. Sois muito bem-vindo, senhor. Pegai no alaúde. E vós, na co-leção de livros. Ides imediatamente ver vossasalunas. Olá! Há alguém aí dentro? (Entra um

Page 82: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Criado.) Rapaz, leva estes senhores até ondeestão minhas filhas; e comunica a ambas quesão os professores delas; quero que sejam bemtratados. (Sai o Criado com Lucêncio e Hor-tênsio, seguidos por Biondello.) Vamos passearum pouco pelo pomar e depois jantaremos.Sois todos bem-vindos e vos peço que vos con-sidereis todos como tais.

PETRUCHIO — Signior Batista, meus as-suntos não admitem dilação, e eu não posso virtodos os dias fazer minha corte. Conhecestesmeu pai muito bem; sou o único herdeiro desuas terras e de seus bens, que entre minhasmãos antes prosperaram que diminuíram. Nes-tas condições, se conseguir fazer-me amar porvossa filha, dizei-me: que dote receberei aotorná-la como esposa?

BATISTA — Metade de minhas terras quan-do falecer e desde já vinte mil coroas.

Page 83: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Em troca desse dote, eulhe garantirei, se ficar viúva, todas as minhasterras e todos os meus rendimentos, sejamquais forem. Redigiremos, pois, as cláusulas docontrato, a fim de que nossas estipulações se-jam observadas por uma e outra parte.

BATISTA — Sim, quando for conseguido oprincipal, ou seja, o amor de minha filha, poistudo está dependendo disso.

PETRUCHIO — Ora, isso não é nada. Por-que eu vos garanto, meu pai, que sou tão teimo-so quanto ela é orgulhosa; e quando dois fogosviolentos se encontram, consomem logo o ob-jeto que lhes alimenta a fúria. Embora um fogobrando se torne forte com um vento fraco, umfuracão, entretanto, o apaga rapidamente. As-sim agirei eu com ela, e assim ela cederá comi-go; porque sou enérgico e não faço a corte co-mo criança.

Page 84: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Que tu possas fazer-lhe a cortee possas ser feliz! Mas prepara-te para receberpalavras inconvenientes!

PETRUCHIO — Já estou acostumado, co-mo as montanhas que os ventos não conseguemabalar, mesmo que soprem perpetuamente.(Volta Hortênsio com a cabeça quebrada.)

BATISTA — Que aconteceu, meu amigo?Por que estás tão pálido?

HORTÊNSIO — Garanto-os que, se estoupálido, é de medo.

BATISTA — Como! Será que minha filhanunca será uma boa musicista?

HORTÊNSIO — Acho que ela se mostrarámelhor como soldado. O ferro pode resistir me-lhor com ela, mas não os alaúdes.

Page 85: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Como! Então fizeste com queela quebrasse o alaúde ao tocá-lo?

HORTÊNSIO — Certamente que não; foiela quem quebrou o alaúde sobre mim. Eu lhedizia simplesmente que estava enganada nasnotas, e segurei-lhe a mão para retificar-lhe odedilhado, quando, com um movimento de im-paciência diabólica, me disse: “Chamais isto denotas? Pois, tocai-as então”. E, com essas pa-lavras, bateu-me com tanta força que o instru-mento me atravessou a cabeça. E, assim, fi-quei petrificado durante uns momentos, comoum homem no pelourinho, olhando através doalaúde, enquanto ela me chamava de velhacoarranhador, músico fracassado e de vinte outrosnomes injuriosos, como se tivesse estudadouma lição para melhor insultai-me.

PETRUCHIO — Ah! Pelo Universo, é umadonzela robusta! Amo-a agora dez vezes mais

Page 86: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

do que antes! Oh! Como estou ansioso para teruma conversinha com ela!

BATISTA — Bem, vinde comigo e não fi-queis assim tão desanimado. Exercereis vossaprofissão com minha filha mais moça. Ela temtendência para estudar e fica agradecida comtodos os favores que lhe sejam feitos. SigniorPetruchio, quereis vir conosco ou preferis quemande chamar minha filha Catarina?

PETRUCHIO — Mandai chamá-la, por fa-vor; eu a esperarei aqui. (Saem Batista, Grê-mio, Trânio e Hortênsio.) E quando chegar, eulhe farei a corte com toda decisão. Digamosque me injurie; eu lhe direi então que canta tãosuavemente quanto o rouxinol. E que franza afronte; eu lhe direi que tem o olhar tão límpidoquanto a rosa matutina, ainda úmida pelo orva-lho. Digamos que se mostre muda e não quei-ra falar só palavra; lisonjearei então sua vo-

Page 87: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

lubilidade e dir-lhe-ei que tem uma eloquên-cia persuasiva. Se disser que me retire, eu lheagradecerei; como se tivesse mandado que per-manecesse ao lado dela durante uma semana.Se negar-se a casar, pedir-lhe-ei para dizer-mequando deverei mandar publicar os banhos equando deveremos casar-nos. Mas, ei-la queestá chegando. E, agora, fala Petruchio. (EntraCatarina.) Bom dia, Catita, pois soube que esteera o vosso nome.

CATARINA — Ouvistes bem, mas tendesos ouvidos um pouco duros. Os que falam demim chamam-me de Catarina.

PETRUCHIO — Palavra de honra que es-tais mentindo. Vosso nome é simplesmente Ca-tita, a boa Catita e, às vezes, Catita, a má; mas,Catita, a mais bela Catita da cristandade; minhamelíflua Catita, minha doce Catita... Por conse-guinte, Catita, meu consolo, Catita, escuta-me!

Page 88: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Tendo ouvido em todas as cidades elogiar tuadoçura, tuas virtudes, tua beleza elogiada (nãotanto, contudo, quanto merecem), senti-me mo-vido a cortejar-te como minha futura esposa.

CATARINA — Movido! Não é sem tempo.Deixai-vos mover e como viestes, ide embora.Saí daqui. Vi imediatamente que tínheis o ar demóvel.

PETRUCHIO — Como! Que móvel?CATARINA — Um tamborete'.

PETRUCHIO — Disseste bem! Vem eassenta-te em cima de mim.

CATARINA — Os burros foram feitos paracarregar e vós também.

PETRUCHIO — As mulheres foram feitaspara carregar e vós também.

Page 89: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Não serei o rocim que voscarregará, se é a mim que vos referis.

PETRUCHIO — Ai de mim, bondosa Cati-ta. Não te serei pesado, porque, vendo-te joveme leve...

CATARINA — Muito leve para deixar-meapanhar por um casca-grossa como vós. Entre-tanto, peso o que deveria pesar.

PETRUCHIO — Deverá convir-me! Semdúvida alguma.

CATARINA— Falastes bem, mas como umfalcão.

PETRUCHIO — Ó rolinha de lento voo!Que falcão irá apanhar-te?

CATARINA — Oh! para uma rolinha, vaiele buscar um falcão!

Page 90: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Vamos, vamos, minha ves-pa; na verdade, ficais irritada demais.

CATARINA — Se sou vespa, cuidado commeu ferrão.

PETRUCHIO — Só terei, então, um remé-dio: arrancá-lo.

CATARINA — Sim, se o imbecil for capazde saber onde está.

PETRUCHIO — Quem não sabe onde avespa tem o ferrão? Na cauda29.

CATARINA — Na sua língua.

PETRUCHIO — Na língua de quem?

CATARINA — Na vossa, se falais de cau-das. E sabe o que mais? Adeus.

Page 91: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Como! Com minha línguana vossa cauda? Ora, vinde aqui. Sou um cava-lheiro, bondosa Catita.

CATARINA — Vou então experimentar.(Dá-lhe um tapa.)

PETRUCHIO — Juro que vos esmurrarei,se baterdes de novo.

CATARINA — E perderíeis as armas de ca-valheiro. Se me baterdes, não sois cavalheiro,e se não sois cavalheiro, não precisais de ar-mas30.

PETRUCHIO — Seríeis um arauto, Catita?Oh! coloca-me então em teu armorial!

CATARINA — Qual é vosso timbre? Umacrista de galo31?

Page 92: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Um galo sem crista, con-tanto que Catita seja minha galinha.

CATARINA — Jamais sereis meu galo.Cantais como um capão.

PETRUCHIO — Vamos, Catita, vamos.Não vos mostreis tão azeda.

CATARINA — É meu modo, quando vejouma maçã silvestre32.

PETRUCHIO — Ora, aqui não há nenhumamaçã, e, portanto, não precisais ficar tão irrita-da.

CATARINA — Há sim, há.

PETRUCHIO — Então, deixai que eu a ve-ja.

Page 93: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Se tivesse um espelho, eu amostraria.

PETRUCHIO — Como! Estais querendo di-zer que mostraríeis meu rosto?

CATARINA — Muito esperto apesar de tãomoço.

PETRUCHIO — Por São Jorge! Sou muitomais moço do que vós.

CATARINA — Estais, entretanto, muitoacabado.

PETRUCHIO — É por causa das preocupa-ções. CATARINA — Não tenho preocupações.

PETRUCHIO — Ouvi-me, Catita. Garanto-vos que não escapareis assim.

Page 94: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Se ficar, vou irritar-vos.Preciso ir embora.

PETRUCHIO — Não, de modo algum. Euacho que sois extremamente gentil. Disseram-me que éreis brusca, indômita, desagradável. E,agora, vejo que eram grandes mentiras. Acho-te deliciosa, jovial, extremamente cortês. Sóque tens a palavra lenta, mas doce como as flo-res na primavera. Não sabes franzir o cenho,nem sabes olhar de soslaio, nem morder os lá-bios, como as moças geniosas. Enfim, ao invésde sentires prazer em pronunciar palavras inju-riosas, recebes teus adoradores com benevolên-cia e afabilidade. Por que o mundo fala que Ca-tita é coxa? O mundo caluniador! Catita é eretae esbelta como o talo da aveleira, morena comoa noz e mais doce que a amêndoa. Oh! Deixa-me ver-te andando! Tu não és coxa!

Page 95: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Idiota, vai dar ordens a teuscriados.

PETRUCHIO — Alguma vez, adornou Di-ana um bosque, como Catita enfeita esta salacom seu ar de princesa? Oh! Sê Diana e queDiana se transforme em Catarina e, então, queCatarina se torne casta e Diana, terna.

CATARINA — Onde estudastes todo estebelo discurso?

PETRUCHIO — É um improviso nascidode meu espírito materno.

CATARINA — Mãe espirituosa com um fi-lho estúpido.

PETRUCHIO — Não sou inteligente?

CATARINA — Sim, conservai-vos quen-te33.

Page 96: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Tal é minha intenção, doceCatarina, mas em tua cama. Portanto, deixandode lado toda esta conversa, expressar-me-ei emtermos claros: vosso pai consente que sejaisminha esposa. Vosso dote já está estipulado e,queirais ou não, casar-me-ei convosco. Agora,Catarina, sou o marido que vos convém. Logo,por esta luz que me faz ver tua beleza (belezapela qual te adoro), tu só deves casar-te comi-go, já que nasci para dominar-te e transformaruma Catarina selvagem em uma Catarina sub-missa como as outras gatinhas34 caseiras. Estáchegando vosso pai. Nada de negativas! Devoe quero casar-me com Catarina. (Voltam Batis-ta, Grêmio e Trânio.)

BATISTA — Então, Signior Petruchio, co-mo vai indo com minha filha?

Page 97: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Perfeitamente, perfeita-mente, senhor! De outra maneira, não poderiaacontecer.

BATISTA — Então, minha filha Catarina?Sempre de mau humor?

CATARINA — Estais me chamando de fi-lha? Sem dúvida, estais me dando uma boa pro-va de ternura paternal querendo casar-me comum semilouco, um rufião furioso, um Jack blas-femador, que acredita poder impor-se com ju-ramentos.

PETRUCHIO — Meu sogro, tanto vósquanto todos aqueles que me falaram dela fos-tes injustos. Se ela é maldizente, é por política,pois que não é insolente, mas modesta comouma pomba. Não é violenta, mas pacífica comoa manhã. Quanto à paciência, é uma segundaGriselda35 e uma Lucrécia romana pela castida-

Page 98: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

de. E para concluir, chegamos a tão bom acor-do que marcamos o domingo próximo para diade nosso casamento.

CATARINA — Antes te verei enforcado nodomingo!

GRÊMIO — Estás ouvindo, Petruchio? Dizque antes te verá enforcado.

TRÂNIO — É assim que tudo está perfeito?Pois então, boa noite para nossa combinação!

PETRUCHIO — Tende paciência, senho-res! Eu a escolhi para mim. Se ela e eu estamoscontentes, que importa a todos vós? Quando es-távamos sós, combinamos que ela continuassea mostrar-se áspera no meio dos outros. Possogarantir-vos que é incrível como ela me ama.Ó, adorada Catarina! Ela se pendurava em meupescoço e, de beijo em beijo, dados tão depres-

Page 99: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

sa, fazendo juramentos sobre juramentos, que,num abrir e fechar de olhos, ela me conquista-ra. Oh! Sois ainda noviços! É um mundo a con-templar, quando homens e mulheres estão sós,como um pobre diabo consegue dominar a maisbravia megera. Dá-me tua mão, Catarina! Voua Veneza comprar o enxoval necessário para ocasamento. Preparai a festa, meu sogro, e fazeios convites. Estou certo de que minha Catarinaficará encantadora.

BATISTA — Não sei o que dizer, mas dai-me vossas mãos. Que Deus vos envie alegria,Petruchio! Estamos combinados.

GRÊMIO e TRÂNIO — Amém, dizemosnós. Serviremos de testemunhas.

PETRUCHIO — Adeus, meu sogro, minhaesposa e meus senhores. Parto para Veneza. Odomingo está próximo. Teremos anéis, todas

Page 100: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

as espécies de coisas, um brilhante cortejo. E,beija-me, Catita. Domingo, estaremos casados.(Saem Petruchio e Catarina para lados dife-rentes.)

GRÊMIO — Será que já houve um casa-mento arranjado tão depressa?

BATISTA — Por minha fé, cavalheiros, es-tou fazendo agora o papel de um comedianteque se arrisca loucamente num negócio deses-perado.

TRÂNIO — Era uma mercadoria abandona-da que se deteriorava a vosso lado. Ou ela vostrará, agora, lucro ou perecerá no mar.

BATISTA — O lucro que procuro é a tran-quilidade no casamento.

Page 101: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — Não tenhais dúvida de que elafez uma boa aquisição. E agora, Batista, fale-mos de vossa filha mais moça. Chegou o diapelo qual ansiávamos há tanto tempo. Sou vos-so vizinho e o primeiro dos candidatos.

TRÂNIO — E eu, alguém que ama Biancamuito mais do que possam expressar as pala-vras ou adivinhar vossos pensamentos.

GRÊMIO — Rapazelho, não podes amartanto quanto eu.

TRÂNIO — Barba grisalha, teu amor é ge-lado!

GRÊMIO — Mas, o teu se derrete. Fora,tonto. Esta é a idade que fecunda.

TRÂNIO — Mas a juventude, nos olhos dasmulheres, é que floresce.

Page 102: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Acalmai-vos, cavalheiros. Vouarranjar esta questão. Com atos é como se deveganhar o prêmio. Aquele que puder assegurarà minha filha o melhor dote, esse terá o amorde Bianca. Dizei, Signior Grêmio, que podeisassegurar-lhe?

GRÊMIO — Em primeiro lugar, como sa-beis, minha casa da cidade se encontra rica-mente servida por baixelas de ouro e de prata,bacias e jarros para lavar-lhe as delicadas mãos.Minhas cortinas são todas de tapeçaria de Ti-ro36. Enchi cofres de marfim com minhas coro-as; em arcas de cipreste, colchas de tapeçaria,custosos trajes, cortinas e dosséis, fino linho,almofadas turcas enfeitadas de pérolas, estofosde ouro de Veneza bordados a agulha, vasilhasde estanho e cobre, e todas aquelas coisas ne-cessárias para uma casa ou uso doméstico.Além disto, em minha fazenda, tenho cem va-cas leiteiras, cento e vinte bois cevados no es-

Page 103: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

tábulo, e todo o resto na mesma proporção. Jáestou entrado em anos, devo confessar; mas, seamanhã morrer, tudo isso será dela, se consen-tir em ser somente minha enquanto eu viver.

TRÂNIO — Este “somente” é a melhorperspectiva. Prestai-me atenção, senhor. Sou oherdeiro de meu pai e filho único. Se puderconseguir vossa filha como esposa, deixar-lhe-ei três ou quatro casas dentro da opulenta Pisa,tão boas quanto as que possui em Pádua o ve-lho Signior Grêmio. Além disto, dois mil duca-dos por ano provenientes de terras férteis, queconstituirão sua pensão quando eu tiver faleci-do. Então, Signior Grêmio, não estais em apu-ros?

GRÊMIO — Dois mil ducados por ano emterras! Todas as minhas terras reunidas nãochegam a essa soma. Mas, não importa. Ela te-rá, além do mais, um galeão que está agora a

Page 104: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

caminho de Marselha. Então, não ficastes semar com o galeão?

TRÂNIO — Grêmio, é sabido que meu painão possui menos que três galeões, além de du-as galeaças e doze sólidas galeras. Eu lhe asse-guro tudo isto e duas vezes mais ainda, sobretudo que oferecerdes.

GRÊMIO — Ofereci tudo o que possuía,não tenho mais nada, e só lhe posso oferecer oque tenho. Se me aceitardes, ela me terá comtodos os meus bens.

TRÂNIO — Pois, então, a jovem me per-tence, por exclusão de todos os outros, segundovossa promessa solene. Grêmio está fora de lu-ta.

BATISTA — Devo confessar que vossaoferta é a melhor. Se vosso pai a confirmar,

Page 105: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

minha filha será vossa. Entretanto, deveisperdoar-me; se morrerdes antes dele, qual seráa herança de minha filha?

TRÂNIO — Isto não passa de um sofisma.Ele é velho, eu sou jovem.

GRÊMIO— E os jovens não podem morrertão bem quanto os velhos?

BATISTA — Bem, cavalheiros; eis o que re-solvi. Como sabeis, domingo próximo, casa-seminha filha Catarina. Pois bem, no domingo se-guinte Bianca se casará convosco, se obtiver-des a garantia de vosso pai. Caso contrário, elapertencerá ao Signior Grêmio. E, sendo assim,despeço-me de vós e agradeço a ambos.

GRÊMIO — Adeus, bom vizinho. (Sai Ba-tista.) Agora, não te tenho medo. Vosso pai, jo-vem farsante, seria bem ingênuo de vos entre-

Page 106: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

gar tudo o que possui, para que, no declinar daidade, colocasse os pés debaixo de vossa me-sa. Que ingenuidade! Uma velha raposa italia-na não é tão benfazeja, meu rapaz. (Sai.)

TRÂNIO — Maldita seja vossa pele enru-gada! Entretanto, fiz frente com uma carta dedez37. Meti em minha cabeça fazer a felicidadede meu amo. Não há razão para que o falso Lu-cêncio não possua um falso pai, chamado Vi-cêncio. Coisa maravilhosa! Geralmente são ospais que fazem os filhos, mas, neste caso amo-roso, graças a minha habilidade, é o filho quefaz o pai. (Sai.)

Page 107: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ATO III

CENA I

Casa de Batista em Pádua.Entram Lucêncio, Hortênsio e Bianca.

LUCÊNCIO — Parai, alaudista. Estai-vos re-velando muito confiado, senhor. Esquecestes tãodepressa a recepção que vos fez sua irmã Catari-na?

Page 108: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Mas, pedante rixento, estajovem é a padroeira da harmonia celestial. Res-peitai, portanto, minha prerrogativa; e quandotivermos dado uma hora de música, podeis con-sagrar outro tanto à vossa lição.

LUCÊNCIO — Asno absurdo, que nemmesmo leu o bastante para saber por que a mú-sica foi inventada! Não foi para recrear a almado homem depois dos estudos ou dos trabalhoshabituais? Deixai-me, então, dar minha lição defilosofia e, quando fizer uma pausa, entrai comvossa harmonia.

HORTÊNSIO — Biltre, não suportarei tuasbravatas!

BIANCA — Vamos, cavalheiros, vós me fa-zeis uma dupla ofensa brigando por uma coisaque depende de minha escolha. Não sou umaaluna para ser corrigida na escola. Não pos-

Page 109: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

so estar sujeita às horas, nem ser escrava dotempo, mas aprendo minhas lições como meagradar. E para cortar toda discussão, sentemo-nos aqui. Pegai em vosso instrumento e tocai-o.Antes que o afineis, a lição dele terá acabado.

HORTÊNSIO — Deixareis a lição delequando tiver afinado?

LUCÊNCIO — O que nunca acontecerá!Afinai vosso instrumento.

BIANCA — Onde havíamos parado?

LUCÊNCIO — Aqui, senhora:Hic ibat Simois; hic est Sigeia tellus;Hic steterat Priami regia celsa senis38.

BIANCA — Traduzi.

LUCÊNCIO — Hic ibat, corno já vos disseantes... Simois, sou Lucêncio... hic est, filho de

Page 110: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Vicêncio de Pisa... Sigeia tellus, assim disfar-çado para conseguir vosso amor... Hic steterat,e o Lucêncio que veio fazer-vos a corte... Pria-mi é meu criado Trânio... regia, que tomou meulugar... celsa senis, a fim de que possamos en-ganar o velho Pantaleão39.

HORTESSIO — Senhora, meu instrumentojá está afinado.

BIANCA — Vamos ouvir. Oh! Fora! A cor-da aguda está desafinada.

LUCÊNCIO — Cuspi na abertura do instru-mento, homem, e afinai novamente.

BIANCA — Deixai-me ver agora se possofazer a tradução. Hic ibat Simois, não vos co-nheço... hic est Sigeia tellus, não tenho confi-ança em vós... Hic steterat Priami, tende cuida-

Page 111: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

do para que ele não nos ouça... regia, não sejaispresunçoso... celsa senis, mas não desespereis.

HORTÊNSIO — Senhora, agora já está afi-nado.

LUCÊNCIO — Sim, menos o baixo.

HORTÊNSIO — O baixo está justo. É o bai-xo patife que desentoa. (À parte.) Como nos-so pedante é orgulhoso e cheio de audácia! Porminha vida, o patife faz a corte a meu amor!Pedantezinho40, vou vigiar-vos com mais cui-dado ainda.

BIANCA — Talvez ainda possa crer emvós, entretanto continuo desconfiada.

LUCÊNCIO — Não fiqueis desconfiada;porque, certamente, Ájax era Eácida, assimchamado por causa do nome do avô.

Page 112: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIANCA — Devo acreditar em meu mestre;do contrário, eu vos garanto que discutiria ain-da sobre este ponto. Mas, fiquemos por aqui.Agora, Lício, para vós. Bondosos mestres, nãoleveis a mal, peço-vos, que haja brincado assimconvosco.

HORTÊNSIO — Podeis ir dar uma volta edeixar-me só por um momento. Minhas liçõesnão têm música a três partes.

LUCÊNCIO — Sois tão formal assim, se-nhor? Bem, devo esperar (à parte), e vigiais,enquanto isso; porque, ou estou muito engana-do, ou nosso bom músico está apaixonado.

HORTÊNSIO — Senhora, antes que toqueiso instrumento para aprender comigo o dedilha-do, devo começar com os rudimentos da arte.Vou ensinar-vos a escala de uma maneira maiscurta, mais agradável, melhor, mais eficaz do

Page 113: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

que meus colegas ensinaram até agora. Ei-laaqui neste papel, escrita com belos sinais.

BIANCA — Mas, há muito tempo que jáaprendi a escala.

HORTÊNSIO — Lede, contudo, a escala deHortênsio.

BIANCA — (Lê.)Escala de dó. Sou o conjunto de todos os

acordes;A ré; para defender a paixão de Hortênsio.B mi; Bianca, aceitai-o como esposo,C fá, dó; que vos ama com toda afeição.D sol, ré; uma clave, duas notas tenho eu.E lá, mi; tende piedade, ou eu morro.Chamais isto de uma escala? Não gosto de-

la. Prefiro os métodos antigos. Não sou tão ca-prichosa para mudar as regras verdadeiras porestranhas invenções. (Entra um Criado.)

Page 114: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CRIADO — Senhora, vosso pai pede quedeixeis vossos livros e ajudeis a preparar oquarto de vossa irmã. Sabeis que amanhã é odia do casamento.

BIANCA — Adeus, prezados mestres, te-nho necessidade de sair. (Saem Bianca e o Cri-ado.)

LUCÊNCIO — Então, senhora, não tenhonenhum motivo para permanecer. (Sai.)

HORTÊNSIO — Mas eu tenho motivo paraespionar este pedante. Parece-me que ele tem oar de quem está apaixonado. Entretanto, Bian-ca, se teus pensamentos se rebaixam até o ex-tremo de pousar teus olhos errantes em qual-quer um, apodere-se de ti quem quiser. Se al-guma vez te encontrar diferente, Hortênsio teabandonará por sentir-te mudada. (Sai.)

Page 115: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CENA II

Diante da casa de Batista em Pádua.Entram Batista, Grêmio, Trânio, Catarina, Bi-

anca, Lucêncioe convidados para o casamento.

BATISTA — Signior Lucêncio (a Trânio),este é o dia marcado para o casamento de Ca-tarina e Petruchio; entretanto, não sabemos ain-da onde está nosso genro. Que vão dizer? Queescândalo, quando o padre, para cumprir o ritocerimonial do enlace, esperar em vão a chegadado noivo! Que pensa Lucêncio desta afrontapara todos nós?

Page 116: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Sou eu a afrontada. Coagidaa conceder minha mão, apesar de meu coração,a um louco grosseiro, mal-humorado que, de-pois de haver-me feito corte a toda pressa, pre-tende casar-se quando lhe convier. Já vos dis-sera que era um louco, dissimulando críticasamargas sob uma aparência de rude fraqueza.A fim de passar por um homem simpático, fariacorte a mil mulheres, fixaria a data do casamen-to, reuniria os amigos e proclamaria os banhossem jamais haver tido a intenção de cumprira promessa. Agora, o mundo apontará a pobreCatarina com o dedo e dirá: “Olhai! Ali vai amulher do louco Petruchio; se lhe convier, vol-tará para casar-se com ela”.

TRÂNIO — Paciência, boa Catarina, paci-ência, Batista. Por minha vida, as intenções dePetruchio são boas, seja qual seja o azar queo impeça de cumprir a palavra. Embora sejabrusco, tenho-o em conta de homem razoável;

Page 117: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

e apesar de parecer brincalhão, é, no entanto,um homem sério.

CATARINA — Quem dera que Catarinanunca o tivesse visto! (Sai chorando, seguidapor Bianca e outros.)

BATISTA — Vai, minha filha; não possoagora reprovar teu pranto. Uma santa não per-maneceria insensível perante tal afronta, commuito mais razão, urna geniosa de humor tãoimpaciente. (Entra Biondello.)

BIONDELLO — Senhor, senhor! Velhasnovas e tais novas como nunca as ouvistes!

BATISTA — É uma velha nova? Como po-de ser isto?

BIONDELLO — Como! Não é uma novasaber a chegada de Petruchio?

Page 118: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Já chegou?

BIONDELLO — Ora, não, senhor!

BATISTA — Que queres então contar?

BIONDELLO — Ele está chegando.

BATISTA — Quando chegará aqui?

BIONDELLO — Quando estiver onde estoue que possa ver-vos como eu.

TRÂNIO — Mas, conta-nos: quais são asvelhas novas?

BIONDELLO — Ei-las aqui. Petruchio,vem com um chapéu novo e um gibão velho,um par de calças velhas, viradas três vezes; umpar de botas que foram caixas de vela, uma comfivela, a outra com cordões; uma velha espa-da enferrujada, tirada do arsenal da cidade, com

Page 119: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

o punho quebrado e sem bainha; quebrados osmetais dos dois talins; o cavalo derreado, comuma velha sela carcomida e estribos diferen-tes; além disto, atacado de mormo, pelado co-mo um rato; padece de fava, infetado de sar-na, cheio de tumores, coberto de esparavões,marcado de icterícia, com as glândulas da gar-ganta incuráveis, completamente inútil por cau-sa das vertigens, roído pelos vermes, a espinhaquebrada e espáduas deslocadas, completamen-te moído e munido de um freio com uma sóguia e de uma testeira de pele de carneiro que, àforça de haver sido puxada para impedir que oanimal tropeçasse, arrebentou em muitos luga-res e foi consertada com nós; uma barrigueiraremendada seis vezes e uma retranca de velu-do para mulher, tendo duas iniciais com o no-me dela primorosamente marcadas com cravose remendada, aqui e ali, com barbante.

BATISTA — Quem vem com ele?

Page 120: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Ó senhor! O lacaio dele,caparaçonado como o cavalo, com uma meiade linho numa perna e perneiras de sarja na ou-tra, presas por um cordão vermelho e azul; umchapéu velho, e o “Humor das quarenta fanta-sias” colocado em cima ao invés de pena. Ummonstro, um verdadeiro monstro no vestir, nãotendo qualquer semelhança com um pajem cris-tão ou com o lacaio de um cavalheiro!

TRÂNIO — Um capricho estranho o terá le-vado a vestir-se desse modo, bem que, comu-mente, ande mal vestido.

BATISTA — Fico contente que ele venha,não importa como.

BIONDELLO — Mas, ele não vem, senhor.

BATISTA — Não disseste que ele vinha?

Page 121: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Quem? Que Petruchio vi-nha?

BATISTA — Sim, que Petruchio vinha.

BIONDELLO — Não, senhor, eu disse queo cavalo dele estava chegando carregando-o nolombo.

BATISTA — Bem, dá tudo no mesmo.

BIONDELLO — Não, por São Jaime!Aposto um penny, como um cavalo e um ho-mem são mais do que um e, contudo, não sãomuitos. (Entram Petruchio e Grúmio.)

PETRUCHIO — Vamos, onde estão essesgalantes? Quem está em casa?

BATISTA — Sede bem-vindo, senhor.

Page 122: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — E, não obstante, não venhome sentindo bem.

BATISTA — Entretanto, não estais mancan-do.

TRÂNIO — Não vindes tão bem vestido co-mo teria desejado.

PETRUCHIO — Tinha necessidade deapressar-me para chegar... Mas, onde está Cata-rina? Onde está minha encantadora noiva? Co-mo está passando meu sogro? Senhores, dir-se-ia que estais de mau humor. Por que toda estacompanhia me olha como se visse algum mo-numento maravilhoso, um cometa ou um estra-nho prodígio?

BATISTA — Sabeis, senhor, que hoje é odia de vosso casamento. Primeiramente, está-vamos tristes temendo vossa ausência. Agora,

Page 123: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

estamos mais tristes ainda, vendo-vos chegarem tão triste estado. Vamos, tirai essa roupa, in-digna de vossa posição e desagradável à vistapara nossa festa tão solene!

TRÂNIO — E contai-nos que motivos séri-os vos prenderam tanto tempo longe de vossaesposa e que vos fizeram aqui chegar tão dife-rente de vós mesmo?

PETRUCHIO — Seria tedioso de contar edesagradável de ouvir. Basta que saibais quevim cumprir minha palavra, apesar de haver si-do obrigado a faltar em alguns pontos. A esterespeito, em momento oportuno, eu vos dareiminhas desculpas e minhas explicações serãoperfeitamente satisfatórias. Mas, onde está Ca-tarina? Há muito tempo que estou longe dela.A manhã está passando. Já devíamos estar naigreja a estas horas.

Page 124: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Não vos apresenteis à vossanoiva neste traje tão impróprio. Ide a meu quar-to e vesti minhas roupas.

PETRUCHO — Estejais certo de que nãofarei isso; desejo vê-la assim mesmo.

BATISTA — Mas suponho que não será as-sim que queirais casar com ela.

PETRUCHIO — Na verdade, exatamentecomo estou. Por conseguinte, não falemos maisno assunto. Ela deseja casar-se comigo e nãocom minhas roupas. Se pudesse reparar o queela em mim gastará, como posso mudar estespobres trajes, seria melhor para Catarina e me-lhor ainda para mim. Mas, que insensato sou,por estar conversando convosco, quando deve-ria ir dar bom dia a minha noiva e selar o títu-lo com um beijo amoroso! (Saem Petruchio eGrúmio.)

Page 125: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Terá suas razões para vestir-sedaquele modo. Tratemos de convencê-lo, se forpossível, de que deve vestir-se melhor antes deir para a igreja.

BATISTA — Vou atrás dele para ver em quevai dar tudo isso. (Saem Batista, Grêmio e con-vidados.)

TRÂNIO — Mas, senhor, ao amor de Bian-ca, importa-nos acrescentar o consentimento dopai dela. A fim de obtê-lo, nas condições quejá anunciei a Vossa Senhoria, vou procurar umhomem (seja ele qual for, pouco importa, nós oporemos ao corrente do assunto), que será Vi-cêncio de Pisa e que, aqui em Pádua, dará ga-rantia a uma soma muito maior que a prometi-da por mim. Assim, vós aproveitareis tranqui-lamente o objeto de vossas esperanças e casa-reis com a doce Bianca com o consentimentodo pai dela.

Page 126: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Se meu colega, o professor,não vigiasse tanto os passos de Bianca, pode-ríamos, quem sabe, casar-nos clandestinamen-te. Uma vez realizado o casamento, que o mun-do dissesse o que quisesse, porque ela seria sóminha, a despeito de todo o mundo.

TRÂNIO — Trataremos de lá chegar poucoa pouco, e esperaremos a ocasião mais favorá-vel. Vai ser preciso enganar o barba grisalha,Grêmio, o pai desconfiado, Minola, e o músicoexcêntrico, o apaixonado Lício. Tudo em con-sideração a meu amo Lucêncio! (Volta Grê-mio.) Signior Grêmio, vindes da igreja?

GRÊMIO — Tão prazenteiramente comonunca vim da escola!

TRÂNIO — E a noiva e o noivo já estão devolta?

Page 127: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — O noivo, estais dizendo? Naverdade, é um palafreneiro, um brutal palafre-neiro. A pobre coitada verá de sobra o que ga-nhou!

TRÂNIO — Pior do que ela? Como! É im-possível!

GRÊMIO — Ele? É um diabo, um diabo,um perfeito danado.

TRÂNIO — Então, ela é uma diaba, uma di-aba, a mulher do diabo.

GRÊMIO — Chega! Ela é um cordeiro, umapomba, uma tola ao lado dele. Vou contar-vos oque aconteceu, Senhor Lucêncio. Quando o pa-dre perguntou se consentia em receber Catarinacomo esposa, ele exclamou: “Sim, por Deus!”e começou a praguejar em voz tão alta queo sacerdote, completamente estupefato, deixou

Page 128: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

cair o livro no chão; e como se curvasse paraapanhá-lo, o noivo, louco furioso, deu-lhe talpalmada que padre e livro, livro e padre rola-ram pelo chão. “Agora”, acrescentou ele, “queos apanhem quem quiser!”

TRÂNIO — E que disse a jovem quando opadre se levantou?

GRÊMIO — Ela tremia e tiritava, enquantoele batia com o pé e praguejava, como se ovigário tivesse intenção de ridicularizá-lo. De-pois de muitas cerimônias, pediu vinho. “Àsaúde de todos!”, exclamou, como se estivera abordo, bebendo com os marinheiros depois deuma tempestade. Servido o moscatel de um tra-go, atirou o resto na cara do sacristão, tendocorno única razão que a barba dele, grisalha, ra-la e esfaimada, parecia-lhe pedir as sobras doque bebia. Feito isto, pegou a esposa pelo pes-coço e deu-lhe um beijo na boca com um estalo

Page 129: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

tão clamoroso que fez eco em toda a igreja. Evendo isso, corri para aqui cheio de vergonha.E atrás de mim, parece que vêm os convidados.Nunca se viu um casamento tão louco quan-to este. Ouvi, ouvi! Estou escutando os menes-tréis tocarem. (Música. Voltam Petruchio, Ca-tarina, Bianca, Batista, Hortênsio, Grúmio e oCortejo.)

PETRUCHIO — Cavalheiros e amigos,agradeço-vos por vosso trabalho. Sei que tí-nheis a certeza de jantar hoje comigo, pois ha-via preparado um soberbo banquete de bodas.Mas, infelizmente, meus negócios me recla-mam longe daqui e, por isto, aqui mesmo medespeço de vós.

BATISTA — É possível que queirais partiresta noite?

Page 130: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Devo partir hoje, antesque chegue a noite. Não fiqueis espantados.Se conhecêsseis o motivo, vós me animaríeis apartir, ao invés de ficar. Assim, agradeço todaa honesta companhia que assistiu minha uniãocom a mais paciente, a mais doce e a mais vir-tuosa das esposas. Jantai com meu sogro, bebeia minha saúde, porque preciso partir. Adeus atodos vós.

TRÂNIO — Deixai-nos pedir-vos que aomenos fiqueis até depois do jantar.

PETRUCHIO — Não é possível.

GRÊMIO — Deixai-nos suplicar-vos.

PETRUCHIO — Não pode ser.

CATARINA — Suplico-vos, também.

PETRUCHIO — Estou contente.

Page 131: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Estais contente de ficar?

PETRUCHIO — Estou contente que me pe-çais que permaneça; mas, não ficaria, mesmoque me pedísseis muito mais ainda.

CATARINA — Vamos, se me amais, ficai.

PETRUCHIO — Grúmio, meus cavalos!

GRÚMIO — Sim, senhor, já estão prontos!A aveia comeu os cavalos!

CATARINA — Pois, então faze o que qui-seres. Hoje, não partirei, não; nem amanhã, atéque tenha vontade. A porta está aberta, senhor.Ali está vosso caminho. Podeis ir a trote, en-quanto vossas botas estiverem novas. Quanto amim, só sairei daqui quando me convier. Pare-ce que sereis um marido bem grosseiro, já queassim começais tão francamente.

Page 132: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Ó Catita! Acalma-te, porfavor, não fiques irritada.

CATARINA — Quero irritar-me!... Que fi-zeste? Ficai tranquilo, meu pai! Ficará ele aquiaté quando eu quiser.

GRÊMIO — Sim, palavra; vai começar apartida.

CATARINA — Senhores, vamos ao ban-quete nupcial! Vejo que uma mulher se arriscaa ficar louca, se não tiver gênio para resistir.

PETRUCHIO — Irão tara o banquete; se tuo exigires, Catarina. Obedecei à noiva, todosvós que fostes por ela convidados. Festejai,diverti-vos, e fartai-vos opiparamente! Bebei,em orgia sem limites, pela virgindade dela!Mostrai-vos loucos e alegres, ou ide enforcar-vos! Quanto a minha boa Catarina, deve seguir-

Page 133: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

me. Não, não é preciso abrir tanto os olhos,nem bater com os pés no chão, nem admirar-se, nem irritar-se. Serei o dono daquilo queme pertence. Ela faz parte de meus bens, meusbens móveis; ela é minha casa, meu mobiliário,meu campo, meu celeiro, meu cavalo, meu boi,meu burro, meu tudo. Aqui está ela, cuidadoquem ouse tocar-lhe! Mostrarei quem sou aquem, atrevidamente, me detenha em meu ca-minho de Pádua. Grúmio, desembainha tua es-pada! Estamos cercados de ladrões! Salva tuapatroa, se és homem! Não tenhas medo, docejovem; ninguém te tocará, Catita. Serei teu es-cudo contra um milhão de inimigos. (Saem Pe-truchio, Catarina e Grúmio.)

BATISTA — Vamos, deixai partir este casalpacífico!

GRÊMIO — Se não tivessem partido de-pressa, teria morrido de tanto rir.

Page 134: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Entre todas as uniões malucas,esta não tem par.

LUCÊNCIO — Senhora, qual é vossa opi-nião sobre vossa irmã?

BIANCA — É uma louca unida a um louco.

GRÊMIO — Garanto-vos que Petruchio es-tá encatarinado.

BATISTA — Vizinhos e amigos, se a noivae o noivo se encontram ausentes, não faltarão,para preenchê-los, gulodices na mesa. Lucên-cio, vós ocupareis o lugar do marido e Bianca,o da irmã.

TRÂNIO — A bela Bianca vai fazer o en-saio do papel de noiva?

BATISTA — Sim, Lucêncio. Vamos, senho-res, partamos! (Saem.)

Page 135: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf
Page 136: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ATO IV

CENA I

Casa de campo de Petruchio.Entra Grúmio.

GRÚMIO — Fora, fora com todos os rocinsfatigados, com todos os patrões loucos e com to-dos os maus caminhos! Já se viu homem tão ba-tido? Já se viu homem tão enlameado? Já se viuhomem tão cansado? Fui enviado na frente pa-ra acender o fogo e eles virão depois para se es-quentarem. Agora, se não fosse um pequeno po-te, que fica logo quente41, meus próprios lábios

Page 137: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

poderiam gelar-se em meus dentes, minha lín-gua contra o céu da boca, meu coração contrameu estômago, antes que pudesse sentar-me nalareira para descongelar-me. Mas, soprando nofogo, esquentar-me-ei; porque, considerando otempo que está fazendo, um homem mais altodo que eu apanharia um resfriado. Olá! Ora vi-va, Curtis! (Entra Curtis.)

CURTIS — Quem está chamando com essavoz tiritante?

GRÚMIO — Um pedaço de gelo! Se dúvi-das, podes escorregar de meu ombro ao meucalcanhar, bastando que tomes impulso de mi-nha cabeça ao meu pescoço. Fogo, bondosoCurtis!

CURTIS — Será que virão meu patrão e aesposa, Grúmio?

Page 138: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Oh! Sim, Curtis, sim! E, por-tanto, fogo, fogo; não atires água em cima.

CURTIS — Ela é uma megera tão esquenta-da como dizem?

GRÚMIO — Era, bom Curtis, antes destageada. Mas, como sabes, o inverno doma o ho-mem, a mulher e o animal. Por isto, domoumeu antigo patrão e minha nova patroa e eumesmo, camarada Curtis.

CURTIS — Para trás, bufão de três polega-das42! Eu não sou animal!

GRÚMIO — Só tenho três polegadas? Ora,teus cornos devem medir bem um pé e eu tenhoo mesmo comprimento. Mas, vais acender o fo-go? Ou então vou queixar-me a nossa patroaque já está perto. Sua mão se fará sentir fri-

Page 139: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

amente, se fores tão demorado em esquentar-nos.

CURTIS — Por favor, bondoso Grúmio,dize-me, como anda o mundo?

GRÚMIO — O mundo anda frio, Curtis; tu-do está frio, exceto no teu trabalho; portanto,acende o fogo. Cumpre o teu dever, para tereso que é devido, porque minha patroa e meu pa-trão estão quase mortos de frio.

CURTIS — Já está pronto o fogo; e, portan-to, bondoso Grúmio, conta-me as novidades.

GRÚMIO — Ora, “olá Joãozinho, olá”43!Tantas novidades quantas queiras!

CURTIS — Vamos! Estás pregando tantoslogros44!

Page 140: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Foi por causa do fogo, porqueo que me pregou foi um terrível resfriado. On-de está o cozinheiro? A ceia já está pronta, acasa arrumada, as esteiras estendidas45, tiradasas teias de aranha? Os criados estão usando onovo fustão, as meias brancas e cada emprega-do os trajes de casamento? Estão bem lavadosos cântaros por dentro e as tigelas estão belaspor fora46? Os tapetes já foram colocados e tu-do está em ordem?

CURTIS — Tudo está pronto e, portanto,faze-me o favor, às notícias.

GRÚMIO — Primeiro, fica sabendo quemeu cavalo está exausto, e que meu patrão eminha patroa caíram.

CURTIS — Como?

Page 141: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Das selas na lama. É uma lon-ga história.

CURTIS — Vamos, conta-me essa história,bondoso Grúmio.

GRÚMIO — Aproxima tua orelha.

CURTIS — Está aqui!

GRÚMIO — Toma lá! (Dá-lhe um tapa.)

CURTIS — É o que se chama sentir umahistória e não ouvi-la.

GRÚMIO — É a maneira de tornar uma his-tória sensível. Este murro foi só uma chama-da a teu ouvido, para que me escutasse. Ago-ra, vou começar: Imprimis, descemos uma hor-rível colina, meu patrão cavalgando na garupade minha patroa...

Page 142: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CURTIS — Ambos no mesmo cavalo?

GRÚMIO — Que te importa isso?

CURTIS — Importa ao cavalo, ora.

GRÚMIO — Conta tu a história! Se não metivesses interrompido, terias sabido como caiuo cavalo e ela debaixo do cavalo; saberias emque lamaçal e como ficou toda enlameada; co-mo a deixou com o cavalo em cima dela; co-mo me bateu porque o cavalo dela escorregara;como ela patinhou pela lama para arrancá-lo decima de mim; como ele praguejava; como elasuplicava, apesar de nunca haver suplicado; co-mo gritei; como os cavalos fugiram; como arre-bentou a cabeçada do cavalo dela; como perdiminha retranca; com outras muitas coisas me-moráveis que desde agora cairão no esqueci-mento, e das quais não guardarás a lembrançaaté o túmulo.

Page 143: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CURTIS — Por essa história, ele é mais ter-rível do que ela.

GRÚMIO — Sim, e é o que tu e o maisvalente entre todos vós reconhecereis quandoele aqui chegar. Mas para que falar sobre isto?Chama Nataniel, José, Nicolau, Filipe, Válter,Biscoitinho e os outros. Faze com que as ca-beças deles estejam cuidadosamente penteadas,as librés azuis bem escovadas e as jarreteirasbem uniformes. Dizei-lhes que façam reverên-cia com a perna esquerda e que não ousem to-car num fio da cauda do cavalo de meu patrão,antes de beijarem as mãos dos dois. Todos jáestão prontos?

CURTIS — Estão.

GRÚMIO — Chama-os.

Page 144: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CURTIS — Olá! Estão ouvindo? Deveis irao encontro de meu patrão para saudar minhapatroa.

GRÚMIO — Saudar! Só ela pode dar saúdea si mesma.

CURTIS — Quem não sabe isto?

GRÚMIO — Parece que não sabes. Chamasteus camaradas para que lhe façam a saúde.

CURTIS — Eu os estou chamando para quelhe prestem a homenagem devida.

GRÚMIO — Ela não está precisando dosfavores deles. (Entram vários Criados.)

NATANIEL — Bem-vindo, Grúmio!

FILIPE — Que há, Grúmio?

Page 145: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

JOSÉ — Então, Grúmio?

NICOLAU — Camarada Grúmio!

NATANIEL — Que há, meu velho?

GRÚMIO — Bem-vindo?... Que há?... En-tão?... Camarada?... Isto é maneira de receber?Agora, meus guapos companheiros, tudo estápronto e todas as coisas estão limpas?

NATANIEL — Tudo está pronto. A que dis-tância se encontra nosso patrão?

GRÚMIO — Muito perto! Já está quase seapeando. De modo que não estejais... Pelo galoda paixão! Silêncio! Estou ouvindo meu pa-trão! (Entram Petruchio e Catarina.)

PETRUCHIO — Onde estão esses criados?Que é isso? Ninguém na porta para segurar

Page 146: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

meu estribo e pegar meu cavalo! Onde estãoNataniel, Gregório e Filipe?

TODOS OS CRIADOS — Aqui, aqui, se-nhor! Aqui, senhor!

PETRUCHIO — Aqui, senhor! Aqui, se-nhor! Aqui, senhor! Aqui, senhor! Imbecis e in-solentes! Como! Ninguém aparece? Nenhumaatenção? Nenhum respeito? Onde está o imbe-cil que mandei na frente?

GRÚMIO — Estou aqui, senhor. Tão imbe-cil quanto era antes.

PETRUCHIO — Rústico, atrasadão! Filhoda puta! Escravo ignorante! Não te havia dadoordem para que me viesses esperar no parque etrouxesses contigo todos estes miseráveis?

Page 147: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Senhor, a roupa de Natanielnão estava ainda terminada, e os escarpins deDaniel estavam descosidos no calcanhar. Nãohavia tocha acesa para escurecer o chapéu dePedro e a adaga de Válter estava ainda sem bai-nha. Só Adão, Ralph e Gregório estavam pron-tos. Os outros estavam maltrapilhos, velhos eparecendo mendigos, mas tal como estão, ei-los que vieram ao vosso encontro.

PETRUCHIO — Saiam, tratantes, e tragamminha ceia! (Saem os Criados. Cantando.) On-de está a vida que antes levava...47 Onde estãoestes... Assentai-vos, Catarina, e sede bem-vin-da... Ufa, ufa, ufa, ufa! (Voltam os Criados coma ceia.) Então, depressa!... Que é isto? Minhaboa e doce Catita, mostrai-vos alegre... Tirai-me as botas, imbecis! Depressa! (Canta.)

Era um frade da ordem cinza,Que ia andando pela estrada...

Page 148: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Fora, canalha! Estás me arrancando o pé!Toma isto e aprende a tirar o outro. (Bate.)Ficai alegre, Catita! Água aqui!... Como!...Olá!... Onde está meu lulu Tróilo? Anda e vaibuscar meu primo Fernando! Um primo, Cati-ta, a quem deveis beijar para fazerdes amiza-de com ele... Onde estão meus chinelos?... Es-sa água não vem? (Entra um Criado trazen-do água.) Vamos, Catita, lavai as mãos e sedecordialmente bem-vinda... Como! Imbecil, fi-lho da puta! Deixaste cair o jarro? (Bate.)

CATARINA — Paciência, por favor. Foisem querer.

PETRUCHIO — Um filho da puta, um es-túpido, um miserável orelhudo! Vamos, Catita,assentai-vos; sei que tendes apetite. Quereis dargraças a Deus, querida Catita, ou quereis queeu dê? Que é isto? Carne de carneiro?

Page 149: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PRIMEIRO CRIADO — Sim.

PETRUCHIO — Quem a trouxe?

SEGUNDO CRIADO — Eu.

PETRUCHIO — Está queimada, como todoo resto da carne!... Que cães!... Onde está o im-becil do cozinheiro? Como vos atrevestes, idi-otas, a trazê-la da cozinha e servir-me um pra-to que não suporto? Vamos, levai isto embora,pratos, copos e tudo o mais! (Vai atirando acarne e tudo o mais pelo palco.) Vadios! Escra-vos ingratos! Que é isto? Estais resmungando?Vamos ajustar contas daqui a pouco!

CATARINA — Por favor, meu marido, nãofiqueis tão irritado. A carne estava boa, se voshouvésseis contentado com ela.

Page 150: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Garanto-te, Catita, que es-tava queimada e ressecada, e estou expressa-mente proibido de tocá-la. Gera a cólera e en-raíza os maus humores. Fora preferível que am-bos morrêssemos de fome, sendo, como somos,tão propensos à cólera, que comer carne exces-sivamente cozida. Tem paciência: Tudo se ar-ranjará amanhã. Quanto a esta noite, jejuare-mos juntos... Vem, vou levar-te para teu quar-to nupcial. (Saem. Voltam os Criados, separa-damente.)

NATANIEL — Pedro, já viste coisas seme-lhantes?

PEDRO — Ele a mata com o próprio gêniodela. (Volta Curtis.)

GRÚNIO — Onde está ele?

Page 151: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CURTIS — No quarto dela, fazendo-lhe umsermão sobre a continência! E pragueja, jura eruge de tal modo, que a pobre coitada não sabecomo ficar, como olhar, como falar e permane-ce como se acabasse de acordar de um sonho...Vamos embora! Vamos embora! Ele está vol-tando para cá! (Saem. Volta Petruchio.)

PETRUCHIO — Assim, comecei meu rei-nado como político hábil e tenho esperança deacabá-lo muito bem. Meu falcão está agora ex-citado pelo jejum e com a barriga vazia e atéque se torne amestrado, não convém cevá-lo,pois, então, jamais olharia para a isca. Aindapossuo outro meio de domesticar meu falcãoselvagem, de ensiná-lo a vir, e conhecer o cha-mado do dono, ou seja, mantê-la sob vigilância,como se faz com os milhafres, que se enfure-cem, resistem e não querem obedecer. Ela, ho-je, nada comeu, nem comerá. Não dormiu anoite passada, nem dormirá esta noite. Do mes-

Page 152: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

mo modo que fiz com a comida, encontrareialgum defeito imaginário para queixar-me damaneira que o leito está feito. E, então, atira-rei o travesseiro para um lado, acolchoado pa-ra outro, cobertor para mais outro, lençóis paraoutro canto... Sim, e durante essa complicação,dar-lhe-ei a entender que estou fazendo tudo is-to em benefício dela. Em conclusão, ela fica-rá acordada durante toda a noite, e se por aca-so cochilar, praguejarei, gritarei e com a baru-lhada que fizer, eu a manterei acordada. Este éo meio de matar uma esposa pela delicadeza;e, assim, dominar-lhe-ei o gênio violento e tei-moso. Se alguém conhecer um melhor meio pa-ra domar uma megera, que o diga. É caridadetorná-lo conhecido. (Sai.)

CENA II

Page 153: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Diante da casa de Batista, em Pádua.Entram Trânio e Hortênsia.

TRÂNIO — É possível, amigo Lício, queBianca pense em outro além de Lucêncio? Pos-so dizer-vos, senhor, que ela me dá as melhoresesperanças.

HORTÊNSIO — Senhor, para convencer-vos de minhas palavras, mantenhamo-nos delado e observemos como ele dá a lição. (En-tram Bianca e Lucêncio.)

LUCÊNCIO — Então, senhora, estais tendoproveito com vossas lições?

BIANCA — Que estais lendo, mestre?Respondei-me isto em primeiro lugar.

Page 154: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Estou lendo o que professo:a Arte de Amar.

BIANCA — E que possais mostrar-vos, se-nhor, mestre em vossa arte!

LUCÊNCIO — Enquanto vós, doce amada,vos mostrardes a dona de meu coração!

HORTÊNSIO — Vede, rápidos progressos!Dizei-me agora, por favor, se ousaríeis jurarque vossa amada Bianca não ama ninguém tan-to no mundo quanto Lucêncio!

TRÂNIO — Ó despeito amoroso! Ó sexoinconstante!... Tenho que confessar-te, Lício, éincrível.

HORTÊNSIO — Não vos enganeis mais.Não sou Lício, nem músico, como pareço. Souum homem envergonhado de viver com este

Page 155: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

disfarce por uma mulher capaz de trair um ca-valheiro por causa de semelhante poltrão. Ficaisabendo, senhor, que me chamo Hortênsio.

TRÂNIO — Signior Hortênsio, ouvi falarmuitas vezes de vossa viva afeição por Bianca,e como meus olhos são testemunhas de sua le-viandade, quero convosco, se vós o permitis,renunciar a Bianca e a seu amor para sempre.

HORTÊNISIO — Olhai corno se beijam ese acariciam! Signior Lucêncio, eis aqui minhamão, com o firme juramento de jamais cortejá-la, renegando-a como criatura indigna das ho-menagens com que a lisonjeei até agora.

TRÂNIO — E aqui faço o mesmo juramen-to de jamais casar-me com ela, mesmo que meimplorasse! Fora com ela! Vede que ternurasbestiais tem ela com ele!

Page 156: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Quisera que todo o mun-do, menos ele, a abandonasse. Quanto a mim, afim de permanecer fiel a meu juramento, casar-me-ei dentro de três dias com uma rica viúva,que não cessou de amar-me durante o tempoem que amei esta orgulhosa de desdém feroz. Ecom isto, adeus, Signior Lucêncio. Na mulher,é a bondade e não a beleza exterior o que, dehoje em diante, conquistará o meu amor. Des-peço- me de vós, pois, resolvido a levar avanteo que jurei. (Sai.)

TRÂNIO — Senhora Bianca, o céu vos con-ceda toda a felicidade que podem ter os aman-tes felizes! Eu vos surpreendi de repente, lindoamor, e renunciei a vós junto com Hortênsio.

BIANCA — Estais brincando, Trânio. Re-nunciastes ambos a mim?

TRÂNIO — Renunciamos, senhora.

Page 157: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Então, estamos livres de Lí-cio.

TRÂNIO — Juro que sim; arranjou umaquem pensa agora cortejar e casar-se num dia.

BIANCA — Deus lhe dê alegria!

TRÂNIO — Sim, e ele a domará.

BIANCA — Segundo diz ele, Trânio.

TRÂNIO — Por minha fé, ele foi para umaescola onde se aprende a domar.

BIANCA — Uma escola de domador? Co-mo! Existe coisa semelhante?

TRÂNIO — Sim, senhora, e Petruchio é omestre; ele ensina infinitos truques para domaruma megera e encantar a língua de uma faladei-ra. (Entra Biondello.)

Page 158: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Ó senhor, senhor! Estivetanto tempo de espreita que estou exausto; mas,enfim, surpreendi um ancião respeitável des-cendo a colina e que poderá servir-vos.

TRÂNIO — Como é ele, Biondello?

BIONDELLO — Senhor, é um mercador ouum pedagogo, não sei bem ao certo; mas, pelagravidade das roupas que veste, do andar e doaspecto, tem o ar de um pai.

LUCÊNCIO — E que faremos com ele, Trâ-nio?

TRÂNIO — Se for crédulo e der crédito aminha história, ficará honrado em passar porVicêncio e dará a garantia a Batista Minola, co-mo se fora o verdadeiro Vicêncio. Levai vossabem-amada e deixai-me só. (Saem Lucêncio eBianca. Entra um Pedagogo.)

Page 159: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PEDAGOGO — Deus esteja convosco, se-nhor!

TRÂNIO — E convosco também, senhor!Sede bem-vindo. Viajais para mais longe ou es-tais no fim de vossa viagem?

PEDAGOGO — Senhor, encontro-me nofim por uma semana ou duas. Depois, reinicia-rei a viagem até Roma, para tocar, por último,em Trípoli, se Deus me conceder vida.

TRÂNIO — De que país sois vós, por fa-vor?

PEDAGOGO — De Mântua.

TRÂNIO — De Mântua, senhor? Ora, queDeus não permita! E vindes para Pádua sem te-mer por vossa vida?

Page 160: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PEDAGOGO — Minha vida, senhor! Co-mo, por favor? Isto está se tornando sério.

TRÂNIO — Todo habitante de Mântua quevier a Pádua está condenado à morte. Não sa-beis a causa? Vossos navios foram apreendidosem Veneza e o duque (por causa de uma brigaparticular entre vosso duque e ele) mandou pu-blicar e proclamar por toda a parte a dita pena-lidade. É assombroso! Mas, é preciso que sejaisum recém-chegado pois, não fora assim, teríeisouvido à proclamação.

PEDAGOGO — Ai de mim, senhor! Existecoisa ainda pior para mim, porque sou portadorde letras de câmbio de Florença, que devo res-gatar aqui.

TRÂNIO — Bem, senhor; por gentilezaconvosco, vou fazer uma coisa. Eis o que vos

Page 161: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

aconselho... Mas, antes de mais nada, dizei-me:estivestes alguma vez em Pisa?

PEDAGOGO — Sim, senhor, estive em Pi-sa várias vezes. Pisa é afamada pela gravidadede seus cidadãos.

TRÂNIO — Entre eles conheceis um cha-mado Vicêncio?

PEDAGOGO — Não o conheço, mas ouvifalar dele. É um mercador incomparavelmenterico.

TRÂNIO — É meu pai, senhor, e, para dizerverdade, ele é um pouco parecido convosco derosto.

BIONDELLO — (À parte.) Tanto quantouma maçã com uma ostra.

Page 162: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNO — Para salvar-vos a vida nesteapuro, vou fazer-vos um favor e vereis que nãoé mau negócio parecer-se com Vicêncio. To-mareis o nome dele, passareis por ele e sereisamistosamente alojado em minha casa. Procu-rai desempenhar com cuidado vosso papel,entendei-me bem, senhor. Deste modo, pode-reis permanecer na cidade até o fim de vossosnegócios. Se isto puder ser-vos agradável, acei-tai minha oferta, senhor.

PEDAGOGO — Ó senhor, aceito. E semprevos considerarei como salvador de minha vidae de minha liberdade.

TRÂNIO — Vinde então comigo para pôra coisa em execução. A este respeito, devoprevenir-vos que meu pai é esperado aqui deum dia para outro, a fim de firmar um contratode matrimônio. Vou casar-me com a filha deum certo Batista. Vou colocar-vos a par de to-

Page 163: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

das estas circunstâncias. Acompanhai-me paravestir-vos como convém. (Saem.)

CENA III

Sala na casa de Petruchio.Entram Catarina e Grúmio.

GRÚMIO — Não, não, deveras,não ousarei,por minha vida!

CATARINA — Quanto pior me trata, maisfinge gostar de mim. Casou-se comigo parafazer-me morrer de fome? Os mendigos quepedem na porta de meu pai só precisam esten-der a mão para receberem a esmola. Se não lhesé dada, encontram a caridade noutra parte. Maseu, que nunca pedi nada, que jamais tive neces-

Page 164: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

sidade de nada, estou com fome por falta de ali-mentos e estonteada por falta de sono. Os pra-guejamentos me mantêm acordada e o barulhosubstitui a comida. E o que me mortifica maisainda que todas essas privações, é que ele faztudo isso pretextando um perfeito amor. Poder-se-ia dizer, ao ouvi-lo, que a alimentação ouo sono me causarão urna enfermidade mortalou uma morte imediata. Por favor, vai buscar-me alguma coisa para comer; não me importao que seja, desde que seja um alimento que mefaça bem.

GRÚMIO — Que diríeis de uma pata de va-ca?

CATARINA — É excelente. Traze-me a pa-ta, por favor.

Page 165: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Temo que seja uma carne mui-to irritante. Que diríeis de uma dobradinha bemgorda, finamente assada na grelha?

CATARINA — Gosto muito. Vai buscá-la,bondoso Grúmio.

GRÚMIO— Estou em dúvida. Tenho medode que seja, também, irritante. Que achais deum pedaço de carne de vaca com mostarda?

CATARINA — É um prato com que gostode alimentar-me.

GRÚMIO — Sim, mas a mostarda é umpouco quente demais.

CATARINA — Então, o pedaço de carne edeixa a mostarda.

Page 166: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Não, assim não. Tereis a mos-tarda ou, então, não recebereis o bife de Grú-mio.

CATARINA — Então, as duas coisas, ouuma sem a outra, ou o que quiseres.

GRÚMIO — Então, seja! A mostarda sem acarne de vaca.

CATARINA — Anda! Sai daqui, traidor!(Bate me Grúmio.) Tu só me alimentas com onome dos pratos! Desgraça para ti e para toda amalta que triunfa assim de minha desgraça! Va-mos, vai andando, estou dizendo! (Entram Pe-truchio e Hortênsio trazendo um prato de car-ne).

PETRUCHIO — Como está, minha Catita?Como, minha querida, muito abatida?

Page 167: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Como estais passando, mi-nha senhora?

CATARINA — Juro que com tanto frioquanto seja possível.

PETRUCHIO — Cria ânimo e olha-me ale-gremente. Toma, meu amor. Estás vendo comoestou cheio de atenções. Eu mesmo prepareitua comida e estou aqui com ela. Estou certo,querida Catita, de que tanta bondade mereceagradecimento. Como! Nem uma palavra? Ah!Estou vendo então que não gostas disto e tivetanto trabalho em pura perda. Levai este pratodaqui!

CATARINA — Por favor, deixai-o ficar.

PETRUCHIO — O serviço mais insignifi-cante merece um agradecimento. Por conse-guinte, só tocareis no prato se me agradecerdes.

Page 168: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Muito obrigada, senhor.

HORTÊNSIO — Signior Petruchio, que éisto? Isto não se faz! Vinde, Senhora Catarina,eu vos farei companhia.

PETRUCHIO — (À parte.) Come tudo,Hortênsio, se gostas de mim. Que este pratopossa fazer muito bem a teu gentil coração! Ca-tita, come depressa... E depois, meu queridoamor, voltaremos para a casa de teu pai. Vaisvestir-te elegantemente com vestidos de seda,chapéus, anéis de ouro, golas de folhos, pu-nhos, anquinhas, e outras coisas mais, juntocom charpas, leques, guarnições sobressalen-tes, bem como braceletes de âmbar, colares eoutras bagatelas mais. Então, já jantaste? O al-faiate está à tua disposição para adornar teucorpo com o tesouro de suas mais ricas fazen-das. (Entra um Alfaiate.) Aproximai-vos, alfai-ate, e deixai-nos ver estes enfeites. Mostrai o

Page 169: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

vestido. (Entra um Mascate.) Que trazeis denovo, senhor?

MASCATE — Trouxe o gorro que VossaSenhoria encomendou.

PETRUCHIO — Como! Isto foi moldadonuma gamela! Um prato de veludo! Tira daqui!Tira daqui! É inconveniente e escandaloso! Pa-rece uma concha ou uma casca de noz, uma ba-gatela, um brinquedo, um logro, uma touca decriança. Tirai-o daqui, vamos, e trazei-me ummaior.

CATARINA — Não quero maior. Este estána moda e assim estão usando as damas elegan-tes.

PETRUCHIO — Quando fordes delicada,tereis um igual; mas, não antes48.

Page 170: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — (À parte.) Não será tão ce-do.

CATARINA — Sabei, senhor, se posso tera liberdade de falar e quero falar, que não soucriança, nem bebê. Pessoas melhores que vósaguentaram minha franqueza; e se não quiser-des suportá-la, é melhor que fecheis os ouvi-dos. Minha língua exprimirá o ressentimentode meu coração ou, se a prendesse, meu peitoarrebentaria e, antes que isto suceda, quero serlivre e falar como quiser.

PETRUCHIO — Como! Estás dizendo averdade. Este gorro é horrível, uma crosta decreme, uma quinquilharia, uma torta de seda.Gosto tanto de ti que não posso ver-te com isto.

CATARINA — Gostes ou não de mim, eugosto do gorro e ficarei com este ou com ne-nhum outro. (Sai o Mascate.)

Page 171: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Teu vestido? Ah! Sim.Vinde, alfaiate; deixai-nos vê-lo. Misericórdia,meu Deus! Que fantasia é esta? Que é isto?Uma manga? Parece uma bombarda. Como!Cortado de cima para baixo como uma tortade maçãs? Aqui está cortado e recortado, no-vamente cortado, talhado, e retalhado. Pareceestufa de barbearia! Vai para o diabo, alfaiate!Que nome dás a isto?

HORTÊNSIO — (À parte.) Estou vendoque não terá nem gorro nem vestido.

ALFAIATE — Vós me encomendastes queo fizesse cuidadosamente na moda.

PETRUCHIO — Sim, é verdade! Mas, sevos lembrais, não vos disse que o estragasse deacordo com a moda do dia. Vamos, saltai- metodos os regatos, para que não seja obrigadoa fazer-vos pular, senhor, corno costumo. Não

Page 172: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

quero nada disto. Fora daqui! Fazei o que me-lhor vos pareça.

CATARINA — Nunca vi vestido mais bem-feito, mais elegante, mais agradável, nem maisperfeito. Parece que quereis fazer de mim umaboneca.

PETRUCHIO — Essa é a verdade. Ele que-ria fazer de ti uma boneca.

ALFAIATE — Ela diz que Vossa Senhoriapretende fazer dela uma boneca.

PETRUCHIO — Ó monstruosa arrogância!Mentes, linha, dedal, jarda, três quartos, meta-de, quarto de jarda, unha49, pulga, lêndea, grilodo inverno! Deixar-me-ei intimidar em minhaprópria casa por uma meada de linha? Para trás,farrapo, retalho, sobra, ou vou medir-te com tuajarda, de maneira que não esqueças jamais em

Page 173: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

tua vida teus mexericos! Repito-te que tu estra-gaste o vestido.

ALFAIATE — Vossa Senhoria está engana-do. O vestido foi feito exatamente como orde-nou meu patrão. Grúmio deu a ordem de comodeveria ser feito.

GRÚMIO — Eu não lhe dei ordem; eu lhedei o pano.

ALFAIATE — Mas, como desejáveis queele fosse feito?

GRÚMIO — Ora, senhor, com agulha e li-nha.

ALFAIATE — Mas, não pedistes que elefosse cortado?

GRÚMIO — Mediste muitas coisas.

Page 174: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ALFAIATE — É verdade.

GRÚMIO — Não me meças. Fizeste muitoshomens soberbos; não te faças de soberbo co-migo. Não quero que me meçam, nem que meenfrentem. Digo-te na cara. Encarreguei teu pa-trão de cortar o vestido, mas não que o cortasseem peças. Ergo, tu mentes.

ALFAIATE — Ora, aqui está a nota do fei-tio. Ela servirá de testemunha.

PETRUCHIO — Lê-a.

GRÚMIO — A nota mente pela boca dele,se ela disser que eu disse isso.

ALFAIATE — (Lê.) “imprimis, um vestidocom blusa larga.”

GRÚMIO — Patrão, se algum dia eu disseum vestido com blusa larga que me cosam nas

Page 175: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

saias e que me batam até a morte com uma me-ada de linha marrom. Eu disse um vestido.

PETRUCHIO — Continua.

ALFAIATE — (Lê.) “Com um pequeno ca-beção arredondado.”

GRÚMIO — Confesso o cabeção.

ALFAIATE — (Lê.) “Com uma manga lar-ga.”

GRÚMIO — Confesso duas mangas.

ALFAIATE — (Lê.) “As mangas cuidado-samente cortadas.”

PETRUCHIO — Sim, aí está a vilania

GRÚMIO — O erra é da nota, senhor; o erroé da nota. Eu mandei que as mangas fossem

Page 176: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

cortadas e logo cosidas. Eu te provarei, emborateu dedo mínimo esteja armado com um dedal.

ALFAIATE — É verdade o que estou dizen-do e se estivesses em outro lugar, tu já te recor-darias.

GRÚMIO — Estou à tua disposição. Apa-nha a nota, dá-me tua jarda e não me poupem.

HORTÊNSIO — Deus vos proteja, Grúmio!Assim, ele não terá vantagem.

PETRUCHIO — Bem, senhor, em poucaspalavras: o vestido não é para mim.

GRÚMIO — Tendes razão, senhor; é paraminha patroa.

PETRUCHIO — Vamos, e guarda-o parauso de teu patrão.

Page 177: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÚMIO — Vilão, de maneira alguma! Portua vida! Levar o vestido de minha patroa parauso de teu patrão!

PETRUCHIO — Que é isto, senhor? Quepretendes dizer com isso?

GRÚMIO — Ó senhor, a opinião é maisprofunda do que supondes. Levar o vestido deminha patroa para uso de meu patrão! Oh! Fo-ra, fora, fora!

PETRUCHIO — (À parte.) Hortênsio, falaque pagarás ao alfaiate. Sai daqui, anda e nemuma palavra mais.

HORTÊNSIO — Alfaiate, eu te pagarei ovestido amanhã. Não leves a mal estas palavrasimpetuosas. Vai-te, estou mandando! Meuscumprimentos a teu patrão. (Sai o Alfaiate.)

Page 178: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Bem, vinde minha Cata-rina, iremos para casa de vosso pai com estestrajes simples e decentes. Nossas bolsas estãocheias, pobres, nossas roupas. É a alma que en-riquece o corpo. Assim, como o sol rompe atra-vés das nuvens mais escuras, assim a honra as-soma através da roupa mais pobre. Por acaso, ogaio é mais precioso do que a cotovia, porquesuas penas são mais belas? Ou a víbora valemais do que a enguia, porque as cores de suapele agradam à vista? Oh! não, boa Catita!Nem tu perderás nada de teu valor só porque te-nhas estes pobres aprestos e um traje simples.Se te sentes envergonhada, atira a culpa emmim. E, assim, mostra-te alegre. Vamos partirpara festejarmos e divertir-nos em casa de teupai. Vai, chama meus criados e partamos ime-diatamente; levem nossos cavalos para a extre-midade do beco largo. Lá montaremos e até ládaremos um passeio a pé. Vejamos. Creio que

Page 179: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

já devem ser sete horas e bem poderemos che-gar na hora do jantar.

CATARINA — Ouso garantir-vos, senhor,de que são quase duas horas. Não chegaremosa tempo para a ceia.

PETRUCHIO — Serão sete horas antes quemonte a cavalo. Vede, aquilo que falo, faço oupenso fazer, estais sempre me contradizendo.Senhores, deixai-nos sós. Não partirei hoje e,quando partir, será na hora que houver dito.

HORTÊNSIO — Ora, este galanteador quermandar até no sol. (Saem.)

CENA IV

Diante da casa de Batista, em Pádua.

Page 180: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Entram Trânio e o Pedagogo vestido comoVicêncio.

TRÂNIO — Senhor, aqui está a casa. Que-reis que eu toque?

PEDAGOGO — Sim, que mais? A não serque me engane, o Signior Batista deverecordar-se haver-me visto há perto de vinteanos atrás em Gênova, onde estávamos aloja-dos na estalagem do Pégaso.

TRÂNIO — Está bem; guardai, em todo ca-so, aquela gravidade que convém a um pai.

PEDAGOGO — Eu vos garanto... (EntraBiondello.) Mas, senhor, está chegando vossopajem. Seria bom que lhe déssemos a lição.

Page 181: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNO — Não vos preocupeis com ele.Biondello, chegou o momento de cumprir vos-so dever, estou vos advertindo. Imaginai queseja o verdadeiro Vicêncio.

BIONDELLO — Basta! Não temais pormim.

TRÂNIO — Deste o recado a Batista?

BIONDELLO — Disse-lhe que vosso paiestava em Veneza, e que vós o esperáveis, hoje,em Pádua.

TRÂNIO — És um ótimo rapaz! Toma istopara tomar uma bebida. Está chegando Batista.Prestai atenção à vossa fisionomia, senhor.(Entram Batista e Lucêncio.) Signior Batista,que prazer encontrar-vos! (Ao Pedagogo.) Se-nhor, este do cavalheiro de quem vos falei.

Page 182: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Suplico-vos, mostrai-vos agora bom pai paramim, dai- me Bianca por matrimônio.

PEDAGOGO — Calma, meu filho! Senhor,com vossa permissão. Tendo vindo a Pádua pa-ra cobrar algumas dividas, meu filho Lucên-cio me pôs ao corrente de um caso importantede amor entre vossa filha e ele mesmo. Assim(em virtude das boas informações que de vósme deram e do amor que sente por vossa filhae ela por ele), a fim de não o fazer esperarmuito tempo, ficaria encantado, devido à mi-nha solicitude paternal, se pudera vê-lo casado.E se vós não encontrais mais impedimentosdo que eu, senhor, depois de havermos combi-nado, achar-me-eis voluntariamente disposto aaceitar este enlace; porque, Signior Batista, nãoposso ser escrupuloso convosco, de quem tãobem ouvi falar.

Page 183: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Senhor, perdoai-me pelo quevou dizer-vos. Vossa franqueza e vossa conci-são muito me agradam. É perfeitamente ver-dade que vosso filho Lucêncio, aqui presente,ama minha filha e que é amado por ela, ou am-bos dissimulam perfeitamente seus sentimen-tos. Sendo assim, se prometerdes portar-vos co-mo um pai com vosso filho e assegurar a minhafilha uma pensão suficiente quando ficar viúva,o casamento está resolvido e tudo concluído.Vosso filho terá minha filha com meu consenti-mento.

TRÂNIO — Muito obrigado, senhor. Ondedesejais, então, que se verifiquem os esponsaise que o contrato seja redigido de acordo com asconvenções de ambas as partes?

BATISTA — Não em minha casa, Lucêncio,pois, como sabeis, as paredes têm ouvidos, e te-nho muitos criados. Além disto, o velho Grê-

Page 184: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

mio continua sempre de alcateia e poderia serque fôssemos interrompidos.

TRÂNIO— Então, será em meu alojamento,se bem vos parecer. Lá mora meu pai e lá estanoite terminaremos o assunto particular e co-modamente. Mandai buscar vossa filha peloservidor que vos acompanha. Meu pajem iráimediatamente à cata do escrivão. O único in-conveniente é que, não estando ninguém preve-nido, ides ter pitança pobre e pouco abundante.

BATISTA — Vossa proposta me agrada. Bi-ondello, correi a minha casa e dizei a Biancaque se prepare rapidamente. E, se quiserdes,contai-lhe o que aconteceu, isto é, que o pai deLucêncio chegou a Pádua e que, provavelmen-te, será a esposa de Lucêncio.

BIONDELLO — Imploro aos deuses de to-do o meu coração que ela o seja.

Page 185: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

TRÂNIO — Não brinques com os deusese parte. (Sai Biondello.) Signior Batista, possomostrar-vos o caminho. Sois bem-vindo, masum só prato será sem dúvida vosso ágape. Va-mos, senhor. As coisas serão melhores em Pisa.

BATISTA — Estou-vos seguindo. (SaemTrânio, o Pedagogo e Batista. Volta Biondel-lo.)

BIONDELLO — Câmbio!

LUCÊNCIO — Que dizes, Biondello?

BIONDELLO — Vistes meu patrão piscar oolho e rir para vós?

LUCÊNCIO — Que quis dizer com isso, Bi-ondello?

Page 186: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Nada, juro; mas, deixou-me aqui para interpretar o sentido e a moral deseus sinais e gestos.

LUCÊNCIO — Por favor, vejamos a mora-lidade deles.

BIONDELLO — Ei-la. Batista está em lu-gar seguro, conversando com o pai falso de umfilho falso.

LUCÊNCIO — E depois?

BIONDELLO — A filha dele deve ser porvós levada à ceia.

LUCÊNCIO — E então?

BIONDELLO — O velho sacerdote da igre-ja de São Lucas está a vosso serviço em todasas horas.

Page 187: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — E o fim de tudo isto?

BIONDELLO — Não posso dizer mais na-da, a não ser que estejam agora ocupados re-digindo um contrato falso. Assegurai-vos dela,cum privilegio ad imprimendum solum50. Va-mos para a igreja! Pegai um sacerdote, um sa-cristão e algumas testemunhas suficientementehonestas. Se não é esta a ocasião que desejais,nada mais tenho a dizer-vos que vos aconselhara dar adeus a Bianca para a eternidade e um dia.

LUCÊNCIO — Estás me escutando, Bion-dello?

BIONDELLO — Não tenho mais tempo aperder. Conheci uma jovem que se casou numatarde, quando foi à horta apanhar salsa para re-chear um coelho. Vós podeis fazer outro tanto.E com isto, adeus, senhor. Meu patrão me man-dou ir a São Lucas dizer ao padre que esteja

Page 188: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

pronto para vir, assim que chegueis com vossoapêndice. (Sai.)

LUCÊNCIO — Posso e quero tudo isso, seela aceitar. Ela ficará encantada; por que entãosupor o contrário? Suceda o que suceder, vouabordá-la resolutamente. As coisas irão mal, seCâmbio voltar sem ela. (Sai.)

CENA V

Urna estrada.Entram Petruchio, Catarina, Hortênsio e

Criados.

PETRUCHIO — Vamos, em nome de Deus!Coloquemo-nos novamente a caminho da casa

Page 189: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

de nosso pai... Bom Deus! Como a lua brilhaclara e serena!

CATARINA — A lua! É o sol. Não há luaragora.

PETRUCHIO — Estou dizendo que é a luaque está brilhando tão claro.

CATARINA — Eu sei que é o sol que estábrilhando tão claro.

PETRUCHIO — Ah! Pelo filho de minhamãe, ou seja, eu mesmo, será a lua ou uma es-trela ou o que resolver, antes que continue mi-nha viagem para casa de vosso pai. Vamos! Le-vem nossos cavalos de volta! Sempre contradi-zendo e contradizendo! Não faz outra coisa se-não contradizer!

Page 190: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Dizei o que ele diz, oununca sairemos daqui.

CATARINA — Prossigamos nosso cami-nho, por favor, já que viemos de tão longe. Queseja a lua ou o sol, ou o que desejardes. Se qui-serdes chamar uma lamparina de sol, juro quenão será outra coisa para mim.

PETRUCHIO — Estou dizendo que é a lua.

CATARINA — Reconheço que seja a lua.

PETRUCHIO — Então, estais mentindo! Éo sol bendito!

CATARINA — Então, bendito seja Deus! Éo bendito sol! E não será o sol se disserdes quenão seja, e a lua mudará ao sabor de vossa von-tade. É, portanto, o que quiserdes que seja, as-sim será para Catarina.

Page 191: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Petruchio, segue teu cami-nho. Conquistaste o campo de batalha.

PETRUCHIO — Bem, adiante! Adiante!Assim a bola deve rolar, sem se deixar infor-tunadamente ir de encontro ao obstáculo! Mas,atenção! Aproxima-se alguém. (Entra Vicên-cio. Dirigindo-se a Vicêncio.) Bom dia, gentilsenhora. Para onde estais indo? Dize-me, doceCatarina, dize-me francamente, viste algumadama mais viçosa? Que batalha de branco evermelho se trava em suas faces! Que estrelasbrilham no céu com tanta beleza, como essesdois olhos enfeitam essa face celestial? Lindae encantadora donzela, mais uma vez bom dia!Suave Catarina, abraça-a em consideração atanta beleza.

HORTÊNSIO — Vai fazer o homem ficarlouco, querendo transformá-lo em mulher.

Page 192: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Jovem virgem em botão, be-la, viçosa e doce rosa, aonde vais? Ou onde re-sides? Felizes pais que têm como filha tão be-la jovem! Mais feliz o homem a quem as estre-las propícias te destinam para terna companhei-ra de leito!

PETRUCHIO — Então, que é isto, Catita?Espero que não estejas louca. É um homem, an-cião, enrugado, definhado, descarnado, e nãouma donzela como dizes.

CATARINA — Perdoa-me, velho pai, o en-gano de meus olhos. De tal maneira o sol osdeslumbrou que tudo aquilo que vejo me pare-ce verde. Percebo, agora, que és um venerávelancião. Perdoa- me, peço-te, meu louco enga-no.

PETRUCHIO — Perdoa-a, bondoso avô, edize-nos que caminho segues; se é o mesmo

Page 193: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

que o nosso, gostaremos muito de ir em tuacompanhia.

VICÊNCIO — Bom senhor e vós, minhaalegre dama, cujo estranho encontro tanto mesurpreendeu, meu nome é Vicêncio. Minha re-sidência é em Pisa e estou me dirigindo a Pá-dua, para visitar um filho meu, de quem hátempos não possuo notícias.

PETRUCHIO — Como se chama ele?

VICÊNCIO — Lucêncio, gentil senhor.

PETRUCHIO — O encontro é feliz, princi-palmente para teu filho. A lei, bem como tuaidade venerável, me permitem chamar-te de paibem-amado. Teu filho se casou com a irmã deminha mulher, esta dama que aqui vês. Não fi-ques assombrado nem triste; ela é de boa repu-tação, ricamente dotada, e de nascimento dig-

Page 194: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

no; além do mais, possuidora de tais qualidadesque seria merecedora do mais nobre gentil-ho-mem. Abracemo-nos, velho Vicêncio, e prossi-gamos juntos a viagem para vermos teu honra-do filho; tua chegada vai enchê-lo de alegria.

VICÊNCIO — Mas, isto é verdade? Ou es-tais brincando, como fazem certos viajantes en-graçados, quando encontram outros caminhan-tes?

HORTÊNSIO — Garanto-te, ancião, que éperfeitamente verdade.

PETRUCHIO — Vamos, vem conosco paraconvencer-te por ti mesmo. Nossa primeirabrincadeira fez com que ficasses desconfiado.(Saem todos, menos Hortênsia)

HORTÊNSIO — Bem, Petruchio! Isso meinfundiu ânimo! Vou atrás de minha viúva; e

Page 195: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

se estiver intratável, tu ensinaste a Hortênsio anão deixar-se dominar. (Sai.)

Page 196: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

ATO V

CENA I

Diante da casa de Lucêncio, em Pádua.Grêmio anda na frente da cena. Entram por

trás Biondello,Lucêncio e Bianca.

BIONDELLO — Calma e rapidamente, se-nhor, pois o padre está pronto.

Page 197: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Vou voando, Biondello;mas, podem ter necessidade de ti lá em casa.Assim, deixa-nos.

BIONDELLO — Não, juro. Quero ver aigreja em cima de vós, e, então, voltarei parabuscar meu patrão com toda a pressa possível.(Saem Lucêncio, Bianca e Biondello.)

GRÊMIO — Sinto-me admirado que Câm-bio ainda não haja chegado. (Entram Petru-chio, Catarina, Vicêncio, Grúmio, seguidos pe-los Criados.)

PETRUCHIO — Senhor, aqui está a porta,esta é a casa de Lucêncio. A de meu pai ficamais longe, na direção da praça do mercado.Preciso continuar meu caminho e aqui vos dei-xo, senhor.

Page 198: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

VICÊNCIO — Vós não recusareis beber co-migo alguma coisa, antes de partirdes. Creiopoder assegurar-vos aqui um bom acolhimento,e, segundo toda aparência, encontraremos boamesa. (Bate na porta.)

GRÊMIO — Estão ocupados lá dentro. Se-ria melhor que batêsseis mais forte. (O Peda-gogo aparece na janela.)

PEDAGOGO — Quem está batendo comose quisera derrubar a porta?

VICÊNCIO — O Signior Lucêncio está emcasa, senhor?

PEDAGOGO — Está em casa, senhor, masnão é possível falar com ele.

VICÊNCIO — Mesmo se alguém lhe trou-xesse cem ou duzentas libras para divertir-se?

Page 199: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PEDAGOGO — Guardai essas cem libraspara vós. Não lhe farão falta enquanto eu viver.

PETRUCHIO — Vedes? Já vos dizia quevosso filho era muito estimado em Pádua. Es-tais me ouvindo, senhor? Para acabar com cir-cunlóquios fúteis, peço-vos que digais ao Sig-nior Lucêncio que o pai dele acaba de chegarde Pisa e está aqui na porta para falar-lhe.

PEDAGOGO — Estás mentindo. O pai delejá chegou de Pádua51 e é ele quem está olhandona janela.

VICÊNCIO — És pai dele?

PEDAGOGO — Sim, senhor; assim diz amãe dele, se posso acreditar nela.

Page 200: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — (A Vicêncio.) Ora, que mediz agora o cavalheiro? Não sabeis que é urnabaixa ação tomar o nome de outra pessoa?

PEDAGOGO — Prendei o vilão! Suspeitode que deseja enganar alguém desta cidade, en-coberto por meu nome! (Volta Biondello.)

BIONDELLO — Eu os vi juntos na igreja.Deus os conduza a bom porto! Mas, quem estáaqui? Meu velho patrão Vicêncio! Estamos per-didos e reduzidos a nada!

VICÊNCIO — (Notando Biondello.) Vemcá, bandido!

BIONDELLO — Creio que possa fazer oque quiser, senhor.

VICÊNCIO — Vem cá, tratante! Já te es-queceste de mim?

Page 201: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Esquecer de vós? Não, se-nhor. Não posso esquecer-me de vós, porquenunca vos vi em toda minha vida.

VICÊNCIO — Como! Terrível velhaco,nunca viste Vicêncio, pai de teu patrão?

BIONDELLO — Quem? Meu velho, meuvenerável velho patrão? Sim, sem dúvida, se-nhor. Ali está ele olhando na janela.

VICÊNCIO — Ah! É assim? (Bate em Bi-ondello.)

BIONDELLO — Socorro, socorro, socorro!Aqui está um louco que deseja matar-me! (Sai.)

PEDAGOGO — Socorro, meu filho! Socor-ro, Signior Batista! (Sai da janela.)

PETRUCHIO — Peço-te, Catarina, fique-mos de lado, para vermos o final desta con-

Page 202: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

trovérsia. (Saem. Volta o Pedagogo, embaixo,seguem-no Trânio, Batista e Criados.)

TRÂNIO — Senhor, quem sois vós que ou-sais bater em meu servidor?

VICÊNCIO — Quem sou eu, senhor? Ora,quem sois vós, senhor? Ó deuses imortais! Ólindo vilão! Um gibão de seda! Calções de ve-ludo! Manto escarlate e chapéu pontudo!... Es-tou arruinado! Estou arruinado! Enquanto re-presento em casa o papel de pai econômico,meu filho e meu empregado gastam tudo nauniversidade.

TRÂNIO — E agora? Que aconteceu?

BATISTA — Que é isto? Estará lunático?

TRÂNIO — Senhor, tendes todo o aspectode um cavalheiro idoso, sensato e respeitável,

Page 203: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

mas vossas palavras parecem as de um louco.Por que, senhor, tendes que ver se eu uso ouroou pérola? Graças a meu bom pai, possopermitir-me este luxo.

VICÊNCIO — Teu pai! Ó patife! Teu pai éveleiro em Bérgamo!

BATISTA — Estais enganado, senhor, estaisenganado. Por favor, como pensais que ele sechama?

VICÊNCIO — O nome dele! Como se nãoo conhecesse! Eu o eduquei desde os três anosde idade e o nome dele é Trânio.

PEDAGOGO — Fora, fora, asno louco! Elese chama Lucêncio! É meu filho único e her-deiro de todos os bens que tenho eu, Signior Vi-cêncio.

Page 204: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

VICÊNCIO — Lucêncio! Oh! Assassinou opatrão! Prendei-o, ordeno-vos, em nome do du-que! Ó meu filho, meu filho! Dize-me, bandi-do, onde está meu filho Lucêncio?

TRÂNIO — Mandem chamar um guarda.(Entra um Criado com um Guarda.) Levai estelouco para a prisão! Pai Batista, encarrego-vosde tomar conta para ver se ele será preso.

VICÊNCIO — Levar-me para a prisão!

GRÊMIO — Ficai, guarda; ele não irá paraa prisão.

BATISTA — Calai-vos, Signior Grêmio.Estou dizendo que irá para a prisão.

GRÊMIO — Cuidado, Signior Batista, nãovos deixeis enganar neste negócio. Atrevo-me

Page 205: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

a jurar que este homem é o verdadeiro Vicên-cio.

PEDAGOGO — Jura, se ousas.

GRÊMIO — Não, eu não o ouso jurar.

TRÂNIO — Então, farias melhor dizendoque não sou Lucêncio.

GRÊMIO — Sim, reconheço que sejas oSignior Lucêncio.

BATISTA — Fora com este velho caduco!Levem-no para a prisão!

VICÊNCIO — É assim que se maltratam einsultam os estrangeiros!... Ó monstruoso pa-tife! (Voltam com Biondello, Lucêncio e Bian-ca.)

Page 206: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Oh! Estamos perdidos!Olhai, está ali! Negai, fingi não reconhecê-lo,ou do contrário, estamos arruinados!

LUCÊNCIO — (Ajoelhando-se.) Perdoai-me, bondoso pai.

VICÊNCIO — Meu amado filho está vivo!(Saem, correndo o mais depressa que puderem,Biondello, Trânio e o Pedagogo.)

BIANCA — Perdão, querido pai.

BATISTA — Que fizeste para ofendê-lo?Onde está Lucêncio?

LUCÊNCIO — Aqui está Lucêncio, verda-deiro filho de Vicêncio, que acaba de casar-secom tua filha, enquanto personagens falsos en-ganavam teus olhos.

Page 207: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

GRÊMIO — Era uma intriga deliberada pa-ra enganar-nos a todos!

VICÊNCIO — Onde está o maldito Trânio,que se atreveu a insultar-me cara a cara comtanta insolência?

BATISTA — Como! Dizei-me, este não émeu criado Câmbio?

BIANCA — Câmbio virou Lucêncio.

LUCÊNCIO — Foi o amor que operou estesmilagres. Por amor de Bianca, troquei de per-sonalidade com Trânio, enquanto ele se faziapassar por mim na cidade. E assim cheguei fe-lizmente ao porto desejado de minha ventura.Trânio nada mais fez do que obedecer minhasordens. Perdoai-o, pois, querido pai, pelo amorque me tendes.

Page 208: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

VICÊNCIO — Quebrarei o nariz do vilãoque pretender levar- me para a prisão.

BATISTA — Mas, dizei-me, senhor, casas-tes com minha filha sem pedir meu consenti-mento?

VICÊNCIO — Nada temais, Batista; fare-mos com que fiqueis satisfeito. Mas quero en-trar para vingar-me desta vilania. (Sai.)

BATISTA — E, eu, para esclarecer a fundoesta velhacaria. (Sai.)

LUCÊNCIO — Não empalideças, Bianca.Teu pai não ficará zangado! (Saem Lucêncio eBianca.)

GRÊMIO — Estou derrotado; não tenhomais esperança, a não ser de ainda conseguirum lugar no banquete52. (Sai.)

Page 209: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Vamos segui-los, meu mari-do, para ver o fim desta complicação.

PETRUCHIO — Beija-me, primeiro, Cati-ta, e eu consentirei.

CATARINA — Como! No meio da rua?

PETRUCHIO — Ora esta! Estás com ver-gonha de mim?

CATARINA — Não, senhor, Deus me livre.Estou envergonhada de beijar-vos.

PETRUCHIO — Ora, então voltemos paracasa novamente. Vamos, rapaz, voltemos.

CATARINA — Não, vou dar-te um beijo.Agora, rogo-te, amor, que fiques.

Page 210: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Não é bom? Vamos, mi-nha encantadora Catita. Mais vale tarde quenunca, pois, jamais é tarde demais. (Saem.)

CENA II

Casa de Lucêncio, em Pádua.Entram Batista, Vicêncio, Grêmio, o Peda-

gogo,Lucêncio, Bianca, Petruchio, Catarina,

Hortênsioa Viúva, Trânio, Biondello e Grúmio. Cria-

dos, dirigidospor Trânio, servem o banquete.

LUCÊNCIO — Enfim, depois de nossoslongos desacordos, estamos em harmonia. É omomento, terminada a guerra furiosa, de sor-

Page 211: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

rir aos perigos passados. Minha bela Bianca, dáas boas-vindas a meu pai, enquanto expressoa mesma ternura ao teu. Irmão Petruchio, irmãCatarina e tu, Hortênsio, assim como tua amadaviúva, banqueteai-vos o melhor que puderdese sede bem-vindos a minha casa. Este jantarvai acabar com nosso apetite, depois de nossogrande festim. Sentai-vos, por favor, não só pa-ra conversar como para comer.

PETRUCHIO — Sim, para mesa! Para me-sa! Mas, para comer, só para comer!

BATISTA — Pádua fornece todas estas do-çuras, meu filho Petruchio.

PETRUCHIO — Pádua só brinda com aqui-lo que seja adorável.

HORTÊNSIO — Desejaria, para nós ambos,que essas palavras fossem verdadeiras.

Page 212: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Por minha vida! Hortênsiotem medo da viúva!

VIÚVA — Então, não confieis jamais emmim, se inspirar medo.

PETRUCHIO — Sois muito sensata e, con-tudo, não compreendeis o sentido de minhaspalavras. Quero dizer que Hortênsio tem medode vós.

VIÚVA — Quem é tonto pensa que o mun-do gira ao redor.

PETRUCHIO — Bem respondido.

CATARINA — Senhora, que quereis dizercom isso?

VIÚVA — É que, graças a ele, concebo...

Page 213: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Concebeis graças amim?... Que pensará Hortênsio?

HORTÊNSIO — Minha viúva diz que é as-sim que ela concebe a explicação da frase.

PETRUCHIO — Muito bem emendado...Beijai-o pela resposta, boa viúva!

CATARINA — Quem é tonto pensa que omundo gira ao redor? Gostaria que me expli-cásseis o que entendeis por essas palavras.

VIÚVA — Vosso marido, importunado poruma megera, mede as penas de meu marido pe-las suas. Agora, sabeis o que quero dizer.

CATARINA — Uma opinião bem baixa.

VIÚVA — Isto mesmo, referia-me a vós.

Page 214: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

CATARINA — Segundo vossa opinião, souentão baixa.

PETRUCHIO — A ela, Catita!

HORTÊNSIO — A ela, viúva!

PETRUCHIO — Aposto cem marcos comominha Catita a derrotará!

HORTÊNSIO — Aqui entro em função.

PETRUCHIO — Fala como um funcioná-rio! A tua saúde, camarada! (Bebe à saúde deHortênsio.)

BATISTA — Que pensa Grêmio deste assal-to de sutilezas?

GRÊMIO — Acreditai-me, senhor, dãomarradas juntos muito bem.

Page 215: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIANCA — Cabeça e marrada! Uma pes-soa de réplica pronta diria que, para dar marra-das, é preciso, como vós, possuir cornos.

VICÊNCIO — Sim, senhora recém-casada,isto vos fez acordar?

BIANCA — Sim, mas não me inquietou.Assim, vou dormir de novo.

PETRUCHIO — Não durmais, não. Vistoque despertastes, vou atirar-vos uma ou duasflechas agudas.

BIANCA — Sou vosso pássaro? Vou mudarde moita, e então persegui-me com vosso arco.Sede todos bem-vindos! (Saem Bianca, Catari-na e a Viúva.)

PETRUCHIO — Ela me evitou! Eis aqui,Signior Trânio, o pássaro para quem estivestes

Page 216: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

visando sem poder atingir! Vamos, bebo à saú-de de todos os atiradores infelizes!

TRÂNIO — Ó senhor! Lucêncio me soltoucomo um galgo que acossa a caça, mas só a en-trega ao dono.

PETRUCHIO — Boa e rápida comparação,mas cheirando a canil.

TRÂNIO — Fizestes bem, senhor, de caçarpara vós mesmo. Dizem que vossa corça vosencurrala.

BATISTA — Oh! Oh! Petruchio, agora éTrânio que acerta em vós.

LUCÊNCIO — Obrigado pelo teu sarcas-mo, bom Trânio.

HORTÊNSIO — Confessai, confessai, elenão vos acertou em cheio?

Page 217: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

PETRUCHIO — Confesso que passou deraspão, mas, como o tiro ricocheteou, apostareidez contra um que ele atingiu vós ambos.

BATISTA — Falando agora sério, filho Pe-truchio, acho que tens a mais geniosa de todos.

PETRUCHIO — Pois eu digo que não; e pa-ra provar o que digo, cada um mande chamarsua esposa e aquela que for mais obediente evenha em primeiro lugar, ganhará a aposta quetenhamos estabelecido.

HORTÊNSIO — Concordo. Quanto aposta-remos?

LUCÊNCIO — Vinte coroas.

PETRUCHIO — Vinte coroas! É o que euarriscaria por meu falcão ou meu cão, mas porminha mulher, aposto vinte vezes mais.

Page 218: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

LUCÊNCIO — Cem coroas, então.

HORTÊNSIO — Apostado.

PETRUCHIO — Então está combinado!

HORTÊNSIO — Quem começará?

LUCÊNCIO — Eu! Biondello, ide dizer avossa patroa que venha aqui.

BIONDELLO — Já vou. (Sai.)

BATISTA — Meu filho, parto a metade con-vosco. Bianca virá.

LUCÊNCIO — Não quero sócio. Faço aaposta sozinho. (Volta Biondello.) Então? Quehá?

Page 219: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BIONDELLO — Senhor, minha patroamanda dizer-vos que está ocupada e que nãopoderá vir.

PETRUCHIO — Como! Está ocupada e nãopode vir! Isto é resposta?

GRÊMIO — Sim e amável, também. Rogaia Deus, senhor, que vossa esposa não vos envieuma pior.

PETRUCHIO — Espero uma melhor.

HORTÊNSIO — Biondello, vai solicitar aminha mulher para vir aqui imediatamente.(Sai Biondello.)

PETRUCHIO — Oh! Oh! Solicitar-lhe! Du-vido bem que venha.

HORTÊNSIO — Temo, senhor, que, embo-ra fazendo o que quiserdes, a vossa não aten-

Page 220: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

da vossas solicitações. (Volta Biondello.) En-tão, onde está minha mulher?

BIONDELLO — Ela diz que estais imagi-nando alguma brincadeira e que não virá; elamanda dizer-vos para ir procurá-la.

PETRUCHIO — De mal a pior! Ela nãoquer vir! É vil, intolerável, insuportável! Grú-mio, vai procurar tua patroa e dize-lhe que lheordeno que venha aqui! (Sai Grúmio.)

HORTÊNSIO — Já sei a resposta dela.

PETRUCHIO — Qual?

HORTÊNSIO — Ela não virá.

PETRUCHIO — Tanto pior para mim, e istoé tudo.

Page 221: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

BATISTA — Como! Por Nossa Senhora!Olha Catarina! (Volta Catarina.)

CATARINA — Que desejais, senhor, quemandastes buscar- me?

PETRUCHIO — Onde estão vossa irmã e amulher de Hortênsio?

CATARINA — Conversam no salão, assen-tadas perto da lareira.

PETRUCHIO — Ide buscá-las e trazei-asaqui. Se se recusarem a vir, enviai-as aos mari-dos delas com boas chicotadas. Fora, estou di-zendo, e trazei-as imediatamente. (Sai Catari-na.)

LUCÊNCIO — Se existem milagres, aquiestá um.

Page 222: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

HORTÊNSIO — Com efeito, é um milagre.Que poderá pressagiar?

PETRUCHIO — Ora, é um presságio depaz, de amor, de vida tranquila, de respeito àsconveniências e da supremacia do marido. Emuma palavra: todas as alegrias e todas as felici-dades.

BATISTA — Que a felicidade esteja conti-go, bom Petruchio! Ganhaste a aposta e queroacrescentar, às que eles perderam, vinte milcoroas, como novo dote para uma nova filha,pois, está tão mudada, que é uma outra.

PETRUCHIO — Não, quero ganhar melhorainda a aposta, dar-vos a demonstração maisevidente de sua obediência e de sua nova vir-tude. Olhai-a! Aí vem ela trazendo vossas duasmulheres como prisioneiras de sua persuasãofeminina! (Volta Catarina com Bianca e a Viú-

Page 223: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

va.) Catarina, este gorro que usais não vos as-senta! Tirai este trapo e jogai-o sob vossos pés!

VIÚVA — Meu Deus! Nunca me deis oca-sião de chorar, enquanto não me vir reduzida aum servilismo tão humilhante!

BIANCA — Que vergonha! Como qualifi-cais uma obediência tão louca como esta?

LUCÊNCIO — Quisera que a vossa fossetão louca assim também! O conhecimento devosso dever, bela Bianca, custou-me cem coro-as depois da ceia.

BIANCA — Mais louco fostes vós apostan-do sobre minha obediência.

PETRUCHIO — Catarina, ordeno-te de di-zer a estas mulheres cabeçudas quais são os de-

Page 224: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

veres a que estão obrigadas em relação a seussenhores e maridos.

VIÚVA — Vamos, vamos, estais caçoando.Não queremos lição.

PETRUCHIO — Fala, estou mandando, ecomeça primeiro por ela.

VIÚVA — Não o fará.

PETRUCHIO — Digo que o fará! Começaprimeiro por ela.

CATARINA — Que vergonha! Que vergo-nha! Desarma essa fronte ameaçadora e feroz enão lancem teus olhos esses olhares desdenho-sos, como se quisesses atravessar teu senhor,teu rei e teu governante. Isso empana tua for-mosura, como as geadas cortam as campinas;destrói tua reputação, como os furacões agitam

Page 225: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

os lindos botões e não é prudente nem amável.Uma mulher irritada é como uma fonte agita-da, turva, desagradável e sem encanto. E en-quanto assim permanecer, ninguém haverá, pormais sedento ou alterado que esteja, que se dig-ne acercar dela seus lábios ou beber uma só go-ta. Teu marido é teu senhor, tua vida, teu guar-dião, tua cabeça, teu soberano; é quem cuida deti, quem se ocupa de teu bem-estar. É ele quemsubmete seu corpo aos trabalhos rudes, tanto naterra como no mar. De noite, vela no meio datempestade; de dia, no meio do frio, enquantotu dormes calidamente em casa, segura e salva.Só implora de ti o tributo do amor, da doce e fi-el obediência: paga bem pequena para tão gran-de dívida. A mulher tem as mesmas obrigaçõesem relação ao marido do que um súdito em re-lação ao príncipe. E mostrando-se indomável,mal-humorada, intratável, desaforada e desobe-diente às suas legítimas ordens, não passa deurna rebelde, uma vil litigante, culpada do deli-

Page 226: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

to de traição para com seu senhor bem-amado.Causa-me vergonha ver as mulheres declara-rem, ingênuas, a guerra, quando deveriam im-plorar a paz; pretenderem o mando, a supre-macia e o domínio estando destinadas a servir,amar e obedecer. Por que nossos corpos são tãodelicados, frágeis e tenros, impróprios para asfadigas e agitações do mundo, a não ser porquea qualidade gentil de nosso espírito, de nossoscorações, deve achar-se em harmonia com nos-so exterior? Vamos, vamos, vermes impotentese indóceis! Eu também tive um gênio tão difícilquanto os vossos, um coração tão altaneiro e,talvez, maiores motivos para opor uma palavraa outra palavra e mau humor por mau humor.Mas, agora compreendo que nossas lanças nãopassam de frágeis caniços; nossa força, fraque-za, urna enorme fraqueza que, aparentando quesomos os mais, provamos que somos os menos.Não vos mostreis, pois, orgulhosas, que de na-da serviria e ponde vossas mãos aos pés de vos-

Page 227: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

sos esposos em sinal de obediência. Se o meumandar, minha mão está pronta, se isso causar-lhe prazer.

PETRUCHIO — Bravo! Isto é o que se cha-ma uma dama! Vem aqui e beija-me, Catita!

LUCÊNCIO — Bem, segue teu caminho,camarada, pois conseguiste o que desejavas.

VICÊNCIO — Como é agradável escutar fi-lhos dóceis!

LUCÊNCIO — Mas, nada mais desagradá-vel do que mulheres incorrigíveis.

PETRUCHIO — Vamos, Catita, para a ca-ma. Casamo-nos os três; mas, sois dois conde-nados. (A Lucêncio.) Ganhei a aposta, emboratenhais atingido o alvo casando com Bianca. E

Page 228: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

como vencedor, que Deus me dê uma boa noi-te! (Saem Petruchio e Catarina.)

HORTÊNSIO — Sim, segue teu caminho.Domaste a pior megera.

LUCÊNCIO — Com vossa permissão, éuma maravilha que ela haja sido assim domes-ticada por ele. (Saem.)

Page 229: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

NOTAS DE RODAPÉ

1 Corruptela do espanhol pocas palabras, frasecorrente em Londres naqueles tempos.

2 Palavra de origem duvidosa, tanto podendo serdo italiano cessa como do francês cessez.

3 Significa Denier no texto; era uma moeda anti-ga francesa, significando aqui coisa de valor mí-nimo. Quanto a Jerônimo ou go by, Jeronimy,é uma frase popular da Tragédia Espanhola, deKyd, onde há um Hieronimo.

4 Em inglês, Thirdborough, policial de quartei-rão, daí a resposta em trocadilho intraduzível em

Page 230: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

português, na qual Sly responde que third, or,fourth, or fifth borough, I'll answer him by law.

5 Lunáticas eram as pessoas perturbadas pelainfluência da lua, sendo uma loucura intermi-tente sujeita as fases satélite terreno.

6 Naqueles tempos, os artistas ambulantes seanunciavam ao som de trompas, trombetas ouclarins.

7 Nos Fólios e no Quarto vem “Sincklo”, nomede um ator da companhia de Shakespeare. “So-to” era um personagem de Wornen Pleased, deBeaumont e Fletcher.

8 No tempo de Shakespeare, as mulheres nãosubiam ao palco. Logo, todos os papéis femini-nos eram feitos por homens.

Page 231: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

9 Cena representada na primeira galeria no fun-do da cena, de onde Sly irá assistir à comédiarepresentada em sua honra.

10 Povoado do condado de Warwick, perto deStratford.

11 Trocadilho intraduzível entre comonty, usadono lugar de commodity.Commodity significavanão só móveis, comodidades, como também,patifarias.

12 Castigo infligido aos criminosos. Eram leva-dos pelas ruas em carretas, como castigo ouexposição pública.

13 Provérbio que significa o fracasso de um pro-jeto.

14 Jogo que consistia cm apanhar um anel coma ponta de uma lança.

Page 232: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

15 A rainha de Cartago era Dido, e Ana, sua ir-mã e confidente.

16 Redime-te do cativeiro pelo menor preço. Ci-tação do Eunuco, de Terêncio (Ato I, Cena 1,29), extraída da Gramática Latina de Lyly.

17 A filha de Agenor, rei da Fenícia, é Europa,raptada por Júpiter transformado em touro.

18 Basta é a palavra usada por Shakespeare.

19 Os criados usavam roupas escuras; logo,quando no tempo se falava na linguagem teatralem usar cores, significava trocar de roupa.

20 Grúmio fala errado. No caso presente, trocarebused por abused, o que, em inglês, deveriaser muito engraçado naquele tempo.

21 Raciocínio usado na Commedia dell'Arte

Page 233: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

22 Florêncio, herói de um conto de Gower emConfessio amantis, promete casar-se com umavelha feiticeira se ela resolver um enigma doqual depende sua vida, e que depois do casa-mento torna-se jovem e bela.

23 A Sibila é a de Cumes, a quem Apolo prome-tera tantos anos de vida, quantos grãos de areiapudessem existir num punhado.

24 Trata-se da lista dos livros

25 A filha da bela Leda é Helena de Tróia, cujorapto por Páris deu início à expedição dos Gre-gos contra Tróia.

26 Conservamos exatamente o original de Sha-kespeare, onde pela necessidade da métrica ouda rima os tratamentos variam extraordinaria-mente.

Page 234: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

27 As irmãs mais velhas solteiras dançavamdescalças no casamento da mais moça. As sol-teironas levavam macacos para o inferno pornão terem tido filhos para educar.

28 A resposta de Catarina é A join'd Stool, quenão só é um tamborete como, também, expri-me pouco caso, desprezo.

29 Trocadilho entre tail (rabo, calda) e trile (his-tória).

30 Trocadilho com arms que, em inglês, não sósão braços como armas.

31 A coxcomb?, pergunta Catarina. A palavranão só significa a crista do galo, como o gorrodo bufão e, logo, um idiota.

32 Crab, em inglês, é caranguejo, mas, tam-bém, uma maçã muito azeda.

Page 235: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

33 Referência ao provérbio: “Tem bastante inte-ligência para ficar quente”.

34 Há um trocadilho entre o diminutivo de Ca-tarina (Kate) e cat.

35 Griselda era personagem dos antigos trova-dores, célebre pela paciência. Muitos autoresdela se ocuparam, mas, no caso, refere-se à Gri-selda de um conto de Chaucer, tirado do Deca-meron, de Boccaccio.

36 Tiro, cidade da Fenícia, hoje Líbano, célebrepela púrpura.

37 A cardo f tem era o ponto mais alto que sepodia obter naqueles tempos em muitos jogosde carta.

38 Fala de Penélope em As Heróides (I, 33), deOvídio, na qual ela diz: “Por ali, corria o Rio

Page 236: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

Sírnois; aqui fica a terra de Sigéia; aqui se le-vanta o vasto palácio do velho Priamo”.

39 Pantaleão era o personagem típico dó velhocacete e falador da Commedia dell'Arte.

40 Diminutivo depreciativo de pedante.

41 A little pot is soon hot, provérbio a que fazreferência Grúmio.

42 Referência ao pequeno tamanho de Grúmio.

43 Antiga canção inglesa.

44 Em inglês cony-catching (pregar peças) fa-zendo trocadilho com catch (estribilho).

45 Naquele tempo, cobria-se o chão com estei-ras, pois ainda não começara o uso dos tapetesno chão.

Page 237: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

46 Trocadilho em que aparecem as palavrasJack and Jill, rapaz e rapariga, e, também, cân-taros para beber cerveja.

47 Velha balada que devia ser cantada pelorecém-casado.

48 Trocadilho com gentlewomen, intraduzívelem português.

49 A nail, no caso presente, é uma medidaequivalente a 57 milímetros.

50 Inscrição nas páginas do título dos livros, in-dicativa do privilégio do editor.

51 Assim aparece nos Fólios e nos Quartos e vá-rias mudanças foram sugeridas como sendo umengano. Entretanto, a edição Cambridge mandaassim conservar, argumentando que o Pedago-go quer dizer que não saiu de Pádua, procuran-

Page 238: A-Megera-Domada-William-Shakespeare.pdf

do garantir-se da ameaça de morte que pairavasobre ele.

52 A primeira sentença desta fala é uma expres-são proverbial, ou seja, My cake is dough.