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1 A MENSAGEM DE AFFONSO CAMARGO EM FACE DO ACORDO DE LIMITES DE 1916: MINIMIZANDO AS “PERDAS” Luiz Carlos da Silva Universidade Federal do Paraná Resumo. Em 2012 o Museu Paranaense organizou exposição sobre o Movimento do Contestado. Em uma das salas foi apresentado o “Croquis da Zona Contestada” sem citar referências que dessem ao visitante a real circunstância de confecção desse documento cartográfico. Tratava-se de um anexo da Mensagem enviada pelo presidente do Paraná, Affonso Camargo, à Assembleia Legislativa. O “croquis” era a representação gráfica do que o presidente julgava ser o território que de fato se estava negociando no Acordo de Limites assinado em 1916. Affonso Camargo procurou demonstrar que sob sua responsabilidade o estado perderia um território muito menor, uma vez que se estava negociando, segundo ele, uma área menor do que aquela pretendida em outros tempos. Essa discussão também ganhou fôlego no Senado no ano seguinte (1917), quando dos discursos dos senadores Generoso Marques dos Santos (1844 1928), que apoiava o Acordo, e Manuel de Alencar Guimarães (1865 1940), crítico do Acordo, que discordavam quanto à extensão do território efetivamente em discussão. De certa maneira, o artigo é a divulgação de uma representação cartográfica pouco utilizada e analisada. Palavras-chave: Contestado; Acordo de Limites; Representação Cartográfica. Bolsista Capes Introdução Analisando a cartografia paranaense produzida entre os anos de 1876 e 1912 1 , percebe-se que estas representações estavam longe de definir qual parcela do território contestado seria em definitivo anexado ao Paraná ou a Santa Catarina. O que nos é mais óbvio nestes mapas é o histórico e complexo enfrentamento jurídico, político e administrativo entre os dois estados. Como exemplo basta olharmos o mapa de autoria do historiador e intelectual, Alfredo Romário Martins (1874 1948), de 1911. Em um primeiro olhar o que mais chama a atenção é o contorno bem acentuado de parte dos limites do estado. O rio Uruguai se firmava como a divisa mais ao sul do Contestado. Acompanhando esta última a longa inscrição em vermelho: “Limites entre as Capitanias de São Paulo e do R. Grande do 1 Disponível em: www.itcg.pr.gov.br.

A MENSAGEM DE AFFONSO CAMARGO EM FACE DO … · discussão também ganhou fôlego no Senado no ano seguinte (1917), quando dos discursos dos ... 1766, 1792, 1807, 1808 e 1809”

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A MENSAGEM DE AFFONSO CAMARGO EM FACE DO ACORDO DE LIMITES

DE 1916: MINIMIZANDO AS “PERDAS”

Luiz Carlos da Silva

Universidade Federal do Paraná

Resumo.

Em 2012 o Museu Paranaense organizou exposição sobre o Movimento do Contestado. Em uma das salas foi apresentado o “Croquis da Zona Contestada” sem citar referências que dessem ao visitante a real circunstância de confecção desse documento cartográfico. Tratava-se de um anexo da Mensagem enviada pelo presidente do Paraná, Affonso Camargo, à Assembleia Legislativa. O “croquis” era a representação gráfica do que o presidente julgava ser o território que de fato se estava negociando no Acordo de Limites assinado em 1916. Affonso Camargo procurou demonstrar que sob sua responsabilidade o estado perderia um território muito menor, uma vez que se estava negociando, segundo ele, uma área menor do que aquela pretendida em outros tempos. Essa discussão também ganhou fôlego no Senado no ano seguinte (1917), quando dos discursos dos senadores Generoso Marques dos Santos (1844 – 1928), que apoiava o Acordo, e Manuel de Alencar Guimarães (1865 – 1940), crítico do Acordo, que discordavam quanto à extensão do território efetivamente em discussão. De certa maneira, o artigo é a divulgação de uma representação cartográfica pouco utilizada e analisada.

Palavras-chave: Contestado; Acordo de Limites; Representação Cartográfica.

Bolsista Capes

Introdução

Analisando a cartografia paranaense produzida entre os anos de 1876 e

19121, percebe-se que estas representações estavam longe de definir qual parcela

do território contestado seria em definitivo anexado ao Paraná ou a Santa Catarina.

O que nos é mais óbvio nestes mapas é o histórico e complexo enfrentamento

jurídico, político e administrativo entre os dois estados. Como exemplo basta

olharmos o mapa de autoria do historiador e intelectual, Alfredo Romário Martins

(1874 – 1948), de 1911. Em um primeiro olhar o que mais chama a atenção é o

contorno bem acentuado de parte dos limites do estado. O rio Uruguai se firmava

como a divisa mais ao sul do Contestado. Acompanhando esta última a longa

inscrição em vermelho: “Limites entre as Capitanias de São Paulo e do R. Grande do

1 Disponível em: www.itcg.pr.gov.br.

2

Sul, pelas Cartas e Avisos Régios de 1765, 1766, 1792, 1807, 1808 e 1809”. Nas

outras possíveis divisas uma miríade de anotações ocupou o lugar dos traços que

normalmente cumprem a tarefa de apontar até onde vai um território. É a

característica mais importante desta representação. Estes escritos resumiam o

trabalho de pesquisa de Romário Martins na coleta e análise de vários documentos

pertinentes ao assunto. Mais do que isso, é o resultado da interpretação paranaense

sobre esta documentação bem como (observando-se os avisos régios e decretos

anotados no mapa) um incessante trabalho para corroborar ou negar as linhas

definidas por estas decisões oficiais. Na prática, como sabemos, as divisas

pretendidas por Paraná e Santa Catarina nunca foram devidamente fixadas até o

Acordo de 1916, restando o “status quo” como podemos observar também no mapa.

Esta longa e intrincada “batalha” pelo Contestado, alterando as fronteiras por

meio de decretos (fronteiras alteradas também pelo “status quo”, este,

contraditoriamente sempre em movimento) causou, em 1916, incertezas quanto ao

Figura 1: Mapa do Estado do Paraná para servir ao estudo da questão

de limites com o Estado de Santa Catarina. Organizado sob consulta

dos mais recentes dados oficiais e direção de Romário Martins,

presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná. 1911.

3

território que entraria na negociação do Acordo de Limites, bem como a mudança de

discurso para que se pudesse chegar ao tão almejado Acordo. É o que podemos

observar na Mensagem do presidente paranaense, Affonso Camargo, à Assembleia

Legislativa, em 1916, e nos discursos dos senadores paranaenses, Alencar

Guimarães e Generoso Marques, em 1917. É sobre estes discursos (em especial o

de Affonso Camargo) relacionados à representação cartográfica da Mensagem do

presidente paranaense, que trata este artigo.

Affonso Camargo: minimizando as “perdas”2

No croquis apresentado por Affonso Camargo, há importantes diferenças se

comparado ao mapa de Romário Martins. A mais clara delas está representado

pelas cores verde e amarela e que seriam, segundo o presidente paranaense, os

territórios que passariam a pertencer em definitivo ao Paraná e a Santa Catarina

com o Acordo que estava em curso. A outra diferença é o novo discurso em relação

a grande parte do território a leste do Rio do Peixe que aparece sob a definição de

2 Perdas está entre aspas uma vez que o pertencimento do território pretendido tanto pelo Paraná quanto por

Santa Catarina esteve, até o Acordo, sustentado apenas pela retórica em detrimento de ações jurídicas ou

políticas aceitas por ambos os Estados.

Figura 2: Croquis da Zona Contestada. Anexo da Mensagem de Affonso Camargo, 26 de novembro de 1916.

4

“TERRITORIO SOB A JURISDICÇÃO do ESTADO DE S. CATHARINA”. No mapa

de Romário Martins a definição que se destacava era a de “Zona invadida pelos

catharinenses”3. Nesta última, destaca-se o tom de acusação, ao passo que no

croquis há um tratamento formal.

A representação cartográfica defendida por Camargo não deixou de lembrar

das fronteiras ao sul (Rios Uruguai e Pelotas). Utilizando a cor amarela (a mesma

para identificar a parte do Contestado que ficaria com o estado), marcou o Rio

Pelotas como limite da antiga Capitania de São Paulo até a data de 09 de setembro

de 1820, quando Lages passou a pertencer a Santa Cataria. Ainda em amarelo, há

referência ao Projeto de Lei de 22 de março de 1855, tendo o Rio Canoas como

divisa, e que colocaria a vila de Curitibanos em território paranaense. Em verde, a

outra divisa é a do Rio Marombas, relacionada ao Decreto nº 3378 de 16 de janeiro

de 1865 e ao Statu-quo (com essa grafia), citado em vários mapas paranaenses.

Neste caso a vila de Curitibanos ficou sob jurisdição de Santa Catarina o que, como

se sabe, não mudou com o Acordo. A diferença nas cores destas três divisas

demonstrava quais limites os paranaenses estavam interessados, e que obviamente

ampliava as fronteiras para o sul e para o leste.

Este croquis era, de certa forma, a representação gráfica que resumia os

principais pontos da Mensagem de Affonso Camargo à Assembleia Legislativa,

datada de 25 de novembro de 1916. O documento surgiu quase como uma “certidão

de nascimento” de uma frustração que seria recorrente em obras historiográficas,

jornalísticas e pronunciamentos de representantes políticos nas décadas seguintes.

Iniciou dizendo que tratava-se de uma “fatalidade histórica”, ter ele que dirigir-

se pela primeira vez aos deputados como presidente eleito para falar justamente da

assinatura do Acordo de Limites entre o Paraná e Santa Catarina. A partir daí fez um

breve histórico sobre os problemas fronteiriços desde quando Santa Catarina se

batia com São Paulo para definir estas mesmas linhas divisórias. Para ele, enquanto

os catarinenses continuavam tenazes na luta para alargar suas fronteiras após a

emancipação paranaense, os representantes deste último encaravam com

3 A grafia no mapa foi impressa com um pequeno erro: “cahtarinenses”.

5

“optimismo” esta luta e que acreditavam em seus “direitos e na extensão e riqueza

do seu território”. E por conta desta certeza “fecharam os olhos ás sucessivas

invasões de S. Bento, Coritibanos, Campos Novos e, ultimamente, de Canoinhas” 4.

De imediato se percebe a crença em “direitos” que, embora não citados claramente,

se referiam às antigas conquistas dos “bandeirantes” paranaenses ou curitibanos, os

“pioneiros”, ou seja, “direitos” com base no uti possidetis. Nota-se também o

interesse econômico sobre o território contestado, algo que foi criticado, por

exemplo, pelo Gal. Fernando Setembrino de Carvalho (1861 – 1947). Para este as

“causas determinantes da tragédia” foram o “indiferentismo” e o “descaso pelas

populações sertanejas” por parte dos governantes do Paraná e de Santa Catarina.

Para Setembrino, a violência no Contestado voltaria caso não se deixa-se de lado “a

attitude contemplativa com que consideramos os nossos grandes thezouros

naturaes abrigados em nossas terras” e que era preciso dilatar “as fronteiras de

trabalho” e adotar “os exemplos dos povos que fundaram a sua propriedade e

grandeza5.

Sobre o Status Quo proporcionado (ao menos em teoria)6 pelo Decreto nº

3378, de 1865, vinculando-o à iniciativa do Conselheiro Jesuíno Marcondes de

Oliveira e Sá (1827 – 1903), afirmava que, embora de grande alcance político, só

atingiria o “alvo collimado” caso fosse mais “amplo”. Para Camargo, a linha deveria

seguir pelo Rio Negro até alcançar o Rio Iguaçu e daí “procurar” a bacia do Rio do

Peixe o que, segundo ele, evitaria o “(...) litígio judicial, que nos foi tão fatal (...)”7,

referindo-se às três sentenças a favor de Santa Catarina.

E a guerra? E os caboclos? Apenas um parágrafo de sua Mensagem foi

dedicada ao assunto:

4 PARANÁ. Mensagem Dirigida ao Congresso Legislativo do Estado pelo Sr. Affonso Alves de Camargo,

Presidende do Estado do Paraná, Ao Instalar-se a Sessão Extraordinária da 13ª Legislatura, em 25 de

novembro de 1916. Coritiba: Typ. d’ “A República”, 1916, pp. 3-4. Acervo da Casa da Memória de Curitiba. 5 CAMARGO, Affonso Alves de. A campanha do Contestado: o regresso victorioso do snr. general

Setembrino de Carvalho: Discursos, [S.l. : [s.n.], 1915, pp. 7-8. Cabe aqui obviamente análises sobre o discurso

de Setembrino, mas, não é o foco deste artigo. 6 Apesar de a fronteira sinalizada pelo Decreto 3378 de 1865 ser recorrentemente citada como definidora de um

status quo na cartografia paranaense do período, foi o Rio do Peixe que na prática assumiu essa função. 7 PARANÁ. Mensagem..., 1916, p. 4.

6

Iniciada, mais tarde, a execução da sentença, ficou esta suspensa por dois annos pouco mais ou menos, em cujo lapso de tempo ocorreram os lutuosos acontecimentos do contestado, os quaes ainda estão bem vivos em os nossos corações, perecendo, ali, milhares de brasileiros, inclusive valorósos officiaes e soldados do exercito e da policia, entre os quaes os denodados e queridos Coronel João Gualberto Gomes de Sá e Tenente Caetano Munhoz.8

A atenção, como de costume, ficou centrada nas corporações do Exército e

do Regimento de Segurança do Paraná. Aos demais a genérica definição de

“brasileiros”. Diferentemente do histórico sobre a Questão de Limites, Affonso

Camargo passou ao largo de qualquer discussão sobre os problemas sociais e

agrários na região do Contestado. Como advogado do Grupo Farquar (Estrada de

Ferro São Paulo – Rio Grande e a Southern Brazil Lumber & Colonization Company)

na região, não era de se esperar que o presidente paranaense citasse elementos

que renderam críticas a ele. Exemplo foi o secretário de obras públicas e

colonização do Paraná, José Niepce da Silva (1876 – 1935), no governo de Carlos

Cavalcanti de Albuquerque (1864 – 1935). Affonso Camargo era então o vice e

sobre este Niepce afirmou que “era admirável como o 1º vice-presidente de Estado

se mantenha nesse posto, sem ser corrido a chicote pela onda popular”9.

Affonso Camargo baseou sua decisão de assinatura do Acordo em um

argumento “moral” e à “situação jurídica” em que se encontrava a Questão de

Limites. O primeiro surgiu de maneira circunstancial, quando uma moção, datada de

27 de setembro de 1916, assinada por ele e outros políticos e funcionários

públicos10, dava ao presidente da república, Wenceslau Braz, “poderes para, em

nome do Paraná, traçar a linha que, em sua alta sabedoria, julgar conveniente para

dirimir a questão”11. Assim, ficava o Paraná na dependência das negociações entre

o presidente da república e o governo catarinense. Affonso Camargo afirmava ser

8 Idem, p. 5. 9 Jornal A Tribuna. Coritiba, 12 de fevereiro de 1914. Anno II, nº 107, p. 6. O Diário da Tarde, governista,

publicou a defesa de Affonso Camargo nas edições de 21 e 25 de fevereiro de 1914 com o título de “Memorável

discurso” realizado na sessão do dia 20 no “Congresso Legislativo”. 10 Além de Affonso Camargo, deputados, desembargadores, secretários, o chefe de polícia, o comandante do

Regimento de Segurança, o comandante do Corpo de Bombeiros, o diretor de Obras e Aviação, o Ajudante de

Ordens do presidente do Estado, além do prefeito de Palmas, assinaram o documento. 11 PARANÁ. Mensagem..., 1916, p. 12.

7

“impossível recuar do compromisso, tão expressamente assumido perante o Chefe

da Nação, pois isso importaria na morte moral do nosso Estado (...)”12.

No campo jurídico, Affonso Camargo procurou dar mostras de que muito difícil

seria reverter a “desvantagem” em que se encontrava o Paraná na Questão. Como

podemos ver no mapa apresentado pelo presidente do estado, os territórios em

amarelo eram, segundo ele, os que estavam sendo divididos entre os dois estados.

Os territórios em cor branca a leste do Rio do Peixe e até o Rio Canoas (o que

incluiria a cidade de Curitibanos), não estariam nesta conta. Dentre os argumentos

apresentados para justificar este posicionamento constava a “invasão” dos

catarinenses (e por isso o Paraná não poderia se valer nem do uti possidetis) ou

ainda pelo fato de o próprio estado ter “confessado nos respectivos altos da acção,

que o limite devia ser declarado pelo Rio Negro até cahir no Iguassú, hypothese

essa em que perderiamos a margem esquerda do Rio Negro e as povoações ali

existentes, como sejam Itayopolis e Tres Barras” 13. Desta forma tentava minimizar

sua responsabilidade em relação ao tamanho do território que ficaria com os

catarinenses.

Uma das preocupações de Affonso Camargo foi sobre o que falariam dele na

posteridade, em outras palavras, a memória que se forjaria a respeito de sua

decisão de assinar o Acordo nos termos em questão. É o que se pode depreender

na troca de correspondências entre ele e o presidente, Wenceslau Braz:

Decorrido algum tempo, recebi um telegramma em que o Sr. Presidente da Republica consultava-me sobre uma possivel divisa pelo rio da Areia, a cuja consulta respondi dizendo que “dirimida a contenda nos termos da minha carta, eu poderia arrostar com as injustiças dos contemporaneos, mas tinha plena certeza de que a historia me faria justiça. Agora, se me afastasse dos propositos nella manifestados, então nem com a benevolência dos meus pósteros eu poderia contar, tornando-se, assim, inutil o sacrificio que impuz-me fazer do meu nome e da minha carreira politica, em beneficio da União e do Estado.14

12 Idem, p. 12. 13 Idem, p. 14. 14 PARANÁ. Mensagem..., 1916, p. 8.

8

Ao encerrar sua Mensagem, Affonso Camargo também apontava os

“benefícios” em aceitar o Acordo. Segundo ele a “perda dessa area relativamente

pequena”, acabaria com a secular Questão de Limites que “tanto sangue e

sacrifícios tem custado á União e aos Estados litigantes” (vinculado a guerra aos

problema de limites territoriais); as populações da região gozariam de “paz e

tranquilidade” e haveria “estabilidade dos direitos privados, perfeitamente garantidos

em toda sua plenitude” ; o “desdobramento pacifico do trabalho” aumentando a

produção; o fim do “perigo” de se “perder” todo o território do Contestado “attingindo

os limites a cidade de União da Victoria, ponto de grande importancia economica e

chave principal do commercio, na zona sudoeste”; a permanência de todas as

Comarcas da região (União da Vitória, Palmas e Rio Negro). Apontava ainda a

mudança no mapa oficial da “República Brazileira, que há mais de dois lustros dá

todo o contestado como pertencendo á Santa Catharina”; que o Estado ficaria com

um território duas vezes maior que o catarinense; além de uma saída “digna” para o

problema, evitando o derramamento de “sangue patricio”15.

Uma curiosidade sobre o exemplar da Mensagem consultada na Casa da

Memória de Curitiba é que nela foram acrescidas anotações manuscritas feitas pelo

deputado Arthur Martins Franco (1876 - ?), ferrenho opositor do Acordo. Afirmava

ele (baseado em informações de terceiros) que a carta enviada por Wenceslau Braz,

de 27 de dezembro de 1916, por meio do Comandante da Marinha, Thiers Fleming

(1880 – 1971), foi substituída por outra cuja redação havia sido elaborada por este

último em acordo com o governador catarinense, Felippe Schmidt (1859 – 1930),

antes de ser entregue a Affonso Camargo. Além de se basear em informações de

outras pessoas, Martins Franco ainda afirmava que Thiers Fleming era catarinense e

“naturalmente” defenderia os interesses de Santa Catarina. Mas, Thier Fleming,

como se sabe, era natural da cidade mineira de São Gonçalo do Sapucaí. Em

momentos de comoção e fervor regionalista ou patriótico não é de se estranhar

atitudes como esta, tentando inviabilizar de todas as formas ações que lhes são

contrárias. Mas sua “teoria”, até onde se sabe, não foi levada adiante.

15 Idem, pp. 16-7.

9

Generoso Marques e Alencar Guimarães: território e retórica

Affonso Camargo, como vimos, sabia que sua decisão de assinar o Acordo

faria com que muitos (políticos ou não) criticassem tal atitude. A classe política

paranaense tinha posicionamentos diferentes sobre o Acordo (exemplo foi a do

deputado Arthur Franco). No Senado as divergências também ocorreram. No dia 26

de julho de 1917, o senador Generoso Marques dos Santos (1844 – 1928), tomou a

palavra e procurou rebater as críticas ao Acordo feitas no dia anterior por outro

senador paranaense, Manuel de Alencar Guimarães (1865 – 1940).

Assim como havia feito o presidente Affonso Camargo, o senador também

ocupou boa parte do tempo para discorrer sobre o histórico da Questão de Limites,

para logo em seguida analisar o voto em separado de Alencar Guimarães. Este

Figura3: Página manuscrita anexada à Mensagem

de Affonso Camargo, pelo deputado Arthur Martins Franco.

10

último havia “condenado” o Acordo em “cinco séries de considerações”, segundo

seu opositor. A primeira é que não havia acordo entre os dois estados para

determinar os limites; a segunda considerava o ato de assinatura do dia 20 de

outubro de 1916, nulo, pois os dois governadores não teriam poderes para tal; a

terceira apontava para a nulidade das “resoluções dos Congressos” de ambos os

estados considerando-se o artigo 4º da Constituição Federal; nulas seriam também

as resoluções em face das próprias constituições estaduais; e por último “o Estado

do Paraná foi enormemente lesado pelo accôrdo”16.

Em relação ao primeiro ponto, Marques, contrariando o posicionamento de

Alencar Guimarães (de que os estados não estavam em igualdade de condições

diante de Wenceslau Braz), dizia que seu opositor estava fazendo confusão entre

acordo e arbitramento, sendo que só neste último é que haveria “igualdade” entre as

partes, apoiada, entre outras coisas, em “regras processuais” e “deveres”. Como se

tratava de acordo, Wenceslau Braz compareceu apenas como mediador e não como

árbitro.

Sobre a falta de poderes dos governadores, por conta da Constituição

Estadual, Marques afirmava que Affonso Camargo havia assumido “apenas um

compromisso moral”, que lhe autorizaria a “deliberar” a respeito. Neste sentido, o

presidente paranaense não praticou “acto que por si produzisse qualquer effeito

jurídico”, o que não demandava autorização dos deputados, para que fosse

praticado. Mas como foi aprovado em “duas sessões sucessivas” pelos

“Congressos” dos dois estados, ficava, segundo Marques, perfeitamente

enquadrada na Constituição Estadual nos termos do art. 26, § 1417.

Já sobre a nulidade por conta da Constituição Federal, Generoso Marques

preferiu não comentar, uma vez que, segundo ele, “ella foi largamente perlustrada

16 SENADO FEDERAL. O accordo que deu solução á questão de limites entre os Estados do Paraná e

Santa Catharina: Discurso proferido pelo Sr. Senador Generoso Marques, em sessão de 26 de julho de 1917, na

2ª discussão da proposição da Camara dos Deputados approvando o accordo celebrado entre os Estados do

Paraná e Santa Catharina para solução da sua questão de limites, p. 24. Acervo da Biblioteca Pública do Paraná. 17 Idem. Ibdem., p. 29.

11

pelos oradores que a discutiram, pró e contra, e que me precederam nesta

tribuna”18.

Em relação à nulidade por conta das disposições das constituições estaduais,

Alencar Guimarães afirmava que só haveria autorização de sessões extraordinárias

(como havia feito Affonso Camargo), para tratar de assuntos de ordem pública.

Como não haveria, segundo Generoso Marques, problemas dessa ordem (no

sentido de perturbação da ordem pública), o seu opositor teria feito uma

interpretação “improcedente” sobre isso. Para Marques, ordem pública queria dizer,

de “interesse público”. E foi neste sentido que ele “enquadrou” a convocação

extraordinária de Affonso Camargo para tratar do Acordo de Limites.

O último ponto, as “perdas” do Paraná com o Acordo, foi também combatido

por Generoso Marques. Tanto este como seu opositor, Alencar Guimarães,

obviamente prefeririam votar pelo território que se almejava lá em 185319 mas,

Generoso Marques, assim como Affonso Camargo, não mais almejavam este amplo

território em face de todos os motivos apontados pelo presidente paranaense.

Marques inclusive citou o croquis para demonstrar quais áreas de fato estavam em

discussão. Os “benefícios” do Acordo, segundo Marques, não diferiam, em essência,

dos defendidos por Affonso Camargo.

Apenas para constar, no que dizia respeito ao Movimento do Contestado,

Generoso Marques não se distanciou de seus pares. Falou em “atrocidades ali

praticadas” sem, contudo, apontar responsáveis; citou a “perda de 12 brilhantes

oficiaes do nosso Exercito, a começar pelo glorioso coronel Joao Gualberto, e de

300 soldados, dos cinco ou seis mil que para ali foram enviados”, além apontar os

“extraordinários sacrifícios” financeiros do governo federal e dos estados20. Não fez

nenhuma colocação sobre os milhares de caboclos mortos, preferindo falar em

18 SENADO FEDERAL. Op. Cit., pp. 29-30. 19 Apesar das dúvidas existentes, segundo o próprio Marques, sobre até onde de fato iria a 5ª Comarca de São

Paulo e que não foi definido pelos que ajudaram a criar a Província. Para Marques, os legisladores paranaenses

deixaram uma “lacuna” ao não definirem “expressamente” qual era esse território. Ver página 5 de seu discurso. 20 SENADO FEDERAL. Op. Cit., p. 12.

12

“elementos de banditismo”21 e “hordas de bandidos que infestam o território

contestado”22.

Considerações Finais

Tendo em vista tudo o que já havia ocorrido em relação à Questão de Limites,

o croquis apresentado por Affonso Camargo se aproximava mais das possibilidades

de negociação que os mapas apresentados até aquele momento. E se levarmos em

conta as opiniões negativas direcionadas aos governadores dos dois estados

envolvidos, depois do ocorrido no Movimento Contestado, parecia não restar muito a

fazer a não ser decidir urgentemente pelo fim do litígio, embora, como sabemos, a

Questão de Limites não foi o principal motivo para o desencadeamento da violência

no Contestado.

Juridicamente, independente da justeza ou não da decisão, o Paraná já havia

perdido a batalha pelo território e, pelo andar dos acontecimentos, nem Santa

Cataria estava conseguindo fazer valer a vitória jurídica. Ou seja, sem um acordo

que deixa-se de lado o emaranhado jurídico e as antigas pretensões territoriais,

dificilmente haveria solução. Affonso Camargo procurou então, em face da indigesta

decisão, tirar de sua responsabilidade a “perda” de grande parte do território

historicamente pretendido pelo estado. Procurou também livrar seu nome de futuras

críticas, o que, se observamos parte da historiografia do estado, surtiu algum efeito,

pois, a alcunha de “pacificador” do Contestado foi usada algumas vezes.

O embate argumentativo entre Generoso Marques e Alencar Guimarães

contava com elementos jurídicos e políticos bem como de uma grande dose de

retórica. Embora não tenhamos apontado aqui todas as argumentações de cada um,

os exemplos citados já demonstram que tão incerto quanto o território da 5ª

Comarca de São Paulo, transformada em Província do Paraná, o era também o

território em discussão em 1916 e 1917. Documento algum respaldava o todo da

21 Idem, p. 21. 22 Idem, p. 60.

13

retórica de cada uma das partes. O Acordo se valeu tanto de documentos e

decisões jurídicas quanto de negociações costuradas à luz das contingências pós

Movimento do Contestado.

Por último, a acusação do deputado, Arthur Franco, por mais conspiratória

que possa parecer, de que Affonso Camargo havia recebido uma correspondência

“apócrifa” sobre os limites negociados por Wenceslau Braz junto ao governo

catarinense, demonstrava que o Acordo foi aprovado passando por cima de

incontáveis desafetos. O Resultado disso tudo é que até hoje a decisão gera

polêmicas.

Fontes

CAMARGO, Affonso Alves de. A campanha do Contestado: o regresso victorioso do snr. general Setembrino de Carvalho: Discursos, [S.l. : [s.n.], 1915. Jornal A Tribuna. Coritiba, 12 de fevereiro de 1914. Anno II, nº 107. PARANÁ. Mensagem Dirigida ao Congresso Legislativo do Estado pelo Sr. Affonso Alves de Camargo, Presidente do Estado do Paraná Ao Instalar-se a Sessão Extraordinária da 13ª Legislatura, em 25 de novembro de 1916. Coritiba: Typ. d’ “A República”, 1916. SENADO FEDERAL. O accordo que deu solução á questão de limites entre os Estados do Paraná e Santa Catharina: Discurso proferido pelo Sr. Senador Generoso Marques, em sessão de 26 de julho de 1917, na 2ª discussão da proposição da Camara dos Deputados approvando o accordo celebrado entre os Estados do Paraná e Santa Catharina para solução da sua questão de limites.