67
0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou um espaço especial em seu projeto de vida, tornando possível o meu; Á memória de meu pai, João Guedelha, que me deu de presente o amor pelas letras e a senha de acesso ao reino encantado da poesia; À Ednete, Aline, Júnior, André e Carla, fontes de minha inspiração, destinatários e remetentes do mais profundo afeto, Dedico.

À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

0 1

À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou um espaço especial em seu projeto de vida, tornando

possível o meu;

Á memória de meu pai, João Guedelha, que me deu de presente o amor pelas letras e a senha de acesso ao reino

encantado da poesia;

À Ednete, Aline, Júnior, André e Carla, fontes de minha inspiração, destinatários e remetentes do mais profundo afeto,

Dedico.

Page 2: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

2

Se andamos sobre o rio, quem construiu a ponte caminha conosco; se alçamos vôos encantadores em nossos sonhos, há aqueles que – sem nos subtrair o sabor da magia – nos ajudam a manter os pés no chão, mesmo quando voamos; em tudo quanto fazemos, nunca estamos sozinhos e nenhum trabalho é solitário, pois até quando mergulhamos silentes em nossas leituras e reflexões, ali estão as pegadas indeléveis dos que nos acompanham.

Por isso, registro aqui minha sincera gratidão à Universidade Federal do Amazonas e a todas as pessoas que testemunharam pari passu minha difícil travessia e até se dispuseram a voar nas asas dos meus sonhos. Entre essas pessoas especiais, cumpre destacar o Professor Marcos Frederico K. Aleixo, que, ao longo do Mestrado, foi um orientador sempre disponível, primeiro leitor duramente crítico e humanamente norteador de meus escritos.

3

As cidades se modificam. E é necessário fixar-lhes os contornos físicos e espirituais no tempo. Esta, parece-me, a motivação subjacente em toda obra de história ou de memória das cidades. (Alencar e Silva, na apresentação do livro Evocação de Manaus, de Jefferson Péres)

Cantando peço passagem (venho de bonde e catraia) para Manaus na primeira pessoa do singular. (Thiago de Mello, em Manaus, amor e memória)

Page 3: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

4

SUMÁRIO

Uma mulher e uma obra – à guisa de introdução 05

Um pouco de teoria 09

Olhos à retaguarda 18

Geografia provinciana 28

Arqueologia sentimental 74

Por toda parte o rio 94

Profecia do ofício 106

Dragão domado 121

Conclusão 127

Referências 129

5

1 Uma mulher e uma obra – à guisa de introdução

O desejo de empreender uma viagem pela geografia lírica de Manaus nasceu quando, no curso de graduação em Letras, tive a oportunidade de estudar uma disciplina voltada especificamente para a literatura produzida no Amazonas. Mantive meus primeiros contatos com os textos poéticos de autores amazonenses e tive o meu interesse despertado para estudar essa literatura de forma mais sistemática e aprofundada. Foi-me possível descobrir que o Amazonas possui um quadro de poetas e prosadores cujas obras formam um universo literário de admirável qualidade. E mais: em que pese a primorosa produção de vários escritores da terra, boa parte desses escritos carecia de estudos consistentes, no que diz respeito à aferição textual com bases em teorias críticas apropriadas.

A percepção de tal defasagem foi tomando vulto à medida que me debruçava sobre as fontes de “análise literária” dos textos de autores do Amazonas. Na verdade, a maioria desses trabalhos não poderia ser alçada à categoria de crítica literária propriamente dita: consistia em seletas, listagens biobibliográficas, um pouco de historiografia, textos encomiásticos ou depreciativos e uma significativa produção de abordagens sociológicas, nas quais as obras literárias funcionavam apenas como contrapontos para a comprovação de argumentos de cunho político. Praticamente todos os trabalhos referidos são marcados pela seriedade, não resta dúvida. Vieram à luz a partir de denodados empreendimentos de pesquisa, têm o seu valor e a sua aplicabilidade. Ajudam, a seu modo, a compreender melhor a mentalidade amazônica. Não são, no entanto, análise literária – se tomarmos esta expressão no sentindo apropriado – posto que a preocupação primordial desses estudos não é questionar e dimensionar as obras analisadas em questões de estética e literariedade.

Page 4: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

6

Em consequência do meu interesse, passei a ler o que conseguia encontrar e, proporcionalmente aos contatos que ia mantendo com os textos, essa literatura ia exercendo sobre mim um fascínio crescente. Descobri que há textos de primeira grandeza no universo lírico e ficcional amazonense, sobretudo aqueles lavrados sob os influxos do Clube da Madrugada. A mesma qualidade se observa em outras produções subsequentes, cujos autores oportunamente se apropriaram desse legado de renovação.

Não há como negar que o nascimento do Clube, em 1954, possibilitou a entrada em cena de um grupo de artistas e intelectuais comprometidos com o arejamento do pensamento no Amazonas. Para a literatura a experiência foi prodigamente enriquecedora: poetas e contistas apresentaram singulares propostas de “fazer literário”, de certa forma rompendo com o marasmo artístico-cultural que se abatera sobre o Estado.

Todavia, foi a poesia — com seus matizes mais sui generis — que sedimentou os alicerces dessa reconstrução. Primeiramente, foi necessário desconstruir a tradição descritiva; depois, desfazer as amarras romântico-parnaso-simbolistas tardias, renitentes; por último, tecer uma nova linguagem que pusesse a lírica à altura das potencialidades do imaginário da região.

De modo genérico, duas são as grandes vertentes poéticas que se sobressaíram na produção madrugada: uma que matinha pontos de contato com a geração de 45 da moderna poesia brasileira, e outra, telúrica, preocupada em poetizar o Amazonas, suas coisas e sua gente.

Foi buscando preciosidades no Madrugada que, entre muitos tesouros, encontrei Astrid Cabral. Uma mulher que é sinônimo de uma obra. Foi no contexto pós-moderno — melhor dizendo na “Geração de 60”, a qual sucedeu à primeira fase do movimento Madrugada – que despontou a figura de Astrid Cabral. Ao enquadrá-la nesse período, adotei o critério de classificação geracional utilizado pelo crítico literário Pedro Lyra (1995), no primeiro estudo crítico, com antologia,

7

sobre o período. Segundo ele, uma geração abrange cinco estágios, que são: nascimento: período dentro do qual nascem todos os seus integrantes; estreia: o período após a faixa de nascimento, dentro do qual seus integrantes entram em cena histórica; vigência: o período após a faixa de estréia, dentro do qual a geração define sua fisionomia; confirmação: o período após a faixa de vigência, dentro do qual a geração arremata sua tarefa; retirada: o período após a faixa de confirmação, dentro do qual as gerações de vida plena começam a morrer.

Avançado em seu estudo, bem documentado, Pedro Lyra mostra que a geração de 60, analisada nesse contexto, engloba todos os escritores nascidos entre 1935 e 1955, que estrearam no período de 1955 a 1975, vigiram entre 1975 e 1995, vivem a faixa de confirmação entre 1995 e 2015 e estarão em retirada a partir daí.

Astrid tem-se perfilado historicamente nesse enquadramento geracional, por nascimento (1936), estreia (1963, com o livro de contos Alameda), vigência (década de 80, quando veio à luz a parte mais significativa de sua produção poética e floresceram os artigos de críticos que se debruçaram sobre sua obra, em várias partes do país) e confirmação (década de 90 e início do século XXI, em que atinge plena maturidade literária e sua obra torna-se objeto de debates, conferências, e até fornece a matéria-prima para trabalhos de mestrado e doutorado). Entretanto, ainda na adolescência, antes inclusive de Alameda, já se fizera conhecida pelos artigos que publicava nos jornais de Manaus.

Em 1979, dezesseis anos depois de sua estreia em livro, veio a público o primeiro de uma série de livros de poesia. São eles: Ponto de Cruz (1979), Torna-viagem (1981), Visgo da terra (1986), Lição de Alice (1986), Rês desgarrada (1994) e Intramuros (1998), Rasos d’água (2003), Jaula (2006) e Ante-sala (2007). A editora Sette Letras, em 1998, reuniu os cinco primeiros num único compêndio, sob o título De déu em déu. Em 2008, Astrid reuniu textos de seus livros anteriores em um livro com o título de Antologia pessoal.

Page 5: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

8

Astrid desenvolveu com maestria as duas grandes linhas da moderna poesia amazonense citadas anteriormente: há em sua lírica, por um lado, a postura introspectiva aliada a uma atitude de reflexão; por outro, a constante tentativa de eternizar a infância e a adolescência, recuperando e preservando, pelo viés da memória, o seu torrão – o Amazonas. Utiliza, em seus primeiros livros de poesia, uma “voz adolescente” que vai mapeando para o leitor as suas incursões poéticas em geografias não convencionais, marcadas pela dicotomia ânsias de eternidade versus transitoriedade da vida. Seu livro Visgo da terra é insuperável nesse aspecto.

Essa forma original de fazer poesia conquistou-me a simpatia e instigou-me a observá-la mais detidamente. Foi aí que nasceu meu desejo de viajar por esta geografia lírica, tomando a voz da Astrid menina/adolescente como cicerone.

Este livro tem a intenção de compartilhar as descobertas com outras pessoas que têm interesse em poesia. Pensando assim, tentei despir um pouco o texto daquela sisudez que caracteriza o texto acadêmico – sem, no entanto, diminuir-lhe a consistência – e transformá-lo no livro que ora ponho ao alcance do público.

9

2 UM POUCO DE TEORIA

A análise de Visgo da terra, que se estrutura, pela temática, como uma unidade, requer que façamos o seguinte questionamento preliminar: o que é a recriação poética de uma cidade?

Para responder esta pergunta, recorremos a Rolnick (1988), que procura explicitar quatro dimensões que caracterizam a cidade em sua essência:

a) como ímã, a cidade tem o poder de atrair e concentrar os homens;

b) como escrita, fixa-se em uma memória pelos textos que produz; c) como política, expressa a luta cotidiana pela normatização e disciplina da utilização do espaço urbano; d) por fim, como mercado, propicia o florescimento da produção e do consumo. A segunda dimensão, obviamente, foi a que mais me

interessou no presente estudo: a cidade como registro que se perpetua na memória forjada pelos textos que produz e inspira.

A construção de uma cidade, no entendimento de Rolnick, pressupõe a superposição de uma segunda natureza (obra humana) sobre uma primeira (obra divina). Aquela, fabricada pelo homem, manufaturada, tende a ser reconstruída de diferentes maneiras no transcurso do tempo. A escrita é uma dessas formas de recriação, e se utiliza de uma arquitetura menos material e mais espiritual, em que os signos linguísticos enformam a construção.

A esse respeito, convém considerar o que diz Pesavento (1999): o artista, munido de sensibilidade, exercita o olhar literário e cria uma cidade do pensamento sobre a cidade de pedra. Essa segunda cidade, concretizada em palavras e imagens literárias, é o dizer do poeta sobre o espaço urbano que o inspirou.

Page 6: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

10

Vale ressaltar que não se pode igualar a forma de reconstruir do poeta com a do historiador, já que ambos, mesmo trilhando os caminhos da escrita, servem-se de metodologias diferentes, em geral com propósitos bem diversos. Pesavento corrobora o argumento aristotélico de que, enquanto o historiador conta fatos que aconteceram, o poeta narra aquilo que poderia ter acontecido ou como poderia ter acontecido. Consequentemente, os parâmetros para mensurar uma obra de arte não são os mesmos que balizam a análise de uma produção histórico-científica.

Aplicando esses princípios à recriação poética de uma cidade, inferi que o trabalho da engenharia lírica não busca reproduzi-la fielmente nem tem isso como sua preocupação fundamental. O produto que sai da oficina do artista não é a cidade real, mas o que Pesavento chama de “efeito de real”, acrescentando que “o discurso literário dá nova existência à coisa narrada”. Por isso, as imagens poéticas do espaço urbano e suas contingências – mostradas pela dimensão escrita do “como poderia ter sido” – contribuem para estilizar a cidade do passado em contraposição à do presente.

A proposta poética de Astrid Cabral em Visgo da terra é original, posto se tratar de um telurismo urbano. A artista, portanto, opõe-se ao convencional e historicamente consagrado: a descrição do paisagismo inócuo, sem a presença dos homens. Tal prática se revelou, ao longo do tempo, um desastre artístico – salvo as exceções de praxe – e foi rotulada por Monteiro (1998) de geografismo.

Assim é que Visgo da terra me atraiu pelo novo que contém. E o novo é o fruto da poesia. Sua autora preocupou-se em produzir um livro de poemas inteirinho voltado para a Manaus de sua infância e adolescência, explorando os anos 40 e 50 do século XX, ora retrocedendo ora avançado um pouco para além dessas duas décadas.

Visgo da terra é o caso único de um livro que poetiza a Manaus daqueles idos página a página, poema a poema. Juntos, seus textos formam um impressionante painel da

11

cidade que viu a autora nascer e crescer. Uma cidade que a Astrid adulta não chegou a conhecer, por dois motivos principais: a mulher tornou-se “rês desgarrada” em outros pastos, e a tal cidade ruiu com o passar dos anos.

É exatamente aí que reside a excepcionalidade da obra: nela opera-se o reencontro da mulher com o seu passado e os espaços de convivência de outrora: ruas, casas, instituições, espaços de lazer, as relações sociais, tradições, crendices etc. A paisagem e os espaços recebem um tratamento lírico digno de nota, transfigurados numa linguagem musical, com um misto de saudosismo (sem exacerbações ufanistas) e pitadas sutis de ironia e crítica social, como costuma acontecer com a maioria das obras de sua geração.

Visgo da terra foi lançado em 1979, como umas das seções do livro Ponto de cruz, que é a obra poética inaugural de Astrid Cabral, e contava com duas dezenas de poemas. Alguns anos depois, em 1986, a autora optou por alforriá-lo do livro em questão, reelaborá-lo, enriquecê-lo e transformá-lo em obra autônoma, uma opção que nos pareceu oportuna, uma vez que, sendo a última seção do livro, o conjunto de textos de certa forma destoava do teor da obra, pelo seu caráter memorialista.

Enquanto os poemas das demais seções de Ponto de cruz privilegiavam o presente, ressaltando o amar e suas implicações de gozo e agonia (primeira seção), a fugacidade da vida e instabilidade do mundo (segunda) e as mesquinharias do quotidiano tacanho (terceira), a quarta seção – correspondente a Visgo da terra – punha os olhos do eu-lírico e do leitor à retaguarda para investigar o passado, dando uma desconcertante impressão de bastardia no corpo da obra. Por isso, demandava um desmembramento, para então ganhar mais representatividade lírica e autenticidade.

Convém também ressaltar que Visgo da terra teve ainda uma terceira reformulação e formato, desta feita como componente do livro-reunião De déu em déu. Nesta edição, a autora acrescentou dois poemas (“Neoclássica” e “Anfíbia”)

Page 7: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

12

que não constavam da anterior e, por isso, em respeito às intenções da autora ao reformular o livro para fazê-lo mais completo, optei por este último como objeto de análise.

Empreendi este estudo com o objetivo de proceder a uma incursão sobre as imagens poéticas de que se compõe a obra, aquilatando sua literariedade; investigar como essas imagens operam a recriação da Manaus dos anos 40 e 50, estilizando-a; cotejar, com bases nessas imagens e nas formações referenciais de outras obras consultadas, a cidade da memória com a cidade de pedra, para realçar os mecanismos e artifícios da arte literária nessa categoria de manifestação; a partir do confronto entre as duas realidades – a cidade manufaturada e a escrita – explorar os indícios imagísticos de destruição e permanência relativamente à história de Manaus.

Na interpretação dos textos poéticos, não ignorei a importância do meio social nem do processo histórico que possibilitam a manifestação artística; também não desprezei os pressupostos filosóficos em que se assentam os estilos individuais e de época. Contudo, não centralizei as abordagens nessas linhas de análise.

Procurei dar aos textos um tratamento primordialmente voltado para a literariedade, nos limites do método proposto por Afrânio Coutinho (1997), segundo o qual o texto é o ponto de partida e de chegada da análise, ou seja, as pistas interpretativas permeiam a própria constituição interna do texto. Assim, os fatores externos, extratextuais, funcionam como contribuição, enriquecimento das reflexões, e não como pontos nevrálgicos.

Afrânio Coutinho, em seu método, procura assimilar o ideário do Formalismo Russo, surgido no início do século XX, que propôs uma abordagem “centrífuga” da obra literária à abordagem “centrípeta” tradicional. Esta, cujo surgimento e apogeu se deu nos meandros do século XIX, punha o seu enfoque no ambiente exterior à obra, por considerá-la um mero espelho do social ou um documento de certa época; aquela, revitalizando o valor da obra em si, permutou dos

13

fatores extrínsecos para os intrínsecos o seu centro de interesse e passou a ver a literatura não como um documento, mas como arte.

É claro que Coutinho foi buscar inspiração nas considerações aristotélicas sobre poesia e, em maior grau, na obra de Croce. Nesse sentido, abandonou a crítica extrínseca em busca da valorização dos fatores intrínsecos.

Coutinho não apregoou o apagamento dos elementos extratextuais no processo da análise literária. Apenas resgatou a obra para o centro da atenção, deixando os demais fatores em nível secundário de contribuição. Corrigiu, assim, o equívoco da crítica biográfica, cientificista ou impressionista do século XIX, que aquilatava a obra literária simplesmente pela biografia do autor, pelos mesmos métodos das ciências, ou pelas projeções subjetivas do leitor, e deu a ênfase justa à literariedade das obras analisadas.

Assumo também tal postura por julgar ser mais criteriosa, coerente e ampla. Minha opção está em consonância com a linha adotada por Marcos Frederico Aleixo, em sua dissertação de Mestrado intitulada Introdução à poesia no Amazonas, uma das pioneiras no que diz respeito à reflexão sobre a literatura regional.

Trato doravante dos conceitos de autor-modelo e leitor-modelo, expressões criadas pelo crítico italiano Umberto Eco (1994). Segundo ele, todo bom texto ficcional tem, gravitando no seu interior e em torno de si, essas duas entidades indissociáveis, realizando um constante e interessante jogo interativo. Apesar de ter sido essa teoria aplicada ao texto narrativo de ficção, julgo ser o seu alcance igualmente extensivo à poesia. Por isso, registro aqui suas linhas gerais.

O que vem a ser autor-modelo? Sem se confundir com o escritor, que é o autor empírico, esta entidade é a “voz” que diz nos textos. E ao dizer, vai estrategicamente tecendo uma teia de instruções que servirão de pistas interpretativas para o leitor seguir. E nesse entrecruzar de marcas textuais o dizer vai se codificando estilisticamente. Acontece que apenas o

Page 8: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

14

leitor-modelo (não se confunda também com leitor empírico) é capaz de mapear as senhas, decifrá-las e discernir seus indícios.

O bom poema reclama este tipo de leitor, cujo perfil é desenhado pelo texto. A poesia demanda um leitor criativo, disposto a colaborar, fazer a sua parte, preenchendo as lacunas que a arte poética virtualmente lhe oferece para serem preenchidas. Diz Eco (1994, p. 3) que “todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho. Que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo que o receptor deve compreender — não terminaria nunca.”

Aí está o que é o leitor-modelo. Uma necessidade interativa do poema. Daí por que o texto não pode prescindir dele fazendo uso do seu potencial criativo nos trabalhos de interpretação. Interpretar, pois, é recriar o poema.

Foi em meio a essas reflexões que o crítico italiano delineou a alegoria dos “bosques da ficção” que, como já disse, é perfeitamente aplicável à poesia. Segundo ele,

um bosque é um jardim de caminhos que se bifurcam. Mesmo quando não existem num bosque de trilhas bem definidas, todos podem traçar sua própria trilha, decidindo ir para a esquerda ou para a direita de determinada árvore e, a cada árvore que encontrar, optando por esta ou aquela direção (1994, p. 4).

Diz também que “ao caminhar pelo bosque, posso

muito bem utilizar cada experiência e cada descoberta para aprender mais sobre a vida, sobre o passado e o futuro” (1994, p. 5). E ensina que “há duas maneiras de percorrer o bosque. A primeira é experimentar um ou vários caminhos (a fim de sair do bosque o mais depressa possível...); a segunda é andar para ver como é o bosque e descobrir por que algumas trilhas são acessíveis e outras não” (1994, p. 6).

Tudo isso se constitui num jogo que pode ser muito gratificante. Entretanto, só o leitor-modelo aceita jogar. Ele

15

mergulha no bosque-poema voluntariamente e se deixa envolver, de corpo e alma, pelo ambiente, abrindo todas as janelas da percepção, com vistas a gozar plenamente as delícias de cores, sons, perfumes, movimentos e sabores que o bosque venha a oferecer. É mister uma cumplicidade tácita entre o autor-modelo e o leitor-modelo, pois apenas a empatia pode proporcionar a magia e o encanto.

O leitor-modelo tem no seu poema o seu bosque. Para ele, as palavras também têm cor, sabor, som, perfume e movimento, e cada imagem tecida traduz um universo de prazeres.

Visgo da terra foi gestado para ser um campo de exercício da referida cumplicidade. Muito mais que um livro de poemas, trata-se de uma incursão por um território lírico, uma geografia sentimental. Exige que o leitor se dispa dos “pré-conceitos”, liberte-se das amarras do mundo exterior, penetrando intensamente nesse turismo não-convencional, enquanto acompanha os passos da mulher em revista ao seu passado, reencontrando o alter ego na criança e adolescente que fora. Uma voz adolescente fala em Visgo da terra.

A autora-modelo dicotomiza-se em “menina” e “mulher”. Mas a dicotomia, fragmentando o eu-poético, também o dilata e acaba, num paradoxo só permitido à arte, por operar o detalhamento integral do ser — da infância à idade adulta. O livro foi idealizado para que a adulta empreendesse uma viagem no túnel do tempo e se reconvertesse na adolescente, no espaço comum a ambas: a Manaus dos anos 40 e 50 do século XX. Doravante, imergindo nas imagens dessa “viagem”, refiro-me a Visgo da terra como Vt e à autora-modelo como A-m.

Acredito que a teoria levantada por Afrânio Coutinho não contradiz os argumentos de Umberto Eco. Ao contrário, eles se complementam, uma vez que em ambos os casos o texto contém a chave de si mesmo. Aliás, tanto o Formalismo Russo quanto a Nova Crítica e a Semiótica literária, crítica da

Page 9: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

16

preferência de Eco, são consideradas correntes textualistas, predominantes em nosso tempo.

Ao confeccionarmos este livro, utilizamos a seguinte configuração:

a) Um verso de Vt serviu de título: “Manaus de águas

passadas”, encimando o subtítulo explicativo do objeto de investigação: “a recriação poética de Manaus em Visgo da terra, de Astrid Cabral”;

b) Excetuando a Introdução (Uma mulher e uma obra), o

segundo capítulo (Um pouco de teoria) e a Conclusão, cada capítulo foi nomeado com um título de poema da obra, a saber:

- Capítulo 3, “Olhos à retaguarda”, resgata as imagens da viagem lírica da A-m em revista à sua infância e adolescência, na Manaus dos anos 1940 e 1950 (e um pouco dos anos 1960);

- Capítulo 4, “Geografia provinciana”, mostra uma visão geral da cidade, as casas e as ruas;

- Capítulo 5, “Arqueologia sentimental”, dessacraliza a estrutura das instituições, como a Família, a Escola, a Igreja; os mortos e os loucos conhecidos na cidade perfilam-se também neste capítulo;

- Capítulo 6, “Por toda parte o rio”, investiga as imagens que apontam até onde vai a influência do rio Negro sobre os habitantes de Manaus, e as implicações que a inter-relação homem/rio pode produzir;

- Capítulo 7, “Profecia do ofício”, engloba reflexões acerca do “fazer poético” da A-m;

- E, finalmente, o Capítulo 8, “Dragão domado”, examina a poetização da difícil e dolorosa passagem da infância para o mundo adulto; é o fim do encanto: término da viagem e retorno ao presente/futuro.

Caracterizei a feitura do livro como sendo — e de fato o é — uma viagem ao passado pelos meandros da memória e procurei reconstituir essa trajetória lírica, eivada de

17

manifestações telúricas, questionamentos existenciais, protestos sociais, erotismo e muita musicalidade em versos que estilizam o cotidiano de forma admirável. Os capítulos seguintes, conforme já explicitado, operam uma incursão nessas imagens.

Page 10: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

18

3 OLHOS À RETAGUARDA A A-m entra no “túnel do tempo”

Ao abrirmos Vt, o primeiro poema que encontramos é

um pórtico de acesso aos demais textos, um terceto:

Futuro em lua minguante minero as luas cheias do outrora. (p. 157)

Este poema é a senha que, uma vez decifrada, explicita

o caráter memorialista da obra, e permite inferir que a mesma consiste numa mineração afetiva, na qual a A-m intenta resgatar a plenitude e o viço perdidos no passado.

Fornecendo tal pista, o pórtico estabelece um divisor de águas entre o passado, o presente e o futuro. O futuro configura-se como o caminho da decadência sugerida pelo adjetivo “minguante”, da mesma raiz do verbo “minguar”, pertencente ao campo semântico do declínio e da decrepitude; as luas cheias, em contrapartida, ficam circunscritas ao passado e podem ser rebuscadas mediante uma abnegada garimparem evocativa. Uma garimpagem que é feita no presente.

O sentindo das evocações faz-se através da expressiva antítese sobre a qual se alicerça o poema, a dicotomia a que vínhamos aludindo:

Outrora (luas cheias - plenitude)

x Futuro (lua minguante – declínio)

Não é gratuito o fato de o poema possuir apenas três

versos. O número de versos concretiza a síntese dos diferentes momentos referidos no pórtico, que, por sua vez, é emblemático dos momentos retratados na obra. O outrora contrapõe-se ao futuro, tendo o presente de permeio.

19

Esquematicamente, temos:

O primeiro verso, referente ao futuro, não denota ação humana, posto que é um mero adjunto adverbial que oscila entre as circunstâncias de tempo e lugar, cristalizando-se, portanto, numa concepção estática. O mesmo acontece com o terceiro verso, representativo do passado.

Futuro em lua minguante

................... (as luas cheias) do outrora

Assim, tanto o futuro quanto o passado são paisagens,

panoramas, possibilidades. É necessário que a ação humana desencadeie a explosão de fragmentos da realidade ocultos sob esse véu de aparente inércia.

A vida e a morte existem em potencial nos polos do tempo. E, naturalmente, como atesta o segundo verso, a A-m achou de bom alvitre voltar-se para o passado, ao invés de tentar sondar o futuro. E o mergulho passadístico foi tamanho que o outrora se fragmentou e se mesclou com o presente:

Minero as luas cheias (presente) (passado)

O único verbo do texto é transitivo direto e

circunscreve-se ao presente, mas a sua transitividade atrai um

Futuro: Futuro em lua minguante

Presente: Minero as luas cheias Passado: (luas cheias) do outrora

Page 11: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

20

objeto (as luas cheias) que, sendo uma partícula do passado, poderia (ou deveria) pertencer ao último verso.

Evidentemente, a A-m não deixa dúvida de que nesta obra o presente e o passado de sua vida amalgamar-se-ão, enquanto o futuro continuará — não se sabe por quanto tempo — apenas como contraponto. A fusão passado/presente só é possível mediante as reminiscências e a intervenção da arte.

Discorrendo sobre a simbologia que a poesia tem emprestado à lua, em diferentes culturas, Chevalier e Gheerbrant (1991) comentam que enquanto a lua cheia simboliza plenitude e vitalidade, a lua minguante conota negativamente. Por isso, é perfeitamente viável percebemos, nesta oposição estrutural que o texto apresenta, uma linha divisória entre o saudosismo quanto ao tempo que passou e uma certa temeridade em relação ao futuro incerto, ignorado.

O verbo “minerar” permite-nos concluir que há tesouros no passado, há riquezas soterradas sob a ribanceira do tempo. Só que para se ter acesso às preciosidades é mister não temer as sombras, pois é num ambiente marcado pela atmosfera onírica que se dará a escavação.

A lua, conforme a tradição judaico-cristã, foi o luzeiro criado por Deus para governar a noite, ao passo que o sol fora feito pra reinar absoluto sobre o dia. Possivelmente decorra daí a associação da luz com o conhecimento. “O sol é a intelecção; a lua a memória”, consideram Chevalier e Gheerbrant (1991). Para eles, a lua é “símbolo da imaginação, do sonho, do inconsciente”.

Minerar as luas cheias é perseguir o sentido da fecundidade que se encontra em regiões ensombradas do tempo. É significativo o fato de Vt, quando da sua feitura como seção de Ponto de Cruz, abrir-se com uma série de poemas batizada de “Ciclos de Sombras”, recheadas de paisagens noturnas, sortilégios e medos que precisariam ser desafiados e transpostos.

Calcado na ideia de que o ciclo lunar, expressivo do ciclo vital, alimenta a terra e a água, enquanto estas,

21

amalgamadas, sustentam os seres, Vt, em sua segunda e terceira edições, assenta-se sobre essa gradação, como bem podem explicitar os títulos da seções do livro: “Terra”, “Água” e “Seres”. Julguei necessário traçar uma diferenciação semântica quanto ao vocábulo “terra” que se repete nos títulos do livro e da primeira seção:

a) Terra, no título da obra, significa exatamente “Manaus”, uma cidade que, à semelhança de um visgo, apegou-se ao corpo e a alma da A-m pela mediação da memória;

b) o mesmo vocábulo, nomeando a seção, aponta para a terra firme, o chão de Manaus e todos os elementos a que ele serve de suporte.

A presença do determinante (artigo) no título geral

acresce ao todo semântico um sentido de familiaridade, de afetividade. Equivaleria a dizer “visgo de uma terra que eu conheço” ou ainda “visgo da minha terra”. Já a ausência desse determinante precedendo o título da segunda seção do livro contribui para conferir ao nome um caráter universalizante.

Pode parecer um despropósito falar-se em universalidade quando se sabe que absolutamente todos os poemas da seção apontam teluricamente para a capital amazonense, verso a verso. Não obstante, a perícia poética da A-m, aliada à sua inspiração, veste o original com um manto universalizante, praticamente expulsando das linhas e entrelinhas o bairrismo ufanista.

Todos os títulos de seções aparecem não-marcados por artigo, a fim de não deslustrar o sentido de totalidade e integração que envolve os elementos nominados. Afinal, a terra, a água e os seres que plasmam Manaus são estilizados para simbolizar a vida e suas contingências em qualquer quadrante do planeta.

Ao apontar o confronto que a A-m projeta entre o passado e o futuro, usando a contraposição entre luas cheias e

Page 12: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

22

lua minguante (neste caso até a oposição do singular com o plural é significativa, uma vez que denota redução, apoucamento, empobrecimento na trajetória passado - futuro), não pretendo assinalar que o retorno ao passado é uma empresa indolor. Muito pelo contrário, o enveredamento pelas reminiscências, na mesma medida em que possibilita o gozo, ativa também muitos tormentos insepultos do outrora. Isto fica bem patente no início da terceira seção do livro, quando a A-m pretende iniciar sua tarefa de revivescer os seres que povoaram sua infância e adolescência. Há vozes que interferem, visando sustar esse doloroso projeto, através do arrazoamento que encontramos no poema “Olhos à retaguarda”:

Quem matou teu cavalo de ancas rugosas que te levava a farejar o pólen das auroras e a vadiar e vadear igarapés azuis? (p.205-6)

Esta pergunta, irrespondível, traz à baila lembranças muito amargas que têm a ver com desencanto, desilusão, ao constatar que o cavalo, um dos mais representativos seres do passado da A-m, definhou.

Cavalo, igarapés, aurora, tudo fazia parte de um encanto que se desfez. A estrofe refere-se a algo que fizera a alegria da A-m em tempos remotos: esse cavalo possivelmente é uma alusão à canoa e ao rio, pois em dois outros poemas – “Onde reinavam sombras” (p.160-1) e “Eldorado” (p.191-2) – o rio é citado como um cavalo líquido trotando sob as pontes e sendo cavalgado pela canoa que, por sua vez, servia de montaria à menina. Esse cavalo-matéria servia de pretexto a um outro animal – o alado cavalo do ímpeto, da imaginação. Empregado do pretérito imperfeito, o verbo “levar” amplifica a duração do prazer no passado, e isso contribui para dilatar também a dor da saudade.

23

O imperfeito, segundo Umberto Eco (1994, p. 19), “é um tempo muito interessante porque é simultaneamente durativo e iterativo. Como durativo, nos diz que algumas coisas estavam acontecendo no passado, mas não nos fornece nenhum tempo preciso, e o início e o final da ação permanecem ignorados. Como iterativo, indica que a ação se repetia”. O suporte material aponta para um fim presumível, pois as rugas bem podem remeter à constatação da efemeridade de tudo. A infância é fugaz; a vida, instável; a felicidade, passageira. Isto é realçado na inebriante sinestesia que aparece, ato contínuo, na estrofe em questão: “farejar o pólen” (registro olfativo) ligado à “aurora” (registro visual). A essa evidente e proposital “confusão” de sensações, somemos o fato de serem o pólen e a aurora expressivos da efemeridade. Observando atentamente a estrutura da estrofe, percebemos que a primeira metade dela refere-se ao cavalo e a segunda, à mulher:

Todavia, mulher e cavalo dividem todos os versos da estrofe. Na primeira parte, que se refere ao cavalo, a mulher presentifica-se mediante os pronomes (o possessivo “teu” e o oblíquo “te”); já na segunda, que se refere à mulher, não há vocábulos para referência ao cavalo, contudo os três verbos coordenados entre si – “farejar”, “vadear” e “vadiar” – formam locução verbal com o verbo “levar” e estão

Referências ao cavalo

Quem matou teu cavalo de ancas rugosas e crinas de folhas que te levava

Referências à mulher

a farejar o pólen das auroras e a vadiar e vadear igarapés azuis?

Page 13: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

24

subordinados a ele, o cavalo. Tal construção traduz a ideia de posse e domínio da mulher sobre o cavalo na primeira parte, enquanto realça total dependência daquela em relação a este na segunda. Na sua infância e adolescência, ela era apenas metade de si mesma. A outra metade era o seu cavalo, a sua vitalidade. Ao transpor os umbrais da idade adulta, o cavalo (o rio interior) pereceu e a mulher perdeu o viço e a fecundidade do pólen, a plenitude da aurora, a desenvoltura e inocência do igarapé.

Essas exortações ramificam-se numa outra estrofe do poema, quando lhe é lançada ao rosto outra pergunta, ainda mais inquietante:

Que foi feito Do gato preto Que havia sido rei Em outra encarnação E de vingança assassinara O rouxinol do rio Negro Usurpador reinando Num trono de gaiola?

Resume-se neste estrofe uma história de malquerenças, despeito, vingança e morte. Apresenta-se uma fábula às avessas, pois, ao invés de um “fundo moral”, sustenta-a um fato real: o gato preto assassinou o seu êmulo rouxinol do rio Negro. O felino, que reinara na encarnação da infância, não suportou ver seu antigo trono ocupado por um rouxinol, signo da expansividade da meninice, mesmo sendo esse trono uma prisão. O “gato” adulto destruíra o “pássaro” criança. O assassinato fora motivado, então, pela sede de poder e vingança. E o que é pior: o gato preto também não mais existe.

No rescaldo de tudo, foram-se os animais de estimação e ficaram os sentimentos negativos de perda e tragédia. Os movimentos vívidos do rouxinol e sua música trinada soavam como zombaria ante a felina mudez, vindo a despertar inveja e ódio incontroláveis. Ironicamente, talvez o canto do rouxinol

25

nem fosse uma nota de alegria. Talvez até fosse uma elegia de quem, recebendo da natureza a imensidão e a liberdade, acaba fadado a um “trono” de gaiola. Outros questionamentos somam-se a estes, na tentativa de fazer com que a A-m desista da sua procura:

Não convém revolver o barro rés-do-pé-de-limão-caiano pseudo jaqueira encantada. Após a surra das chuvas O chão cheira a defuntas Graviolas sepultadas Sob enxames de mosquitos. Quem despertara a fúria Das nuvens em seu castelo E o flagelo precipitara?

A estrofe mostra que, com a passagem do tempo, a natureza destilou a fúria sobre os seus próprios elementos, e o que resta são flagelos e desolações. Uma sombria cortina de nuvens foi atiçada e furiosamente deixou o seu castelo, precipitando-se sobre tudo e trazendo maus presságios. Consequentemente, a surra das chuvas sepultou as frutas apodrecidas, cortejadas por séquitos de mosquitos atraídos pelo mau cheiro. Descortina-se assim um panorama nefasto, nauseante. Sugere-se que os seres estão soterrados. E assim, casas, familiares, crenças, ilusões, sonhos, tudo está transformado em escombros. Polifonicamente outras vozes se misturam, formando um rosário de admoestações:

“Não digas menina que o céu está negro. Mais negra é tua alma nas profundas do inferno”.

A voz acima, aspeada por não ser a do eu-lírico, apela para o que há de mais tenebroso e apavorante no imaginário infantil, que é o anátema da religião. Vale-se de um recurso

Page 14: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

26

extremo, é verdade. Quem não se dobraria ante as ameaças do fogo do inferno? Que criança não teria sua vida diária pontilhada de pesadelos oriundos da lembrança do lago de fogo e enxofre pregado pela Igreja como reservado para os malditos e impenitentes? O excerto abaixo, por isso, soa como a confirmação de que no passado também há dores:

Não convém, Astrid, revolver as terras das raízes. É doloroso exumar. ................................ São teus olhos agora que olham para trás.

Enfim, parece não haver mais nada para testemunhar o tempo que passou. Nada. Mas o olhar da saudade, das reminiscências, é capaz de inventariar até o que não mais existe e revivescer o que pereceu. Um verso esclarecedor, do poema “A casa”, confirma que o tempo, como agente do aniquilamento, forjou o flagelo:

O tempo choveu o mar de sal Onde se afundam meus olhos. (p. 163-4)

Opera-se nestes versos um recorte metonímico no

grande cenário descrito. Os olhos, que são considerados as janelas da alma, ampliam-se para significar o todo na sua abrangência humana e universal. Processa-se o despertar de um sonho-pesadelo relativo ao passado e o retorno ao presente, mas a metonímia dos olhos voltados para trás esclarece que “negro” é o presente, o “inferno” é o presente, e é impossível uma volta ao passado sem levar o olhar contaminado pelo pretume e a repugnância infernal. Aliás, em toda a obra o sentido da brancura, da claridade, comparece sempre aliado ao sentido da fugacidade, ao passo que as imagens turvas, noturnas, tendem a conotar a força de perpetuidade da escuridão.

27

Fica patente, por tudo que vimos, que, ao remexer as raízes do passado, a A-m envolve-se em um ofício por demais doloroso: há sempre o risco de se ferir em arestas não aparadas. Não obstante, para ela os tesouros a serem encontrados e as delícias a serem fruídas são capazes de compensar os riscos, e por isso a viagem ao passado se faz, e a obra vem à luz.

Page 15: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

28

4 GEOGRAFIA PROVINCIANA A A-m dá-nos uma visão geral da cidade, das casas e das ruas. 4.1 A cidade Para se chegar à Manaus daqueles idos (primeira metade do século XX), convinha utilizar a via de acesso costumeira: o rio. Lançando mão desse recurso, a A-m programa sua chegada à cidade para a noite, a fim de aproveitar a serenidade das águas e a amenidade dos ventos. “Paisagem”, o primeiro poema de Vt, mostra o cenário que, em geral, descortinava-se diante de quem empreendia semelhante viagem, à medida que a embarcação se aproximava do porto. Eis a primeira estrofe do poema:

Náufraga bola de goma Rolou no barranco a lua. Faceira, vê de bubuia Face que no céu flutua. (p. 159)

Esta era a primeira visão que tinha quem se aproximava de Manaus, ainda que um pouco panorâmica. Foi captada pelo eu-lírico numa noite de lua cheia. Tão cheia que a sua luz “se derrama” pelo barranco do rio. O absoluto reinado do luar sobre a paisagem sinaliza para a quase inexistência das lâmpadas elétricas que, com seu brilho intermitente margeando o rio, costumam hoje ofuscar e até anular o fulgor prateado do luar.

Como se pode constatar em alguns poemas posteriores, a ausência de luz elétrica é percebida nas casas, que se serviam de lamparinas e lampiões para alumiar as vigílias e as lides noturnas de almas insones.

Causa estranheza, a princípio, essa escassez de iluminação, quando se alardeia que Manaus foi uma das primeiras – senão a primeira – capital brasileira a receber iluminação elétrica. Tal fato ocorreu no decurso de 1896, e

29

dele se ufanam alguns cronistas, dentre os quais Genesino Braga (1975). Sabemos ainda que a cidade tinha fama de vida noturna fervilhante, desde o chamado período áureo da borracha, ideia referendada por Loureiro (1985). No entanto, através dos versos que lemos tomamos contato com uma cidade escura, onde é perfeitamente possível a lua cheia dominar o cenário. Encontramos resposta satisfatória a estes questionamentos quando, consultando Dias (1996), constatamos que a Manaus da primeira metade do século XX abrigava duas cidades em uma: a quase-Paris (Paris dos trópicos), herança do arrivismo europeu, e a quase-aldeia, com seu estigma de abandono e sua feição de porto de lenha. Aquela pertencia aos potentados; esta, aos excluídos. As regalias de metrópole continuavam sendo dadas àquela, enquanto a esta restava o rebotalho da decantada “vida social”.

Sobre a primeira, lemos em Dias (1996, p. 19-30):

A modernidade em Manaus não só substituiu a madeira pelo ferro, o barro pela alvenaria, a palha pela telha, o igarapé pela avenida, a carroça pelos bondes elétricos, a iluminação a gás pela luz elétrica, mas também transforma a paisagem natural, destrói antigos costumes e tradições, civiliza índios transformando-os em trabalhadores urbanos, dinamiza o comércio, expande a navegação, desenvolve a imigração. É a modernidade que chega ao porto de lenha, com sua visão transformadora, arrasando com o atrasado e feio e construindo o moderno e belo. Cidade higienizada, formosa, arborizada, – a arborização que contribuiu, de forma benéfica, para as condições de salubridade da urbe. Londres, Paris, são sempre lembradas pelos seus parques, jardins, praças e ruas, motivando a arborização dos jardins da Matriz, das praças da Constituição, República, General Osório e Comércio. Fícus benjamim, eucaliptos, cedros, rosas e outras espécies, passam a mostrar um novo aspecto na arborização dessas praças, a Inspetoria de Matas e Jardins encarrega-se da conservação dos jardins e praças da cidade.

Page 16: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

30

E sobre a segunda:

Os setores populares não só não foram atingidos pelas novas reformas, como também perderam as antigas estruturas já existentes, afastados compulsoriamente da área central da cidade pela política de demolição de suas casas, para atender às necessidades de reedificação e embelezamento da capital, passando a ocupar os bairros distantes, desprovidos de qualquer infra-estrutura. Para estes marginalizados do ‘fausto’, restaram o isolamento no Mocó, Colônia Oliveira Machado, São Raimundo e Constantinópolis, sem luz elétrica, bondes, esgoto, mercado, sem água encanada, com o impaludismo, o beribéri, a febre amarela, a fome e a miséria do fausto. (Idem, p.172)

As duas cidades – a da ostentação e a da miséria –

seguiram convivendo no espaço de Manaus décadas a fora. A menina fazia volteios nas duas cidades, mas o seu universo real era aquém da ostentação, embora não vivesse também na miséria. Sua cidade era escura, ainda que, como consolo, recebesse o beneplácito do luar.

A metaforização da lua como uma bola de goma evidencia uma época em que a tapioca era comum na alimentação. Tomamos as “bolas de goma” como estigmas de um tempo pós-período áureo da borracha, que se fora de uma vez por todas, propiciando o inevitável caminho de volta à realidade baré. A tapioca-lua representa o retorno ao primitivismo.

Evidentemente, as décadas anteriores aos anos 1940 e 1950 assistiram ao que Dias (1996) chamou de “falácia do fausto”: a ilusão de que uma nova Paris nascera nos trópicos, sedimentada na inexaurível fonte de borracha, eterno manancial de progresso e prosperidade. A pesquisadora comprova que, após um expressivo período de rapinagem europeia sobre a região, a ilusão esvaíra-se e os amazonenses ficaram a ver navios (europeus). Restou um prêmio de

31

consolação: as bolas de goma. A fenomenal metáfora da estrofe acima inspirou-me todas estas reflexões.

É de bom alvitre observarmos o narcisismo da lua quando ela, faceira, contempla sua face no espelho líquido do rio. É o narcisismo amazônico, tal como explica Santiago (1986, p. 116), ao comentar que o mito de Narciso adquire, em nossa literatura, características muito particulares: “Não é o homem que se contempla na água. No ambiente amazônico é a natureza que se sente atingida pelo narcisismo. Em virtude, talvez, da grande extensão da superfície líquida, sempre haverá um grande espelho a refletir o cosmos”.

Trata-se de uma imagem especular. Em versos bem concebidos, a estrofe pinta aos olhos do leitor a existência de duas luas: uma do céu e outra da terra. E é exatamente sobre esta última que recai o enfoque lírico. Ela é “náufraga”, “rolou no barranco”, é “faceira” e busca contemplar-se na imagem do rio. Só que a face que ela vê “de bubuia” pertence à outra lua, aquela “que no céu flutua”. Dessa forma, o narcisismo adquire uma feição de reciprocidade e empatia, pois cada uma das “duas” luas vê na face da outra a sua própria face, e assim, ego e alter ego entram em comunhão e se entrelaçam, unificando-se. Ao apontar para a face que flutua no céu, o eu-lírico maximiza o zoom do narcisismo, ou seja, o rio também se vê espelhado no céu, que é tomado como reflexo de suas águas.

Não poderíamos deixar de comentar a clara bipartição desta metáfora anímica, representada pelo brusco recorte temporal na configuração dos versos. Os dois primeiros introduzem uma “narrativa” (o verbo está no pretérito perfeito, apontando para o passado) que é abruptamente interrompida para focalizar uma cena do presente:

Passado

Náufraga bola de goma rolou no barranco a lua.

Presente

Faceira, vê de bubuia face que no céu flutua

Page 17: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

32

Uma conclusão preliminar a que se pode chegar a

respeito desta estrutura poética é que, embora a luz da lua sobre o barranco seja momentânea, passageira, o narcisismo lua-rio-céu é uma imagem “congelada”, que fica indelevelmente cristalizada na nossa retina. O luar pode se esvair ao final de uma noite, mas a faceirice narcísica da natureza eterniza-se.

Mas há outra questão a considerar e diz respeito à transformação do eu-lírico naquilo que expressa. Em O Ser e o tempo da poesia, Alfredo Bosi (1990, p. 57) trata do assunto, relacionando-o inicialmente com a pintura:

A um pintor o mestre zen aconselhou que se convertesse no bambu que desejava pintar. A arte deveria, no limite das suas forças, apagar a diferença, saltar o intervalo que separa o corpo da natureza. É precisamente o que faz a mão: adere à superfície da matéria ou penetra-a para modificá-la, para suprir a distância entre o que a natureza é e o que o homem quer que ela seja.

Temos, portanto, a chave de uma outra compreensão para os versos da estrofe inicial de “Paisagem”. Os dois primeiros – com o verbo no pretérito – indicam que a voz lírica, tal como a mão do pintor, se transformou naquilo que pretendia descrever. A A-m tornou-se, de súbito, a lua. O poeta é, portanto, um indivíduo em constante mutação. Conforme ainda expõe Bosi, a voz lírica “abre caminho para que se dê uma nova presença aos seres: a re-presentação do mundo sob as espécies de significados que o espírito descola do objeto”. (p. 57) Vem daí o caráter ilógico das imagens com que a lua foi representada. A segunda estrofe convida-nos a lançar o olhar para além do rio, perscrutando a paisagem da cidade:

33

Boa ponte a terra abraça num vigor ferro e cimento maternal ao igarapé dismilingüido no vento.

A ponte (elemento cultural), no seu vigor artificial,

abraça a terra (elemento natural), tendo o igarapé como cenário e o vento como testemunha. É um entrelaçamento natureza-cultura que nos sugere a ação do homem, que se faz presente pelas marcas da sua construção. Contudo, observando mais detalhadamente o cenário, constatamos que a natureza predomina sobre os artifícios humanos. À escassa presença do ferro e do cimento, sobejam águas e floresta. Menos construções e mais paisagens naturais.

Sintomaticamente, o verbo abraçar, aliado aos adjetivos boa e maternal, referindo-se à ponte, concorre para exaltar os feitos humanos e sugerir uma noção de harmonia e equilíbrio na convivência do natural com o cultural. Mas o vento, destoando do conjunto, prenuncia o desgaste da relação entre os elementos. O vocábulo dismilingüido – grafado com “i” e não com “e” na primeira sílaba, como seria a forma gramaticalmente correta – é a expressão concreta do desvirtuamento gráfico-fônico do significante simbolizando o destino de decrepitude dos seres. A assonância construída com base no fonema /i/, justamente no verso em que o vento está presente e salpicada nos dois versos anteriores, é um índice da sua força destruidora, cujo raio de ação se alonga por todo o cenário. Assim, a harmonia anunciada no início da estrofe revela-se momentânea e aparente, quando não ilusória.

A estrofe seguinte convida-nos a uma última contemplação do rio, que ficara para trás:

Entre verdes canaranas canoas dançam banzeiro, mom estrelas vagalumes acendem o seu banzeiro.

Page 18: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

34

Mais uma vez temos a abundância da paisagem natural, como era de se esperar. As canaranas formam um tapete verde sobre o rio, dando a impressão de pequenas ilhas cobertas de vegetais dentro do próprio caudal. No entanto, essa aparência de solidez se desfaz quando as águas se agitam formando banzeiro. Acompanhando a coreografia das canaranas, as canoas dançam. Novamente, cabe ao vento a missão de anular a ilusão de completa placidez e calmaria das águas e da paisagem. O vento produz agitação e, para quem se encontra à flor do rio, a dança é compulsória. Isso porque o “dançar” das canaranas e das canoas não é resultante de movimentos espontâneos, voluntários. O vento dita o compasso, o ritmo, a intensidade e até a frequência da dança. A elas cabe apenas o papel de elementos acessórios da coreografia aquático-eólica. Ao vento, como normalmente acontece em textos literários, dá-se uma conotação negativa. Embora possa, algumas vezes, representar forças criadoras, “entre os gregos”, segundo Chevalier e Gheerbrant (1991, p. 936), “os ventos eram divindades inquietas e turbulentas, contidas nas profundas cavernas das Ilhas Eólicas”. Foi com esse último sentido que se transpôs para a Literatura: o de serem os ventos agentes da destruição, espécie de auxiliares do tempo que nada poupa. Os dois versos que fecham esta terceira estrofe mostram uma comunhão entre o céu e a terra, a exemplo da estrofe anterior, onde a lua comunga narcisisticamente com o rio. Aqui novamente o narcisismo amazônico se faz perceber: os vaga-lumes buscam sua plenitude na luz das estrelas e com elas “acendem o seu luzeiro”. Mas diferentemente da estrofe inaugural do poema, em que há uma “simbiose” entre o céu e a terra (a lua mira-se no rio, que se mira no céu), nesta última o desejo narcísico encaminha-se numa via de mão única terra-céu. Uma vez mais entra em cena a antinomia essência versus aparência: a luz dos vaga-lumes não é uma luz autêntica. É mero reflexo das estrelas.

35

As canoas anunciam a presença do homem no cenário. A canoa é o único elemento não-natural no quadro apresentado. Entretanto, a presença humana, assim como nas estrofes anteriores, é apenas uma referência. O homem, de fato, não se encontra ali, havendo apenas as marcas de sua existência, ou seja, as canoas que dançam no porto ao ritmo do vento.

Na primeira estrofe, há uma remissão ao universo cultural através da bola de goma, a lembrar o material de que eram feitas as tapiocas; na segunda, presentifica-se o homem urbano afeito às marcas do progresso; na terceira, lembra-se o caboclo que, não alcançado pelas benesses do progresso, reduz o mundo à sua canoa. O poema ao qual pertencem estas três estrofes traduz a primeira visão de Manaus que salta das páginas de Vt, fazendo uma apresentação panorâmica da cidade. Emblematicamente, este texto pode ser tomado como uma sinopse do que se poderá encontrar na exploração da obra toda. O poema conta com três estrofes, o livro com três seções: “Terra”, “Água” e “Seres”. A primeira seção do livro, “Terra”, está voltada para a poetização da cidade em si, suas casas, ruas, monumentos etc.; a segunda, “Água”, aponta a influência do rio Negro sobre tudo e todos, estendendo-se por toda parte e moldando até o caráter dos indivíduos; a terceira, “Seres”, enfoca os humanos e não-humanos que povoam a cidade. Seguindo uma disposição diferente da ordem em que a obra se apresenta, o poema traz: a terra e o simbolismo das edificações na segunda estrofe; a água exercendo seu império absoluto na primeira e “encharcando” todo o poema; os seres, personificados no vaga-lume, no último quarteto. Também no livro, a água, embora tenha uma seção reservada para si, esparge seus filetes e torrentes por todas as páginas. A sugerida presença humana faz-se exatamente pelos elementos díspares da paisagem. A bola de goma, contrastando com a comunhão água-lua, evidencia a realidade

Page 19: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

36

infantil de uma cidade provinciana; a ponte de ferro e cimento, em contraposição à atmosfera lânguida do igarapé, presentifica o mundo urbano, resquício do fausto perdido; as canoas, imiscuindo-se entre água e canaranas, vaga-lumes e estrelas, são expressivas da existência do caboclo, para quem os benefícios do progresso ainda não se concretizaram. Da primeira à última estrofe, verbalizada principalmente nos vocábulos náufraga, bubuia, flutua, dismilingüido, dançam e banzeiro, a primeira impressão relativamente à cidade é de instabilidade e inconsistência. Não há solidez na paisagem nem nas relações. A fluidez das águas alonga-se para além de seus limites geográficos e passa a refletir a realidade postiça de uma cidade que está perdida entre dois mundos e ainda não encontrou sua verdadeira identidade. Por isso, tudo está vazio de homens, inclusive as canoas; a cidade quer ser cosmopolita, negar seu passado caboclo. Os verbos no presente tornam vívida essa imagem, posto que operam magicamente um recorte temporal, retirando o passado de sua linearidade estanque e dessacralizando-o aos nossos olhos. É este, enfim, o cartão-postal imagístico que a A-m nos oferece de sua cidade, como pista das próximas trilhas, preparando-nos o espírito para o contato mais “direto” com a mesma. 4.2 As casas A caracterização de uma cidade não pode prescindir da particularização de suas casas, pois estas constituem traços dominantes da paisagem urbana. Isto é tão expressivo que é possível, a partir do estilo, disposição e forma de utilização das casas, inferir sobre a feição preponderante do espaço urbano: de um lado as cidades grandes, ditas desenvolvidas, progressistas, modernas, contam com uma grande diversidade de linhas arquitetônicas, edifícios ladeados por muralhas, grades, portões eletrônicos, assemelhando-se a prisões

37

domiciliares ou cidadelas contra os perigos lá de fora. Dividindo o espaço com essas construções arrojadas, medram as favelas, com sua “lógica arquitetônica” particular, compostas de casas modestas, casebres onde sobeja não a estética mas a miséria. Por outro lado, há as cidades provincianas, tacanhas, de aspecto interiorano, cujas casas apresentam um feitio humilde e até certo ponto bucólico, com seus terreiros, cercas, varandas e quintais. No chamado período áureo da borracha, Manaus chegou a ser conhecida como “Paris dos Trópicos”, dada a expressiva presença da cultura francesa em seu sítio urbano. Perambularam pela cidade incontáveis levas de europeus que, ávidos de lucros que visavam auferir, investiram maciçamente na capital do Amazonas, no sentido de embelezá-la e torná-la para si mesmos uma cidade cômoda e esplendorosa, à imagem e semelhança das capitais europeias, pelo fiat lux do capital.

Segundo Genesino Braga (1975, p. 21), o escritor Mário de Andrade dissera, no início do século XX: “Manaus é uma deliciosa mulher de duas idades. Já foi uma virgem linda. Hoje é uma mulher fecunda que traz na sua atualidade a presença do passado”. O mesmo cronista comenta ainda que, nesse período faustoso, a “cidade-mulher” vivia se enfeitando. Algumas marcas desse “estojo de maquiagem” ainda hoje testemunham o período leviano e perdulário: o Teatro Amazonas, o Monumento à Abertura dos Portos, o Palácio Rio Negro, e tantos outros edifícios que foram semeados pela cidade.

Mas dividindo o espaço citadino com essas joias suntuosas havia as residências menos pomposas e mais tropicais, mais próximas da “virgem” que da “mulher” deflorada. E são estas últimas que recebem uma atenção especial da A-m em Vt que, longe de ser um livro ufanista, tece uma fina crítica às injustiças sociais que se perpetraram em Manaus. As casas que recebem tratamento lírico exemplar são exatamente aquelas que mostravam a autêntica face da cidade, a face não maquiada com os vernizes europeus – as

Page 20: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

38

residências das famílias menos abastadas, representantes do sangue tropical. O presente da A-m é o da cidade grande, que se opõe ao passado, no qual se incrusta, qual pedra preciosa, uma cidade pequena que precisa ser recuperada. Este é o dilema sobre o qual se centra a criação de Vt. Aliás, o teórico Gaston Bachelard (1993) considerou esse problema de modo muito perspicaz. Partindo de estruturas representativas – a cidade grande é vertical e a pequena, horizontal – expressa à perfeição o que deve ser a angústia da A-m: À falta de valores íntimos de verticalidade, é preciso acrescentar a falta de cosmicidade da casa das grandes cidades. As casas, ali, já não estão na natureza. As relações da moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo é máquina e a vida íntima foge por todos os lados.

A essa representação, Bachelard acrescenta mais uma, de extrema importância: os edifícios, que fazem as vezes das casas, nas metrópoles, eliminam a presença da escada, cuja função acaba sendo simbólica, posto terem sido substituídas pelos elevadores. Não ter escadas para subir e descer cria a angústia. Já nas casas propriamente ditas, que caracterizam as cidades pequenas, a escada é presença constante:

A casa de três andares, a mais simples com referência à altura essencial, tem um porão, um pavimento térreo e um sótão (...) A escada que conduz ao porão, descemo-la sempre. É a descida que fixamos em nossas lembranças, é a descida que caracteriza o seu onirismo. A escada do sótão, mais abrupta, mais gasta, nós a subimos sempre. Ela traz o signo da ascensão para a mais tranquila solidão (BACHELARD, 1993, p. 43).

Para um estudo de Vt, importa acompanhar a A-m em

sua descida ao porão. Sem deixar, porém, de compreendê-la em seu estado de solidão, em sua permanência angustiante no sótão. É a neurose do ser solitário a força motora da sua poesia. Nela, busca-se a simplicidade do outrora como remédio eficaz contra os males do presente. Em relação a esse

39

aspecto, novamente temos chaves interpretativas fornecidas por Bachelard:

A simplicidade, por vezes gabada de forma excessivamente racional, não é uma fonte muito potente de onirismo. É necessário chegar à primitividade do refúgio. E, para além das lembranças positivas que são material para uma psicologia positiva, é preciso reabrir o campo das imagens primitivas que talvez tenham sido os centros de fixação das lembranças que permaneceram na memória (1993, p. 47).

A busca do refúgio, situado além do meramente simples, expressa a estrutura poética de Vt. A A-m vai mapeando as casas com muita vivacidade, vestindo-as de uma incrível roupagem metafórica e reserva as pinceladas mais pródigas para as residências de sua própria família, isso porque eram essas casas que ela conhecia mais a fundo, efetivamente. Além disso, não havia contrastes tão acentuados entre as diversas residências das famílias barés. Os contrastes mais evidentes ficavam por conta da bipolarização amazonenses x europeus.

Estão bem dimensionadas na obra a casa de seus pais, a do avô e a da tia-avó, além de outras não marcadas relativamente à propriedade. Cada recôndito vai recebendo as luzes da memória sobre as sombras do passado, a poeira vai sendo espanada por uma linguagem a um tempo nostálgica e questionadora.

A visita às casas – seus porões – vai desvelando espaços e coisas que encobrem histórias de amores e desamores, sonhos e pesadelos, mistério, fascinação e medo. A aparência provinciana dessas habitações levou a A-m a defini-las laconicamente como um “cenário arcaico”. Cenário, no contexto em que se insere esta expressão, significa “casa” ou, extensivamente, a rua, o bairro, o panorama urbano formado pelas casas. Verdadeiramente, a casa onde se mora é sempre um cenário, não apenas na acepção panorâmica, visual, mas

Page 21: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

40

também – e fundamentalmente – no sentido do espaço onde fatos e situações são vividos, experiências são forjadas, histórias de vida são tecidas e vão, com o passar dos anos, transformando-se em reminiscências. Na sua função de abrigo e proteção, a casa torna-se uma extensão do eu e um espaço interativo por natureza.

Bachelard (1993) considera que o habitante de uma casa tende a vivê-la, mediante o sonho, na sua realidade e na sua virtualidade. Assim o indivíduo acaba por sensibilizar os limites de sua habitação. Depois de muitos anos distante da casa natal, somos capazes de voltar a ela em reminiscências, sem tropeçar nos degraus da escada, subir até o sótão na mais completa escuridão e não errar o caminho, reconhecer os antigos sons e repetir os mesmos gestos do passado que se internalizaram em nós. Segundo Bachelard (1993, p. 24), “a casa é nosso primeiro mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. Um cosmos em toda a acepção do termo”. Antes de ser apresentado ao mundo, “o homem é colocado no berço da casa. E sempre, em nossos devaneios, ela é um grande berço. (...) A vida começa fechada, protegida, agasalhada no regaço da casa”. (p. 26) Os poemas de Vt atestam a validade de todas as considerações acima, pois as casas são privilegiadas na obra, como podemos constatar na visita que faremos a elas. Nosso contato com as casas de Vt começa pelo terreiro, componente indispensável na configuração de uma cidade pequena, como era ainda aquela Manaus. Primeira via de acesso às residências, o terreiro era o espaço ideal para as conversas noturnas dos mais velhos, sonhos e planos dos jovens e brincadeiras das crianças. Era também o espaço que se prestava aos festejos religiosos e pagãos. Conhecer o terreiro de uma casa implicava travar conhecimento de incontáveis histórias de festas, benquerenças e malquerenças. Entre as festas, destacavam-se os festejos juninos, como atesta a seguinte estrofe do poema “Junhos”:

41

Na penumbra de terreiros de dias idos varridos líamos em turvas lâminas ou em lágrimas de velas as iniciais dos messias. E resgatávamos moedas às cinzas de altas fogueiras para dá-las nas igrejas a mendigos zés-ninguéns xarás de encantados príncipes. (p. 177)

Os versos explicitam o tom religioso das festas de

junho, ao lado da fogueira. A primeira parte da estrofe (cinco primeiros versos) mostra que os folguedos juninos eram a oportunidade áurea que tinham as moças solteiras de sonhar em alcançar o “príncipe encantado” e investir concretamente na direção dessa conquista. Mandava a tradição que cada moça solteira segurasse uma vela acesa e deixasse os pingos caírem, desenhando assim a inicial do nome do futuro marido. A A-m, ao relatar essa manifestação popular, tece um diálogo com a literatura bíblica, que apresenta o Messias (Jesus Cristo) como o noivo ansiosamente esperado pela noiva (a igreja) para resgatá-la do deserto e levá-la ao paraíso, onde celebrarão as bodas. Empregando uma realidade para representar outra, ela lança mão de uma bela alegoria e cognomina os sonhados resgatadores como “os messias”.

Apesar de todos os sonhos de conquista e dos veneráveis apelos aos santos, o empreendimento era quase sempre malogrado, tal como é retratado na estrofe seguinte, do mesmo poema:

Quem teve sorte arranjou Seu plebeu (ex-príncipe No remoto mundo dos sonhos) E não come sozinha as Amargas batatas de junhos Cegos sem luz de cometas E de girassóis irrompendo

Page 22: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

42

Loucos entre joelhos e pés Assustados por bombinhas.

Ser feliz, sugere o poema, equivalia a encontrar alguém e isso era questão de sorte, mesmo vindo esse príncipe travestido de plebeu, da roupa à alma, como retratado na primeira estrofe através da antítese que nivela os “mendigos zés-ninguéns” com os “encantados príncipes”. A infelicidade traduzia-se em solidão, ausência de alguém para ser remetente e destinatário das afeições mais profundas. Mais ardentes que as fogueiras de lenhas crepitantes, que conjugavam no chão brasa e fumaça, era o desejo látego de encontrar um homem para amar. Pesava sobre as mulheres solteiras o pavor de envelhecer solitárias e carregar pelo resto da vida o estigma de uma quase maldição social. Por isso, ao mesmo tempo em que ardia a fogueira de lenha, ardia também uma outra, ainda mais cálida, esta interior – feita de paixões. No fecho do poema, a A-m, olhando para trás, constata:

O que sobra das fogueiras - de lenhas e de paixões – É a triste brasa da lembrança Que já sem fôlego assopro.

O poema “Céus de junho” mostra que, enquanto

Altas labaredas de fulvas fogueiras

a lamberem lépidas o carvão das trevas

crepitam a explosão de miúdos mundos, (p. 182)

Os humanos, miúdas partículas de um universo

assombrosamente grande, penitenciam-se ajoelhados no

43

terreiro, tornando-se ainda menores, mas tentando, pelo viés da humildade, alcançar o céu mediante a intercessão dos santos. Conforme o poema “Junhos”, enquanto essa sublimação não acontecia, restava a resignação de contemplar o fogo exterior na sua gula inflamável e tentar aplacar a formidável ardência do coração. Era o desejo de que o calor das fogueiras espantasse o frio oriundo da Cordilheira dos Andes e de que a luz dos fogos iluminasse os corações de esperança. E como a vida é um eterno recomeço, no rescaldo de tudo persistia, sobre as cinzas, a esperança de que um novo ano chegasse e trouxesse a compensação pelo sonho e pela espera. Não havia casa sem terreiro nem terreiros sem as tais palpitações. O brilho oriundo das fogueiras, das bombas, dos cometas artificiais e até das velas traduzia o clima fugaz e ilusório de tudo. Inquietante era a constatação de que, extintas as labaredas, os terreiros ficavam fadados a um longo período de trevas absolutas. Arrefecido o calor das festas pelo escoar do tempo, lá estava o terreiro, cumprindo a sua função ordinária de acesso à casa, de espaço de vida e devaneios. Após a passagem pelo terreiro, convém entrar na casa, a fim de conhecê-la por dentro. A A-m dá um passeio esclarecedor pelos compartimentos e pela estrutura interna das moradias da família. Ao fazê-lo, personifica cada recôndito inventariado, pontuando os espaços com “visível” intimidade. O chão está vivo e essa vida corporifica-se em minúsculos seres: minhocas, pintos, piolhos de cobra e formigas, que fazem do ambiente pasto e habitação. Alguns usos e costumes aparecem bem delineados na metaforização dos cômodos e detalhes arquitetônicos, quais sejam: as janelas, os olhos-de-boi, as salas, os forros, o teto, a cozinha, o porão, o sótão, o terraço e, como extensão, o quintal.

Page 23: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

44

Assim, vejamos: a) As janelas eram guarnecidas de cortinas

estampadas:

cortinas de rico labirinto onde borboletas e altivos pavões abrem asas e caudas na brisa (“A casa”, p. 163)

b) Os olhos-de-boi possibilitavam a visão, a luz e a

ventilação para dentro dos porões. Eles

Ventilam porões úmidos de mofo tecendo tapete nas rosáceas. (“A casa”, p. 163)

c) As salas tinham retratos de família pendurados na

parede e constituíam espaços nobres dentro das residências. Lá ficavam o piano e as escalas, como num palco apropriado, à espera de dedos aprendizes, perto da cadeira de balanço que suportava o peso da avó e fazia ranger o assoalho:

Dançam castiçais e miçangas e vidrilhos ao som de sonatinas gaguejadas por dedos aprendizes no piano de Leipzig. Ah faina das escalas, Hanons e Czernies! (“A casa”, p. 164)

Thiago de Mello (1984, p. 54) informa que o som do piano invadia diariamente os mais diferentes bairros de Manaus. Chega a exagerar afirmando que “todas as mocinhas” da época e muitos rapazes estudavam piano ou violino:

Som que não faltava nenhum dia e que nascia simultâneo nos mais diferentes bairros de Manaus era o do piano. Perdão, dos muitos pianos (os pais faziam sacrifícios mas

45

compravam o instrumento, todas as mocinhas – e muitos rapazes também – estudavam piano ou violino). Mas de todos se ouvia uma linha melódica, a da escala cromática, o dedilhado ia e voltava, sem parar recomeçava no tom imediato (1984, p. 54).

Moacir Andrade (1984) reitera essa informação

esclarecendo que, em meados da década de 1940, Manaus vivia isolada do resto do mundo e seus pontos de contato com o mundo lá fora eram o rádio e a vitrola de cordas importados, mas o grande centro das atenções na cidade era mesmo o piano:

O piano foi de tal importância na capital da borracha que havia pessoas especializadas em transportar pianos, grande era a necessidade e o interesse que a sociedade tinha em possuir esse mágico instrumento musical. Eram os carregadores de piano, italianos fortes e gordos que transportavam o importante instrumento sobre suas cabeças, já que não havia veículos especializados para essa finalidade. Os técnicos e afinadores aconselhavam o transporte suave sobre as cabeças desses profissionais para evitar a desastrosa vibração das rodas das ‘fubicas’ ou das carroças que eram ainda piores, sobre os paralelepípedos que fatalmente desafinariam as suas cordas (1984, p. 131).

Segundo ele, havia pianos nos cinemas, bares, teatros,

hotéis, clubes esportivos, escolas, restaurantes e muitas casas residenciais. E nestes termos refere-se ao que chama de bom hábito daquela população: “A profissão de pianista surgiu como uma grande necessidade daquela época e as escolas tinham que se esmerar em entregar à sociedade boas pianistas que eram em seguida contratadas para todos os cinemas e restaurantes da cidade”. (1984, p. 134)

Daí se explica o fato de o piano ocupar espaço privilegiado nas salas das residências.

d) Nos altos forros da sala, situados entre o teto e o

telhado, os morcegos estabeleciam moradia, perturbavam o

Page 24: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

46

sossego de outros seres, além dos humanos, como os sapos ao pé do muro. Era também na sala que

Caolhos os rádios acendiam as mágicas pupilas De gatos e vozes espectrais sem apoio de bocas E rostos chegava, de que mundo, de que mapa?

(“Ensaiando partidas”, p. 171) Com referência aos rádios, ocorre uma metonimização da realidade, sugerindo-se um mundo maior partido em pedaços, fragmentado, invadindo o ambiente da sala, onde o constante circular de parentes era indício de uma família numerosa. O rádio ainda era o meio de comunicação e entretenimento por excelência. Trazia lá de fora, de outros páramos, fragmentos do mundo para dentro do lar. Por muito tempo, retalhos de propaganda e de moda; depois, estilhaços da guerra que atravessavam os oceanos. E tudo acabava sendo muito intrigante para a menina: ouvia-se a voz mas não se via o rosto nem a boca. O esfacelamento produzido pela guerra materializava-se num aparelho e nas mensagens que ele transmitia!

e) À parte, no teto, o ventilador, qual uma “flor de corola metálica”, fazia a sua parte para o bem-estar da família, amenizando a quentura tropical e “criando brisas” na sala.

f) A cozinha provocava a evocação de odores picantes bem familiares, oriundos do “massacre de alhos e pimentas / no bojo cantante do almofariz”, preparados para amassar bifes sangrentos e gordurosos. Podia-se “ouvir” o chiar crepitante do carvão em brasa no fogareiro de argola, signo de uma época em que a eletricidade não era acessível a todos, assim como a bilha “encantada” posta sobre a mesa.

A bilha era um vasilhame de barro, à semelhança de uma grande garrafa, onde se punha água para minorar a sede dos moradores da casa:

47

Na mesa quando em menina a água posta em sossego sobre a toalha do almoço um poço de barro e limo. Ao inclinar-lhe o gargalo improvisava uma fonte: a linfa escorria fria pingo de chuva vadia com xixi de oculta jia. (“A bilha encantada”, p. 187)

Costumeiramente, uma jia (rã) era posta dentro da bilha, pois acreditava-se que com tal providência a água se mantinha fria, já que a falta de energia elétrica significava também ausência de refrigeradores nas casas. Consequentemente, as pessoas se submetiam a tomar água “com xixi de oculta jia”, pois não é difícil de se imaginar que o anuro, passando meses e até anos preso num repositório de água, liberte-se ali mesmo, obviamente, de todos os seus incômodos fisiológicos, como urina e fezes. Nenhum adulto, no dia-a-dia, atinava com essa realidade, mas o olhar perspicaz da menina sondava aquilo com um misto de repulsa e curiosidade.

g) As casas, coincidindo com as observações de Bachelard (1993), tinham porão e sótão, pontos localizados em extremos diferentes na configuração espacial do ambiente. Vale a pena ressaltar que o teórico citado, ao comparar esses dois extremos verticais da moradia, argumenta que é no porão que se agitam “seres mais lentos, menos saltitantes, mais misteriosos (...) No porão há trevas dia e noite. Mesmo com uma vela na mão, o homem vê sombras dançarem na muralha negra do porão”. (1993, p. 37/8) No sótão da A-m medram morcegos, enquanto em seu porão imperam a umidade, o mofo e a escuridão, que apenas recebe tênues nesgas de luz através do olho-de-boi:

Page 25: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

48

No forro de altas salas Morcegos rompiam o sossego De sapos amoitados cautos Ao pé de baixos muros. (“Onde reinavam sombras”, p. 160) Enquanto humílimos olhos-de-boi Ventilam porões úmidos de mofo Tecendo tapetes nas rosáceas. (“A casa”, p. 163)

h) O terraço era outro requisito indispensável às

residências. Ali, goteiras intermitentes mantinham o seu ritmo monocórdico e incômodo, libertando as renitentes gotas de chuva:

E chega a chuva tápititápiti das goteiras tão sem cerimônia beirais esbanjando água em bica sutis lambrequis lacrimejando gotas no amplo regaço do terraço. (“A casa”, p. 164)

i) A varanda também era um traço inerente à arquitetura familiar, assim como a latada e o oitão:

Latadas prenhes sacudiam o ouro de alamandas como sinos mudos. No oitão a dama-da-noite engalanava o jardim com cheiro autoritário. (“Onde reinavam sombras”, p. 160)

j) Possivelmente o quintal era, entre os espaços

exteriores à casa mas que funcionavam como uma extensão dela, o mais representativo. Evidentemente, assim como uma casa não começava nas suas paredes frontais e sim no terreiro, de igual modo ela não terminava nos limites das paredes

49

posteriores. Estendia-se até o quintal, em geral grande e pródigo em variedades vegetais e animais. Para a A-m o quintal era o mundo. Ela conceitua:

O mundo? Aquele quintal Pulando cercas e ruas Até mergulhar raízes No raso rio vizinho. (“Cenário arcaico”, p. 162)

Em seguida, define como “meus olhos ciscando o mundo” o ato de passar em revista o quintal. Tudo nos quintais era abundante, e isso está bem marcado no poema “Cenário arcaico”. Primeiramente, pelas expressões hiperbólicas, como “mil sombras à flor da terra” e “chuvas de frutas maduras”; em segundo lugar, pela repetição do substantivo adjetivado, sem vírgulas na enumeração, sugerindo a idéia de acúmulo:

“manga espada manga rosa / manga jasmim manga sapo”. O quintal era repleto de movimentos, aromas, sons e cores. Havia “retalhos de céu” por entre o dossel das folhas, os papagaios e periquitos faziam intermináveis algazarras e os mosquitos contribuíam para essa “orquestra” com os seus zumbidos. Contrastando com este celeiro de vida, a morte patenteava sua presença na “carniça” das frutas apodrecidas e nos restos mortais de animais desenterrados pela força das enxurradas. Folhas caíam e, enquanto se decompunham, chegavam a formar um segundo solo, falso, sobre o chão, propiciando habitat para outros seres. No quintal havia sempre um lugar reservado à cacimba, posto de abastecimento das bilhas e potes, em cuja vizinhança acumulavam-se pedras tingidas de lodo e limo. E para dar fortes pinceladas de mistério ao ambiente, juntavam-se às sombras árvores antropomórficas ou zoomórficas, a

Page 26: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

50

exemplo dos “troncos de pardas orelhas” e da “mangueira encantada que tinha ancas, lombo e crinas de cavalo”. A A-m “medievaliza” o seu quintal, dando-lhe contornos de um feudo sui generis cujo suserano – o avô – era um patriarca sem maiores poderes e domínios. Lançando o olhar lânguido e saudosista sobre a extensão daquelas terras, a única coisa que seus olhos semicerrados podiam divisar era o prenúncio do fim:

O avô retira o Pateck da algibeira. Parece imaginar que os dias daquele mundo estão contados. Saúvas ferozes e implacáveis virão pelas gretas entre parale- lepípedos picotar os oitizeiros e tomar conta da casa para sempre. (“A casa”, p. 165)

4.3 As ruas

As ruas de uma cidade são muito mais que um mero

caminho ou, como dizia a pesquisadora Ana Carlos, em A Cidade (1992), um lugar de passagem. As ruas urbanas sustentam o presente espelhando o rosário de contradições sociais e as relações de dominação reinantes no trato citadino. Estas ideias complementam-se em outro livro da mesma autora, intitulado O lugar do/no mundo (1996), onde explicita que essa espacialidade das relações sociais se revela nos gestos, nos olhares e nos rostos, que são índices incontestáveis das diferenças sociais. Para ela,

“na rua são claras as formas de apropriação do lugar e da cidade, e é aí que afloram as diferenças e as contradições que permeiam a vida cotidiana, bem como as tendências de homogeneização e normatização imposta pela estratégia do poder que subordina o social” (1996, p. 86).

51

No entanto, mais do que refletir as formas de organização da sociedade num determinado momento histórico, as ruas contam a história dessas formas de estruturação. A pesquisadora comprova que, à medida que a cidade vai crescendo, as formas de utilização da rua vão se alterando sensivelmente. As ruas deixam de ser pontos de encontro, espaços de lazer, para serem lugar de passagem. As cadeiras vão sendo expulsas das calçadas pelos carros, as festas de rua vão se confinando para dentro de quadras, guarnecidas com muros e portões, e as casas passam a reforçar a individualidade, “reforçando a ideia do privado, com as pessoas trancadas dentro, sem contato com a vizinhança, diante da televisão”. (1996, p. 86)

Nas ruas das metrópoles, espaços da não-comunicação, reino da mercadoria, dão-se simultaneamente a manifestação das diferenças e a explicitação da normatização do cotidiano. Nelas, a máxima de que um indivíduo pode se sentir sozinho no meio da multidão é perfeitamente aplicável.

Em A Cidade (1992, p. 40), Ana Carlos mostra que “da observação da paisagem urbana depreendem-se dois elementos fundamentais: o primeiro diz respeito ao ‘espaço construído’, imobilizado nas construções; o segundo diz respeito ao movimento da vida”.

Boa parte dos cronistas que escreveram sobre as ruas de Manaus nas décadas anteriores aos anos 40 e 50, fizeram-no com um entusiasmo romântico-ufanista. Pelo que se depreende da maioria dessas leituras, nas décadas iniciais do século XX Manaus era uma cidade festeira, com um trato urbanitário de causar inveja a muitas grandes cidades modernas: ruas cortadas por bondes elétricos, água encanada, luz elétrica, porto flutuante e tantos outros requisitos que causavam admiração. Não são poucas as páginas que exaltam efusivamente os casarões enjanelados e assobradados cuja beleza arquitetônica e riqueza enchiam os olhos até mesmo de europeus, juntamente com a vida noturna intensa e o fervilhante comércio de feições cosmopolitas.

Page 27: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

52

No livro A grande crise (1985, p. 33), Antonio Loureiro esclarece que a cidade era

rica, progressista e alegre, de ruas largas, calçadas com granito e pedras de liós importados de Portugal, sombreada por frondosas mangueiras e jardins bem cuidados, com belas fontes e monumentos, tinha todos os requisitos de uma grande urbe moderna. Água encanada e telefones, ainda no império, energia elétrica a partir de 1896; redes de esgoto em construção e bondes elétricos, desde 1895, espantando até os europeus no raiar do século, com suas alucinantes velocidades de 40 e 50 quilômetros por hora, nas linhas de aço espalhadas por toda a malha urbana e penetrando na floresta, até aos arrabaldes mais distantes. O seu porto flutuante, obra-prima da engenharia inglesa, construído a partir de 1900, recebia navio de todos os calados e das mais diversas bandeiras (...) O movimentado centro comercial regurgitando de gentes de todas as raças – nordestinos, ingleses, peruanos, franceses, judeus, norte-africanos, americanos, caboclos, alemães, índios, italianos, sírios, libaneses, sulistas e portugueses.

Era o tempo da ostentação na “Paris dos Trópicos”. As descrições que se tem da capital referentes ao período pintam-nos, via de regra, uma cidade invejável, incrivelmente saneada. Porém, há uma evidente omissão relativamente aos mecanismos de dominação e exclusão que se perpetuaram até mesmo depois da conhecida grande crise da borracha. Alguns trabalhos científicos recentes têm procurado levantar essas questões, até mesmo como um tributo à história e à verdade dos fatos. Márcio Souza (1977) chama essa europeização de Manaus de “caricatura da civilização” e tece argumentos que não podem ser desprezados. Afirma que aquela cidade na verdade não era uma cidade, e sim um cenário montado nos trópicos para o gosto capitalista. Define-a como

a cidade dos arrivistas, onde tudo foi feito às pressas. Um centro político de importância menor que radicalizou suas contradições sociais, impondo aos homens os gestos

53

capazes de transformá-los em vegetais. Uma cidade que sempre mereceu o desprezo da república, sempre assumida como uma cidadela colonial e ponta avançada dos apetites da metrópole, o que transformou nossa elite em funcionários subalternos e acomodados. Cercada pela selva, Manaus institucionalizou o isolamento como um preciso aspecto ornamental, tomando tudo por uma linguagem insólita e estéril, pela qual gerações inteiras viveram e morreram encarceradas (1977, p. 166).

Com o crescente agravamento da crise da borracha no mercado importador, a cidade começou a entrar num profundo processo de declínio, no sentido de que estava sendo desnudada da roupagem europeia de que fora vestida. Desmontava-se paulatinamente o circo da cidade-cenário que tinha sido plantada na floresta, e foi ficando apenas o estigma da passagem do arrivismo alienígena por estas plagas. A A-m, em um passeio pelas ruas da cidade, descortina com o seu olhar um panorama ímpar, registrado no poema “Elegia derramada”, o mais discursivo e prosaico de todos os textos de Vt, que pinta aos olhos do leitor o mais vasto painel da cidade de Manaus. “Elegia derramada” possui uma só estrofe, formada por 62 versos heterométricos, cujas extensões oscilam entre 15 e 22 sílabas poéticas. Como se pode perceber, são versos longos espalhados por uma longa estrofe. Não se pode, no entanto, entender o termo “longo” como enfadonho neste caso. Na verdade, há nos versos um ritmo bem marcado, abundantes assonâncias e aliterações somadas às rimas internas. O poema ocupa todo o espaço do papel, em duas páginas, sendo que cada verso representa uma rua que se alonga pelo papel-cidade, espargindo sobre ele as impressões de cores, sons, luzes, aromas etc. A estrofe-poema possui oito blocos, sendo que cada um corresponde a um aspecto da cidade. A soma de todos eles forma um painel narrativo-descritivo-imagístico da capital. Cada bloco inicia-se invariavelmente com a evocação do

Page 28: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

54

substantivo “Manaus”, sendo este sempre qualificado por adjuntos adnominais em série. Assim: São construções paratáticas em que o termo “Manaus” tem sintaxe essencialmente ambígua. À primeira vista parece ser sujeito, mas essa impressão não se sustenta, uma vez que não há predicado, e sem predicado não há sujeito; poderia ser vocativo, no entanto a ausência do diálogo e da 2ª pessoa anula esta possibilidade; resta, então, a alternativa de adjunto adverbial, e esta parece ser a mais apropriada: um adjunto adverbial que expressa circunstância de lugar e recebe seguidas especificações. Assim, a cidade é focalizada num retrato multifacetado. O núcleo multiplica-se nos determinantes que a ele se agregam. Em cada bloco o leitor é convidado a se deixar envolver por algumas das sensações que invadem as ruas. O leitor parte do núcleo “Manaus” e segue pelas ruas, em múltiplas direções, registrando a sensação preponderante. Eis a configuração do poema e seu conteúdo:

ELEGIA DERRAMADA

Manaus + adn + adn + adn + adn ...

Manaus Núcleo

Ponto de partida

Bloco 1 diversão e religião

Bloco 2 sons da cidade

Bloco 3 aromas da cidade

Bloco 4 festas, roupas e cores

Bloco 5 rivalidades políticas

Bloco 6 comércio cosmopolita

Bloco 7 igarapés e o rio

Bloco 8 aves, árvores, animais

55

A) Na exploração do poema, conforme mostra o gráfico acima, verificamos que o primeiro bloco descreve a diversão e a religião em matizes incontestes:

Manaus de matinês que sabem a flertes e chicletes. Chaplin, bangue-bangues, Gordo e Magro, astros a brilhar nas telas dos cines Politeama, Guarany, Avenida e Eden. Noturnas madrugadas de sinos, galos e lerdas estrelas, alturas de lua morosa, sobras de chuva pelas sarjetas. No púlpito da Matriz o padre possesso vocifera contra comunistas e protestantes e joga as chamas do inferno para apagar os irreverentes bocejos nos bancos da igreja.

(p. 166/7)

Os três versos iniciais não apenas nomeiam os quatro principais cinemas que havia no centro da cidade à época, mas também exibem os tipos de atração mais comuns que naqueles idos faziam o sucesso das matinês: humor e faroeste. A respeito dos cinemas citados, a escritora Selda Vale da Costa (1996) precisa a localização dos mesmos: O Polyteama localizava-se na esquina das avenidas Getúlio Vargas e 7 de Setembro; O Guarany, na rua Floriano Peixoto, nas imediações da Praça Heliodoro Balbi (Praça da Polícia); O Avenida, na avenida Eduardo Ribeiro; O Éden, na rua Jônatas Pedrosa. Todos eles funcionaram até a década de 70 e 80 do século XX, quando vieram a definhar. Péres (1984, p. 119-20) comenta que nenhuma diversão era capaz de suplantar o cinema naquela época:

Nós nos familiarizávamos com o mundo do cinema, antes mesmo de assistir ao primeiro filme, através de uma revista especializada, a Cena Muda, que publicava um variado noticiário sobre o assunto. Fartamente ilustrada, constituía a grande fonte onde nossas tias, irmãs e primas tiravam as fotos dos astros e estrelas em voga, as quais, cuidadosamente recortadas, iam

Page 29: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

56

enriquecer seus álbuns (...) Como todo menino do meu tempo, eu me iniciei com as comédias de Carlitos, do Gordo e o Magro e de Harold Iloyd, e creio que nunca mais na vida vou dar, outra vez, as espontâneas gargalhadas que eles arrancaram de mim... Depois vieram os filmes de Western classe B, primários no enredo e na realização, que se limitavam a uma seqüência confusa de socos, tiroteios e correrias, com o happy end tradicional.

Nos dois versos seguintes, vem a reafirmação da precariedade da iluminação elétrica (“noturnas madrugadas”) e o reinado da lua e das estrelas associado a dois emblemas de uma cidade pequena: sinos e galos. Mas o traçado luminoso do firmamento produz uma sensação de tédio, como se vê na adjetivação semanticamente negativa:

madrugadas .......... noturnas lua ........................ morosa estrelas ................. lerdas

A atmosfera entediante avulta-se nas “sobras de chuvas pelas sarjetas”. É a ressaca que pesa sobre o corpo insone que se desgastou em diversões. O que sobra para a igreja são os bocejos – a eloquência do tédio. É importante observar, nos três últimos versos, que o adjetivo “possesso” – aquele que se encontra possuído por demônios – é usado para caracterizar o padre, que se arroga representante de Deus, e não os “impenitentes”, a quem ele destina os seus anátemas. Esse detalhamento ganha profundidade pelo fato de ser esse adjetivo um adjunto e não um predicativo. Apenas para efeito de realce do verso em questão, contrapomos abaixo a diferença paradigmática entre os dois termos, materializada na pontuação:

(1) o padre possesso vocifera contra; (2) o padre, possesso, vocifera contra.

57

Em (1) a qualidade “possesso” é inerente ao padre. Equivale a dizer que ele “é” possesso;

Em (2) a mesma qualidade, atribuída ao mesmo ser, apresenta-se como momentânea, situacional, equivalendo a dizer que ele “está” possesso num determinado instante, por alguma razão.

Cremos que esta contraposição pode contribuir para aclarar a idéia de que a A-m, ao empregar a primeira construção, confere perpetuidade ao temperamento nada cristão do sacerdote: uma postura odiosa, irascível, reforçada pelo verbo “vociferar”, expressivo do desajuste na comunicação. Vociferação é a violência, pelo verbo, de quem não consegue persuadir, conquistar através do discurso amistoso. Vociferar é utilizar a voz com o tempero da cólera. Nessa perspectiva, o cura parece bem mais próximo das chamas do inferno do que aqueles que ele intenta condenar, e a quem o catolicismo reserva as mais sérias reprimendas: comunistas e protestantes.

Sendo o verso uma unidade estilística, convém salientar que a forma como a preposição “contra” foi engastada no verso em questão (no final do verso, o que parece incomum, mesmo havendo cavalgamento) é uma construção que ressalta a atitude de contrariedade do representante da Igreja. Assim, a oposição aponta para o que está acima (cinemas e diversões) e abaixo (comunistas, protestantes e pessoas irreverentes). Como metonimicamente o padre é a Igreja representada (a parte que personifica o todo), vislumbramos neste primeiro bloco um claro perfilamento da A-m ao lado

... O padre possesso vocifera contra

cinemas e diversões

protestantes, comunistas e irreverentes

Page 30: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

58

dos que reprovam a austeridade moralizante da Igreja, que se opõe a tudo que foge aos seus domínios e interesses. Essa ideia repete-se em outros poemas e reaparece em outro capítulo deste livro. B) o segundo bloco abre-se com uma multiplicidade de sugestões onomatopaicas:

Manaus que acorda com bondes dlém-dlém por ruas de pedra, resmungo de lanchas pelas barrancas a luzir lamparinas, ruído de serras a esfarelar lenha pras bandas do Caxangá, bate-bate de lavadeiras limpando as nódoas da vida nas propícias cacimbas e rasas correntezas do Quarenta.

O primeiro som vindo das ruas, neste bloco, é o barulho dos bondes elétricos. Há um outro texto que se refere aos bondes, personificando-os. Trata-se do poema “Sesta”: (p. 170)

Os raros bondes carregam A paisagem cantando na Pauta de trilhos em brasa.

O vocábulo “raros”, utilizado no primeiro dos três versos acima, aponta para duas direções interpretativas: a raridade pode traduzir a ideia de exotismo, posto que, sendo um meio de transporte de natureza alienígena, contribuía para dar à cidade uma feição diferente, estranha à cadência natural da região. Imagine-se, em meio ao lento fluir de uma cidade provinciana, na primeira metade do século XX, veículos elétricos importados da Europa atravessando as ruas numa velocidade vertiginosa para a época: uma média de 40 quilômetros por hora! Por outro lado, essa referida raridade pode simbolizar a escassez dos bondes que, nos anos quarenta, reduziam-se a poucos carros, em franco ritmo de desativação. Na verdade, os bondes exerceram um papel social inestimável na construção da memória da capital amazonense.

59

Muito mais do que meios de transporte, institucionalizaram-se como espaço de interação social, recreativa e até amorosa. Eram eles que transformavam vidros em cerol para as linhas dos papagaios dos meninos; era neles que as famílias realizavam seus passeios mais requintados; eles emprestavam suas engrenagens ao morcegamento dos rapazes à cata de aventura. O morcegamento, segundo Thiago de Mello (1984, p. 102-3), era um esporte arriscado que consistia em

tomar o bonde em movimento e logo em seguida saltar. Quando o veículo vinha em marcha moderada, alguns eram capazes de tomar e saltar do bonde “andando” mais de uma vez. O segredo da proeza perfeita era a simultaneidade: as mãos no balaústre e os pés na plataforma; no salto bem calculado, as mãos já iam em concha. Rapaz que se prezasse só saltava de costas, principalmente se a namorada andasse por perto: corria dois ou três passos na plataforma e se lançava no ar na direção oposta do bonde; mal tocava o chão, o corpo iniciava a corrida, também de costas, amortecendo o impulso em sentido inverso.

Os bondes também davam vazão aos encantos do namoro e noivado, propiciando um romantismo bem peculiar. Quanto a isso, Thiago de Mello, no mesmo livro, chega a exagerar:

Posso garantir que, na minha geração, nenhum namoro chegou a noivado, nenhum noivado chegou a casamento, sem a ajuda do bonde. Boa fase do namoro consistia simplesmente em o rapaz passar em frente da casa da namorada, que da janela esperava: era um aceno de mão, um adeusinho e estávamos namorados. Quando (...) o rapaz pedia aos pais permissão para namorar a filha, duas coisas lhe eram permitidas: conversar no portão (mas com a mãe na janela) e dar uma volta de bonde com a moça, desde que em companhia de irmãos, de irmãs, de tias enchapeladas. (Idem, p. 26)

Page 31: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

60

Em Evocação de Manaus (1984), Péres assegura que o bonde foi um veículo que conseguiu aprovação total da população de Manaus. Todos, sem exceção, utilizavam-no para as lides diárias e para o lazer. Afirma que até mesmo alguns poucos que possuíam carros particulares costumavam deixá-los nas garagens, de vez em quando, para dar uma volta de bonde. O fato de a A-m utilizar a expressão “ruas de pedra” remete-nos à lembrança de que as principais ruas da cidade eram calçadas com pedras de liós importadas de Portugal, sobre as quais – por inúmeros pontos do sítio urbano – estendiam-se as linhas de aço que serviam de trilhos aos bondes elétricos. Thiago de Mello informa, na obra supracitada, que os bondes não alcançaram os anos cinquenta. Ainda no início da década de quarenta alguns poucos ônibus da iniciativa privada já se faziam presentes nas ruas para substituí-los. De qualquer forma, desde o final do século XIX os bondes elétricos ajudaram a desenhar a geografia e enformar a sociologia de Manaus. Retornando a “Elegia derramada”, percebemos que não eram só os bondes que “sonorizavam” as ruas da cidade: enumeram-se ainda na estrofe em estudo três sons peculiares, a saber, o “resmungo” das lanchas, o ruído das serras e o bate-bate das lavadeiras. Que dizer das lanchas ancoradas à margem do rio Negro? Sendo Manaus uma cidade que nasceu e se fez ao lado de um rio tão possante, e recebendo dele todos os influxos, sendo cortada por uma infinidade de igarapés, seria natural que fizesse parte da sua configuração paisagística o aglomerado de barcos e lanchas alumiados pelas lamparinas no negror da noite e do rio. As lanchas dançavam à sonoplastia de ruídos de motores e toques de sirenes. A excepcionalidade do verso que se refere às manobras das lanchas reside no emprego do substantivo “resmungo”, que traduz, tanto na sua forma significante quanto no significado,

61

a concepção de mau humor e pronúncia confusa. Ademais, sendo uma derivação regressiva de “resmungar”, o substantivo carrega em si toda a carga de ação própria do verbo que lhe deu origem. Assim, a imagem utilizada perpetua a conotação nauseante do barulho das lanchas. Apesar de ser um som peculiaríssimo à cidade ribeirinha, a constância do resmungo das lanchas era recebida pelos transeuntes como um componente de enfado e tédio. O verso seguinte ganha expressividade pelo engaste do verbo “esfarelar”, que acumula duas figuras de estilo: uma, ligada ao substantivo “serras” (personificação – as serras esfarelam a madeira); outra, relacionada à lenha (hipérbole – dizer que a lenha é esfarelada constitui um exagero intencional). Essa densidade imagística intensifica o alcance dos ruídos produzidos pelas serrarias, os quais tomavam conta das ruas todos os dias. O bloco fecha-se com os sons vindos do Igarapé do Quarenta, que se somavam aos oriundos de muitos outros igarapés que atravessavam a cidade. As lavadeiras, enquanto defendiam a vida lavando roupas das famílias abastadas, faziam ecoar pelas ruas mais distantes a música cadenciada ao sabor do choque da roupa com a água ou a tábua. Enfim, ruídos de bondes, lanchas, serrarias e lavadeiras, aliados a sons de apito, sino, sirene, alto-falante, cantar de galo eram os despertadores que acordavam Manaus e se multiplicavam pelas lentas horas dos dias e noites. C) Segue o terceiro bloco, dedicado aos aromas:

Manaus cheirando a borracha, bogaris, andiroba e pau-rosa, pães-de-milho e erva-doce que chegam pontuais às portas em vespertinas visitas de tabuleiros e cestas de vime. Verdureiros a vender verdura com o orvalho da véspera amoladores que negociam o fio das facas e dão de quebra fagulhas e o fino falsete de metálico mineral gemido.

Page 32: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

62

O primeiro verbo do bloco destaca os cheiros oriundos de quatro tipos de madeira: a borracha é um produto da seringueira, nativa da Amazônia; o bogari é um arbusto ornamental cultivado em jardins, cujas flores são altamente aromáticas; a andiroba é também uma árvore muito comum na Amazônia, sendo sua madeira utilizada com grande frequência na fabricação de móveis e o seu óleo, extraído das sementes, se presta à medicina caseira. Possui um cheiro bastante penetrante; o pau-rosa é uma das madeiras mais conhecidas da região amazônica, dado o alto teor de essência aromática que há na própria madeira. Na primeira metade do século XX, ainda era muito comum o trabalho mais rudimentar com essas madeiras e produtos. A borracha, em que pese seu franco declínio, ainda impregnava a cidade com seu forte odor, vindo de alguns armazéns espalhados pela área central, onde o produto era cortado e manipulado por operários. Thiago de Mello confirma isso em Manaus, amor e memória (1984, p. 75):

Mas não é apenas uma figura literária dizer que da borracha nós só sentimos mesmo foi o cheiro: o travo forte e sensual de sua resina impregnando Manaus, quando o bloco era aberto ao meio, fêmea fendida e ofendida pelo facão dos exportadores, ciosos de sua virgindade livre de enganadora ganga. Dois caboclos, o busto desnudo reluzente de suor, sustentavam com um gancho de aço, um de cada lado, a bola do látex defumado. Vinha um terceiro e, com terçado afiadíssimo, separava-a em duas bandas. Erguia-se um cheiro que logo o vento espalhava pelas redondezas o lugar de trabalho (...) Para quem passava a pé, ou mesmo de bonde, pela ponte de ferro do Igarapé de Manaus, o vento trazia o cheiro penetrante que vinha da Fábrica Rosas, também de propriedade do português J. G. Araújo, onde se produziam tapetes de balata.

Comparando os anos 40 e 50 com o período anterior à decadência, o escritor assegura que essa geração posterior era “a filha empobrecida do extrativismo do látex”.

63

No bloco que estamos destacando, a A-m expressa a frequência continuativa dos aromas através de múltiplas aliterações que se espelham por todos os versos, agrupadas em três segmentos: a) o primeiro engloba os dois versos iniciais, com a aliteração dos fonemas bilabiais /b/ e /p/ e algumas inserções de /m/, /d/ e /g/. Manaus......borracha......bogaris......andiroba...... pães-de-milho......pontuais......portas...

b) o segundo, correspondente aos dois versos seguintes, acumula o fonema fricativo /v/. vespertinas......visitas......vime...... verdureiros......vender......verdura......orvalho......véspera...

c) o terceiro, que agrupa os dois últimos versos, realiza a aliteração em /f/ e termina em /m/. fio......facas...... fagulhas......fino......falsete......metálico......mineral......gemido. Este uso sobejo da aliteração não apenas confere musicalidade aos versos. Mais que isso, reforça a concepção de que as ruas de Manaus eram tomadas pelas mais variadas impressões olfativas. Além das citadas no poema, eram comuníssimos outros odores peculiares, entre os quais podemos destacar o cheiro de madeira molhada das serrarias, a fedentina do popular louro-bosta, a catinga de carniça dos matadouros, o aroma agradável das moageiras de café. As aliterações também evidenciam que as ruas eram apinhadas de vendedores dos mais variados produtos, que cruzavam as ruas para atender os fregueses diretamente na porta. E não eram só os verdureiros ou doceiros referidos no poema. Havia os leiteiros, carvoeiros, fruteiros, padeiros, etc. Como cada um tinha o seu pregão particular, todos estão bem representados no misto de música e perfume que este bloco encerra.

Page 33: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

64

D) O bloco seguinte é o das festas: Manaus de patrióticas paradas, setes de setembro ajaezados de chapéus, luvas, polainas, pendões, mascotes e balizas. Bandas alvoroçando praças na filigrana dos coretos, pondo euforia ou melancolia nos enredos de amor tão cerimoniosos. arcaicos rituais, platônicas tranças de bem-querer mal-querer. Bailes e blocos nos sábados gordos e magros dos clubes, cordões e corsos carnavalescos em carros de capota aberta, valsas, marchas, mambos-jambos, sambas e frenéticos frevos. Bodas com banquetes, batizados e aniversários de fartas mesas transbordando bolos: mães-bentas, babas de moça e biscoitos. Novamente, por se falar em festas, as aliterações ditam o ritmo dos versos, uma vez que a superabundância de palavras paroxítonas, associadas a algumas proparoxítonas, fazem lembrar – como no segundo e no sexto verso – o som de marcha. Descrevem-se as multicoloridas comemorações patrióticas, especialmente os desfiles de 7 de setembro, em celebração ao aniversário da independência do Brasil, prática institucionalizada em todas as escolas do país. Eram festas em geral muito movimentadas para onde afluía grande parte da população, atraída pela música de banda, coreografias arrojadas, movimento de pessoas e abundância de cores. Descrevem-se também as folias carnavalescas realizadas nos clubes e nas ruas. Os clubes Ideal e Rio Negro eram os redutos tradicionais da elite da cidade. Neles realizavam-se os bailes prestigiados pelas famílias de classe média. Restavam ainda, para o apetite momesco do povo, os cordões carnavalescos que percorriam as ruas, os desfiles de blocos com carros e foliões no tríduo. Os dois últimos versos foram reservados para as festas mais familiares e religiosas, como bodas, batizados e aniversários, que em geral eram acompanhadas de banquetes e muitas guloseimas.

65

E) O bloco dedicado à política possui 5 versos:

Manaus de eloqüentes, loquazes comícios de loucos rivais políticos: pessedistas, pessepistas, petebistas, udenistas e demais alas dissidentes, alto-falantes e rádios bradando inflamadas falas por saias e becos: avalanches oratórias, plataformas que se propõem domar o caos e consertar o mundo.

Já no primeiro verso, a adjetivação referente aos políticos opera uma crescente negativização:

O vocábulo “eloquente” lembra uma pessoa que fala bem, tem boa dicção e tem poder de persuasão no uso da linguagem; em contrapartida, “loquaz” possui carga semântica negativa, pois abre margem para o sentido de tagarelice, prática do indivíduo que fala além do necessário; já a palavra “loucos”, associada a “rivais”, nivela os políticos por baixo. Os dois-pontos do verso seguinte cristalizam o rebaixamento, uma vez que transformam a sequência em aposto, ou seja, explicitam quem são esses “loucos rivais / políticos”, a saber:

...pessedistas (PSD), pessepistas (PSP), petebistas (PTB), udenistas (UDN)

e demais alas dissidentes... A expressão “e demais alas dissidentes” desautoriza ideologicamente os partidos políticos mais tradicionais à época. Não eram autênticos, por serem, também, alas dissidentes, desertores de outros partidos originais. Péres (1984, p. 75) informa que

Em 1945, com a convocação de eleições para Presidente da República e para a Assembléia Nacional Constituinte, a nação se reencontrou com a democracia, após um longo jejum de quase oito anos. Logo se constituíram dois

eloquentes loquazes loucos

Page 34: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

66

grandes partidos, o PSD, congregando os políticos egressos do Estado Novo, e a UDN, aglutinando os que se haviam oposto à ditadura. Além desses, surgiu ainda uma meia dúzia de organizações de menor porte, das quais tinham alguma expressão o PTB, que reunia os getulistas mais fiéis.

Em relação à louca rivalidade, Péres faz lembrar a eleição direta para o governo do Estado, em 1945, disputada por Álvaro Maia e Severiano Nunes. Comícios eram realizados todos os dias, sendo transmitidos para todo o estado pelas emissoras de rádio. O público que afluía a esses comícios era numeroso, e a preparação do “clima” durante o dia era feita por carros que veiculavam marchinhas exaltando ambos os candidatos, produzindo uma barulheira terrível pelas ruas da cidade. Mas a guerra verbal, segundo o memorialista citado, não se limitava às marchinhas ingênuas:

Os discursos eram virulentos, carregados de ataques pessoais, dirigidos principalmente contra os dois líderes. Álvaro era chamado, pelos udenistas, de Cabeleira, embora suas melenas já não fossem tão bastas e viçosas como antigamente, ao passo que Severiano levava o troco, com o apelido de Frasquinho de Veneno, em alusão à sua baixa estatura. Mas o dirigente pessedista era o mais atingido, pois não poupavam sequer sua vida particular. (1984, p. 87)

Voltando ao excerto do poema, no quarto verso há dois vocábulos que tendem a reforçar a idéia da postura nada louvável dos políticos: o primeiro, “inflamados”, repete a desmesurada rivalidade que se manifestava em discursos beligerantes; o outro, “avalanches”, traz à tona a acepção de verborreia – abundância de palavras com a quase ausência de utilidade. Por fim, tudo converge para a síntese da demagogia que o último verso traduz: comícios nos quais se prometia aquilo que não se pretendia cumprir. Há outros dois vocábulos – “salas” e “becos” – aquele apontando para a política oficial e este, para as tramoias oficiosas.

67

Pode parecer, a partir do que se diz acima, que a atitude da A-m é pouco política e ideológica, ingênua. Cumpre ressaltar, porém, dois fatores relevantes no seu projeto de construção de Vt: primeiramente, ela se propõe “rever” os fatos e fenômenos com os olhos da menina, interessada apenas em exercitar sua lúdica liberdade. Por outro lado, seu mundo é o feminino e a sua filosofia, a existencialista. F) O sexto bloco dá uma amostra de como eram as lojas da cidade: Manaus de portas lojas de turcos, brilhosas fazendas no chão de vitrines entupidas, vidros de perfume, potes de brilhantina quinquilharias, peças de rendas sujas, ranço de mofo e mijo. Bares, joalherias e farmácias belle-époque, requinte e luxo de mármores e cristais que invadem as escadarias e esquadrias de solarengas casas num outrora de acácias e buganvílias. Nos três primeiros versos, a atmosfera é modorrenta. As lojas são focalizadas na sua desorganização e falta de higiene. Nos três últimos introduz-se uma noção de luxo que logo é negada pela oposição entre essência e aparência (aparência: luxo; essência: lixo). As casas luxuosas o são apenas na exterioridade. Os mármores e cristais representam o apagamento de um tempo que ficou para trás: o “outrora de acácias e buganvílias”. O que existe no agora do texto é o tédio e a sujeira ocupando os espaços de lojas e prédios que, feitos para a pompa, alimentam-se das glórias do passado. Joias arquitetônicas abrigando fétidas lojas. O eu-lírico, por ser feminino, opõe metonimicamente a natureza (flores) e a cultura, demonstrando uma certa preferência pelo mundo natural. G) O penúltimo bloco, o mais extenso de todos, está diretamente ligado aos igarapés e ao rio. A primeira parte remonta aos igarapés:

Page 35: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

68

Manaus de banhos e agrestes piqueniques em picadas e igarapés, passeios em férreas pontes e improvisadas hesitantes pinguelas, flutuantes que são favelas em baixo-relevo no painel dos rios, pardas praias em que aportam catraias de relutantes peixes

Resgatam-se aqui os igarapés que circundavam a cidade, tendo escapado da política urbanitária de aterramento dos mananciais infligida à cidade pelo capital estrangeiro no início do século XX. Igarapés que se mantinham ainda livres da maior ação poluidora do homem e davam forma aos banhos e piqueniques das famílias. Resgatam-se também os passeios sobre as pontes de ferro que contrastavam com as “hesitantes pinguelas” que se multiplicavam sobre as áreas alagadiças da capital. Em seguida, uma metáfora bem elaborada dá conta da existência de favelas dentro do próprio rio Negro:

“flutuantes favelas em baixo relevo no painel dos rios” dirigindo o olhar do leitor, ato contínuo, para a beleza das praias eivadas de barcos, catraias e peixes. Os versos abaixo, referentes ao rio, atestam o cosmopolitismo de Manaus naquela época: cais de diligentes incansáveis guindastes abastecendo a cidade de esnobes fomes de batata inglesa, manteiga da Holanda, rubros redondos queijos do Reino, vinhos da França, linhos da Irlanda e mais mil cargas de sonhos e fugas estocadas nos anchos bojos de vapores tisnados de Europa, vigias fedendo a gringa maresia, âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas, abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria.

O ranço cosmopolita é representado nos versos iniciais pelas fomes “esnobes” dos habitantes da cidade. Ainda embalada pela ilusão de opulência em que se viciara no tão propalado período do fausto, a classe média ostentava, nas suas preferências alimentícias, o exagerado requinte do perdulário gosto alienígena. Daí o sentido da imagem do

69

constante entrecruzar de guindastes, trazendo do Velho Continente os ingredientes do cardápio manauense. Ao esnobismo e aos mecanismos de fuga da realidade, a A-m contrapõe a miséria que gera desesperança: a eloquente antítese que encerra o bloco emparelha, nas mesmas águas, os colossais navios europeus e os humílimos gaiolas e canoas. Da Europa vinha a abastança para os sonhos de consumo; do nordeste brasileiro e das próprias plagas amazônicas vinham a miséria e a doença.

Evocamos outro poema da obra, exemplificativo dessa europeização do espaço e das relações sociais na capital. “Geografia provinciana”, texto do qual este capítulo leva o nome, metaforiza alguns aspectos dessa realidade, mostrando as “franjas do mundo” que iam e vinham nos navios, como podemos constatar abaixo:

Mas iam e vinham navios trazendo franjas do mundo. Europa e Península Ibérica surgiam das próprias pedras das avenidas e esquinas: A Itália na taberna de seu Vicente Arenaro. Também no livro de Dante Que o sapateiro traduzia rodeado de crianças a mostrar-lhes céus e infernos toda a celeste geografia. Seu Genaro, já grisalho fundava o reino de Espanha atrás de barris de vinho tinas mantas de banha vinagres azeites doces réstias de alho e cebola.

Page 36: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

70

Seu Carvalho, o português vendia bolos e broas à vontade do freguês mais rala-rala e refrescos de guaraná e groselha. Síria China e Argentina vinham na gorda maleta do turco mais seus bigodes: damascos crepes Chambleys. A França era ali na “Madame Marie” e no “Aux Cent Mille Paletots” à moda do dernier cri. E passavam barbadianas sob chapelões de palha ao sol dos dias em brasa. Um fugitivo das Guianas Testemunhava a Ilha do Diabo! O mundo estava em Manaus Manaus estava no mundo. (p. 178-9)

A primeira estrofe, terminada por dois pontos, tem

como aposto todo o restante do poema, sendo que cada estrofe corresponde a uma franja de outros países e continentes, como configuramos abaixo:

O mundo em Manaus Manaus

no mundo

franja 1 - Itália (comércio e literatura)

franja 2 - Espanha (bebidas e temperos)

franja 3 – Portugal e Guianas (guloseimas)

franja 4 – Síria, China, Argentina, Turquia (moda)

franja 5 - França (tecidos)

Bloco 6 - Barbados (transeuntes)

71

Os versos postos no centro do círculo constituem um trocadilho que, de forma sinóptica, dá conta da “simbiose” Manaus-mundo. E arremata o que é dito nas estrofes anteriores. H) E assim, retornando a “Elegia derramada” adentramos no último bloco do painel imagístico: Manaus de altas mangueiras a compor portais de arcos nas ruas, a estraçalhar vidraças, impacto de frutas sob fúria de chuvas, que desmoronam tetos de nuvens e fazem ganir cães vira-latas, soezes comensais do lixo que fermenta às soleiras sob o sol. Tardes tarjadas de jururus urubus debruando beirais de casario, céus que papagaios de papel e tala singram em aladas batalhas sobre telhados encaronchados e postes floridos de trepadeiras, galhadas em que papagaios decorebas cantam peremptas cantigas e desafiam as manhas de macacas de sutiã e calcinha ganhando o tão difícil dia-a-dia para saltimbancos malandros cafetões.

Manaus já foi muito conhecida, assim como Belém do Pará ainda o é, guardadas as devidas proporções, pelas mangueiras que medravam por toda a cidade. Faziam parte da paisagem, por isso, as frutas apodrecidas sobre o chão, visto que as mesmas caíam com frequência, pela ação do vento. Comuníssimas também eram as cenas em que as mangas atingiam telhados e vidraças, causando estragos.

Após focalizar em cheio esse panorama, a A-m registra outra cena costumeira das ruas: a brincadeira de empinar papagaios. Em contraste com esse celebrado papagaio de papel, outro papagaio, a ave, que parece mais artificial, mais sem vida que o anterior. Ao passo que o papagaio “de papel e tala” singrava o espaço em invejável demonstração de liberdade, travando batalhas acirradas, promovendo a alegria geral e colorindo o céu, ao bípede restava a atitude pastiche de repetir monotonamente cantigas humanas. Esse papagaio de papel representa o anseio da liberdade do eu-lírico feminino.

Page 37: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

72

Daí a atenção que é dada ao brinquedo masculino. Já o outro papagaio, o real, que apenas repete estruturas frasais sem sentido, simboliza a “prisão”, as estruturas cerceadoras da condição feminina resultantes de uma sociedade que, tradicionalmente, não valorizava a mulher.

Quando nos dirigimos aos dois últimos versos, deparamos com uma bem articulada ironia, materializada na expressão “o tão difícil dia-a-dia”. Numa leitura apressada, pode-se pensar que ela se refere exclusivamente aos saltimbancos, denotando que eles levavam uma vida árdua. Numa análise mais acurada, contudo, constata-se que ela aponta ambiguamente para as macacas de sutiã e calcinha, dando a entender que elas trabalham duramente para sustentá-los. A ironia se faz no momento em que A-m sugere que os saltimbancos tinham o dia-a-dia difícil, mas logo em seguida os caracteriza como “malandros cafetões”. Ser malandro equivale a ser um não-trabalhador, e ser cafetão significa ser sustentado por mulher. Expõe-se, então, a exploração das macacas pelos saltimbancos, que se tornavam cafetões de quinta categoria, posto que as mulheres que os mantinham nem mulheres eram, na verdade. É o protesto contra a condição feminina que se desdobra.

Não se pode deixar de dar relevância à gradação que se processa nos cinco versos subsequentes, que terminam este bloco, ampliando a interpretação dada anteriormente:

Explica-se a gradação, no sentido crescente, pelo fato

de ser o papagaio de papel completamente artificial (é o mero brinquedo, além de ser fragílimo), o papagaio emplumado ser meio natural e meio artificial (natural por origem e artificial por comportamento) e as macacas serem completamente naturais (apesar da imposição da roupa pelo homem, elas são

papagaios de papel e tala → diversão papagaios decoreba → companhia em casa macacas de sutiã e calcinha → sobrevivência

73

essencialmente simiescas). A imagem completa-se com a verificação de que há uma passagem de diversão para a sobrevivência, tendo de permeio a companhia, nem sempre tão agradável, do papagaio.

O eu-lírico prefere a diversão, numa atitude epicurista, derivada da filosofia existencialista.

Passamos para o último verso do texto, a partir do qual retiramos o título deste livro. Ele contém a síntese tanto do poema quanto de Vt: Manaus de negras águas onde naufrago. Manaus de águas passadas.

Semelhantemente aos blocos que configuram o texto, ao núcleo “Manaus” não se dá um predicado, sendo que todo o verso apresenta-se como um adjunto adverbial de lugar; assim como a obra, opera um mergulho passadístico sobre Manaus. Após revisitar os mais variados espaços, lançando as luzes da memória sobre os recintos, as sensações, as pessoas, as festas e os costumes, a A-m confessa enfrentar a fluidez do tempo como um naufrágio. Tudo vira passado. Ao presente restam as reminiscências.

Page 38: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

74

5 Arqueologia Sentimental (A A-m revisita os mortos e os loucos conhecidos na cidade; e lança um olhar revisionista sobre a estrutura das instituições, como a Família, a Escola, a Igreja) 5.1 Os mortos

Quando a A-m põe-se a fazer “escavações”, vão surgindo do subsolo da memória as pessoas queridas e conhecidas que povoaram a sua infância, e muitas delas já estavam mortas. O poema “O sorteio” apresenta a morte de forma alegórica, como um jogo macabro perpetuado pela força inexpugnável do destino:

Na roda viva dos vivos a morte foi tirando sorte: tuturubim turubim têtê tique taque tambarola este dentro este fora. (p.218)

É clara a alusão à brincadeira infantil popularizada

pelo nome de “31 alerta”, muito comum entre os meninos. Conforme Thiago de Mello (1984), a brincadeira consistia num jogo em que um grupo se reunia e sorteava-se o que devia ficar de olhos fechados, contando até 31, depois do que saía à caça dos companheiros escondidos. O sorteio se fazia com a frase, uma sílaba dirigida a cada membro do grupo: “tuturubim tetê tac tac (sic) tambarola, teje dentro, teje fora”. Quem ficasse com a última sílaba ia lá para um contar em voz alta os números até o brado mais forte: “31 alerta”.

Alegoricamente, o poema apresenta a humanidade formando uma grande roda viva, disposta assim para brincar. Só que um elemento estranho, indesejado – a morte - posta-se entre os brincantes para fazer o sorteio. Receber sobre si a expressão “este fora” equivalia a uma sentença de

75

condenação: era o imperativo para pular fora da vida. O pai da A-m, por exemplo, morreu muito jovem: Pegou meu pai de surpresa “tão moço” diziam todos (minha mãe sete anos de preto a vida inteirinha de luto) As circunstâncias dessa morte estão delineadas em “Escavação nº 1, poema que descreve a festa de aniversário de cinco anos, quando foi posta sobre a mesa a simulação do rio Amazonas com um navio ancorado, tudo feito de papel e paramentado de guloseimas. Porém, no meio da festa a menina sofria com a ausência do pai, que não figurava entre os partícipes. Mesmo assim esperava ansiosamente pelo seu retorno das viagens que fazia pelos “oceanos do mundo”. Somente aos dez anos ela tomou conhecimento do que acontecera a ele. Um duro encontro com a realidade: No labirinto da toalha, ondas de celofane fingido o rio-mar. Cinco velinhas acesas no convés de açúcar do bolo – navio ancorado em cais de crepom junto a cascatas de pastilhas, ilhas de bala e bombom. E eu, esperando em vão por eu pai entre os convidados. Eu sem saber que para sempre partira após tantas idas e vindas pelos oceanos do mundo. Teria eu dez anos quando um navio de verdade o trouxe enfim a Manaus - nem tripulante, nem passageiro – apenas carga, conteúdo de uma caixa que minha mãe acendendo outras velas conduziu ao jazigo da família. (p. 219)

Page 39: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

76

Este poema foi edificado sobre uma antítese estrutural: a primeira metade focaliza um ambiente de festa com sua alegria, música, velas de aniversário, comida e muitas congratulações; a segunda, substituindo o navio simulado por um de verdade, transforma o ambiente festivo em funeral, sendo que “outras velas” passam a ser o centro das atenções. A expressão “rio-mar”, usada no segundo verso, sugere a vida de um homem que singrou o rio em direção ao mar, ou seja, uma vida que fluiu para morte. E para a menina, a saudade converteu-se em solidão perene, pois a mãe também voltara-se para seu mundo interior, amargando o luto pela vida inteira e, de certa forma, morrendo também. Voltando ao poema “O sorteio”, constatamos a inconformação da A-m ante a falta de lógica na realidade da morte. A uns pegava de surpresa; outros envelheciam ilesos e eram coroados com as cãs. E assim a família foi sendo dizimada: os tios, as tias, os amigos, o avô. Entre esses entes queridos, merecem menção especial, justamente porque cada um recebeu um poema só para si, o avô e a tia-avó. Ambos são focalizados em situações bem parecidas: na linha fronteiriça entre a vida e a morte.

O avô é retratado no poema “Na vizinha das estrelas”

Diariamente num banco de jardim o avô assistia ao pôr-do-sol e à vinda da estrela Vésper. “Nada mais nada menos, dizia, Que o próprio planeta Vênus vestido com a luz de empréstimo” - Vovô, que flor será aquela? Silêncio. Ele não respondia. Isso de junquilho, onze horas boca-de-lobo, colchão de noiva meiguice ou sorriso-de-maria era linguagem que não entendia. Mas o campo do céu, oh Céus!

77

era o chão que firme palmilhava. Em noites propícias, na garupa de palavras a um zoológico fantástico me levava em visita até longínquos céus boreais. “Olhe a Ursa Maior, a Ursa Menor” (Tropical, eu pensava em onça. Ursa era pura abstração polar) “Veja o cão Maior e o Menor ali” (Cão, não era o nome do demônio? Demônio no céu? eu me espantava!) E havia aquele caminho de leite cujo mistério era não se entornar em branca chuva de maná. “Orion, Riga, Betelgeuse, Sírius” de dedo em triste, citava o Avô sem medo de apanhar berrugas enquanto meu coração se perdia, em outros amores- o chão próximo onde vivas cintilavam flores. (p.214-15) A partir do próprio título do texto, o patriarca é caracterizado como um ser espiritualmente distante do chão em que pisa. Enquanto a neta, embevecida, apontava para as flores e perguntava sobre elas, o ancião mantinha os olhos fixos na direção do firmamento, sondando as mais remotas constelações. Ele nada entendia de flores, só por estrelas se interessava. Contrariamente ao visgo que prendia a menina à terra e seu mosaico de cores, aromas, sons e movimentos, era o visgo do céu com seus mistérios que o atraía e fascinava. Ele, qual suserano familiar, reinara num feudo patriarcal – aquela casa de grande terreiro, avarandada, fervilhante de gente, em cujo quintal imenso, superabundavam formas vivas, onde a vida rebentava sem cerimônia, sem lugar nem hora certa. Porém, ao se aproximar da linha fronteiriça da morte, perdera o interesse por tudo aquilo. De suserano telúrico passara a vassalo da grandeza sideral. Sabia de cor os nomes

Page 40: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

78

de todas as estrelas, constelações e sistemas, mas não atinava mais com a diferença entre um junquilho e um sorriso-de-maria. Nomes de flores “era linguagem que não entendia”, mas o campo do céu “era o chão que firme palmilhava”.

Apesar de unidos pelo amor, a menina e o avô viviam em diferentes hemisférios. Ele voltava-se para o eixo da cultura que o elevava da terra (Astronomia), enquanto ela deliciava-se com o eixo da natureza (flores), prendendo-se mais ao chão. De modo semelhante, a tia-avó presentifica-se no poema seguinte, “Santa paz”: Na casa da tia-avó já bisavó nenhuma lei de repressão vogava. Desnecessários os cauidados pra evitar inevitáveis esba- ros pois inexistiam os jarros os traiçoeiros bibelôs de louça as matreiras compoteiras de cristal e as toalhas que era pecado sujar. Serena, a tia-avó dizia que já era hora de pra sempre embarcar e ensaiava paciente a partida pela casa quase desfeita e vazia, os chinelos surdos engomando o assoalho recoberto de pó. ..................................................... tudo era natural para quem já vivia em plena harmonia no gozo da santa paz Senhor. (p. 216-17) Ela habitava uma casa semimorta, sem adereços, sem mobílias ou bugigangas. Essa casa desnuda refletia a decisão de sua ocupante de esperar a morte chegar. Ensaiando a partida, desprendera-se das preocupações materiais, terrenas. A poeira cobria o assoalho, as dobradiças das portas enferrujavam-se, o porão virara pasto e habitação de insetos.

79

Ela não mais se importava com isso, pois desligara-se da terra e “já vivia em plena harmonia / no gozo da santa paz do Senhor” Resignava-se em esperar a hora extrema naquela habitação desértica, que outrora fora muito povoada. Observamos, neste caso, mais uma vez a presença da morte, que nos conduz ao existencialismo, à falta de significado. Essa ausência de móveis é metafórica e equivale ao tédio da vida. As famílias tinham o hábito de visitar o cemitério São João Batista aos domingos, em ato de desobriga. Essas visitas conjugavam o prazer da viagem de bonde até o Boulevard, bairro onde se localizava o cemitério, uma das mais venturosas, com a contrição da lembrança e da saudade dos queridos sepultos. Lá, estavam sob a terra boa parte dos amigos e parentes que a morte escolhera para sua eterna brincadeira no céu. O poema “Passeio a flores” dimensiona o fato: Íamos longe de bonde visitar os mortos, inertes em suas camas de pedra – grandes caixas de segredo – Na cabeceira de mármore a Vó lá do outro mundo me fitava de um retrato. Ela, o pai, o tio-menino ali estavam declarados por letras mas escondidos a sete ocultas chaves. (p. 174)

O que está dito aqui parece ser o prolongamento do poema anterior, “Cemitério de Manaus”, que se fecha com os seguintes versos: Vamos atrás de nossos mortos acender velas que também choram, conhecer a casa que nos aguarda. Mas nossos mortos não estão lá.

Page 41: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

80

Assombram dentro de nós: múmias na química de nossa breve memória. (p. 172-3)

Os dois textos, que nos conduzem para dentro do cemitério, descrevem aquele ambiente como um lugar onde a vida e a morte dividem o espaço sem enfrentamentos. A natureza ali possui certa exuberância, que se multiplica em verdores, cantar de pássaros, rastejamento de insetos. Mas enquanto a natura fala e lateja, os corpos estão inertes, opondo o eterno sossego à agitação da vida.

A A-m nos surpreende, após descrever o campo-santo, ao sugerir que os queridos mortos não estão lá, posto que sobrevivem na memória de quem ficou na roda viva. Todavia, em maior inquietação nos lança quando, ao dizer que a memória dos vivos é curta, deixa transparecer que eles jazerão no esquecimento com o passar do tempo. E assim não estarão mais em lugar nenhum. Enquanto isso, o cemitério nos aguarda, pois é lá nossa futura morada. Ou seja, tudo vai para o nada: Niilismo. Enquanto isso, devemos ter uma atitude epicurista. Dessa forma, repete o motivo de Ricardo Reis, um dos heterônimos do poeta Fernando Pessoa, na ode “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”. Nesse poema, o eu-lírico assume uma postura epicurista. Diz ele, numa das estrofes: “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. / Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como rio./ Mais vale saber passar silenciosamente / E sem desassossegos grandes”. Mostra que a vida é transitória, mas em vez de desespero, o que deve ocupar a mente é a serenidade, como atestam os seguintes versos: “amemo-nos tranquilamente, pensando no que podíamos, / Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, / Mas mais que vale estarmos sentados ao pé um do outro / Ouvindo o rio correr e vendo-o”.

81

5.2 Os loucos Três loucos da cidade foram objeto de menção

especial da A-m. O primeiro era conhecido como Bombalá. Costumeiramente era visto nas ruas, ora comandando o tráfego dos veículos ora regendo a banda de musica à frente das paradas militares. Assim o poema “Bombalá” o apresenta: Passos bambos passeia Bombalá ruas de outro tempo. Os pés no mundo da lua moles mãos de mumulengo. É o menino gigante Namorando bombons e balas nos balcões dos bares. É o adulto garotão cobiçando fitas e cordões em lojas de botões e linhas. É o menino inocente cujos bolsos sem dinheiro transbordam jasmim-de-cheiro. Os moleques chamam o bobo: - Vem cá, bombalá Bombalá, vem cá. E ele vai feito cachorro. Bombalá não joga bola Jogam bola em Bombalá. (p.223)

Bombalá era um exilado, não de um exílio geográfico,

mas de um desterro etário, temporal. Sua idade mental, não acompanhando a idade física, fê-lo um desconcertado com o mundo: a mentalidade infantil jogueteava um corpo de adulto. Dessa forma, tornara-se um ser perdido entre dois mundos, habitando sobre um chão mas num universo estranho e incompreensível aos olhos dos outros. Thiago de Mello (1984, p. 100-101) faz referência a ele: “Durante muitos anos

Page 42: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

82

ele repartiu ternura e festa pelas ruas da cidade”, assegura, para logo em seguida completar: “Não articulava palavras, mas emitia fonemas inteligíveis. O sorriso perdido, mas carinhoso, no carão avermelhado de sol”. Péres (1984, p. 201-202), ao falar sobre os vários loucos que perambulavam pelas ruas da cidade, também faz referência a Bombalá:

Nossa paisagem urbana era muito rica em tipos populares, loucos e semiloucos, entendidos como tais aqueles que adotam padrões não convencionais de comportamento. Conhecidos de todos, eram estimados e encarados com benevolência pela população. Alguns eram simpáticos e tinham amigos, a quem chamavam pelos nomes; outros pareciam fechados em si mesmos, evitavam contactos, mas só se mostravam agressivos se provocados. Nenhum superava em popularidade o Bumbalá (sic), aquela figura inofensiva, que se postava à frente das bandas da Policia Militar e do 27º BC, a regê-las com um pedaço de pau à guisa de batuta. Um dia Bumbalá se acidentou, ao cair num covão, e quase morreu. Quando se recuperou, sua família, por precaução, passou a impedi-lo de sair.

Por pertencer a uma família bem conceituada na cidade, ele andava sempre bem vestido, limpo e perfumado. Ao morrer, teria em torno dos quarenta anos, mas a idade mental esbarrara nos dez. A A-m, usando do isomorfismo, que é um recurso caro ao poeta, imprime indelevelmente no significante a força expressiva do significado. O próprio título do poema já nos faz penetrar num terreno oscilante, desnorteante. É praticamente impossível pronunciarmos a palavra “bombalá” em gradação crescente da tonicidade, como é comum acontecer com os vocábulos trissílabos oxítonos, sendo a primeira silaba mais fraca, a segunda levemente mais forte que a anterior, e a última mais forte que as outras. A tendência é lermos a palavra em questão como se fosse, na verdade, duas outras palavras justapostas: bomba + lá. Dessa maneira, a

83

tonicidade oscila dentro do próprio vocábulo, dando uma impressão de bamboleio. O mesmo processo se repete no verso, “moles mãos de mamulengo”, em que a “dança” do acento tônico contagiada pela aliteração em /m/ provoca a sensação de torpor e instabilidade. As aliterações imitam o andar cambaleante e pusilânime do louco. É possível se “ver” a lassidão dos movimentos das mãos enquanto ele caminha. Ao lado disso, a dicotomia menino grande versus adulto garotão contribui para confirmar o fato de que ele era um exilado, dividido entre duas esferas etárias incompatíveis. Entre os adultos provocava riso pela postura de criança; entre os meninos, virava motivo de boas gargalhadas pelo corpo desproporcional à idade, um fruto temporão. Já em relação ao segundo louco revisitado pela A-m, o Macacheira, não se pode falar em mansidão, sorrisos, simpatia, como era o caso de Bombalá. Os versos que a ele se referem, do poema “Ponte Cabral” são os seguintes: Pelos flutuantes rondava à toa o Macacheira, o louco que comia peixes crus e exibia o sexo às crianças que o provocavam. - Macacheira!Macacheira! - Vai tomar no cu e cheira. (p. 194-5) Sobre ele há também o pronunciamento Péres (1984, p. 202):

Outro muito popular era o Macacheira. De meia idade, amulatado, nunca soube o seu nome, de onde veio e o que pensava, pois raramente abria a boca. Detestava o apelido, quando chamado pelos moleques, ao qual reagia com pedradas, que raramente atingiam o alvo. Desapareceu tão subitamente quanto surgira. Nunca se soube como.

Page 43: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

84

Além do louco bonachão, amistoso, e do outro furibundo, havia um terceiro, misterioso, na verdade um casal. Era o velho Bufeu de Furunfefeu e a sua velha Buféia de Furunfunféia. Estes eram medonhos e não despertavam nenhuma graça, pois habitavam não as ruas, mas o inconsciente das crianças. Em “Mascarado de sombras” encontramos a seguinte apresentação: Era quando o velho Bufeu de furunfunfeu casado com a velha Buféia de Furunfunféia ainda vivia numa casa de sopapo e fumaça fungando e fumando cachimbo de barro fedendo a sarro e cachaça, xingando criança sapeca que não queria dormir. No buraco da fechadura uma pupila fixa luzia e a maçaneta da porta torcia atrás de sua invisível mas enorme mão. Lá vem ele, a gente pensava embuçada em lençóis ouvindo a folhagem conversar à janela uma história de avencas e de girassóis. O velho Bufeu roubava menino num saco de estopa que de tão comprido arrastava como roupa de noiva em degraus de igreja. O velho Bufeu também juntava ratos e sapos no mesmo saco de breu onde ninguém piava e por ruas mortas de casas sem portas se mandava mancando, vestido de vento mascarado de sombras, no rumo de um beco. Meu Deus que alívio ressuscitar de manhã cedo, dar de cara no espelho de chuva armazenada na tina, lembrar-se que o velho Bufeu tinha pactos com morcegos e era parente bem próximo de mariposas e mochos só vivia entre as sete paredes da noite e preso dava coices atrás da porta do sol. (p. 227) O velho Bufeu era matéria de sonhos e pesadelos infantis. Seu entorno eram as sombras, as trevas da noite, a

85

conformação do mistério. O teor narrativo do poema encerra uma enumeração de ações praticadas por ele, todas elas relacionadas ao medo e à escuridão. A Psicanálise demonstra a origem de tais histórias, capazes de transformar crianças em adultos neuróticos. Trata-se de um substitutivo do poder do pai, ou seja, a formação do superego na terminologia freudiana. Segundo Eagleton (s/d, p. 168), “é para Freud o início da moral, da consciência, do direito e de todas as formas de autoridade social e religiosa”. Por que a A-m se ocupa em recuperar esse mundo pavoroso? Na Psicanálise, a perfeição está na origem, ao contrário das demais ciências. É preciso retornar ao princípio, vencer os traumas que restaram da paradisíaca infância. Por que a loucura é um rompimento com a razão, assim como a linguagem poética rompe com o pensamento lógico e as estruturas frasais equilibradas. Tadié (1992, p. 145) assim se pronuncia a esse respeito:

O próprio sentimento se produz quando a fronteira entre o imaginário e a realidade se apaga, tanto na vida como nos textos; mas, nestes, a estranheza angustiante é bem mais profusa do que na vida real, porque o “domínio da imaginação” não possui a “prova da realidade”.

5.3 As instituições Entre as instituições referidas ao longo do livro, ocupar-nos-emos de três, pela forma crítica como são enfocadas, mostrando o perfil de uma época. A primeira delas é a escola. Ao se referir a ela, a A-m desnuda dois problemas agudos da educação à época: a monotonia das aulas e a falta de visão crítica da escola no repasse de certos conteúdos aos alunos. No poema “Grupo escolar”, composto de oito dísticos, lemos:

Page 44: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

86

A pique foi o mundo de tão álacres recreios. Sinetas anunciam a emancipação do jugo. A terra era esquartejada nos mapas de parede. O corpo humano exposto só no papel colorido. Frações e carroções de soluções exatas. Lições sobre locuções correções de gramática. Carrancas e ternuras de mestras solteironas. A vida em caricatura. O mundo numa redoma. (p. 180-1)

O primeiro dístico talvez nos autorize a inferir que o momento mais alegre do dia-a-dia da escola era justamente o recreio, o momento da descontração por excelência. Continuando a leitura do poema, recebemos, no segundo dístico, a confirmação daquilo que a princípio apenas levemente se insinuou. A partir do segundo dístico, a interpretação pode ser ratificada. O toque da sineta equivalia a uma carta de alforria, uma sonora licença para se libertar do ambiente entediante da sala de aula, uma carga posta sobre os ombros dos alunos. Perquirindo o porquê desse tédio, encontramos nos quatro pares de versos seguintes a enumeração de monotonias na sequência de aulas:

87

Nas aulas de Geografia, A terra era esquartejada nos mapas de parede. Nas aulas de ciências, O corpo humano exposto só no papel colorido. Nas aulas de Matemática, Frações e carroções de soluções exatas. Nas aulas de Português, Lições sobre locuções correções de gramática. Em todos os casos revela-se uma colossal falta de praticidade. Há um distanciamento entre a matéria ensinada e a vida concreta dos discentes. A ausência de praticidade concorre para deixar desinteressantes os assuntos ministrados nas salas. Como se isso não bastasse, o perfil do professorado ganha uma expressiva caricatura no penúltimo dístico: Carrancas e ternuras de mestras solteironas. A junção do substantivo “carranca” ao termo “ternuras”, no primeiro verso da estrofe, parece-nos paradoxal no sentido de que, enquanto a ternura é cativante, a carranca é repulsiva. Ambas dividindo o espaço do mesmo rosto são capazes de “desenhar” uma imagem visual desagradável, estranha. Da mesma forma, no segundo verso o sentido de contrariedade registra-se na mistura de “mestras” com “solteironas”, dois

Page 45: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

88

vocábulos de conotações adversas para a mentalidade da época. Ser mestra era algo elogiável, nobre, bem visto socialmente, ao passo que ser solteirona apontava para o estigma de uma quase maldição social. Notadamente, a dedicação da mestra camuflava um pouco o anátema da solteirona, todavia as duas realidades dividindo o espaço de um mesmo corpo, de uma mesma pessoa, inspirava nos alunos um misto de carinho (proveniente da ternura da mestra) e rejeição (oriunda da carranca da solteirona). O último par de versos sintetiza a crítica feita à escola nas estrofes anteriores: A vida em caricatura o mundo numa redoma. A caricatura é uma representação que prima em ser grotesca, irônica e até cômica; a redoma, por sua vez, conota o abafamento, o sufocamento, o hermetismo. Assim, a escola é metaforizada como o reino do aborrecimento e da chatice. Só o recreio, com a sua vocação para as festas e algazarras, quebrava a rotina diária daquele mundo tacanho. Além disso, em “Ponte Cabral”, o eu-lírico insinua a falta de criticidade nas aulas de história regional. Mesmo assim, ela se envergonhava de ter que aprender lições de genocídio: Então eu pensava nos manaus, barés, banibas e pagés que indômitos fortes tinham habitado aquela região num tempo anterior às pontes e que não mais passavam de um ponto escolar que eu devia aprender para me envergonhar. (p. 194-5) Não se pode deixar de observar que, na menina, há sempre a ânsia de liberdade, o desejo de romper as estruturas.

89

O id, sempre sufocado pelo velho Bufeu, sonha em subir à superfície. O poema “Dominus vobiscum” tece severas críticas a uma outra instituição, a Igreja. Enquanto propalava ser a defensora da justiça e da igualdade, ela evidenciava na sua prática um rosário de hipocrisias e corrupções: Maio era o mês de Maria e de anjos seguindo o andor meninas ricas em cetim e arminho asas tristes sem a bênção do vôo. O Espírito Santo que baixava do céu era o pombo a crayon pousado no cartaz sobre as vencedoras do certame “Quem dá mais para as missões”. Um mendigo menino Jesus de louça agradecia em milagre de mola as moedas que lhe caíam ao colo. Negro mundo de batinas, morrinha de hábitos, hipocrisias e rosários. Eu sofria o opróbrio de ser pobre colecionando injustiças e lágrimas. Implorava ao Sagrado Coração o degelo daquelas almas frias. “Seu pecado é a rebeldia” mas eu me sentia inocente e tinha fé no milagre da farsa desmascarada. (p. 211) O título, à luz do texto, encerra uma ironia. A expressão latina significa “o Senhor convosco”, mas os primeiros versos já começam a explicitar que as bênçãos da Igreja estavam reservadas, em maior grau, para os ricos. “Para as missões”. Além do alijamento dos pobres, evidencia a falsidade mesclada à aparência de piedade nos ofícios religiosos. Na verdade, o ambiente eclesiástico é retratado como um mundo de aparências. Tanto que a menina, na sua

Page 46: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

90

inocente rebeldia, implorava ao Jesus verdadeiro (não o falso, de molas) o verdadeiro milagre, qual fosse o desmantelamento da farsa, a religião a serviço dos ricos, a comercialização da bênção “divina”. A A-m não deixa a Igreja impune desses deslizes inaceitáveis. Critica-a também, em “Elegia derramada” (p.166/7), pela postura iracunda dos sacerdotes contra os comunistas e os protestantes, e pelo clima de morbidez a que nem os próprios fiéis resistiam. Entediados pela morrinha do ambiente, dormiam nos bancos da igreja. Outra instituição que não escapa ao olhar arguto do eu-lirico é a Academia Amazonense de Letras. Segundo Assis Brasil, em A poesia amazonense no século XX, essa instituição teve como embrião, no início do século XX, uma agremiação de escritores denominada “Sociedade dos Homens de Letras”. Durante muitas décadas, a academia teve o status de um lugar quase sagrado, sendo endeusada por jovens que admiravam as amostras de erudição dos imortais daquele “templo do saber”, os reverenciados “monstros sagrados”, expressões relembradas por Péres no livro Evocação de Manaus. O poema “Neoclássica”, que foi acrescido à presente edição de Vt, contém o seguinte pronunciamento do eu-lírico: Caricatura da Grécia a Manaus de minha infância essa Atenas tropical plantada de paraquedas entre vegetais e colunas e doces mares singrados das proas de canoas e catraias pelo peloponeso dos baré. Péricles ditava as leis da Gramática clássica. Sócrates vendia secos e molhados num sobrado. Aristóteles tocava piano em saraus e boates. Platão vestido de padre

91

confessava caboclos ribeirinhos. Ulisses fazia périplos e peripécias no liceu de mestres peripatéticos. tinha até a chave de ouro da Academia de Letras: um Parnaso com rimas retumbantes. (p. 183) De “Paris dos trópicos”, como era conhecida no período áureo da borracha, Manaus é alçada, neste poema, à categoria de “Grécia tropical”. Só que, enquanto a alcunha parisiense encerrava um soberbo elogio, pois mal disfarçava a intenção de ombrear a cidade da selva com a capital francesa em beleza e esplendor, ou antes mostrar aquela como um tentáculo desta fincado nos rincões amazônicos, a alusão toponímica deste texto desvela uma ironia. Não se trata, a rigor, de menção laudatória, senão de sutil alfinetada no artificialismo da mentalidade manauense. A cidade europeia fora “plantada de paraquedas” no meio da floresta, nas circunvizinhanças do mar de água doce. Era a mesma cidade-cenário de que fala Márcio Souza em A Expressão amazonense, montada sobre o espaço urbano da capital baré. Dessa arquitetura alienígena, a A-m destaca algumas amostras, como é o caso do palácio Rio Negro, evocado em “Palácio Rio Negro e as palafitas” (p. 176), que destoava das palafitas que o rodeavam, filhas legítimas da mata que contrapunham seu telurismo à imponência adventícia daquele palácio. Um eloquente exemplo do contraste entre a suntuosidade da gente vinda de fora e a situação de miséria dos favelados circundantes. É o caso também das galeras de bronze da praça São Sebastião, do poema “Ensaiando partidas” (p.171) que “destinavam-se a longínquos continentes mas / imóveis não singravam mares de lusas pedras. / Deixavam-se estar molhadas tão só de chuvas / proas frustradas de horizontes e azuis”. Uma demonstração do

Page 47: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

92

impotente poder dos artifícios humanos: a gloriosa homenagem à abertura dos portos amazônicos estava fadada ao destino da eterna imobilidade. Juntamente com a arquitetura adventícia, verticalizada por meio de prédios, ruas, pontes etc., erguia-se uma outra arquitetura, esta de natureza espiritual, voltada para as múltiplas formas de expressão humana aliadas à arte. As linhas arquitetônicas oriundas do Velho Mundo “contaminaram” a visão de mundo manauense, fazendo fluir um estilo de vida europeizante na cidade, um faz-de-conta nos usos e costumes. Voltando ao poema “Neoclássica”, percebemos que o próprio título já aponta para a realidade da atitude pastiche em relação à Europa. O chamado neoclassicismo apregoava o retorno aos ideais clássicos por julgar a cultura grega como exemplo máximo de sabedoria e arte. O Parnasianismo, um dos momentos de maior intensidade do retorno à tradição greco-romana, é sutilmente sugerido no poema. A marca registrada do estilo parnasiano era o endeusamento da forma, o ideal da arte pela arte, o que levou os poetas brasileiros do período a elegerem o soneto, por ser este de forma fixa por excelência, como a principal via formal de expressão poética. Aprimoraram a métrica e instituíram a “chave de ouro”, fazendo com que seus sonetos terminassem quase sempre com um verso magistral. Ao se referir à Academia Amazonense de Letras, a A-m di-la um “parnaso de rimas retumbantes” que tinha a sua chave de ouro e outras extemporaneidades clássicas. A metáfora que abre o poema e que o encerra depõem contra o ambiente artístico-cultural postiço que muitos cronistas que escreveram sobre o período são pródigos em elogiar. a) primeira metáfora: caricatura da Grécia (Manaus) b) ultima metáfora: um parnaso de rimas retumbantes (Academia Amazonense de Letras)

93

Como Manaus era uma caricatura da Grécia, o seu silogeu – a Academia – era também caricatura do Parnaso, a montanha grega da fócida, habitada por Apolo e pelas Musas, que dava guarida ao corifeus, no caso amazonense caricaturas das ilustres figuras do pensamento grego: Péricles, na verdade Péricles Moraes, era o guardião da Gramática e do vernáculo, tendo o poder de abrir ou fechar portas às pretensões literárias de jovens neófitos. Sua obsessão pela língua escorreita e pela oratória deram-lhe notoriedade como homem culto e respeitável. A veia crítica da A-m não poupa os homens de letras, membros do “peloponeso dos barés”, ao reduzi-los a meras caricaturas. Sócrates era bazarista; Aristóteles, animador de festas; Platão, sacerdote católico; Ulisses, professor. Com efeito, a poesia produzida no Amazonas, na primeira metade do século XX, salvo pouquíssimas exceções, esteve presa a amarras parnaso-simbolistas tardias, renitentes. Além da poesia narrativo-descritiva, que captava o regional pelo prisma do exotismo pictórico ou infernista, medrava a tradição do soneto ao gosto parnasiano. Ser bom sonetista, desenvolver métrica acurada eram requisitos indispensáveis à poesia considerada de qualidade. Só a partir dos anos 50, com o surgimento do Clube da Madrugada, que instalou definitivamente na cidade novas formas de pensar a literatura e a arte em geral, sem tributo ao passadismo temporão, esse quadro se alterou de modo significativo.

Page 48: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

94

6 POR TODA PARTE O RIO (A A-m mostra a influência do rio Negro sobre os habitantes de Manaus, e as implicações que a inter-relação homem/rio pode produzir.) 6.1 O rio Na seção intitulada “Água”, todos os poemas, num total de treze, fazem referência direta ou indireta ao Rio Negro, que banha a cidade de Manaus, a qual se situa à sua margem esquerda. A poesia produzida na capital amazonense, quando faz referência ao “rio”, em geral vai buscar inspiração na fonte desse caudaloso curso de água que contorna a cidade, multiplicando-se em igarapés. É evidente que a influência do rio sobre o homem manauense não é tão intensa quanto a que se faz sentir sobre o caboclo interiorano, ribeirinho, este sim vivendo em completa cumplicidade com o rio, que lhe dita até mesmo o estilo de vida, o jeito de ser. É o que diz o poeta Luiz Ruas na apresentação do livro Uma poética das águas, de Socorro Santiago (1986, p. 17). Na sua ótica, a “simbiose” homem-rio que ocorre no interior não se repete na capital nas mesmas proporções:

O amazonense de Manaus já não sente o mesmo impacto ou, melhor, a mesma identidade com os rios, os lagos, os igarapés, os igapós como o sente o homem do interior. E este distanciamento aumenta à medida em que, com crescimento da cidade, o rio vai ficando mais longe e os igarapés vão sendo substituídos pelo duro e escaldante leito do asfalto das ruas, das avenidas, das rodovias. E o que aconteceu sensível e melancolicamente aqui em Manaus vai acontecer, também, nas cidades do interior. O Mesmo não ocorre com o homem do interior que, parafraseando o apóstolo, praticamente se move, vive e é na água. Há uma simbiose existencial entre o homem e a água e o homem interiorano parece que ainda não superou totalmente um certo estágio da evolução permanecendo anfíbio como são muitos animais da nossa

95

fauna. (...) De fato, no Amazonas, como em toda a Amazônia, o mistério bíblico das “grandes águas” (em extensão, volume e mistério) se realiza concretamente. É natural, pois, que essas duas realidades – o homem e a água, o homem e o rio – estejam em constante permuta, ou, mesmo, como dizíamos antes, em simbiose e que o humano, em seus diversos aspectos – pessoal, social, cultural, estético, político, econômico e religioso – esteja profundamente marcado pela presença inundante das águas. É natural, também que, no caso específico da experiência e da produção poéticas, o elemento bíblico e biologicamente fecundante das águas se faça um dos mais fortes fatores da fecundação poética, principalmente, naqueles poetas que tiveram suas vidas marcadas, desde as definitivas raízes da infância, pelas águas deste ou daquele rio.

É imperioso dizermos que a análise de Ruas é brilhante, no entanto entendemos que ele se refere a Manaus direcionando o olhar para a atual cidade, desmesuradamente grande e que cresce de costas para o rio. Mas quando ele fala no homem interiorano vivendo o rio nas dimensões da vida, acreditamos que essa referência pode se aplicar muito bem, guardadas as devidas proporções, à Manaus da A-m, que se dizia “anfíbia” e “inquilina dos igarapés”. Em O rio comanda a vida, Leandro Tocantins (1968, p. 306) assevera que nesta região encontramos

o rio, sempre o rio, unido ao homem, em associação quase mística, o que pode comportar a transposição da máxima de Heródoto para os condados amazônicos, onde a vida chega a ser, até certo ponto, uma dádiva do rio e a água uma espécie de fiador dos destinos humanos.

A tendência das cidades, à medida que se desenvolvem, é transformar o rio em espaço de lazer, via de transporte ou apenas objeto de contemplação. A inter-relação dos habitantes com ele perde grande parte da magia, indo o homem voltar-se para outros centros de interesse. A Manaus de meados do século XX, no entanto, dado seu caráter

Page 49: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

96

provinciano, em que pese o soterramento de igarapés e o “maquiamento” da cidade, ainda mantinha estreitos vínculos com o rio Negro. Tanto que a A-m, ao fazer um painel imagístico da cidade, não se furtou em dedicar uma das seções à água, sendo esta exatamente um mergulho nas negras águas do rio. Neste capítulo abordamos a forma como o ela vê o rio em seu formato, em seus movimentos de fluxo e refluxo, enchente e vazante. É o rio indo até a cidade ou ela indo até o rio, ou ainda afastando-se dele, fugindo de sua sanha avassaladora. Em “Mesopotâmia”, a A-m refere-se a “duas” Mesopotâmias, uma literal e outra simbólica: Cresci na Mesopotâmia. (A de Nabucodonozor não, a de que fala Agassiz) A casa entre duas pontes o rio-mar lambendo o céu os pés nos igarapés os olhos nos olhos d’águas sapos arraias e botos nadando-me o sono sonho grávido de luas náufragas. Meus alicerces raízes Ali na terra ébria d’água. (p. 185) Conforme o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o termo “mesopotâmia” é originado do grego e chegou até nós através do latim, mantendo o sentido original de “região situada entre rios”. A Mesopotâmia de Nabucodonosor, o poderosíssimo rei de Babilônia, situava-se entre o Tigre e o Eufrates. A novidade que o poema apresenta consiste em a A-m afirmar que cresceu numa outra Mesopotâmia, a de que fala Agassiz,

97

numa alusão direta à Amazônia e mais especificamente a Manaus. Mas uma outra interpretação é válida, por encontrar apoio em análises já realizadas neste estudo: a de que as “duas” Mesopotâmias refiram-se a um duo de Manaus, sendo a “de Nabucodonozor” aquela cidade da ostentação (Babilônia era realmente um símbolo do poder, da soberania e da riqueza) e a “de que fala Agassiz”, aquela que apresentava feições de porto de lenha. Era esta última o universo do eu-lírico. O rio Negro, nos poemas de Vt, é retratado quase sempre como um organismo vivo, e assim personificado. Em “Mesopotâmia” ele é antropomorfizado; em “Por toda parte o rio” (p. 186), ele passa a ser uma serpente solta, espojando-se na paisagem da planície e sendo domado por pontes, potes, púcaros, copos, cuias e pias batismais; em “Rio Negro” (189), o caudal volta a ser serpente sonolenta, engolidora de homens, estirada num “leito de sombras”, mas também é “peixe rápido e esquivo”; como cobra raivosa, reaparece em “A cheia” (p.193) “mostrando os dentes” na fúria desoladora das enchentes. O rio, ora antopomorfizado ora zoomorfizado, tem realçado seu aspecto pavoroso de fúria descomunal. Em “Rio Negro”, lemos: as precavidas palafitas te conhecem a volúpia das cheias .............. Os jiraus a fúria dos dilúvios (p.189) Também lemos em “Ponte Cabral”: Sob a ponte Cabral o rio Negro engordava. Na cheia alagava quintais e engolias porões. (p.194-5)

Page 50: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

98

Mas é justamente em “A cheia” que a desmesurada força das enchentes se faz perceber com maior expressividade: Junho o cais empinava que nem ventre prenhe. Miúdas águas de chuva, poças, regos alagados sumiam sob o aguão do rio embrenhando-se por soleiras baixas num espreguiço de mar. Lambendo chapechape beiras e batentes o rio cobra raivosa ia mostrando os dentes. Não mais praias, matos ou ribanceiras nuas. A líquida rua dos flutuantes se fazia avenida: Luzes piscando trêmulas múltiplas no remelexo das águas trilhadas de canoas bêbadas. Pontes nasciam urgentes sobre as ruas de antes. Cuieiras viraram capoeiras para o frágil refúgio de aves tamandarés. Tanta água solta! Tanta água solta havia de ser o choro de Deus Nosso Senhor no céu! (p. 193) Associada a essa imagem devoradora do rio, uma outra superabunda no painel que a A-m oferece ao leitor: a lembrança da fugacidade da vida plasmada na contemplação da fluidez da superfície líquida. Em seus ciclos de enchente e vazante, conforme mostra o poema “Rio Negro”, o rio arrasta ao abismo invisível carga de risos de meninos orgasmos de jovens, ais de velhos. Sereno também me carregas na deriva da vida até o oculto oceano refluindo, fluindo, indo, indo... (p. 189-90) O último verso do excerto, e também do poema em questão, permite ao leitor “visualizar” a passagem do rio rumo ao infinito, sumindo-se na linha do horizonte diante de nós. As

99

reticências postas após o definhamento do significante vocabular, são expressivas das espumas que, após as águas, convertem-se em reminiscências. E junto com as águas vão as dores e os prazeres dos seres humanos, configurando a transitoriedade da vida, do mundo e das coisas. É o isomorfismo literário que, neste caso, é expressivo do existencialismo comum em Astrid. Notoriamente, a pequenez humana ante a grandiosidade da natureza concretiza-se nas expressões hiperbólicas que medram nas referências ao rio. É o caso de “rio-mar lambendo o céu” e “terra ébria d’água” (Mesopotâmia, p. 185). A imensidão das águas acende no homem também um misto de fascinação e temor pelo mistério que se esconde no leito escuro. Lá estão, dividindo o espaço, a vida e a morte. Paradoxalmente, o rio é o viveiro-cemitério de cardumes. Ao mesmo tempo que é o túmulo-berço de botos e nenúfares. Os dois versos acima, transcritos de “Rio Negro”, opõem dois paradoxos “paradoxais entre si”. O primeiro começa com a idéia de vida e termina com a lembrança da morte; o segundo principia pela morte e conclui-se lembrando a vida. A A-m, numa postura esclarecedora das expressões paradoxais, lança mão de uma antítese nos versos seguintes para sedimentar o dito: Em teu ventre vida e morte moram diluídas no escuro mistério em que vivemos nós mergulhados (p. 189-90)

Page 51: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

100

Perante a conformação do mistério, aguçava-se a curiosidade em desvendar o desconhecido, e o resultado disso era o ilimitado fluir da imaginação que preparava terreno para as crendices mais recônditas na mente das pessoas. Os animais associados ao rio, por exemplo, sempre tinham em torno de si uma aura de mistério, dos “sapos arraias e botos” aos “sonsos jacarés a armarem / botes e terremotos de lama”; da “fula gula das queixadas” às “praias de tracajás na desova”; dos “cardumes de girinos” à voracidade e à “fúria / de poraquês, piranhas, jacarés”. A esses seres que viviam ora sobre o rio ora debaixo dele somavam-se aqueles cujo reino era a escuridão dos abismos impenetráveis, aqueles raramente ou jamais vistos, mas que povoavam os sonhos e pesadelos das crianças – transidas “entre lençóis d’água e de pano” – davam vazão aos pavores infantis e forneciam “matéria-prima” para as narrativas fantásticas dos caboclos. 6.2 Os filhos do rio O poema “Esboço” abre a terceira seção de Vt, “Seres”, e é, na verdade, a passagem da água para a vida social. Trata-se do primeiro texto em que a A-m descreve a si mesma como um ser vivendo fora do rio, mas seu corpo (estrutura física e espiritual) traz as marcas do rio, de onde ela veio: O barro é o das barrancas esboroadas nos solimões dos tempos Os olhos cacimbas minando mágoas

101

Os membros galhos movidos a vento As sardas pitadas de mururé na face líquida O ser é o dos negros caudais onde fundos se fundem troncos e trevas dias e noites (p. 203) O texto procura mostrar que os seres são filhos do rio e da mata. A primeira estrofe, que remonta ao texto bíblico da criação, estiliza o barro genesíaco transmutando-o para as barrancas do rio Solimões. Conota, assim, que o milagre da feitura humana pelas mãos divinas repete-se ad infinitum nas margens dos rios amazônicos, onde nascem os filhos da terra. Na segunda estrofe, os olhos são alçados à dimensão de cacimbas onde as lágrimas minam transformadas em mágoas. A construção apoiada basicamente em fonemas nasais “encharca” o segundo verso e a permuta paradigmática de “água” por “mágoa” permite inferir sobre um destino permeado de tristeza. Já a terceira estrofe, dedicada aos membros, metaforiza-os como elementos dependentes de uma força superior para encetarem movimentos, numa nova alusão à narrativa bíblica, relativamente ao fato de que somente pelo sopro do Espírito Santo em suas narinas o homem – até aquele momento apenas um boneco de barro – passou a ser “alma vivente”, mover-se e existir como gente. Na quarta estrofe lemos a “simbiose” do ser humano com água e os vegetais, estes representados pelo mururé, planta que pela sua natureza eminentemente aquática pode, de forma eloquente, simbolizar a comunhão água-vegetal-homem do universo amazônico.

Page 52: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

102

Por fim, a última estrofe sintetiza o que vem a ser o indivíduo cuja personalidade enforma-se pela presença do rio. No jeito de ser, de agir, de sentir, há uma fluidez como a dos caudais e a tendência para o mistério. Essas realidades já aparecem delineadas em dois outros poemas: “Selo d’água” – o mistério; “Anfíbia” – a fluidez. Em “Selo d’água” lemos: Como a retornar de um reino de sombras, saí do rio peixe interino enrolada de limo e escamas d’água. Mais que a pele, mais que os pêlos a alma de medo molhada! O mergulho na corrente foi-me foice, faca, fio líquida navalha rente ao pescoço, pulso fugidio. Sobrou-me o sombrio segredo Selo da morte na carne. Oh garra gume de gelo! (p. 199) O selo d’água é a “certidão de batismo” de uma imersão total no rio, que é o reino das sombras. O mergulho, por ser uma experiência dolorosa, deixa o medo como estigma. A dor, ao invés de ser atenuada, perpetua-se pela aliteração da fricativa /f/, que registra no poema a sensação de dolorida fricção: Foi-me foice, faca, fio A liquidez da água, assemelhando-se ao gume de um instrumento cortante, é capaz de produzir tortura no indivíduo que nela imerge. A aliteração seguinte, em /s/, equivale a um sussurro:

103

Sobrou-me o sombrio segredo O segredo sombrio é cochichado, possivelmente pelo marulho das águas desse “reino de sombras” que é o rio. Ao vir à tona, o eu-lírico traz na sua carne o “selo” da morte, cuja força dominadora se expressa pelo acúmulo de /g/: Oh garra gume de gelo! Numa leitura simbólica, podemos identificar a realidade aludida pelo poema como o “nascimento de mulher”, única forma de um ser humano vir à existência. Estando no ventre da mãe, a criança é envolta em água, alimenta-se de um rio “escuro” e, ao vir a luz, já traz na pele o destino da decrepitude, pois inegavelmente o ser humano, desde que nasce, principia sua caminhada para a morte. A criança que aflora do útero materno é, alegoricamente, um “peixe interino enrolada / de limo e escamas d’água”. Por isso, como mostra o poema “Boto no corpo”, Corre no chão do corpo um rio escuro de turvas águas e desejos fundos linfa ancestral de pêlos e apelos. Nela, um boto prestes a dar o bote habita investe para que outros rios se gerem e a vida não se aborte e eterna jorre. (p. 198) À parte o fato de o indivíduo nascer fadado para a morte, na sua pele vêm também impressas as marcas do desejo e do prazer. O erotismo vital é evocado pelo “boto prestes a dar o bote”. Dessa forma, em resposta à morte, a vida patenteia-se pela garantia de perpetuação mediante a reprodução. Ao “selo da morte na carne” contrapõe-se o “boto no corpo”. O boto é um animal da fauna amazônica tido como fantástico, que possui algumas semelhanças fisiológicas com o ser humano. Santiago (1986, p. 93-4) explica:

Page 53: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

104

Há duas espécies de boto: o vermelho, que é o maior e mais perigoso e o boto tucuxi, que é preto e bem menor que o vermelho e, segundo alguns, é inofensivo, ajudando em certos casos os náufragos a atingir a margem do rio. Para o anedotário popular, é melhor evitar os dois, pois todos habitam o “reino encantado” do fundo rio. As estórias mais correntes falam da potência sexual do animal e da tentação que têm os pescadores de manter relações sexuais com a fêmea do boto, quando a matam, dada a semelhança entre os órgãos genitais dessa fêmea e os da mulher, fato que, conforme se conta, produz uma extraordinária forma de prazer. Os caboclos temem os botos principalmente porque acreditam que eles têm o poder de seduzir as mulheres, especialmente as virgens, e que à noite tomam forma humana e vêm partilhar da sua rede, sendo responsáveis pela gravidez de muitas.

O poema “Anfíbia” põe de lado o mistério e os medos e extravasa o pendor aventureiro da menina que vivia de “camaradagem” com a água, fosse ela da chuva ou do rio, quando este dava uma trégua na sua vocação de sombras: Tartaruga na rua das canoas sigo entre baronesas e entre folhas de cuieiras submersas sob chuvas ex-nuvens provisórias e pesadas despencando suicidas na paisagem do quintal engolido no dilúvio. Bracejo audaz às cócegas na face e me lanço ao balanço de águas frias varadas por cardumes de girinos. Este é o meu reino, penso aliviada Até que alguns adultos me aprisionam no curral de uma sala encortinada e então massacram meu pendor anfíbio com sermões e censuras bem mesquinhas ..................................................... Tudo para que em terra firme pise essa menina irmã de tartarugas

105

tão inquilina dos igarapés. (p.201) A influência do rio sobre os habitantes da capital não poderia ser tão intensa quanto a que permeia a vida dos ribeirinhos, uma vez que estes vivem sob o “regime das águas”, a partir do qual estabelecem seu regime de vida social: o rio impõe-lhes um estilo de vida. Mesmo assim, a A-m revela, através das imagens que remetem principalmente ao rio negro, que numa capital relativamente pequena como era a Manaus dos anos 1940 e 1950, nascida e crescida ao redor de um dos maiores rios do mundo, a vida humana e as relações sociais não passariam incólumes por ele, que naturalmente haveria de forjar crenças, atitudes, visão de mundo peculiar. Nas cheias, ele invadia as ruas e casas; na vazante, as pessoas iam até ele em busca de diversão, transporte e contemplação. Porções suas atravessavam os dias aprisionadas pelos abraços das pontes, conviviam nos igarapés, cacimbas, potes, bilhas, copos etc. Numa aproximação tão estreita com o rio, Manaus haveria mesmo de produzir criaturas humanas à imagem e semelhança do rio Negro, encarnando todas as suas contradições, do confronto desafiador à cumplicidade tácita: os filhos do rio.

Page 54: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

106

7 PROFECIA DO OFÍCIO (a A-m expõe os contornos do seu “fazer poético”) 7.1 O leitmotiv Ao tecer considerações sobre o leitmotiv astridiano em Vt, mais uma vez voltamos às brincadeiras de roda que faziam a alegria das crianças na antiga Manaus. Mais especificamente, a uma cantiga lembrada por Thiago de Mello em Manaus, amor e memória. Era uma canção que pedia coro e solista. Este dirigia-se ao grupo com os seguintes dizeres: Boa-noite, Vossa Senhoria matu-tiro-tiro-lá, escolhi uma das vossas filhas, matu-tiro-tiro-lá, quero me casar com ela, matu-tiro-tiro-lá. O coro perguntava, depois de indicada a “noiva”: Que oficio dás a ela, Matu-tiro-tiro-lá? O solista respondia, com variações de acordo com a circunstância do agrado ou desagrado da menina indicada. Se o oficio era, por exemplo, o de lavadeira, a resposta era imediata: Este oficio não me agrada, Matu-tiro-tiro-lá. Fosse, porém, o de pianista ou de professora, então a roda confraternizava bem alto:

107

Este oficio, sim, me agrada, matu-tiro-tiro-lá, este oficio já me agrada, matu-tiro-tiro-lá. Com efeito, dois detalhes sobressaem na descrição da brincadeira. Primeiramente, a menina só aceitava a proposta de “casamento” se a profissão oferecida fosse do seu agrado; em segundo lugar, entre as profissões pretendidas figuravam a de pianista e a de professora. Para uma moça de família correspondia a uma honra ser professora, trabalho considerado nobre. E ser pianista era dar à família motivos de propalado orgulho. Se numa mesma moça se somassem as duas atividades – professora de piano – então era a glória da bênção social. Há um poema, “Profecia do oficio” em que a A-m se reporta às cirandas infantis testemunhadas pelo luar, como um ritual de iniciação. Ante a pergunta

“que oficio das a ela? A resposta, ao que tudo indica ecoando as vozes do destino, foi peremptória:

Dou oficio de escritora. A ausência de rejeição por parte da menina sinaliza como a aceitação da proposta, e é por isso que o pedido dirigido a ela em seguida é, na verdade, a confirmação profética do futuro: Menina quando tu fores me escreve pelo caminho se não encontrar papel nas asas do passarinho. Da boca faz o tinteiro da língua pena molhada dos dentes letra miúda dos olhos carta fechada. (p. 204)

Page 55: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

108

Ao transpor os umbrais do tempo, ela olha para trás e constata que a “profecia” se cumpriu à semelhança de um milagre: Magia de moura torta mais seu cruel alfinete, de gente de cara e dente e nariz pra frente, viro pomba de asas, bicos e plumas e, correio, sobrevôo montanhas vales e mares com a mensagem pelos ares. O destino do vate é ser “pombo-correio” com uma mensagem a ser difundida em todos os recantos do planeta. Esta experiência trouxe-lhe a plenitude do “ser artista”, melhor dizendo do “ser poeta”. No livro Psicologia e literatura, Dante Moreira Leite (1977) esboça duas concepções que, em diferentes épocas, nortearam o entendimento geral sobre o “ser artista”. A primeira aponta para a predestinação e entende o artista como alguém isolado dos demais indivíduos, separado por forças espirituais para o destino especial, qual seja o exercício da criação; a segunda o vê como um artesão – pessoa que labora com as formas e palavras para delas extrair efeitos estéticos. Leite (1977) desdobra esta concepção em duas vertentes: o artista como jogador, capaz de brincar com as formas e nesse jogo encontrar o prazer; e como construtor, capaz de, mediante combinações e dissonâncias, descobrir relações harmoniosas e satisfatórias. A A-m revela-se as duas coisas simultaneamente em Vt. No poema analisado ela se diz predestinada, tendo recebido ainda na infância a missão de ser escritora. E ao desimcumbir-se da missão recebida o faz como artesã do verso, como jogadora e construtora.

109

Longe de ser uma egocêntrica ou angustiada criatura, corroendo-se em padecimentos em prol da expiação dos pecados da humanidade, como era a cosmovisão dos românticos, ela brinca com as palavras, explora o potencial sonoro que elas têm, lança mão do código flutuante para imprimir nos versos um alto teor de ambiguidade e ironia. Portanto, em seu oficio poético mostra-se ora jogadora (tendo a parceria do leitor-modelo) ora construtora. Sem aquela obsessão pela forma que plasmou a poética parnasiana, abstendo-se também tanto da lassidão da geração de 22 quanto do rigoroso apuro técnico de 45, dedicou um cuidado especial à estrutura dos poemas, à arquitetura dos versos. A organização trinômica em “Terra”, “Água” e “Seres”, tendo cada seção uma série de poemas que guardam entre si profunda relação de contiguidade temática é um excelente exemplo do produto dessa oficina poética. Também, sem penetrar no universo verlainiano, onde impera o princípio de “de la musique avant tout chose” associado a um lirismo vago e cinzento, a A-m extrai musicalidade dos versos palavra a palavra, praticamente sem lançar mão da rima, da isometria e da regularidade. Com a grande maioria dos textos formados de uma única estrofe onde a escassez de rima é notória, ela serve-se ao máximo da virtualidade rítmica que os vocábulos possuem. À parte o labor arquitetônico e musical de composição dos versos, aflora em toda a obra um conjunto de “ingredientes” indispensáveis à poesia de qualidade: a força expressiva das imagens traduzidas em linguagem dissonante, o olhar diferente sobre as coisas comuns, suscitando nelas o desvelamento do inusitado, questionamentos sociais, reflexões existenciais e um superabundante emprego do código aberto, nascedouro das ambiguidades poéticas que possibilitam ao leitor trazer para o texto a sua vivência nos trabalhos de interpretação. Como jogadora, exercita o jogo com a paixão e a frieza de uma aficcionada. A cada lance, os fragmentos da memória

Page 56: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

110

vão trazendo à luz os contornos da cidade, os estigmas de uma época, e o eu-lírico vai se dicotomizando em menina e mulher, oferecendo-se ao leitor para uma insólita parceria. 7.2. A imagística Nesta parte do livro, voltamo-nos para aquilo que alguns manuais de literatura costumam chamar de conotação, a linguagem que, no entender de Antonio Paulo Graça (1999, p. 37-9), relembrando os formalistas russos, constitui uma “violência” contra a linguagem diária. Ele entende que “o poeta é livre para construir sentidos possíveis e mesmo sentidos impossíveis, com termos familiares”. O poeta, na busca de originalidade e de maior expressividade, afasta-se da linguagem comum, criando fatos linguísticos e produzindo imagens poéticas sem as quais não há, a rigor, poesia. A linguagem poética é “dissonante”, expressão usada por Friedrich (1991, p. 15), “pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à serenidade”. Em relação a esse fato, o crítico cita ainda T. S. Eliot, para quem “a obscuridade fascina o leitor na medida em que o desconserta”. A poesia tende a, afastando-se do real, recriá-lo. No bojo dessa recriação do elemento real, cotidiano, fluem as figuras de linguagem que apontam para o inusitado que reside virtualmente no comum das coisas. O artista opera nessa virtualidade, trazendo a imagem poética da configuração paradgmática para a linearidade sintagmática do verso. Vt oferece ao leitor um rico campo dessas imagens, concretizadas nas mais diferentes figuras de estilo. Não pretendemos, obviamente, esgotar as ocorrências imagísticas da obra, senão analisar os casos de maior força expressiva quanto à inventividade lírica. No intuito de adentrarmos nos meandros da figura mais comum na poesia – a metáfora – reportar-nos-emos mais uma vez a Friedrich (1991, p. 110). Ele defende o argumento aristotélico segundo o qual, na linguagem metafórica, “um

111

significante pode remeter o leitor a um significado, a que chamaríamos I, e a outro significado, a que chamaríamos II(...) O significado I é de âmbito linguístico, enquanto o significado II é de âmbito poético”. E continua sua abordagem mostrando que a metáfora estabelece sempre uma relação paradigmática, uma vez que um termo in praesentia suscita outro termo in absentia. Para Flávio Kothe (1986, p. 9), “a força da metáfora é proporcional à quantidade e qualidade de coisas que ela for capaz de sugerir de modo sintético. Ela é tanto mais surpreendente quanto mais distantes entre si forem os elementos da comparação”. Atestamos a validade dessa assertiva, tendo em vista que há metáforas que, de tão desgastadas pelo uso, converteram-se em estereótipos, perdendo toda a força expressiva de outrora e não despertando mais no leitor o sabor do insuspeitado, a fascinação do insólito. Ademais, há metáforas em que as relações de comparação são tão óbvias que furtam ao leitor o prazer de atribuir sentidos à imagem expressa nas palavras. Em Vt, encontramos um grande numero de metáforas bem concebidas. Em “Elegia derramada” (p. 166/7), referindo-se às canoas e aos gaiolas, a A-m di-los da seguinte forma: Abarrotados de gente carimbada de impaludismo e miséria. O inusitado, neste verso, faz-se pela presença de uma única palavra que “violenta” a logicidade da construção linguística e provoca o estranhamento em face do inusitado. Trata-se do vocabulário “carimbada”. Posta em cadeia sintagmática com os demais termos da estrutura linear do verso, a palavra remete a outra expressão, ausente do texto mas presente na virtualidade do sentido. O significante pode conduzir a um significado linguístico (marcada com carimbo; selada) e a outro de natureza poética (marcada pela doença). É exatamente a segunda possibilidade de leitura que confere vigor estético ao

Page 57: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

112

verso. Antes de a artista conceber os estigmas da malária e da penúria como a marca resultante da compressão de um carimbo sobre o corpo, ninguém seria capaz de sequer suspeitar essa “quantidade” e “qualidade” de evocação tão densas. Porém, depois que o leitor se refaz do “choque”, não mais consegue ver um indivíduo miserável ou acometido de malária sem “visualizá-lo” carimbado. Isso ratifica o que sugere Kothe (1986, p. 11) quando afirma que no processo metafórico “não só o primeiro termo adquire a identidade do segundo, mas cada um perde também a sua identidade ao identificar-se com o que não é. Apropriando-se da identidade do outro, faz também com que perca a sua identidade anterior”. O verso destacado acima, sem dúvida alguma, instaura o que Paulo Graça (1999, p. 41) chamou de “maneira original de ver o mundo”, considerando que, pelo seu potencial inventivo, a metáfora “não existia antes de o poeta estabelecê-la”. Metáforas igualmente expressivas encontramos nos versos que seguem:

a) Referência aos túmulos dos parentes e amigos, no cemitério São João Batista:

Íamos longe de bonde visitar os mortos, inertes em suas camas de pedra – grandes caixas de segredo –

(p. 174) b) Alusão às canoas em seus movimentos ao sabor das ondas do rio:

A líquida rua dos flutuantes se fazia avenida: Luzes piscando trêmulas múltiplas no remelexo das águas trilhadas por canoas bêbadas (p. 193)

113

c) Evocação da tia-avó, circulando solitária pela casa deserta, esperando a hora da morte: os chinelos surdos engomando o assoalho coberto de pó. (p. 216) d) Lembrança do tio recém-chegado da guerra, recebido com festa pelos parentes que o tratavam como herói da pátria e queriam ouvir-lhe contar as proezas da guerra: Mas ele pediu para não tocar no assunto e só rompeu o silêncio em meio ao choro nas rubras trincheiras de seus pesadelos. (p. 221) e) Descrição de um dragão, ser fantástico que faz parte do imaginário da menina, e cujas estripulias são enumeradas no poema “Dragão domado”: E ao regressar sonolento espojava-se sonolento na grama grávida de grilos ............... de sua tosse brotavam chispas e chamas e fogueiras breves rubras se acendiam iluminando o território do meu sonho. Outra figura muito cara à poesia, embora menos abundante que a metáfora, é a metonímia, que se distingue da metáfora pelo seu caráter de contiguidade. Enquanto a metáfora pauta-se pela semelhança, a metonímia baseia-se na relação de parentesco entre o termo utilizado e o preterido. Platão e Fiorin (1998), trazem uma informação esclarecedora sobre a metonímia, mostrando que em tal figura “entre o sentido que o termo tem e o que adquire existe uma relação de inclusão ou de implicação”. Encontramos uma bem urdida metonímia no poema “Tartarugada”, em que se descreve a matança de tartarugas para o preparo da refeição. O quelônio é revirado num safanão, ficando com o peito para cima. Em

Page 58: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

114

seguida, com um pesado terçado (facão), desferem-se seguidos golpes sobre o rijo peito, fazendo escorrer o sangue por entre as emendas da carapaça, até a morte do réptil. Assim a A-m registra o fato: Ali no pátio a grave sina de semi-eternidade se descumpria a golpes de força e metal. (p.225) O vocabulário “metal” foi utilizado, no último verso no excerto, para significar “terçado” (facão), termo antecipado no início do poema em questão: “Tisnado de mortes, o terçado / arremessava seu pesado fio / contra o rijo peito de pedra”. Dessa forma, substituindo o instrumento (terçado) pela matéria de que ele é feito (metal), operou-se um desvio no âmbito do significante para conferir-lhe maior expressividade. Gostaríamos de realçar ainda uma outra expressão metonímica, desta vez incrustada no poema “Olhos à retaguarda”, exatamente nos seguintes versos: São teus olhos agora que olham para trás. (p.206) Nota-se que uma parte (os olhos) foi utilizada para representar o todo (o eu-lírico). Da metonímia passamos ao trocadilho, recurso poético que os franceses chamam de calembour. Graça (1999, p. 47) comenta que essa figura tende a ter sempre um lado lúdico e espirituoso, pois consiste num jogo com as palavras, podendo ser “uma paronomásia, jogos com palavras parecidas” ou, no caso da antanáclase, jogo com a mesma palavra dando trânsito a diferentes sentidos. Depois da metáfora, recurso essencial à poesia, o trocadilho é a figura mais abundante em Vt. Isso se deve ao fato de que a obra tem um caráter lúdico, é irônica em muitos pontos e pontuada de humor, além do ritmo fluente que os trocadilhos ajudam a manter. É o que se percebe, por exemplo,

115

na aproximação paronomásica de palavras, como nos versos destacados abaixo:

morcegos rompiam o sossego (p.160)

e vidrilhos ao som de sonatinas (p.164)

valsas, marchas, mambos-jambos, sambas e frenéticos frevos (p.166)

vindo das bocas dos becos. (p.168)

entre boleros e lero-leros (p.169)

na vasilha das ruas nuas (p.170)

de silêncio sob as sebes (p.172)

a fula gula das queixadas (p.191)

sem a baba de espumas brabas (p.196)

mais que a pele, mais que os pêlos (p.199)

e vira segredo sagrado (p.200) Através desta pequena amostra, podemos perceber como apraz à A-m “brincar” com os fonemas da língua, contrapondo-os e extraindo desse confronto efeitos estéticos especiais. Ora é a alternância de fonemas vocálicos, como em “boca dos becos” e “sob as sebes”, ora a inversão vai para os fonemas consonânticos, como em “ruas nuas” e “fula gula”. Não raro, também, opõe-se a presença à ausência de um fonema, como em “baba / braba”. E muitas vezes o contraste percorre toda a extensão da palavra, como no caso de “segredo / sagrado”. Detectamos também alguns casos de antanáclise, entre os quais destacamos os três que seguem:

Page 59: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

116

a) Passivos, a terra os elabora contra a tíbia resistência de tíbias, perônios e crânios. (p.172) b) o rio-mar lambendo o céu os pés nos igarapés (p.185) c) Mas o campo do céu, oh céus! Era o chão que firme palmilhava (p.214) Em “a”, através da derivação imprópria, o vocabulário “tíbia” passou de adjetivo – com sentido de indolente, sem ardor, sem entusiasmo – no segundo verso a substantivo no terceiro, desta feita significando um dos ossos do corpo humano, mais especificamente da perna. Localizado num poema que fala sobre o cemitério de Manaus, este trocadilho intensifica o estado de tibieza dos corpos inertes sob a terra. Em “b” não é necessariamente a mesma palavra que se repete, mas o vocábulo “pé” reaparece como um eco no final da palavra “igarapé”. Sendo uma alusão ao rio Negro, que nesse poema é personificado, o jogo sonoro serve para acentuar a idéia de que o rio está presente em todo o igarapé, tanto no sentido da profundidade quanto da extensão. Em ”c” a repetição da palavra confronta um lugar (o céu) com a manifestação de um estado de espírito, a explosão do espanto, do estranhamento, expressos na interjeição. A ironia é outra figura que medra nos textos de Vt. No poema “Ponte Cabral”, a A-m tece severas críticas ao genocídio dos índios perpetrado pela “civilização” que os transformou em meros pontos escolares. Num dado momento, ela diz: Mas posso rever nítido o batelão de índios amontoados qual borracha juta ou lenha, rostos inchados, narizes escorrendo coriza e catarro doado pelos bancos. (p.195)

117

A conotação de um único termo pode “contaminar” todo o texto, e é o que ocorre neste caso, com a palavra “doado”, sobre a qual incide a ironia a que nos referimos. Essa figura consiste em dizer uma coisa para significar outra. A palavra que foi usada autoriza-nos a entender o contrário do que ela, na sua logicidade, poderia dizer. O branco tomou tudo que o índio tinha e deu-lhe de presente a imersão na completa miséria, com o tempero das doenças crônicas. Ainda circulando no território da ironia, dirigimo-nos ao poema “O bruxo Panta”, em cujos versos encontramos: Sob seus dedos de feitiço nasciam narizes atrevidos condecorados de berrugas (p.212) Sabe-se que a berruga é um pequeno tumor que muitas vezes se multiplica sobre a pele das pessoas. Tem um aspecto grotesco e, nascendo sobre o nariz, amplia a visualidade antiestética na face do indivíduo, incomodando-o. Panta era uma espécie de artista-mágico que formatava máscaras de gente e de bichos a partir da manipulação de jornais velhos apodrecidos numa bacia de ágata. A feição extravagante das figuras era realçada com o salpico de berrugas sobre o nariz. Ao chamar isso de “condecoração”, a A-m promove um “gracejo” propício ao discurso irônico: põe-nos diante do ridículo e classifica justamente esse ridículo como um prêmio. Mais adiante, no poema “Fim de guerra”, outra ironia – esta bem amarga – espera o leitor. Intentando interpretar o sentimento de orgulho patriótico dos parentes pelo heroísmo do tio que voltava com a pátria amada idolatrada Salva! Evidentemente há aí uma negação do patriotismo ufanista. O diálogo com o Hino Nacional Brasileiro é avesso, pois o Hino advoga justamente o nacionalismo exacerbado.

Page 60: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

118

Mas a interjeição “Salve! Salve!” do texto original foi substituída no verso pelo adjetivo “salva”. A troca das palavras acarretou o proposital desvirtuamento do discurso romântico da canção. Para o pai, a pátria estava salva; para o filho, tudo estava perdido: restavam apenas os pesadelos e o choro como prêmios pela “bravura” da guerra. É possível que a ironia mais eloquente de Vt seja a que se encontra no poema “Junhos”, que rememora os folguedos juninos nos terreiros das casas. Na primeira estrofe, encontramos os seguintes versos: Líamos em turvas lâminas ou em lágrimas de velas as iniciais dos messias. (p.177) Os “messias” citados no texto eram os rapazes, ou “príncipes encantados” pelos quais as moças ansiosamente esperavam. Eles teriam um função social: resgatá-las do anátema da solteirice. O vocábulo alude intertextualmente à figura religiosa do Salvador (Jesus Cristo tem, como um dos seus nomes, “Massiah”, do hebraico, que deu origem à palavra “Messias” em português). Feitas estas considerações respeitantes à intertextualidade inserta no poema, confirmamos que, ao cognominar os amados tão resignadamente esperados de “os messias”, a A-m lança mão de uma fina ironia a respeito da Igreja: a chegada dos “príncipes” era quase sempre adiada, a esperança das moças convertia-se em malogro e, quando alguma tinha sorte, ganhava um plebeu que fazia as vezes de príncipe. Aquele plebeu passava a ser o seu “messias”: salvava-a da “perdição”. Não é difícil encontrarmos, ao longo da obra, a hipálage, recurso literário que permite ao poeta transferir para um ser as qualidades de outro ser que, por estar próximo, “contamina-o” com sua carga semântica. É o que acontece no seguinte verso:

119

âncoras nas mesmas águas de mendigas canoas e nativos gaiolas (p. 167)

Ao dizer que os vapores advindos da Europa lançavam suas âncoras nas mesmas águas em que ancoravam as “mendigas” canoas e os “nativos” gaiolas, a A-m transfere para as embarcações qualidades que na verdade têm a ver com seus donos ou ocupantes. Tanto que no verso seguinte ela diz que essas embarcações eram “abarrotadas de gente carimbada de impaludismo e miséria”. Assim a situação dos caboclos ribeirinhos “contamina” os barcos que os conduzem. O fenômeno repete-se no verso abaixo: Negro mundo de batinas, morrinha de hábitos, hipocrisias e rosários. (p.211) A hipálage, nesses dois versos que se referem à igreja, desdobra-se em duas. Primeiramente o negror das batinas transfere-se para o mundo, que então apresenta-se negro; em segundo lugar, a morrinha (indisposição física, lassidão, preguiça) dos sacerdotes impregnam os hábitos, que nesse ambiente linguístico podem ser tomados como a vestimenta que cobre o corpo dos eclesiásticos. Em todos os casos vistos, a hipálage contribuiu para dilatar a visão crítica da mulher sobre a realidade social que conheceu em criança. Enfim, os textos de Vt são pontilhados de imagens bem elaboradas. Além das referidas acima, há ainda onomatopeias, hipérboles, antíteses, paradoxos, prosopopeias, anáforas, eufemismos e aliterações abundantes, apenas para citar as mais representativas, e não é a preocupação primordial deste capítulo esgotá-las. Todavia, para fechar esta série de amostras do trabalho imagético da A-m, atemos-nos a explicar uma figura que, aparecendo uma única vez em toda a obra, desencadeia no seu ambiente linguístico um efeito estético de primeira grandeza. É a silepse, localizada no poema “Selo d’água”.

Page 61: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

120

Como a retornar de um reino de sombras, saí do rio peixe interino enrolada de limo e escamas d’água. (p. 199) Não é difícil, para o leitor atento, detectar a quebra da concordância gramatical do terceiro verso do fragmento acima. Os olhos acostumados à gramaticalidade normativa, esperariam, naturalmente, que o adjetivo “enrolada” viesse no masculino, para efetuar concordância nominal com “peixe”. Contudo, a silepse permite o desvio dessa norma, prestigiando não a palavra mas a ideia subjacente a ela. Portanto, nada mais poético que mandar o adjetivo para o feminino, incidindo diretamente sobre o eu-lírico, que é feminino. A isto chamamos silepse de gênero. Da forma como foi usada, a figura ganha mais expressividade pelo fato de haver, entre o adjetivo analisado e o seu núcleo substantivo um outro adjetivo estritamente afeito ao preceito da gramática:

peixe: masculino / interino: masculino / enrolada: feminino Essa inserção afasta o segundo determinante do seu núcleo, mas, em vez de enfraquecer a força expressiva da figura, concorre para torná-la ainda mais elaborada. Foi iniciada uma concordância “normal” que sofreu um flagrante desvio no fim, em nome da expressividades lírica.

121

8 DRAGÃO DOMADO: FIM DO ENCANTO (a A-m poetiza a difícil e dolorosa passagem da infância para o mundo adulto) Assim como o “ingresso no passado” se dá, em Vt, pelo terceto que lhe serve de pórtico, o “retorno ao presente” se faz pelo poema “Dragão domado”, último texto do livro: Tive em menina um dragão chinês que se hospedava no vão das moitas habitando a noite do meu jardim. das madrugadas às tardes viajava pela antípoda penumbra de outro país e ao regressar cansado espojava-se sonolento na grama grávida de grilos as patas enxotando os pirilampos que fosforesciam estrelas verdes por entre tranças de samambaias. Drogava-se com o ópio das papoulas e guloso engolia finas lagartixas mariposas tontas carapanãs vadios. Bebia choro de chuva e suor de sereno. Urinava poças que viravam espelhos. De orgulho ou por descuido pisava as unhas rosa-esmalte dos junquilhos e o coração de ouro das margaridas. Humilhava sapos camaleões lagartos insinuando que jamais cresceriam até seu porte de ambulante montanha. De sua tosse brotavam chispas e chamas e fogueiras breves rubras se acendiam iluminando o território do meu sonho. Assim foi até que me pus a conquistá-lo (tarefa em que se foram anos e enganos) fiz-lhe então cócegas cafuné carinhos sentei-o em meu balanço, dei de comer

Page 62: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

122

do meu prato, dividi meu travesseiro cobertor e quarto. Contei-lhe meu segredo. Ele se fez todo doçura e manso obediente Se foi minguando enquanto eu crescia. Até que se sumiu um belo dia. (p. 228-9) O poema encerra uma “narração” em que o “protagonista” é um dragão chinês. Percebemos que a “narrativa” apresenta dois diferentes momentos do passado: o primeiro vai do verso inicial até o vigésimo quarto (“iluminando o território do meu sonho”); o segundo, do verso seguinte ao último. Na primeira parte, excetuando o primeiro verso, todos os outros trazem o verbo principal no pretérito imperfeito enumerando as peripécias do dragão, um ser fantástico que habitava o território do sonho da menina, portanto o seu imaginário. Conforme já pudemos demonstrar em outro capítulo deste livro (“Olhos à retaguarda: o túnel do tempo”), o crítico italiano Umberto Eco, em Seis passeios pelos bosques da ficção, lembra o fato de que esse tempo verbal possui, por um lado, um aspecto “durativo” e, por outro, um caráter “iterativo”. Ele procura explicar-se mostrando que, como durativo, o pretérito imperfeito deixa claro que os fatos estavam acontecendo no passado, enquanto como iterativo não nos fornece nenhum tempo exato e dessa forma tanto o início quanto o final da ação permanecem ignorados. A natureza durativa do tempo verbal em questão indica ainda que a ação, no passado, repetia-se. De fato, os vinte quatro primeiros versos acumulam ações continuativas desse elemento onírico, que era o dragão chinês noctâmbulo. O seu período de ação era a noite. Durante o dia, excursionava por “outro país” onde houvesse noite naquele momento – possivelmente retornando ao seu lendário país de origem, a China – e quando as sombras da noite desciam sobre a vida da menina, ele aparecia e cometia os atos

123

mais disparatados possíveis: divertia-se com o medo dos seres minúsculos que fugiam ante a sua colossal figura e, folgazão, assumia o comando do noturno território. Superpostas com os verbos no pretérito imperfeito, essas peripécias repetiam-se todas as noites, acompanhando os contornos das noites infantis da menina. A segunda parte do texto opera um corte no relato das façanhas do dragão e insere novamente na narrativa a menina, que ficara isolada no primeiro verso (único da primeira parte com verbo no pretérito perfeito, justamente porque focaliza a criança e não o “monstro”). As ações, a partir do vigésimo quinto verso, passam a ser praticadas por ela, que se desdobra em atos de carinho, simpatia e bondade para com o seu dragão. Os verbos dessa segunda parte, agora no pretérito perfeito, conotam que as atitudes da menina não perduraram na linha do tempo, mas se fecharam num bloco de ações prontamente concluídas. Todavia, embora pareça contraditório, essa investida na “tarefa” de conquistar o dragão levou alguns “anos e enganos”. É que esses anos computam-se, pela mediação do pretérito perfeito, como um único bloco de tempo relativamente ao passado. O “monstro”, depois de domado, começou a definhar, enquanto a menina crescia. Pela sequência de sugestões do poema, o leitor é levado a esperar a morte do “animal” no último verso, mas a A-m nos surpreende registrando, ao invés da morte, o sumiço do mesmo. Ele não morreu, apenas sumiu, desapareceu, foi habitar outros territórios de sonhos. O que vem a ser, então, esse dragão focalizado no poema? Se bem o “observarmos”, veremos que todos os seus atos são avessos à ordem natural das coisas: troca o dia pela noite, perturba a paz dos outros seres, desafia as leis da natureza, provoca alteração na ordem das coisas, soberbamente põe-se acima dos demais elementos, caçoando de outros bichos, maltratando as plantas, considerando-se maior e mais poderoso. Enfim, semeia o caos por onde passa.

Page 63: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

124

Esse dragão é uma alegoria para a infância, a meninice. Semelhante ao monstrengo destrambelhado, a menina colecionava um rosário de estrepolias que subvertiam a ordem convencional das coisas. A família ia, aos domingos, visitar o cemitério São João Batista. E enquanto os familiares contritos reverenciavam a lembrança dos entes queridos, a ela aprazia saborear as ginjas e pitangas que abundavam nas cercas, dando vazão ao “vampirismo” infantil. A repreensão, então, era certa: Mamãe continha-me o braço repreendia-me a gula de sacrílega vampira chupando a seiva dos mortos no sangue vivo das frutas. (p.174) Outro momento de subversão era quando ela permutava a terra firme pela água, deixando aflorar o lado hídrico de sua natureza anfíbia. Alheia ao perigo de doenças, corria para o quintal quando a chuva começava a cair, regozijando-se sobremaneira com as torrentes de água que despencavam sobre o seu corpo e fluíam pelo chão. Aquele era o seu reino, assim ela pensava, mas a reprimenda não tardava a se fazer valer: Até que alguns adultos me aprisionam no curral de uma sala encortinada e então massacram meu pendor anfíbio com sermões e censuras bem mesquinhas e ameaçam com a ferocidade e a fúria de poraquês, piranhas, jacarés. Tudo para que em terra firme pise essa menina irmã de tartarugas tão inquilina dos igarapés. (p. 201)

125

Havia também a rebeldia da menina pobre contra os ditames da religião que, para seu desgosto, favorecia os ricos, fazia comércio da fé alijando os menos favorecidos da fortuna do círculo glorioso dos abençoados. Nas procissões ganhavam destaque as meninas ricas, bem vestidas, cujos pais dispunham de dinheiro para dar às “Missões”. Como se isso não bastasse, os sacerdotes eram hipócritas e injustos. Para criança tão revoltada que nutria esse tipo de sentimento para com a Igreja, chegando ao ponto de implorar ao Ser Supremo que pusesse fim à pretensa representante de Deus na terra, que lhe reservava o anátema disfarçado em exortação: “Seu pecado é a rebeldia” (p.211) Era essa mesma menina que ia à casa da tia-avó e lá quebrava castanha nas dobradiças enferrujadas das portas gasguitas, extraía à força ovo das galinhas, montava em lombo de jabuti, riscava as paredes a carvão e giz com desenho obsceno e palavrão, comia manga de vez com sal e curtia atrozes dores de barriga. (p.216) Ela mesma relata que, juntamente com seus amigos, pulava pelo alçapão para o escuro porão da casa e Escalávamos o muro do quintal para bispar a sessão noturna especial, só para cavalheiros, do cinema vizinho: nua Heddy Lamar punha a platéia em êxtase fagueiro. (p.217) Como se percebe, ser criança consistia em sublevar-se contra a ordem estabelecida, “mas arte nenhuma era por mal”, dizia a menina. A infância conduz na sua bagagem uma

Page 64: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

126

vultosa carga de espontaneidade, vitalidade, deslumbramento e rebeldia que o mundo adulto precisa podar. A menina trazia em si um dragão insensato, disparatado, teleguiado pelos instintos indomáveis. Para os adultos, afeitos à sisudez da idade e às amarras das convenções, essa escassez de limites representava a encarnação do mal. Daí os sermões, as censuras, as repreensões, as reprimendas. A partir dessa avalanche de reprovações, foi se forjando, aos poucos, na mentalidade da menina, a necessidade de domar o seu dragão, embora fosse exatamente a sua natureza selvagem que a fascinava. Levou anos nessa tarefa de adestrá-lo para o gosto adulto, para depois perceber que cometera um série de enganos: tentara domar o indomável, conquistar o “inconquistável”. O resultado foi que acabou perdendo o seu dragão, pois ele fugiu. Foi o vigor da adolescente que definhou, cedendo lugar à placidez da mulher. Tornar-se “manso obediente” foi uma sentença de morte para aquele cuja vitalidade consistia no exercício da liberdade. A expressão “um belo dia”, fechando poema, o livro e a “viagem” no túnel do tempo, pode ser alçada ao universo da ironia, pois o fim da infância trouxe consigo o fim do encanto, fazendo emergir a dolorosa experiência do “ser adulto”. Por outro lado, a mesma expressão – considerando que o dragão não morreu, apenas empreendeu uma fuga – tende a conotar positivamente, no sentido de que ele exilou-se nas regiões do “belo”, podendo, portanto, ser resgatado pela poesia. E Vt é o espaço desse resgate.

127

9 CONCLUSÃO A Manaus da primeira metade do século XX era bem diferente da Manaus do final desse mesmo século. Era uma cidade pequena de hábitos provincianos bem arraigados. Péres (1984, p. 21) informa que a cidade era

um modesto aglomerado urbano, de pouco mais de 100 mil habitantes, com todas as características de uma típica capital de província. A vida fluía sem pressa e sem sobressaltos, num ritmo ditado pelas condições físicas, econômicas e culturais de uma comunidade pequena, com três décadas de estagnação e obediente a valores tradicionais.

A cidade não se estendia para muito além do Boulevard, e esse relativamente pequeno espaço urbano abrigava toda a história de um povo com suas crenças, costumes, valores, ilusões e contradições, como os explorados no corpo deste livro. Num lapso de aproximadamente meio século, essa cidade desapareceu quase por completo. A despeito da epígrafe utilizada no início do presente estudo, tomado de empréstimo ao poeta Alencar e Silva, muito se tem lamentado ultimamente o fato de Manaus ter se tornado, ao longo dos anos, uma cidade desmemoriada. Pouquíssima coisa resta para testemunhar o que foi a capital do Amazonas no início do Século XX. Monumentos foram e continuam sendo depredados, mananciais foram soterrados em nome da modernidade, a cidade foi perdendo paulatinamente as suas raízes, sua identidade, tudo graças à avassaladora sanha destruidora do homem moderno. Em Visgo da terra, Astrid Cabral erigiu uma cidade e uma época, reinventando aquilo que o tempo e o homem destruíram. Transmutando o Bentinho de Machado de Assis para a poesia, guardadas as devidas proporções, vislumbramos na obra uma tentativa de juntar as duas pontas da vida e

Page 65: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

128

restaurar a adolescência na maturidade. Numa das pontas está a mulher, exilada no tempo e no espaço. Ela se considera uma “rês desgarrada”, estando em outros páramos, afastada de sua cidade e das coisas que ama. Com efeito, Astrid Cabral circulou por vários países, realizando estudos e trabalhando. No Brasil, pelos mesmos motivos, tem transitado entre o Rio de janeiro e Brasília. No entanto, como bem expressa o título da obra que analisamos, sua cidade natal epegou-se-lhe à alma como um visgo. Isso diz respeito ao exílio espacial, geográfico, temática recorrente em todos os estilos de época: vive-se num lugar, mas o coração elegeu outro como o espaço da felicidade plena. Relativamente ao tempo, tomamos contato com uma mulher que, apesar de gozar os prazeres da maturidade e os desfrutes que o acúmulo de experiências lhe permite, ressente-se das perdas que o fim da meninice acarretou. No rol dessas perdas encontram-se a vitalidade e o permanente estado de encantamento; na outra ponta está uma menina, fazendo volteios entre a “Paris-dos Trópicos” e a Manaus-quase-aldeia, exercitando o ofício da liberdade, calando amargamente a sua rebeldia ante as injustiças e desigualdades sociais, e principalmente escrevendo. Os jornais da cidade guardam a interpretação da vida feita pela adolescente cujo talento para as letras prenunciava a vocação de escritora na sua latência, e que começava a aflorar. E foi a sua arte que possibilitou o reencontro da mulher com a menina, ou seja, consigo mesma e seu passado. Tecemos essas considerações a despeito de o crítico Umberto Eco ter insinuado, em Seis passeios pelo bosque da ficção, que nenhuma importância se deve dar ao autor empírico na análise de uma obra, uma vez que as abordagens devem focalizar tão-somente o autor-modelo. E o fazemos para manter a coerência na configuração do todo. “Introdução” e “Conclusão” voltam-se para a autora-empírica em seu exercício demiurgo, enquanto os demais capítulos seguem as pistas da autora-modelo.

129

Enfim, em Visgo da terra Astrid Cabral reinventou, pela mediação da arte, uma cidade pardieira. Nisto consiste a sua recriação. Referências ALEIXO, Marcos Frederico Krüger. Introdução à poesia no Amazonas. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 1982 (a publicar). ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus: Umberto Calderaro, 1985. BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. [Trad. Antonio de Pádua Danesi] São Paulo: Martins Fontes, 1989. BÍBLIA SAGRADA. 2ª ed. rev. atual. [Trad. João Ferreira de Almeida] São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1990. BRAGA, Genesino. Fastígio e sensibilidade do Amazonas de ontem. Manaus: Sérgio Cardoso, 1960. ––––––––. Chão e graça de Manaus. Manaus: Fundação Cultural do Amazonas, 1975. BRASIL, Assis. A poesia amazonense no século XX. Rio de Janeiro: Imago, 1998. CABRAL, Astrid. Alameda. 2ª Ed. Manaus: Governo do Estado do Amazonas; Valer, 1998 (Resgate 8).

Page 66: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

130

––––––––. De déu em déu; poemas reunidos. Rio de janeiro: Sette Letras, 1998. ––––––––. Intramuros. Curitiba: Secretaria de Estado da Cultura, 1998. ––––––––. Ponto de Cruz. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979. ––––––––. Visgo da Terra. Manaus: Puxirum, 1986. ––––––––. Rasos D’água. Manaus: Valer; Governo do Estado do Amazonas, 2003. CARLOS, Ana F. Alessandri. O lugar do/no mundo. São Paulo: HUCITEC, 1996. ––––––––. A cidade. São Paulo: Contexto, 1992. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 5ª Ed. Rio de janeiro: José Olympio, 1991. COSTA, Selda Vale. Eldorado das ilusões. Manaus: EDUA, 1996. COUTINHO, Afrânio dos Santos. A literatura no Brasil – Introdução geral. 4ª ed. São Paulo: Global, 1997. ––––––––. Introdução à literatura no Brasil. 8ª Ed. rio de janeiro: Civilização Brasileira, 1976 (Vera Cruz, série Literatura Brasileira, 218) DIAS, Edinea Mascarenhas. A ilusão do fausto. Manaus: EDUA, 1996. EAGLETON T. Teoria da literatura – uma introdução [Trad. Waltensir Dutra] São Paulo: Martins Fontes [s/d].

131

ECO, Umberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1997. ––––––––. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ENGRÁCIO, Arthur. Poetas e prosadores contemporâneos do Amazonas. Manaus: EDUA, 1994. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto. 6ª ed. São Paulo: Ática, 1998. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades, 1991. GRAÇA, Antonio Paulo. Como funciona a poesia. Manaus: Valer, 1999. KOTHE, Flávio R. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986. LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. São Paulo: Nacional, 1977. LOUREIRO, Antonio José Souto. A grande crise. Manaus: T. Loureiro e Cia., 1985. LYRA, Pedro. Sincretismo. A poesia da geração de 60. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995. MELO, Thiago de. Manaus, amor e memória. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1995.

Page 67: À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me ...static.recantodasletras.com.br/arquivos/3868817.pdf · 0 1 À memória de minha mãe, Conceição Guedelha, que me reservou

132

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fatos da literatura amazonense. Manaus: EDUA, 1998. ––––––––. Fases da literatura amazonense. Manaus: Imprensa Oficial, 1977. PÉRES, José Jefferson Carpinteiro. Evocação de Manaus. Manaus: Imprensa Oficial, 1984. PESAVENTO, Sandra Jatahy. O imaginário da cidade. Porto Alegre: Editora Universidade, 1999. PIRES, Orlando. Manual de Teoria e técnica literária. Rio de Janeiro: Presença, 1985. RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologia da obra literária. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1974. ROLNICK, Raquel. O que é cidade. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1988. SANTIAGO, Socorro. Uma poética das águas. Manaus: Puxirum, 1986. SANTOS, Milton. Manual de geografia urbana. São Paulo: HUCITEC, 1980. SOUZA, Márcio. A Expressão amazonense. 2ª Ed. são Paulo: Alfa-Ômega, 1977. TADIÉ, Jean-Yves. A Crítica literária no século XX. Rio de Janeiro: Bertrand Russel, 1992. TOCANTINS, Leandro. O Rio comanda a vida. Rio de Janeiro: Record, 1968.