Upload
lamthien
View
224
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JÚLIO DE MESQUITA FILHO
INSTITUTO DE ARTES
MARCOS FRANCISCO NERY FERREIRA
A metáfora do Bogatyr: O corpo acrobata e a cena russa do início do século XX
São Paulo
2011
2
MARCOS FRANCISCO NERY FERREIRA
A metáfora do Bogatyr: O corpo acrobata e a cena russa no início do século XX
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho como requisito para obtenção do título de Mestre em Artes. Área de Concentração: Artes Cênicas Orientador: Prof. Dr. Mario Fernando Bolognesi Coorientadora: Profa. Dra. Maria Thais Lima Santos Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
São Paulo
2011
3
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP
(Fabiana Colares CRB 8/7779)
F383m
Ferreira, Marcos Francisco Nery A metáfora do bogatyr : o corpo acrobata e a cena russa no
início do século XX / Marcos Francisco Nery Ferreira. - São Paulo : [s.n.], 2011.
182 f. Bibliografia Orientador: Prof. Dr. Mário Fernando Bolognesi Coorientadora: Maria Thais Lima Santos Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual
Paulista, Instituto de Artes. 1. Circo. 2. Teatro – Rússia. I. Meierhold, Vsévolod E . II.
Maiakóvski, Vladimir. III. Bolognesi, Mario Fernando. IV. Santos, Maria Thais Lima. V. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. VI. Título
CDD – 792
4
MARCOS FRANCISCO NERY FERREIRA
A metáfora do Bogatyr: O corpo acrobata e a cena russa no início do século XX
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Artes. Área de Concentração: Artes Cênicas
Aprovado em 14 de junho de 2011.
Banca Examinadora
Prof. Mario Fernando Bolognesi – Orientador Doutor em Artes pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
Profa. Ângela de Castro Reis Doutora em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Federal da Bahia
Profa. Lúcia Regina Vieira Romano Doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho
5
À Mônica Garrido, minha mãe, por tudo.
6
AGRADECIMENTOS
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo apoio oferecido a este projeto durante o período de 2010 e 2011. Ao querido Mario Fernando Bolognesi, por me trazer a São Paulo, por toda a confiança, disponibilidade, parceria circense e pela belíssima orientação. À Maria Thais, pelo nosso encontro, pela imprescindível (co)orientação, pela nossa parceria, e por compartilhar comigo a paixão por Meierhold. Durante esta pesquisa, ela ocupou o lugar de mestra. À minha musa, amiga e parceira Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, por me receber em São Paulo com tanto carinho e amor. A ela devo grande parte de minhas conquistas paulistanas. Aos amigos queridos Ângela de Castro Reis e Daniel Marques da Silva, professores da Universidade Federal da Bahia, responsáveis por minha formação artística. À circense doutora Ermínia Silva, que me possibilitou importantes momentos de reflexão intelectual sobre o circo. À professora Dra. Eliene Benício, pelas discussões sobre o circo e pela generosidade ao disponibilizar informações e material de consulta que enriqueceram esta pesquisa. À minha conterrânea Marina Sarno, que conheci em São Paulo e que imediatamente me deu acolhida. Ela teve uma grande importância nesse período, acompanhando a minha trajetória, conversando sobre arte e estando sempre disposta a ajudar, ouvir e rir. A Arthur Iraçu, Ênio Freitas, Evandro Passos, Ricardo Ribeiro e Luiza Christov, meu clã da Unesp. Nós confirmamos a hipótese de que a mesa de bar ainda é o melhor lugar para discussões acadêmicas. E muito especialmente a Thais Carvalho Hércules, irmã paulistana, com quem pude compartilhar diversos momentos de alegria, angústia e “prazer”. À equipe da peça Mistério-Bufo do Rio de Janeiro, pela recepção, pelo carinho e pela oportunidade de acompanhar diariamente o processo de criação do espetáculo, inspirando-me momentos de grandes reflexões sobre o trabalho artístico. Especialmente aos atores Raquel Karro, Thierry Tremouroux e Carolina Virgüez; e à dramaturga Rosyane Trotta, parceira de todos os momentos durante este período, pelos grandiosos debates sobre teatro e pela tradução de um dos textos anexo. À Gabriela Itocazzo e Roberto Mallet pela ajuda nas traduções dos textos de Meierhold; à Nilce Xavier pela revisão de texto; e à Nadine Camacho, pela tradução do resumo para a língua inglesa. À “família Garrido” que me deu régua e compasso. Obrigado a Miguel, Gabriel, Lili (em memória), Alda, Cristina, Adriana, Andréa e a Pat, que me ensinou a dar minha primeira estrela na acrobacia.
7
À Greice Gobbi, fisioterapeuta, e a Akira Sato, quiropraxista, por suas mãos de santo. Agradeço a generosidade com que me receberam e por toda ajuda na minha recuperação. À Clarisse Zarvos, atriz e parceira carioca, que me transformou enquanto artista. À Natália Siufi, amiga muito querida, pela disponibilidade em me ajudar sempre que precisei desde que cheguei a São Paulo. Aos amigos e mestres da Escola Nacional de Circo, Rio de Janeiro, por compartilharem comigo os seus preciosos saberes sobre circo, arte e vida. Aos colegas do Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (CEFAC), que estimularam minhas reflexões teóricas através do treinamento acrobático. Especialmente a Angel Andricain, Yanet Batista, Rodrigo Matheus, Erica Stoppel, Carlos Sugawara, Ana Maíra Favacho e Maíra Onaga. E muito, muito especialmente a Celso Sim, que canta Maiakóvski e foi minha grande inspiração e baluarte durante esse percurso de pesquisa e arte. Este trabalho é resultado da colaboração de amigos, amores, família, professores, alunos e parceiros artísticos que estiveram comigo na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo. Axé para todos!
8
No chão, sim, é que tropeças.
Jean Genet
9
RESUMO
O objetivo desta pesquisa é abordar as potencialidades cênicas do corpo acrobata durante o
início do século XX na Rússia. Para tanto, foram adotadas como referência as
experimentações cênicas do encenador e pedagogo Vsévolod Emilievitch Meierhold,
consolidadas nas duas encenações de Mistério-Bufo (1918 e 1921), dramaturgia de Vladímir
Maiakóvski. No primeiro capítulo, O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final
do século XIX e início do XX, o intuito é contextualizar e fundamentar a aproximação das
artes circenses e teatrais na Rússia em tal período. O capítulo aborda o pensamento russo e o
ideal de “novo homem”, que encontrou sua expressão nas artes e na literatura. As atividades
de Meierhold e Maiakóvski estão atreladas a essa conjuntura. No segundo capítulo, O corpo
acrobata na pedagogia de V. E. Meierhold, o objetivo é abordar o trabalho pedagógico
meierholdiano nos anos que antecederam a Revolução de 1917, sob a ótica do processo de
“cirquização” do teatro. A obra de Meierhold apresenta um vasto material de investigação
sobre o assunto e engendra não só transformações no espetáculo teatral como influencia
diversos grupos e artistas do período. Por fim, no terceiro capítulo, A “cirquização” do
teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de Meierhold-Maiakóvski, procurou-se analisar a
condição do corpo acrobata na obra e nas encenações. Detecta-se nos espetáculos princípios e
procedimentos experimentados por Meierhold nos anos pré-revolucionários, bem como a
apropriação e utilização de elementos circenses. Este trabalho revela que, na Rússia, grande
parte dos artistas e intelectuais se voltou para as atividades circenses no início do século XX,
já que nesse momento havia o desejo do “novo homem”, o herói eslavo harmônico e belo. A
destreza, o vigor e a audácia do acrobata casa perfeitamente com tal ideia e, não por acaso, os
procedimentos acrobáticos influenciam a cena russa nesse período.
10
Palavras-chave: Circo. Teatro Russo. Vsévolod E. Meierhold. Vladímir Maiakóvski.
Mistério-Bufo.
11
ABSTRACT
The scope of this work is to discuss the acrobatic body’s scenic potentialities during the
beginning of the 20th century in Russia. To this end, it was adopted as a reference the scenic
experimentations from the theater director and educator Vsevolod Emilievitch Meyerhold,
which are consolidated in both staging of Mistery-Bouffe (1918 and 1921), dramaturgy of
Vladimir Mayakovsky. In the first chapter, The Russian thought and the desire of the
acrobatic body: end of 19th century and beginning of 20th century, the purpose is to
contextualize and base the approach of the circus and theater arts in Russia in the mentioned
period. The chapter addresses the Russian thought and the “new man” ideal, which has found
its expression in the arts and literature. The activities of Meyerhold and Mayakovsky are
coupled to this conjuncture. The second chapter, The acrobatic body in the pedagogy of V.
E. Meyerhold, the purpose is to address the meyerholdian pedagogical work during the years
that precede the Russian Revolution of 1917, from the perspective of the “circus-becoming”
theater. Meyerhold’s play shows a vast material of research about the subject and engenders,
not only transformations in the theatrical play, but it also influences various groups and artists
from that age. Finally, in the third chapter, The “cirquization” of the theater: Mystery-
Bouffe (1918 and 1921), of Meyerhold-Mayakovsky, it was attempted to analyze the
acrobatic body condition in the play and staging. There are in the plays principles and
procedures already experimented by Meyerhold during the pre-Revolutionary years, as well
as the ownership and usage of circus elements. This work reveals that in Russia, the majority
of artists and the intelligentsia were focused on the circus activities in the beginning of the
20th century, since in that moment there was the desire of a “new man”, the harmonic and
attractive Slav hero. The acrobatic dexterity, strength and audacity match perfectly with this
idea and, not by chance, the acrobatic procedures influence the Russian scene in that period.
12
Keywords: Circus. Russian Theatre. Vsevolod E. Meyerhold. Vladimir Mayakovsky.
Mistery-Bouffe.
13
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Saltando de uma barra horizontal, fotografado por Aleksandr
Rodchenko..................................................................................................................................8
Figura 2 Ilya Muromets, obra de Viktor Vasnetsov, 1914 ..............................................16
Figura 3 Bogatyrs, obra de Viktor Vasnetsov, pintada em 1898. Da esquerda para
direita: Dobryna Nikitch, Ilya Muromets e Alyosha Popovich ...............................................22
Figura 4 The Mower, obra de Kazimir Malévich, 1914 ................................................. 27
Figura 5 Viatcheslav Ivánov, por Konstantin Somov, 1906 .......................................... 34
Figura 6 Vladímir Maiakóvski e o seu traje futurista na década de 1910 ...................... 44
Figura 7 O cubo-futurista David Burliuk de rosto pintado ............................................ 44
Figura 8 Vladímir Maiakóvski, 1918 ............................................................................. 51
Figura 9 Anatolii Durov, o pai ....................................................................................... 62
Figura 10 Vsévolod E. Meierhold, em figurino de Pierrot de A Barraca de Feira. Retrato
de N. Ulianov, 1908-1908 ....................................................................................................... 70
14
Figura 11 Vsévolod E. Meierhold, 1905 .......................................................................... 73
Figura 12 O encenador Vsévolod E. Meierhold e seu pseudônimo Dr. Dappertutto. Obra
de Boris Grigoriev, 1916 ......................................................................................................... 81
Figura 13 Cartaz de Vladímir Maiakóvski para o espetáculo Mistério-Bufo, 1918 ...... 111
Figura 14 Cartaz anunciando as apresentações do espetáculo Mistério-Bufo em 1918,
direção de V. E. Meierhold ................................................................................................... 134
Figura 15 Desenho de V. Maiakóvski para o figurino dos “Puros”. Espetáculo Mistério-
Bufo, 1918, direção de V. E. Meierhold ................................................................................ 137
Figura 16 Desenho de V. Maiakóvski para o figurino dos “Impuros”. Espetáculo
Mistério-Bufo, 1918, direção de V. E. Meierhold ................................................................. 137
Figura 17 Cenário de Anton Lavinsky para a segunda versão do espetáculo Mistério-
Bufo, 1921, direção de V. E. Meierhold ................................................................................ 142
Figura 18 Figurinos desenhados por V. Kissielióv para a segunda versão do espetáculo
Mistério-Bufo, 1921, direção de V. E. Meierhold ................................................................. 143
Figura 19 Desenho do palhaço acrobata Vitáli Lazárienko na década de 1920 ............ 146
Figura 20 Circo, de Aleksandr Shevchenko, 1913 ........................................................ 157
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................16
1. O PENSAMENTO RUSSO E O DESEJO DO CORPO ACROBATA: FINAL DO
SÉCULO XIX E INÍCIO DO XX................................................................................... 27
1.1. A ambição dos simbolistas russos .............................................................................. 32
1.2. A bofetada dos cubo-futuristas no gosto do público .................................................. 42
1.3. À imagem e semelhança do homem russo: o acrobata ............................................... 59
2. O CORPO ACROBATA NA PEDAGOGIA DE V. E. MEIERHOLD ................ 70
2.1. Apontamentos sobre as experiências pedagógicas do Dr. Dapertutto ........................ 79
2.2. O treinamento do ator no Estúdio de Meierhold ......................................................... 88
2.3. Viva o malabarista! (1917) ........................................................................................ 103
3. A “CIRQUIZAÇÃO” DO TEATRO: MISTÉRIO-BUFO (1918 E 1921), DE
MEIERHOLD-MAIAKÓVSKI ............................................................................. 111
3.1. Novos rumos a partir de 1917 na Rússia ................................................................... 115
3.2. Na cena revolucionária: Mistério-Bufo (1918 e 1921) .............................................. 130
3.3. O desvendamento do Bogatyr ................................................................................... 148
4. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 157
5. BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 163
6. ANEXOS ................................................................................................................. 169
16
INTRODUÇÃO
iiiiiiiiii!!!
Piolim
17
“Eu não confio em um acrobata intelectual!”.
Com estas palavras, ainda recém-chegado à cidade de São Paulo em 2009, fui recebido
por Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo. Situado na Galeria
Olido, em frente ao Largo Paissandú, esse espaço tão desejado por alguns pesquisadores e
artistas circenses preparava-se para abrigar inicialmente o acervo de dois importantes circos
brasileiros: Nerino e Garcia, quando o conheci. No ano de 2010, após sua inauguração, o
Centro de Memória do Circo afirma-se como um espaço de grande importância em prol da
preservação da tradição circense no Brasil por possuir exposições relevantes, promover
palestras, debates, cursos, além de incentivar a pesquisa e apoiar artistas, trupes e grupos.
Parafraseando a expressão “acrobata intelectual” de Tamaoki, não é comum entre os
artistas circenses brasileiros a reflexão teórica sobre sua prática. Um olhar menos atento
chamaria de desinteresse, condenaria a ignorância de tais artistas e classificaria o circo, como
acontece muitas vezes, como uma atividade “menor” no universo dos espetáculos. Por um
lado, trata-se realmente de uma verdadeira falta de consciência do valor que esses sujeitos
possuem sobre suas próprias histórias; por outro, a arte do picadeiro é um saber que foi
desenvolvido de forma empírica durante anos e sua aprendizagem acontece de forma
processual, a partir de uma disciplina rígida. O treinamento implica a construção de uma
corporeidade específica por meio da repetição e prática diária de exercícios. Este último
aspecto, em especial, reflete a grande dificuldade deste pesquisador, que enfrenta o desafio de
conciliar as atividades acrobáticas e cênicas com o rigor de uma investigação acadêmica
acerca dos seus procedimentos de expressão.
Exponho outra dificuldade com a interjeição do Palhaço Piolim, usada como epígrafe
desta introdução, que reflete a sua angústia diante da responsabilidade que assumiu para
escrever uma crônica de circo. No meu caso, aproprio-me da expressão piolinesca para
declarar meus apuros ao assumir uma pesquisa acadêmica e escrever uma dissertação de
18
mestrado. Eu, que recentemente terminara uma universidade de teatro sem escrever sequer um
trabalho de conclusão de curso, e investido exaustivamente no meu aprimoramento enquanto
artista circense.
Cabe ressaltar aqui que o treinamento acrobático exige um grau de dedicação elevado
para a conquista da execução precisa de movimentos. O tempo que se presta aos ensaios está
intimamente ligado ao desempenho, ou seja, quanto maior o investimento, muito maior a
probabilidade de uma qualidade técnica melhor das atividades. O fato é que não existe uma
forma ponderada de se tornar acrobata, pois para a obtenção de um nível adequado e seguro é
imprescindível o domínio do corpo, conquista que se processa em uma rotina diária de treino
e preparo físico.
De antemão, portanto, este trabalho é fruto de uma inquietação. O desejo de apropriar-
me da linguagem do circo resultou em uma itinerância típica dos artistas circenses, que
percorrem diversas cidades, buscando estratégias de sobrevivência, tanto de si quanto de sua
arte.
Durante minha formação acadêmica, no curso de Interpretação Teatral da Universidade
Federal da Bahia, foram poucos os conteúdos vistos que contemplavam determinados
aspectos que, aos meus olhos, eram imprescindíveis para a formação corporal do ator. No
entanto, ao entrar por debaixo da lona e me colocar em contato com o universo do picadeiro
pude, logo, perceber um tipo de espetáculo que afirma o corpo por meio da beleza, força e
rigor. Ansiava desde então construir um corpo acrobata e, para isso, não tive escolha a não ser
“fugir” com o circo. Assim, nos anos da Escola de Teatro conciliava a formação de ator com a
de circense na Escola Picolino de Artes do Circo, em Salvador, investindo em acrobacias,
equilíbrios, malabares e aéreos. Contudo, na excitação para consolidar uma formação mais
sólida em uma modalidade específica, deixei a Bahia, dois meses após o espetáculo de
formatura da UFBA, e fui morar no Rio de Janeiro para cursar o nível técnico em artes
19
circenses na Escola Nacional de Circo (ENC). Isso somente foi possível após ser aprovado
nos exames de seleção que realizei paralelamente aos ensaios no último semestre da
universidade. Na ENC, deparei-me com o cotidiano da lona e conheci verdadeiros “mestres”:
os professores.
Tais pedagogos, a maior parte de idade já bastante avançada, são portadores do “notório
saber”1 e, em sua totalidade, membros de famílias nomeadas “tradicionais”, sem formação
vinculada a instituições formais. Eles se comportam como a memória e a história do circo
brasileiro e, assim sendo, não hesitam em relatar os fatos de suas vidas, famílias, as relações
entre circenses, o trabalho no picadeiro, seus sonhos e desejos. São tratados com admiração e
respeito pelos alunos, transmitindo os seus saberes de forma exclusivamente oral e prática,
conforme aprenderam dentro da estrutura familiar circense, na qual a técnica é passada de pai
para filho. Se eles merecem o título de “tradicionais” é exatamente por isso, por sua estrutura
de transmissão do conhecimento, e dessa maneira a Escola Nacional de Circo limita-se ao
aprendizado puramente técnico. Os professores reproduzem o que seus pais lhe ensinaram,
isto é, um repertório de técnicas.
Em constante e permanente reinvenção, a arte circense difunde-se, interfere e aglutina-
se às formas cênicas contemporâneas. A inclinação atual para o novo, a utilização de um
arsenal tecnológico no palco, a busca por linguagens híbridas e a espetacularização das obras
dão suporte a esse investimento e a esse mecanismo de apropriação das atividades do
picadeiro, de modo que diversos artistas de outras áreas vão buscar no circo uma formação
complementar para sua prática, enriquecendo suas habilidades. Para todos os efeitos, se a
princípio eu poderia almejar o treinamento circense apenas como possibilidade de ampliar o
meu vocabulário corporal, isto rapidamente foi convertido para o anseio de consolidar e
encarnar as proezas de um corpo acrobata e fazer-me um trapezista.
1 Notório Saber, expressão utilizada pelas universidades brasileiras para qualificar o professor que não possui título de doutor, mas possui conhecimento equivalente.
20
Para seguir o aperfeiçoamento enquanto acrobata aéreo e conectá-lo às minhas
experiências com teatro e dança, percebi a importância da reflexão teórica sobre os
procedimentos de expressão cênica do intérprete. Por já conhecer os terrenos acadêmicos, o
retorno à universidade era a alternativa mais estável para o desenvolvimento da pesquisa
pretendida. O lugar onde acreditava que poderia ampliar meu repertório enquanto intérprete
era São Paulo e, por esse motivo, ingressei no Programa de pós-graduação em Artes da
Universidade Estadual Paulista (UNESP), espaço onde encontrei apoio e pude aprofundar as
questões do circo.
A acrobacia caracteriza-se pela coexistência de três fatores relevantes: destreza física,
beleza e risco. Ao se contrapor às ações cotidianas, a sua execução gera no espectador uma
percepção por meio dos sentidos. No circo, o corpo é a matriz do espetáculo, seja no campo
do sublime, no caso dos acrobatas, ou do grotesco, explícito no tipo do palhaço. Neste, a
comicidade física está fundamentada no diálogo entre a interpretação e as proezas acrobáticas,
apoiando-se no jogo de improviso baseado em elementos prévios como o roteiro de entradas,
por exemplo, que indica uma série de situações cômicas que têm como eixo a fala ou a ação
corporal. Ele é uma figura de importância durante o espetáculo circense, “[...] o corpo do
palhaço é disforme, permeado de trejeitos, e busca a ênfase no ridículo, através da exploração
dos limites, deficiências e aberrações.”2 Ele está em oposição à experiência sensorial
produzida pelos acrobatas e, portanto, ao estimular o relaxamento no espectador, por meio do
riso, amplifica as sensações provocadas pelo número de risco.
O termo “acrobata” é proveniente do grego akrobate, ou seja, “aquele que anda na ponta
dos pés”. É o sujeito que rompe as fronteiras do próprio corpo, com agilidade e potência, e se
atreve a transcender a condição humana. Seu território é contaminado pelo risco, isto é, o jogo
do artista com uma possível morte e que ao ultrapassá-la incita a vertigem no espectador.
2 BOLOGNESI, Mário. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 198.
21
Neste lugar reside o corpo acrobata, que se utiliza de tal conjuntura para obter a poesia que
por séculos povoa o imaginário do homem.
Sob este prisma, a relação entre o pensamento russo e as manifestações circenses é de
fundamental importância, pois engendra transformações significativas no campo das artes.
Para esta pesquisa especificamente, há o interesse no que se refere à simbiose entre palco
teatral e picadeiro, tendo em vista a crise que as formas teatrais, no início do século XX,
atravessavam na Rússia. Em oposição à representação cunhada no domínio da palavra,
diversos diretores e encenadores recorreram ao campo da tradição popular e da teatralidade e
geraram novos paradigmas técnicos-éticos-expressivos para o intérprete. A cena exigia um
“novo ator” e uma “nova forma” para esse novo teatro. Nesse contexto, portanto, surge a
figura ímpar de Vsévolod Emilievitch Meierhold, que utilizando o pseudônimo Dr. Dapertutto
durante os anos de 1910, lançou-se em experimentações, reflexões e amadurecimento dos
fundamentos da sua prática teatral. As vozes deste diretor contribuíram significativamente
para as transformações das artes teatrais na Rússia, como também, atravessaram todo o século
XX e seguem nos dias de hoje.
No movimento de retorno à tradição russa surgem os personagens condutores desta
pesquisa: os Bogatyrs (Богатыри), heróis defensores da Rússia, retratados como figuras
fascinantes dotadas de muita força física, alguns até mesmo com energia divina, e que
lutavam contra poderes reais ou imaginários. A maioria das histórias dos Bogatyrs gira em
torno da época do príncipe Vladimir I de Kiev (958-1015) e se presume que alguns deles eram
figuras históricas, enquanto outros eram puramente fictícios, originados da mitologia pagã
eslávica. A palavra Bogatyr não é de origem russa; ela provavelmente veio do turco arcaico e
significa “guerreiro valente”. Esses homens são conhecidos como os heróis eslavos que
aparecem nos poemas épicos chamados Bylinas (былина), cujo nome procede da palavra
22
“быль”, que significa “aquilo que ocorreu de verdade”. Inicialmente, elas eram histórias
contadas oralmente e, assim, sofriam exageros quando passavam de uma pessoa para outra.
A lista de nomes dos Bogatyrs é extensa, entretanto, um de seus principais personagens
é Ilya Muromets3, que é considerado um dos maiores entre todos os heróis, dotado de poderes
excepcionais, integridade física e espiritual e que luta em defesa do território e do povo russo.
Atualmente, na Rússia, a palavra Bogatyr é bastante utilizada para nomear clubes de esportes
ou forças militares. Reconhecemos aqui que o vigor, a potência e a destreza destes heróis se
aproximam das qualidades do corpo acrobata.
3. Bogatyrs, por Viktor Vasnetsov, 1898. Na imagem: Dobryna Nikitch (esq.), Ilya Muromets (centro) e
Alyosha Popovich (dir.).
3 Ilya Muromets é um dos principais heróis épicos da Rússia junto de Dobrynya Nikitich e Aliocha Popovich. Acredita-se que Ilya possui um protótipo real que viveu no século XII. Em certos contos, Ilya até os 33 anos aparece como portador de uma doença que o deixou paralisado, quando recebe milagrosamente uma cura de anciãos. A versão do conto épico “Svyatogor e Ilya de Murom”, relata que Svyatogor era mestre de Ilya e quando morreu soprou em seu aprendiz o espírito heróico e ofereceu sua espada mágica, a qual somente pessoas muito especiais poderiam portar. Ele ganha uma força excepcional, sobre-humana, e é incumbido de servir o príncipe Vladimir. No caminho de sua missão Ilya é avisado de que encontrará uma pedra muito pesada que deverá deslocar para encontrar os elementos necessários para um herói: cavalo, armas e armadura. Ilya Muromets serviu durante muito tempo o exército do Príncipe Vladimir e protegeu toda a Rússia. Algumas teorias afirmam que este personagem foi um guerreiro que viveu no século XII, e no final de sua vida se converteu em monge, Ilya Pechorsky, que foi beatificado como um santo menor da Igreja Ortodoxa em 1643.
23
Em minha trajetória artística o que estimulava a prática eram as possibilidades
expressivas do corpo para a cena, assim como a valorização do movimento como elemento
fundamental para o teatro, a descoberta da fisicalidade como lugar de criação, até o
surgimento da Biomecânica, exercícios cênicos como recurso pedagógico de formação para o
ator, realizados durante as pesquisas empreendidas por Meierhold, somadas à sua paixão
declarada pelo circo. Tudo isto era bastante sedutor para mim, estudante de um curso
universitário de interpretação cuja formação se baseava na eterna oposição entre o Sistema
realista-naturalista de Stanislávski e o modelo de atuação brechtiana.
A escolha do tema para esta investigação parte da intenção russa de “cirquização”4 do
teatro, tendo em vista as possibilidades expressivas do corpo acrobata. Nesse sentido, a
relação entre prática artística e pedagógica encontrada nas experimentações pré-
revolucionárias de Meierhold, bem como a sua parceria com o poeta cubo-futurista Vladímir
Maiakóvski fundamentam esta pesquisa. Antes de tudo, além do interesse teórico, tal estudo
decorre da necessidade de uma reflexão sobre os procedimentos de composição cênica,
intrínsecos à prática artística.
Para possibilitar a compreensão da apropriação da linguagem circense, foi eleito como
objeto de estudo desta investigação o espetáculo Mistério-Bufo, dramaturgia de Maiakóvski.
Logo após a Revolução russa de 1917, sob direção de Meierhold, a primeira versão desta obra
foi apresentada no ano de 1918, com tropeços e dificuldades; em 1921, em comemoração ao
aniversário da Revolução, estreia a segunda versão em meio a protestos da intelligentsia. Essa
montagem, além de relevar os procedimentos da poética meierholdiana desenvolvida ao longo
dos anos 1910, em suas duas versões se cercou das atividades circenses como possibilidade
expressiva em relação ao jogo cênico.
4 Cf. AMIARD-CHEVREL, Claudine. La cirquisation du théâtre chez Maiakovski. In: Du cirque au théâtre. Lausanne: L’Âge D’Homme, 1983, p. 103-120.
24
Para os contornos desta pesquisa, daremos atenção à Rússia da virada do século XIX
para o XX, até o ano de 19215. Tal recorte histórico não tem a pretensão de fixar e enrijecer o
fenômeno de estudo, mas aprofundar a confluência entre arte circense e teatral, pois o olhar se
refere ao fazer artístico concreto, ou seja, a apropriação do corpo acrobata no trabalho do ator
meierholdiano. Para tanto, procuramos investir no cruzamento entre as fontes literárias,
constituídas por uma bibliografia referente ao período russo estudado, e material teórico
de/sobre Meierhold-Maiakóvski.
De certa forma, estive em um lugar privilegiado no percurso da investigação. Foi de
fundamental importância o diálogo acadêmico estabelecido com os orientadores Mario
Fernando Bolognesi e Maria Thais Lima Santos. Muito além da categoria de orientador e
coorientadora, eles foram verdadeiros parceiros. A experiência teórica-prática de Mario
Bolognesi acerca da arte circense foi complementada pela perspectiva do saber-fazer teatral
de Maria Thais. Além disso, tendo contato direto com aquele país e com a tradição eslava,
Maria Thais é estudiosa do teatro russo e, em especial, das atividades de Meierhold como
encenador e pedagogo e vem atuando como diretora-pedagoga da Moscow Theatre School of
Dramatic Arts, dirigida por Anatoli Vassiliev. Ainda em relação às artes dramáticas na
Rússia, o professor Mario Bolognesi tem um vasto estudo sobre este campo, bem como sobre
a obra do cubo-futurista Vladímir Maiakóvski e o circo soviético.
A estrutura para esta dissertação foi pensada em três capítulos: O pensamento russo e o
desejo do corpo acrobata: final do século XIX e início do XX; O corpo acrobata na
pedagogia de V. E. Meierhold; A cirquização do teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de
Meierhold-Maiakóvski.
A partir do aprofundamento do fenômeno em estudo observamos que a Revolução de
1917, além de ser um marco na história da Rússia, é um divisor de águas no que diz respeito 5 A relação entre o circo e o teatro será desdobrada por outros criadores nas décadas posteriores dentro e fora da Rússia. No teatro alemão, por exemplo, elementos do circo, do teatro de feira e do cabaré terão grande importância na prática artística de Erwin Piscator (1893-1966) e Bertold Brecht (1898-1956).
25
às aproximações entre o circo e o teatro. Se a partir dos anos 1920 a cena teatral ganha
concretamente uma perspectiva mais acrobática, isto só é possível pelas experiências das
décadas anteriores. Assim, as atividades de Meierhold nos anos de 1910, como também a
importância do espetáculo Mistério-Bufo, em 1918 e 1921, estão imersas nesta conjuntura.
Para a construção de uma abordagem mais objetiva, optamos por um recorte sobre tal período
para contextualizar e elucidar determinadas questões referentes à pesquisa. O primeiro
capítulo, O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final do século XIX e início
do XX, trata da percepção dos artistas, poetas e intelectuais russos em relação ao acrobata.
Notamos que a alusão a esta figura circense possui uma forte carga poética e se expressa
inicialmente pelo viés dos simbolistas, potencializando-se e alastrando-se, em seguida, com a
vanguarda cubo-futurista por meio do ideal de homem embutido na cultura eslava.
O segundo capítulo, O corpo acrobata na pedagogia de V. E. Meierhold, refere-se às
aproximações entre o teatro e as atividades do picadeiro no início do século XX. Dentre as
experiências realizadas destaca-se, sobremaneira, a prática do encenador e pedagogo
Vsévolod Emilievitch Meierhold nos anos 1910. A paixão deste pelo circo, a valorização do
corpo do ator, bem como do movimento expressivo para cena, em oposição à atuação realista-
naturalista e intimamente conectados com o seu tempo, são fatores que proporcionaram a
criação de uma pedagogia de formação para o “novo ator” que o “novo teatro” russo exigia. A
vocação experimental vivenciada no Estúdio da Rua Borondiskaia entre 1913 e 1916 forneceu
a Meierhold a escolha de fontes e o estabelecimento de princípios que o conduziram à
maturidade artística nas décadas posteriores e à formulação da Biomecânica, uma espécie de
treinamento para capacitar o ator revolucionário. Neste universo, observamos o desejo de
apropriação do corpo acrobata para a arte do ator em articulação a outros fenômenos que
determinaram a criação de uma polifonia teatral. A influência do circo é tão presente em suas
26
atividades que se destaca o texto escrito pelo mesmo, e que serviu de base para estudos: Viva
o malabarista! (1917).
O capítulo três, A “cirquização” do teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de
Meierhold-Maiakóvski, propõe uma abordagem sobre a montagem dirigida por Vsévolod
Meierhold e texto de Vladímir Maiakóvski. A parceria entre o encenador e o poeta russo
resultou em duas versões desta obra; a primeira ocorreu no ano de 1918 e a segunda em 1921.
Influenciado particularmente pelo Balagan, teatro de feira russo, e pelo circo, Maiakóvski
escreve esta comédia versificada em alusão à Revolução de 1917 na Rússia. É um espetáculo-
chave para o ambiente no qual foi encenado, um grito revolucionário em prol do operário e à
utopia do mundo futuro. Reconhecemos nessa obra a polifonia na arte do ator a partir das
investigações meierholdianas experimentadas nos anos de 1910.
Por meio desta pesquisa foi possível detectar a maneira como o teatro russo se apropriou
da imagem do acrobata nas primeiras décadas do século XX. E, principalmente, foi possível
reconhecer que tal perspectiva provocou profundas alterações no espetáculo, repercutindo
ainda na cena contemporânea.
27
CAPÍTULO I
O pensamento russo e o desejo do corpo acrobata: final do século XIX
e início do XX.
Amo o circo e seus artistas,
estes homens que serenamente arriscam sua vida a cada dia.
Máximo Gorki
28
O polonês Walicki6, responsável por valiosos estudos sobre a cultura na Rússia, afirma
que, naquele país, o pensamento teria sido edificado por meio de uma singular fertilização de
influências e ideias. Ele considera que os fatores que auxiliaram na construção da cultura
russa, em contraste com a história dos países europeus, foram: a rápida modernização de uma
grande nação comprimida num curto período de tempo; a curiosa coexistência de elementos
arcaicos e modernos na estrutura social e no modo de pensar; o rápido influxo de influências
externas e a resistência a elas; o impacto na elite intelectual das realidades sociais e das ideias
da Europa ocidental, além da constante redescoberta das tradições nativas e das realidades
sociais.
No entanto, para o intelectual polonês, o “atraso” russo, segundo os moldes ocidentais,
deveria ser encarado como uma grande vantagem, na medida em que as experiências vividas
pela Europa poderiam ser apropriadas pelos russos, de modo que eles pudessem fugir
simultaneamente dos erros europeus. A Rússia, portanto, estava destinada “a resolver a
maioria dos problemas sociais, a aperfeiçoar a maioria das ideias que tinham surgido em
sociedades mais antigas”7. Dessa forma, a fé ortodoxa se impõe contra o racionalismo
excessivo da cultura ocidental, a qual provoca a ruptura da personalidade de cada sujeito.
Se cada visão de mundo se relaciona a um determinado tipo de filosofia sobre o homem
e a sociedade, segundo Walicki, não significa que ela esteja confinada às questões históricas e
sociais, mas que o raciocínio é governado pelo próprio gênero humano, refletindo algumas
formas de leis que comandam o mundo. É dessa maneira que o pensamento russo se vê no
esforço de suportar a confluência entre o conjunto de ideias vindo da Europa Ocidental, por
um lado, e da sua própria realidade e tradição nacional, por outro. A Rússia, geograficamente,
6 WALICKI, Andrezej apud FRANK, Joseph. Pensamento Russo: o caminho para a Revolução. In Pelo prisma russo: ensaio sobre literatura e cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992, p. 63. 7 TCHAADÁIEV, Piotr apud FRANK, Joseph. Ibid., p. 68.
29
caracteriza-se como um país de fronteira e retrata a simbiose entre a cultura ocidental e a
oriental.
No final do século XIX floresceu “a procura por alguma definição da ‘singularidade’
sociocultural da Rússia em relação à Europa”8; o ideal ortodoxo e as tradições populares
próprias do país também foram usadas contra a tutela ocidental. Contudo, no mesmo período
a Rússia vivia também uma revitalização do idealismo metafísico, que entende a realidade
como constituída ou dependente do espírito ou das ideias, e que se desenvolveu à sombra da
maré predominante do pensamento social.
Strada9 observa que a cultura russa esteve pressionada por um poder anacrônico e
corrupto, profundamente ligado aos seus privilégios e, portanto, todo o seu drama resulta de
uma consciência lúcida das contradições e dilacerações da civilização e de uma limitada
possibilidade de efetuar uma ação histórica renovadora. Um movimento de oposição
subversivo tinha profundas raízes intelectuais e remotas na tradição da intelectualidade radical
e revolucionária, e encontrava em amplas massas, a maior parte camponesa, o seu potencial
terreno de expansão posterior. Nesse sentido, para aqueles revolucionários, cuja esfera
cultural era essencialmente anticzarista, predominava o desejo de uma revolução democrática
que oferecesse a todos a possibilidade de uma vida política livre e de uma justa renovação
social.
O fato é que na virada do século XIX para o XX houve um grande desenvolvimento em
diversos campos da cultura, que foi fortalecida por ideias e personalidades modernas. Moscou
e São Petersburgo, em especial, experimentam uma época de renascimento, no qual as
atividades artísticas e literárias adquirem um caráter criativo espantoso. Por serem criadas em
“conexão tão íntima com o pensamento russo, foi também porque esse pensamento era ele
8 Ibid., p. 75. 9 STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.). História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: a URSS da construção do socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 110. (v. IX)
30
mesmo tão amplamente focalizado nas preocupações políticas e socioculturais que ocupavam
todo o cidadão russo pensante”10, de modo que arte e literatura também estavam vinculadas a
uma fase de grandes dificuldades de mudança e renovação.
Como reconhece Ivanov11, a arte, nesse sentido, é o espaço cultivado para a
transformação do indivíduo e um dos mecanismos por meio do qual o Divino se manifestaria
no espaço e no tempo – as duas outras formas são a religião e a filosofia. Em tal período, ela
se caracteriza por meio da criação em liberdade de espírito e, igualmente, como forma de
expressão da sociedade; fazendo resvalar os sentidos mais intrínsecos da época em que foi
gerada. O entendimento da função utilitária da arte é substituído pelo irracionalismo
metafísico, entrelaçando-se, assim, com a “vida” do seu povo.
Houve algo de único na Rússia no início do século XX que esteve diretamente ligado,
por um lado, à rápida e ainda assim parcial modernização do final do século XIX e, por outro,
à insistência de inserção do capitalismo na sua economia, às novas fortunas individuais
acumuladas e ao patrocínio para as artes. Agrega-se também a estes fatores a abertura da
cultura tradicional às ideias modernas ocidentais e à tendência de idealização e utopia – em
oposição à ação, ao ato. Tudo isso cria condições particulares para a repercussão das
manifestações culturais, que adaptaram os modelos europeus às exigências da produção
efervescente do período. Nesse contexto de florescimento e explosão, desenvolveram-se
brilhantes proposições criativas, tão logo as recentes conquistas científicas e a renovação das
ideias artísticas procuraram respostas na filosofia e na exposição de teorias sobre a vida na
arte. Neste ambiente, surgem as gerações que cultivarão a semente de uma revolução política,
social e cultural.
10 FRANK, J. Op. cit., p. 62. 11 IVANOV, V. Duas forças no simbolismo moderno. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005, p. 198.
31
A arte dramática não está excluída desse processo e afirma-se como “uma das formas de
expressão artística mais inovadora e mais significativa na Rússia”12. Isso ocorre, em um
primeiro momento, por causa das transformações provocadas pela estética realista-naturalista
advindas da dramaturgia de Anton Tchékov (1860-1904) e das encenações do Teatro de Arte
de Moscou (TAM), sob a direção de Constantin Stanislávski (1863-1938). Em um segundo
momento, no limiar do século XX, a rejeição a este modelo de arte provoca o surgimento de
uma estrutura dramática inovadora e de um “novo drama”. As formas teatrais, assim,
reconhecem a crise que o teatro atravessava, “muitos diretores almejavam redescobrir um
novo teatro, a palavra de ordem era re-teatralizar o teatro”13.
Dedicadas à renovação da arte cênica, as pesquisas de Vsévolod Emilievitch Meierhold,
nascido na cidade de Penza no dia 28 de janeiro de 1874, contribuem significativamente para
as transformações de parte do teatro russo. Ele trabalhou por cinco anos como ator nas
atividades do TAM concebido por Stanislávski e por Vladímir Nemiróvitch-Dântchenko
(1858-1943), contudo, ao discordar dos princípios deles, rompe com este modelo e inicia a
busca de seus próprios caminhos, em direção oposta à do TAM. No centro de suas
preocupações está a formação do próprio ator, investindo na elaboração de paradigmas ético-
expressivos relativos a uma nova pedagogia14. Como será visto mais adiante, o contato com a
efervescente produção artística e literária do período contribui, sobremaneira, para a
constituição do que viria a ser o seu projeto teatral.
A teatralidade é o mote das pesquisas cênicas dos inovadores da arte teatral no início do
século XX na Rússia. Os artistas acreditavam que as expressões da cultura popular e a
tradição artística, especialmente a teatral, seriam as grandes fontes para reteatralizar a cena.
12 CAVALIERE, Arlete. Teatro Russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas, 2009, p. 223. 13 CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese (Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p.1. 14 Ibid.
32
Historicamente, no início do século XX, com a Revolução de 190515, quando a energia dos
trabalhadores se concentrou no intento de derrubar o regime do czar e culminou no massacre
dos manifestantes, explodiu na Rússia uma grande revolução artística. Uma parcela
significativa da classe trabalhadora empreendeu uma mobilização que atraiu a participação de
muitos artistas, de modo que a ação política e cultural do proletariado casava exatamente com
o desejo de um “novo homem”.
Nesse contexto, surge o personagem-chave para conduzir esta pesquisa, que encontra
sua expressão no circo, no teatro e no balé: o Bogatyr, herói dos mitos eslavos, descrito nos
poemas russos como um personagem fascinante de grande estatura e força mágica cavalar.
1.1. A ambição dos simbolistas russos
Tudo está em harmonia e respira um no outro. Georges Nivat 16
Nas últimas décadas do século XIX na Rússia, grupos de artistas e poetas são
responsáveis por um conjunto de reformas que impregnará fortemente as manifestações
culturais das primeiras décadas do século XX. Os esforços de autores como Aleksandr Blok,
Andriéi Biéli, Dmitri Merejkóvski, Viatcheslav Ivánov e Nikolai Berdiáev caracterizam a
geração simbolista russa e garantem sua projeção internacional. Essa rica pluralidade de
poetas divide-se em múltiplas correntes ideológicas e oferece à literatura contribuições
significativas. Por estarem fundamentados em diferentes atividades criadoras, dos mais
15 Este período será mais bem analisado no Capítulo III desta pesquisa. 16 NIVAT, Georges. O simbolismo russo em busca do paraíso original. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 43.
33
variados “estilos”, Tolmatchov17 interpreta o simbolismo como princípio de movimento e
mais precisamente como efervescência da cultura, e reconhece a dificuldade de compreensão
do seu fundo “culturológico”, seus limites e conteúdo.
Em contraposição rígida ao positivismo e ao naturalismo18, as manifestações do
simbolismo russo tinham como grande semelhança o ideal da “arte pela arte”, trazendo para a
literatura a contaminação e o enraizamento poético em reação à concepção de mundo
altamente racionalista e empírica proclamada pelos positivistas. A ênfase, por outro lado, está
nas experiências particulares do próprio artista, ou seja, o mundo expressa-se por sua
subjetividade e possibilidades. A crença está na autofundamentação do “eu” preenchida pela
autorrepresentação. Se a criação individual como equivalente da vida é realizada em
linguagem pessoal, é a partir desta que o artista cria ou aproxima-se da realidade, voltando-se
para si mesmo cada vez mais profundamente. Ainda para Tolmatchov, o simbolismo do
século XIX formula grandes exigências para a criação verbal, ao inexprimível, o que resulta
no desejo do poeta de colocar-se inteiro na sua obra, bem como na visão da literatura como
conhecimento e autoconhecimento. Isso revela um “eu” que estabelece uma autorreferência e
valoriza a experiência pessoal do artista, logo, “o mundo, antes escapadiço, ao passar pelo
filtro da sua energética pessoal (sangue, nervos, hereditariedade) recebe um relevo igualmente
individual, expressa-se, recebe uma corporeidade específica nas palavras”19.
É por meio da manifestação da própria subjetividade que o artista adota uma atitude
mística em relação ao mundo. Na poesia, por exemplo, em linhas gerais o que predomina em
certas obras é o vazio, o tédio ou a resignação, enfatizando o silêncio, o tom estático,
vagaroso, e, principalmente, o culto à morte. Esta deve ser entendida como um desejo 17 TOLMATCHOV, Vassíli. Sobre as fronteiras do Simbolismo. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 18. 18 Ambas as correntes, positivistas e naturalistas, em linhas gerais, propõem a existência humana por meio de valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica. Fundamentados nas descobertas científicas do século XIX, o positivismo surgiu como desenvolvimento sociológico do iluminismo, das crises da sociedade e moral do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial – processos que tiveram como marco a Revolução Francesa (1789-1799). 19 Ibid., p. 23.
34
profundo do indivíduo de conectar-se com a divindade, por um sentimento religioso, que se
manifestará nas atividades artísticas transubstanciada em experiência mística. Dessa maneira,
é negada a realidade terrestre em favorecimento da realidade divina.
A atitude da criação artística perante a vida, assim como a percepção religiosa da
própria vida, é adotada como pressuposto filosófico pelo simbolismo russo. Segundo a
concepção dos próprios simbolistas, existe um elo íntimo entre o princípio da arte como
conhecimento e os seus aspectos formais. Em outras palavras, “a teoria simbolista revoga o
dualismo de forma e conteúdo, de signum e signatum. O signo adquire, ele mesmo, seu
próprio significado e deve ser considerado juntamente com o conteúdo que reflete”20.
Estabelecem-se, então, os contornos de uma nova realidade cuja criação tem um caráter
primariamente criativo, livre e religioso.
5. Viatcheslav Ivánov, por Konstantin Somov, 1906
Ivánov21 afirma que a verdadeira arte simbolista toca na área da religião, pois esta é,
antes de qualquer coisa, o sentimento de ligação entre tudo o que existe e o sentido da vida,
ou seja, uma conexão e o conhecimento da realidade. Para ele, o supremo ensinamento do
artista está em não impor sua vontade na superfície das coisas, mas em profetizar e anunciar
20 ANDRADE, Homero Freitas de. Breves noções sobre o simbolismo na Rússia. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 153. 21 IVANÓV, Viatcheslav. Duas forças do simbolismo moderno. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 198 e 199.
35
algo próximo da vontade sagrada das essências: ser uma espécie de portador da revelação
divina. A ambição simbolista é, portanto, a recriação de uma arte total e religiosa.
A aproximação desses autores com o romantismo alemão estimula o desejo de superar
as fronteiras entre as linguagens artísticas. Os simbolistas encontram no ideal artístico
wagneriano o ponto forte para legitimar “o sonho de destruir os limites”22.
No teatro, por exemplo, não há dúvidas de que a concepção da cena como espaço de
colaboração entre as diversas linguagens artísticas teve suas raízes no simbolismo, cuja
influência marcou os encenadores modernos em contraponto aos procedimentos naturalistas.
Richard Wagner (1813-1833), compositor, músico e poeta nascido na Alemanha, aplicou a si
mesmo os princípios da teoria do gênio de Schopenhauer – na qual gênio é a pessoa em que o
intelecto prevalece sobre a vontade mais do que na pessoa mediana – e definiu-se como
criador de uma obra de arte resultante da fusão de diferentes linguagens. O compositor
alemão, sustentando-se neste pensamento, elabora o conceito de Gesamtkunstwerk (obra de
arte total), que é esclarecido a partir da seguinte reflexão:
Dei-me conta, na realidade, de que precisamente onde uma das artes alcança seu limite insuperável, a outra começa imediatamente a funcionar no seu campo de ação com a exatidão mais rigorosa; e que, consequentemente, mediante esta união íntima destas duas artes, uma poderia expressar de maneira mais satisfatória o que não poderia de nenhum modo expressar por si mesma; e que, pelo contrário, toda a intenção de oferecer com os meios de uma delas o que só poderia ser oferecido apenas pelas duas juntas, inevitavelmente produzem, a princípio, obscuridade e confusão, em seguida, a degeneração e a corrupção de cada arte em particular23.
A luta contra o egoísmo tinha sido um dos argumentos lançados por Wagner para
validar o término da separação entre as atividades artísticas e sua fusão em uma preconizada e
idealizada única obra de arte total. O compositor foi uma importante referência para os
simbolistas russos que retiraram ferramentas poderosas para as devidas reformas estéticas, por
22 NIVAT, G. Op. cit., p. 38. 23 Esta passagem encontra-se no texto de Charles Baudalaire: “Richard Wagner e Tannhäuser em Paris”. Wagner escreve uma carta a Berlioz na qual explica a necessidade de algo mais do que a simples colaboração entre as artes. O trecho citado foi retirado de: SÁNCHEZ, José A. (Ed.). La escena moderna. Madrid: Ediciones Akal, 1999, p. 16.
36
almejar incondicionalmente a explosão dos limites. Caracterizado como o verdadeiro artista
que associava poesia, drama, música e cenografia, Wagner materializou a realização exata das
percepções sensoriais almejadas pelos poetas simbolistas.
A força da música de Wagner equivalia ao nível do auditório, a intoxicação de uma orgia de haxixe. Estimulava a imaginação, lançando a mente em um estado de sonho como o que conduz à clarividência. E como com o haxixe, a intoxicação produzia um estado de sinestesia, assim como o som sugeria a cor”.24
A aspiração pela combinação entre as manifestações artísticas, aliando som, cor e
pensamento, possibilita à percepção sinestésica uma mistura em maior escala dos estímulos
sensoriais. E sua ativação visa alcançar a natureza, as energias e as potencialidades primeiras,
penetrando no êxtase, um encontro com Deus. Agrega-se a tal conjunto o princípio da síntese
das artes e, logo, forma-se o ponto de ligação pelo ato religioso, retornando outra vez a ideia
de que a arte transcorre da coesão entre a ação religiosa e a mágica. É preciso extrapolar,
então, seus muros, assim como os da vida, na busca do êxtase. Nivat, sobre este aspecto,
esclarece:
[...] existe, na busca infinita de todos os modos de ser do simbolismo russo, uma religiosidade pouco crística, uma religiosidade baseada mais no esforço incessante dos modos do ser humano a perseverar em seu ser, a produzir o ser. A síntese das artes é uma modalidade dessa produção indefinida e infinita do ser sempre mais no plano do fenômeno. E essa produção empurra sempre mais os limites da arte, apaga-os, amalgama-os25.
O destaque agora é dado ao valor absoluto da arte e à sua não dependência. Por meio do
contato com o “pessimismo” da filosofia de Nietzsche26 e da ideia de subjetivismo27, a arte se
impõe como lugar de transcendência e superação deste isolamento. Logo, o processo de
24 BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 40. 25 NIVAT, G. Op. cit., p. 40. 26 Friedrich Nietzsche (1844-1900) filósofo alemão que acredita em um pessimismo dionisíaco. Para Dioniso, o sofrimento, a morte e o declínio são apenas a outra face da alegria, da ressurreição e da volta. Em outras palavras, em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se tornou vão, o homem descobre no eterno retorno a plenitude de uma existência ritmada pela alternância da criação e da destruição, da alegria e do sofrimento, do bem e do mal. A obra de Nietzsche vai ser uma importante referência para os simbolistas russos. 27 Biély chama atenção para a visualização dos limites da realidade do mundo exterior e argumenta: “E se as fronteiras da visibilidade objetivamente dada são instáveis, estamos então condenados ao subjetivismo”. BIÉLY, Andriéi. Simbolismo e arte contemporânea russa. In: VÁSSINA, E.; CAVALIERE, A.; SILVA, N. (Org.). Op. cit., p. 252.
37
criação artística é enfatizado como expressão máxima da subjetividade a partir da observação
de uma realidade percebida pelo artista por meio da sua própria vivência. Isso também
enfatiza um olhar artístico sobre a vida: “a minha vivência transforma o mundo;
aprofundando-me, eu me aprofundo na arte; a arte é, ao mesmo tempo, a arte da vivência e a
arte das imagens”28.
O teatro, com efeito, representa um local privilegiado, tomado como o meio expressivo
mais poderoso entre todas as artes. Para os simbolistas russos, o palco não se limita apenas a
um lugar de entretenimento, ele é um espaço de conexão entre os homens e de transformação
de suas vidas. Nos termos de Ivánov, a representação teatral é vista como uma verdadeira
“ação coletiva”, cujas proposições solicitam o retorno às manifestações teatrais tradicionais
baseadas nos ritos religiosos, tragédias clássicas e mistérios medievais. Esta ideia, “mais do
que uma ação teatral, constitui um novo culto, não celebrado na Igreja, mas ainda cristão na
sua essência”29.
A rejeição ao modelo naturalista se processa particularmente pela recusa ao ilusionismo,
que separa o artista da realidade “superior” e “incontestável”. O “novo teatro” deve oferecer
uma espécie de “re-união” entre o ator e o espectador através da supressão da caixa cênica. A
intenção é recuperar o espaço, conforme o modelo cênico dos teatros gregos, e promover uma
espécie de ritual. Para tanto, associa o coro, a música e o grupo de dançarinos por meio de
uma reunião e comunhão coletiva, entre todos os envolvidos, almejando a purificação
irracional e elementar. O teatro, em escala global, situa-se como principal expoente de uma
revolução cultural.
Na cena do teatro simbolista russo, as experiências do encenador V. E. Meierhold se
expressam de maneira significativa. Em 1905, ao se transferir para São Petersburgo, ele se
aproxima ainda mais dos simbolistas e chega a frequentar, às quartas-feiras, “A Torre”, um
28 Ibid. 29 RUDNÍTSKI, K. Russian & Soviet Theatre. London: Thames and Hudson, 1988, p. 9.
38
espaço de encontro entre poetas, críticos e filósofos, organizado por Ivánov. Nas reuniões, um
dos temas difundidos era a transformação necessária e possível da religião e da Igreja pela
arte teatral, pois Ivánov reconhecia que a humanidade tinha perdido a fé.
O desprezo pelos procedimentos da cena naturalista ganha forma no projeto de criação
de um teatro nomeado de “As Tochas” (Fákely), em janeiro de 190630. Além de participar do
planejamento daquele teatro, Meierhold esboça importantes formulações teóricas sobre o
teatro, em sua essência, a partir de suas encenações no período de 1905 a 1912. Tais
concepções meierholdianas possuem um íntimo vínculo com o ideário de Ivánov e com o
princípio da “convenção consciente” associada a outro importante nome da poesia simbolista,
Valiéri Briussov. Este último solicita o abandono do conceito de verdade, imposto pelo
naturalismo da cena contemporânea, postulando a convenção consciente31.
Meierhold é convidado por seu antigo mestre e diretor do Teatro de Arte de Moscou,
Constantin Stanislávski, para reger o Teatro-Estúdio, fundado em 5 de maio de 1905 e
também conhecido pelo nome de Teatro-Estúdio da Rua Povarskáia. O intento de ambos os
diretores era a renovação da arte dramática através da experimentação de novas formas e
procedimentos de interpretação cênica em oposição ao virtuoso naturalismo e à “simplicidade
natural” da atuação do TAM. Tal “estúdio teatral” foi nomeado pelo próprio Meierhold e
desde o início já revelava as distintas perspectivas artísticas entre os dois diretores.
Stanislávski admitia as limitações da cena naturalista e buscava a inovação da arte dramática,
porém dando continuidade às conquistas alcançadas pelo TAM. Meierhold, por outro lado,
criticava severamente o teatro realista-naturalista e afirmava sua superação pelas “novas”
experiências cênicas. No entanto, apesar das falas parecerem diferentes, ambos os
encenadores visavam a descoberta de novas formas e procedimentos para a arte do teatro que
30 Ibid. 31 Estas noções serão também recuperadas no capítulo II.
39
estivessem em confluência com o ideário do drama simbolista cuja obra era reconhecida como
um novo tipo de drama.
Data deste período a formulação de uma das chaves da sua poética teatral: o princípio
de “estilização”, elaborado em sua fase simbolista.
Por “estilização” entendo não a reprodução exata do estilo desta época ou daquele acontecimento, como fazem os fotógrafos com suas fotos. O conceito de estilização está, na minha opinião, indissoluvelmente ligado à ideia de convenção, de generalização e de símbolo. ‘Estilizar’ uma época ou um fato significa exprimir através de todos os meios de expressão a síntese interior de uma época ou de um fato, reproduzir os traços específicos ocultos de uma obra de arte32.
Para obter tal qualidade recorrerá à tradição dos teatros de feira da cultura popular russa,
à Commedia dell’Arte e ao circo, como também ao corpo do ator e seus movimentos plásticos.
Durante esse período, Meierhold encenará diversos espetáculos de autores simbolistas como
Maurice Maeterlinck e Aleksander Blok33.
Umas das mais significativas contribuições dos simbolistas russos são as
experimentações e transformações da linguagem poética. Tais poetas garantem a projeção
internacional da poesia russa ao retomar temas e questões universais, conferindo um lugar de
destaque à técnica poética. Em relação a esse conjunto de fatores, pode-se afirmar que a
crença na cognição expressada pela arte é um ponto crucial da teoria do simbolismo, que
recruta o modelo intuicionista do conhecimento como método único, criador e ativo que
permite construir outro tipo de realidade, avessa a positivista, e concede à poesia lírica o seu
modo mais elevado de expressão. Associa, para isso, o símbolo não somente a um mecanismo
universal da literatura, como também à ideia de apreensão da essência do mundo pelo artista.
É por meio dele que o poeta cria e materializa imagens, revelando o caráter criativo ao propor
32 MEYERHOLD, V. apud CAVALIERE, Arlete. Op. cit., 2009, p. 240. 33 Existem diversos trabalhos que aprofundam o período simbolista de Meierhold. Para informações acerca desta fase: GUINSBURG, Jacó. Stanislavski e Meierhold. In: Stanislávski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2001, cap. 1, p. 3 a 93. SANTOS, Maria Thais Lima. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2010. CAVALIERE, Arlete. O simbolismo no teatro russo nos inícios do século XX: faces e contrafaces. Op. cit, 2009, p. 223 a 262.
40
um vínculo real entre todas as coisas. Dessa forma, pela constituição de novas imagens, é que
se desenvolverá a nova linguagem.
A palavra cria um terceiro mundo, o mundo dos símbolos sônicos, por meio dos quais se iluminam os mistérios tanto do mundo estabelecido fora de mim, como os encerrados em mim; [...]. No som recria-se um novo mundo, nos limites do qual eu me sinto criador da realidade; então, começo a nomear os objetos, isto é, a recriá-los novamente para mim34.
Em tal perspectiva, a função do som está conectada com a própria natureza das
palavras; ele é o próprio símbolo e reflete duas realidades paralelas: material e espiritual,
oferecendo significados aos elementos. A poesia simbolista, assim, era completamente
conduzida pelo sentido da musicalidade, porém a ideia de “poesia enquanto música”, em
linguagem poética, refere-se a associações sonoras. Por exemplo, houve diversas
experimentações com a estrutura fonêmica, rítmica e morfológica, explorando as diversas
sonoridades da língua russa por meio da poesia.
Cabe ressaltar que todo este conjunto de reformas só foi possível porque a geração
simbolista na Rússia fazia parte da chamada intelligentsia, grupo formado por uma classe
social privilegiada, composta por aristocratas, famílias de intelectuais e negociantes bem-
sucedidos, a maior parte com uma educação em filologia bem desenvolvida. Esta geração
aprofunda as experimentações linguisticas e redefine a função individual do poeta, que se
apresenta como “gênio”, cujo olhar para o mundo é através de uma janela que o coloca acima
da realidade e da multidão.
Isto explica a valorização exacerbada da literatura e da poesia entre os simbolistas. O
real é idealizado pelo próprio artista e se manifesta por meio do conhecimento intuitivo, tendo
em vista a subjetividade do criador, visionário da realidade suprema. A poesia é encarada
como a fonte do conhecimento. Por outro lado, de modo paradoxal, este mesmo grupo de
intelectuais, letrados, idealiza as manifestações populares. Por exemplo, o desejo de criar uma
34 BIÉLI apud POMORSKA, Krystyna. Formalismo e Futurismo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972, p. 84 e 85.
41
arte sintética, que se aproprie de todos os campos da criação (religião, filosofia, música,
arquitetura, dança, pintura, teatro), refere-se às linguagens que circulam entre uma pequena
elite intelectual russa. Não há uma apropriação concreta da cultura popular, mas sim uma
abordagem poética provocada por sua idealização.
O que se observa é que a aproximação com a cultura popular, e nesse caso com o circo,
é carregada de sentido poético e metafísico. Isto ocorre porque é preconizado pelos
simbolistas que o ideal de beleza e perfeição, associados ao divino, podem estar encarnados
na figura do acrobata do picadeiro. Assim, aponta-se uma identificação entre o poeta, o
sacerdote e o mágico, que deseja hipnotizar o leitor pela construção de imagens através de
símbolos; e o virtuosismo do acrobata, que magnetiza e fascina o público pela superação dos
limites humanos. Outro ponto relacionado a esta leitura é o “culto à morte”, proclamado pelo
poeta simbolista, e a iminência dela no picadeiro. A ideia de risco e morte materializados no
número do acrobata, como também o estado de solidão que encarna durante o
desenvolvimento do espetáculo, está ligada a todas as características já vistas que marcam a
subjetividade e o “ego-lírico” do poeta.
Cavaliere35 aponta que há uma espécie de simbiose entre artistas e o pensamento
filosófico deste período que pode ser expressa por meio de pontos em comum. São eles: a luta
de ambos contra o positivismo; a busca de novos valores do inacessível, do invisível, do
desconhecido e de outros mundos em oposição à banalidade da realidade; reinterpretação de
escritores da tradição ocidental e eslava; e o desejo de criar uma arte sintética que englobe as
diversas linguagens. “Desse procedimento mágico integrador advém, certamente, o culto
simbolista pela síntese das artes e o diálogo intertextual com o passado”36, que se propagam,
portanto, simultaneamente na música, pintura, poesia e teatro.
35 CAVALIERE, Arlete. Op. cit., 2009, p. 234-235. 36 Ibid.
42
O poeta Aleksandr Blok, por exemplo, em sua obra Balagántchik (A barraquinha da
feira), está “encharcado de paródia e sarcasmo, penetra de modo profundo na crítica aos temas
e procedimentos explorados pelo simbolismo russo e pelo próprio Blok, de cujo esgotamento
a mordacidade blokiana parece querer zombar”37. Para isso, o dramaturgo se apropria da
tradição popular e alegoriza a cena com “efeitos circenses”. Não foi à toa que Meierhold
encenou este texto em 1906, amparado em seus experimentos simbolistas “e, ao mesmo
tempo, também na sua própria transgressão, [...] anunciando as experiências estéticas do
teatro russo de vanguarda”38.
Sem dúvida, é no simbolismo que tem início o processo de aproximação entre o circo e
o teatro associados ao pensamento da síntese entre as artes proclamada por Wagner e
absorvida na Rússia. O olhar simbolista para as atividades do picadeiro irá motivar toda uma
próxima geração de poetas e artistas que tornará este fenômeno mais concreto e complexo.
A forte influência simbolista só se extingue na Rússia em meados de 1920 quando a sua
poesia se engaja cada vez mais no misticismo filosófico e perde, paulatinamente, a simpatia
entre os poetas mais jovens. No entanto, a partir da conjuntura social, cultural e política que
deu impulso ao seu surgimento, associado à atitude inovadora de sua prática e aos auxílios à
linguagem poética, o simbolismo pode ser identificado como a escola que exerceu uma
função importante no desenvolvimento do movimento modernista russo. As propostas
revolucionárias da vanguarda russa que segue não seriam as mesmas sem as reformas
simbolistas.
1.2. A bofetada dos cubo-futuristas no gosto do público
37 Ibid., p. 242. 38 Ibid., p. 241.
43
Na noite de 4 de fevereiro de 1912, depois do concerto de Rakhmáninov, carregado de
uma “insuportável chatura melodizada”, Vladímir Maiakóvski escapa para a saída do salão e,
em seguida, sai David Burliuk; juntos vão a “vadiar”.
Uma noite memorabilíssima. Conversa. Da chatura rakhmaninoviana, passamos à da Escola, e da escolar a toda chatura clássica. Em David havia a ira de um mestre que ultrapassara seus contemporâneos, em mim – o patético de um socialista, que conhecia o inevitável da queda das velharias. Nascera o futurismo russo39.
Assim Maiakóvski apresenta em sua autobiografia, intitulada Eu Mesmo, o surgimento
da vanguarda futurista russa. Depois de “noites de lírica”, nos fins de 1912, surge o famoso
manifesto coletivo Pochchótchina obchchéstvienomu vkússu (Uma bofetada no gosto do
público) que leva a assinatura do grupo de poetas: David Burliuk, Alekséi Krutchônikh,
Vielimir Khliébnikov e Vladímir Maiakóvski. Neste manifesto, as declarações expostas
relatam em termos muito extremos um forte protesto contra o simbolismo, além de desprezar
os clássicos e a velha ordem como, por exemplo, Puchkin, Tolstói e Dostoiévski, e também os
valores artísticos predominantes no passado. Vários debates e diversas polêmicas
acompanham a notícia de tal manifesto que foi seguido por outras publicações. O futurismo,
assim, adensava-se na Rússia, conquistando cada vez mais espaço e agregando figuras
fascinantes.
Embora preferissem o termo cunhado por Kliébnikov, budietliánie – a partir do futuro
do verbo ser (byt) – em referência ao artista como o homem do futuro, que enfatizava o
sentido existencial deste movimento40, este grupo de artistas e poetas assumia uma postura
desafiadora, rostos pintados e vestimentas extravagantes, exaltando o movimento e a
máquina. Maiakóvski, por exemplo, em seus trajes de “abelha”, usava uma blusa amarelada
com grandes listras pretas e a sua figura “parece assemelhar-se aos heróis desdenhosos e
39 MAIAKÓVSKI apud SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakóvski. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 93. 40 O termo “futuristy” (futuristas) tinha um caráter pejorativo e era utilizado por quem criticava o movimento, entretanto, apesar de não concordarem com tal denominação, os seus artistas e poetas acabaram por aceita-la e assumi-la.
44
tenebrosos dos filmes de seriados, dos cinedramas daqueles tempos” 41. Levando o futurismo
para o público, proclamavam que arte e vida deveriam desprender-se das convenções para
contaminar todas as camadas da cultura.
6. Vladimir Maiakóvski 7. David Burliuk
Para esta pesquisa, um dos dados mais relevantes é a característica singular da
vanguarda moderna russa em relação à apropriação da tradição em diálogo com a ruptura.
Entre os futuristas, em especial Maiakóvski, há uma reivindicação autêntica pela tradição
russa. Conforme dito anteriormente, a arte e a literatura eram cultivadas como lugar de
transformação e transcendência, bem como espaços comprometidos com seu povo,
pensamento e cultura. Além disso, as manifestações artísticas populares, em especial o circo,
habitam o imaginário dos artistas e poetas deste período e se expressarão concretamente em
suas práticas. Portanto, essas relações e experiências serão destrinchadas ao longo deste
estudo, tendo como suporte o pensamento russo da época.
Na Europa Ocidental, o ano de 1909 teve início com o abalo provocado pelo primeiro
manifesto futurista divulgado no jornal Le Figaro, em Paris, por seu escritor, o poeta italiano
Filippo Tommaso Marinetti. Ele contrapunha-se aos velhos valores artísticos, aos significados
cunhados nas Artes e nas Academias Literárias e propunha a abolição do culto ao passado. O
41 RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 22.
45
grito do poeta italiano glorificava a guerra, bem como o militarismo patriótico, em oposição
ao comércio das artes e a veneração da tradição. Marinetti foi influenciado por Alfred Jarry e
seu Ubu Rei apresentado no Théâtre de l’Ouevre de Lugné-Pöe, em Paris. Um espetáculo
absurdo e burlesco que tinha como modelo as farsas nas quais o poeta francês participara em
seus tempos de escola e as peças de marionetes produzidas por ele. Marinetti, que viveu em
Paris de 1893 a 1896, ao retornar à Itália percebe a convulsão política em que está
mergulhado seu país e inicia suas experimentações artísticas. Além do que, nota as
possibilidades de usar a agitação pública e a integração do ideário futurista de reformulação
artística junto à inquietação sobre a polêmica do nacionalismo e do colonialismo. Em algumas
cidades na Itália, os artistas estavam empenhados a favor de uma interferência contra a
Áustria. Marinetti organiza, assim, o primeiro Sarau Futurista na cidade de Trieste em 12 de
janeiro de 1910, ponto estratégico no conflito entre Itália e Áustria.
A modernidade urbana, para os futuristas italianos, é o espaço em que se encontra o
ideal de beleza: o poste com luz elétrica e o automóvel são respectivamente o símbolo e a
expressão poética da nova época. A cidade moderna é encarada como um organismo
mecânico e elétrico, e é nela que está toda a potência para aniquilar o velho e construir o
futuro, com toda a brutalidade das guerras e revoluções que alteraram a História. O
nacionalismo imperialista, o militarismo, o ódio ao passado, a exaltação da violência e da
guerra somados ao encanto pela modernidade, então, são fatores importantes para o progresso
social e refletem seu universo ideológico.
Os futuristas na Itália elaboram diversos manifestos entre 1910 e 1913 acerca das
diferentes modalidades artísticas, assim, uma de suas contribuições mais significativas foi a
utilização das atividades cênicas como meio objetivo de aproximar o público de suas ideias.
Nesse contexto, Marinetti impõe ao teatro a tarefa de orientar-se por meio da originalidade e
inovação.
46
O enaltecimento do teatro de variedades sustentava-se, principalmente, pela mistura em
uma mesma forma cênica, de diversas manifestações: cinema, dança, música, acrobacia e
esquetes de palhaço. No entanto, há outros fatores igualmente importantes como a não
existência de um roteiro pré-estabelecido, a constante participação do espectador, as
simultaneidades da ação e a fácil compreensão dos acontecimentos e problemas políticos.
Nesse sentido, esta forma de cabaré esteve associada à nova estética das cidades modernas de
ritmo frenético; assim, como declara no Manifesto do Teatro de Variedades:
O teatro de variedades oferece uma maior limpeza dentre todos os espetáculos, por seu dinamismo de forma e de cor (movimentos simultâneos de malabaristas, bailarinas e ginastas, tendas multicoloridas, piruetas de dançarinos que trotam sobre a ponta dos pés). Com seu ritmo de dança acelerada e arrebatadora, o Teatro de Variedades arranca, por força de seu torpor as almas mais lentas e as obriga a correr e a saltar42.
O resultado não será visível apenas na representação, mas também no cotidiano e nas
atividades destes artistas e poetas, por meio do caráter ruidoso ditado pelo movimento, em
atitude de choque e diálogo com o público. Sendo assim, o emprego desses elementos
impregnará fortemente as peças do Teatro Sintético, proposto por Marinetti a partir de 1915.
Como explica o manifesto, o termo “Sintético”, “quer dizer, brevíssimo. Comprimir em
poucos minutos, em poucas palavras e em poucos gestos inumeráveis situações, sentimentos,
ideias, sensações, fatos e símbolos”43. A intenção é apresentar a velocidade e a sensibilidade
lacônica futurista, ao jogar com as convenções teatrais em associação com as outras
disciplinas artísticas, arrancando os espectadores do caráter passivo típico do teatro realista.
Depois das experiências realizadas pelo Teatro Sintético, há um esgotamento das
tendências inovadoras do futurismo italiano, “as invenções sequentes seriam basicamente
novas combinações que teriam como fundamento este teatro anterior e as criações essenciais
das outras áreas, como o dinamismo plástico e a arte do rumor, além, evidentemente, do
42 Cf. MARINETTI, Filippo T. El teatro de Variedades (1913). In: SANCHÉZ, op. cit., p. 116. 43 Cf. CORRA, Emilio S. B. e MARINETTI. El Teatro Futurista Sintético (1915). Ibidem, p. 122.
47
paroliberismo”44. A companhia do Teatro da Surpresa, projetada em 1921, por exemplo, tinha
à frente o ator e empresário Rodolfo De Angelis e contava com Marinetti e Francesco
Cangiulo – estes dois últimos escrevem o manifesto O Teatro da Surpresa –, além de quatro
atrizes, três atores, uma criança, dois dançarinos, um acrobata e um cachorro. Este teatro
pretendia oferecer uma demasiada importância ao elemento “surpresa” cuja relevância para as
artes era fundamental, expondo em cena uma sequência de acontecimentos imprevisíveis com
o objetivo de provocar no público a risada, o estupor e as vaias. Para isso, seus fundadores
propõem a combinação do Teatro Sintético, declamações dinâmicas, danças, poemas,
discussões musicais, “além de toda a fisicofolia de um café-concerto futurista, com
participação de ginastas, atletas, ilusionistas, excêntricos, prestidigitadores”45.
Existem diversas semelhanças e aproximações entre os futuristas da Itália e os da
Rússia, especificamente. No campo das artes dramáticas, nota-se a apropriação do sentido de
teatralidade e a conjugação das artes ditas “menores” em cena. Mas que fique claro que as
atividades poéticas, o programa estético e o ideal político dos futuristas russos não seguem o
modelo italiano. Humphreys46 alerta que o termo “futurismo” na Rússia deve ser utilizado
com cautela, visto que a questão do intercâmbio cultural é particularmente importante, pois
envolve o problema mais amplo de “Oriente” e “Ocidente”, de “oriental” e “ocidental”. Sendo
assim, uma das formas como os futuristas russos e outros vanguardistas de Moscou e São
Petersburgo, os dois principais centros artísticos, encaravam seu engajamento no modernismo
e na modernidade foi o estabelecimento de um compromisso forte com o conceito de “Rússia”
e de sua própria língua, o que torna impossível a simples reação ou imitação pura e ingênua
das normas e contornos do futurismo italiano.
44 GARCIA, Silvana. As trombetas de Jericó: teatro das vanguardas históricas. São Paulo: Hucitec, 1997, p. 39. 45 Ibid., p. 39. 46 HUMPHREYS, Richard. Futurismo. Tradução: Luiz Antonio Araújo. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 58.
48
Ao desembarcar na cidade de Moscou, em 1914, Marinetti, sob uma grande publicidade,
insulta os eventos públicos, Tolstói, Kremlin e a arte russa. Se por um lado a reação do grande
público foi de entusiasmo pelas ideias do futurista italiano, por outro, alguns artistas
manifestaram uma grande hostilidade. O tom dessa resistência pode ser visto em algumas
palavras redigidas pelos escritores russos Velimir Khliébnikov e Benedikt Livshits, antes de
uma das palestras de Marinetti: “Hoje, alguns nativos e a colônia italiana às margens do Neva
[...] prostram-se diante de Marinetti, traindo os primeiros passos da arte russa no caminho da
liberdade e da honra e colocando o nobre pescoço da Ásia sob o jugo da Europa”47.
Seria um verdadeiro equívoco afirmar que não houve influência e diálogos entre o
futurismo italiano e o futurismo na Rússia. De certa maneira, a difusão das teorias futuristas
foi acatada neste país com grande rapidez desde a publicação, e tradução para o russo, do
Primeiro Manifesto Futurista de Marinetti em 1909. No entanto, o líder futurista italiano não
conseguiu compreender o complexo caráter altamente criativo da vanguarda russa, nem a
natureza singular do seu pensamento e cultura, entre as revoluções de 1905 e 1917. O sentido
de nação dos artistas russos era estranho aos vizinhos ocidentais, pois retratava as
especificidades dos seus elementos culturais e de uma fase de particular desenvolvimento
social e industrial. Além do que, na prática poética, o tom de paganismo eslavo nos versos de
Khlebnikov e a aversão pela guerra, presente igualmente em Maiakóvski, acentua o anti-
imperialismo e incita uma revolta social. Desse modo, o resultado era uma concepção da
modernidade, de futuro e do novo, muito diferente do pensamento italiano, e tudo isso estava
intimamente ligado às atividades dos artistas e poetas russos.
Se os futuristas na Rússia tinham um desprezo intenso pelo passado, tanto do regime
czarista como das linguagens e instituições artísticas e literárias, tal postura não se aplica em
relação às tradições populares. Há na vanguarda um pensamento de reprocessamento da
47 KHLEBNIKOV e LIVSHITS apud HUMPHREYS. Op. cit., p. 59.
49
cultura popular, entremeada de “primitivismos” e temas asiáticos, contaminada pelo
paganismo eslavo, recuperando os ícones religiosos e ortodoxos, pictogramas e arte infantil,
típicas de um mundo proletário e rural. Poetas e pintores compartilhavam de um gosto pela
temática arcaica, oferecendo constantemente referências de grande entusiasmo ao primitivo.
Embora o grupo futurista na Rússia tenha se organizado na base de grande repúdio ao
acúmulo de misticismo e filosofia do simbolismo, nota-se que as características citadas acima
também estão presentes no ideário do futurismo organizado nos fins do século XIX sendo,
inclusive, um dos fatores que diferencia os futuristas russos dos seus correlativos italianos.
Em confluência a tais elementos encontra-se o violento influxo do cubismo, que abalou
o conjunto da arte contemporânea ao considerar a “forma” como questão artística básica. A
cultura russa, do início do século XX, buscava manter-se em contato com as tendências dos
vizinhos ocidentais e, assim, em 1908-1909 foram organizadas exposições de importantes
pintores contemporâneos europeus, o que permitiu a apropriação dos princípios e técnicas
cubistas no país. É imprescindível mencionar também a forte ligação entre futuristas russos e
a pintura, ao contrário da inclinação dos simbolistas à música. A própria formação das
lideranças da vanguarda russa moderna demonstra uma “vivência pictórica” significativa:
Maiakóvski, por exemplo, “estudara com os pintores Jukóvski e Kélin, antes de ingressar na
mesma Escola, e depois desenharia cartazes, ilustrações e capas de seus livros, figurinos para
peças, etc.”48. Tudo isso legitima o grito inicial dos futuristas: o desejo da revolução da forma,
que na literatura, por exemplo, era o próprio tema e o ponto de desenvolvimento.
O futurismo russo se articulou em dois grupos principais: o ego-futurismo e o cubo-
futurismo. O primeiro foi fundado em novembro de 1911 por Ígor Sievieriánin e “retomava
fórmulas decadentistas já esgotadas”49, sua cultura poética baseava-se nos moldes do fim do
século XIX. O fundador do ego-futurismo era conhecido por seus poemas pretensiosos e
48 SCHNAIDERMAN. Op. cit., p. 27 e 28. 49 RIPPELINO, Op.cit., p. 14.
50
afetados, cheios de palavras estrangeiras, “de expressões do ‘beau monde’, de termos de
perfumaria”50. Apesar de poucos elementos em comum com o futurismo, os versos de
Sievieriánin e seus seguidores possuem uma musicalidade sugestiva e hipnótica,
especialmente quando se refere ao ritmo dos automóveis, influenciando diretamente poetas do
seu tempo, inclusive Maiakóvski.
Por outro lado, o cubismo foi assimilado tão radicalmente pela vanguarda russa que a
própria denominação do movimento ficou conhecida como cubo-futurismo. A técnica de
decomposição plástica cubista, que oferece outras percepções e pontos de vista ao fragmentar
as formas, mantendo o equilíbrio no espaço, foi incorporada e harmonizada à excitação
cinética do futurismo através dos pintores russos desse período. Logo, a pintura é tomada
como modelo e oferece à poesia “uma escabrosa sequência de torções e desmoronamentos”51.
Khliébnikov declara em 1912: “Nós queremos que a palavra siga audaciosamente as pegadas
da pintura”52.
Em oposição à concepção de beleza, de vocalismo, de liquidez, da poesia culta, dos
contornos do verso, da teoria da inspiração e do conceito do poeta gênio, tão marcantes dos
simbolistas, “o ponto principal da estética futurista foi a teoria da palavra em seu aspecto
sonoro, como único material e tema da poesia”53. A pesquisa linguística valorizava o estudo
do som e do seu padrão sonoro para a reformulação radical do poema. Carregada de
neologismos, por meio da análise e da decomposição das palavras, e distanciando-se das
metáforas do simbolismo, os cubo-futuristas cunham a “linguagem transracional”, o zaúmniki,
cuja prática
se dá na concretude do mundo da produção. Daí receber privilégio o ritmo: a poesia acompanha o ritmo frenético das cidades e das fábricas. Contudo, o ritmo e a
50 Ibid. 51 Ibid., p. 33. 52 Ibid., p. 32. 53 PORMORSKA. Op. cit., p. 102.
51
sonoridade não obedecem a padrões de extrema abstração, pois para os cubo-futuristas, não há desconexão entre os problemas formais do som e o seu sentido54.
Verifica-se que não há absolutamente oposição entre o conteúdo e a forma, já que
ambos estão no mesmo patamar. Dessa maneira, o conceito de zaúm não está limitado à pura
experiência poética, excluindo qualquer intenção social, e tampouco se caracteriza como uma
língua sem sentido. É por meio desta zona de criatividade “transracional” que os futuristas
russos levam ao máximo as experiências sonoras e, assim, a poesia impõe violentamente sua
linguagem, dotada de força expressiva para aniquilar os valores anteriores.
Nas considerações finais sobre a análise literária e a literatura produzida nesse período,
Pomorska55 afirma que o simbolismo russo prepara o caminho para a orientação sonora do
futurismo. O primeiro investe na aproximação com a música – “poesia como música” – e nas
nuances dos versos, auxiliando a destruição da “poesia como pensamento em imagens”; os
futuristas, por sua vez, descartam-se da carga mítica e subjetiva dos seus antecessores e
colocam em seu lugar uma abordagem poderosamente técnica.
8. Vladímir Maiakóvski, 1918
54 BOLOGNESI, Mario Fernando. Tragédia: uma alegoria da alienação. 1987. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 89. 55 POMORSKA. Op. cit., p. 163.
52
O futurismo russo deixa marcas em toda obra de Maiakóvski, que utiliza os princípios
deste movimento durante sua trajetória, enfatizando o vínculo entre o poeta e a vanguarda do
seu país56. As relações entre os dois são extensas e bastante complexas, não sendo a pretensão
desta pesquisa tal análise. No entanto, é necessário ater o olhar sobre certos aspectos da sua
poesia e nos procedimentos artísticos que irão modificar a cena teatral russa até por volta do
ano de 1921, ano de estreia da segunda versão de Mistério-Bufo, um marco na cena do
período e que é objeto de estudo desta investigação.
Maiakóvski investe na criatividade com o jogo de palavras e o investimento exaustivo
na renovação da linguagem poética, com o objetivo de ultrapassar a palavra em si própria e
aplicá-las ao contexto social de seu tempo. Sendo assim, no ambiente caótico em que a Rússia
estava mergulhada, a sua poesia expressou potencialmente os temas revolucionários, algo que,
entretanto, o diferencia dos outros poetas zaúmniki para quem o material linguístico era tema
propriamente dito. Desse modo, o universo poético proposto por Maiakóvski apresenta
elementos sobre arte e revolução, revolta e fé na vida, alternando os aspectos trágicos e
cômicos e visando a expressividade. Os elementos que compõem a sua poesia ganham
proporções deformadas, dilatando-se, e “o que mais encanta nas líricas de Maiakóvski é a
vertiginosa abundância de imagens, que parecem números extravagantes, truques de
prestidigitador. [...] Agitados por choques e contorções, os versos parecem encartuchar-se
como por um espasmo”57.
Ele emprega exaustivamente em seus poemas a técnica cubista da imagem deslocada,
para possibilitar outras percepções do objeto a partir da sua visualização sobre outras
perspectivas; e, sobretudo, realiza experiências com as palavras, rimas e versos, explorando
incessantemente as possibilidades da língua russa, desautomatizando-a. Para isso introduz a
linguagem das ruas, com sua riqueza e criatividade, e também, elementos estranhos e
56 Ibid., p. 157. 57 Idem, ibidem, p. 29.
53
inusitados para o poema visando certo estranhamento. O seu desejo é tornar a percepção do
fenômeno mais nítido e reinventar a palavra tornando-a materialmente tangível, como
queriam os futuristas. “Unicamente nós somos a face do nosso tempo”, proclama Maiakóvski
em A bofetada no gosto do público58, demonstrando seu ideal de colocar a poesia a serviço do
seu povo paralelamente ao questionamento do poeta na sociedade.
Eu à poesia só permito uma forma: concisão, precisão das fórmulas matemáticas. Às parlengas poéticas estou acostumado, Eu ainda falo versos e não fatos. Porém se eu falo “A” este “a” é uma trombeta-alarma para a humanidade Se eu falo “B” é uma nova bomba na batalha do homem.59
Aspectos importantes sobre as faces de Maiakóvski podem ser retirados do poema De V
Internacional. Bolognesi60 chama atenção ao fato do poeta-operário trabalhar as palavras com
a precisão das fórmulas científicas, como se quisesse fazer confluir à atividade poética as
conquistas das revoluções científicas da virada do século XIX para o XX61. Por outro lado, o
poema exemplifica a penetração da poesia no seio social, proclamando uma nova maneira de
viver, uma arte e uma ciência nova, que complementem as mudanças iniciadas pela
Revolução. Outro elemento que ainda pode ser observado, nas partes finais do poema citado
acima, é a utilização da poesia como arma para a luta revolucionária.
Verifica-se que a intenção de Maiakóvski, de modo geral, é a apropriação ampla dos
procedimentos futuristas para a construção de uma arte socialista que dificilmente poderia ser 58 In: TALES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro; apresentações dos principais poemas metalingüísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Pretópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 165 e 166. 59 MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Augusto Campos. São Paulo Perspectiva, 2008, p. 94. 60 BOLOGNESI, Op. cit., 1987, p. 85. 61 Desde a segunda metade do século XIX, arte e ciência se aproximam cada vez mais. Para mais detalhes sobre isso, bem como sobre a repercussão no campo artístico, consultar: Ibid., p. 86-88.
54
produzida com o uso dos antigos procedimentos. Por meio da “racionalização do irracional”62,
o poeta acreditava “que a coincidência entre arte revolucionária e estado revolucionário é tão
natural e harmoniosa como um simples acorde musical”63.
Já no campo das artes cênicas, em torno de 1910, houve um forte empreendimento em
rejeição à literatura, principalmente a clássica, por parte de seus inovadores. Na verdade,
inicia-se um grande repúdio, em geral, à palavra escrita. As diversas teorias que surgem
pretendem justificar a libertação do ator em relação ao texto. O teatro da época aspirava
libertar-se das palavras, logo, as ações mudas eram atrativas, pois ofereciam autonomia e
valorizavam as especificidades da expressão teatral. O que se nota, na cena pré-revolucionária
russa, é que a teoria acompanhou a prática.
A vanguarda teatral russa busca elevar um elemento-chave que guiará as suas pesquisas
cênicas do período, e a mesma que Marinetti almejava incessantemente em suas
experimentações cênicas futurista: a teatralidade. O retorno a ela parecia ser a única saída para
o teatro na Rússia e sua libertação de todas as amarras da cena realista-naturalista. Contra o
culto da verossimilhança e do psicologismo, nasce uma corrente que proclama a primazia
teatral em si: Nicolai Evreinov, Aleksander Taírov e Vsévolod Meierhold são nomes
relevantes para cena nos anos de 1910.
Nicolai Evreinov (1879-1953) dedica-se a encontrar o que julga ser essencial às artes
cênicas: os verdadeiros princípios da teatralidade, que deveria estar intimamente entrelaçada
com a vida social. Para ele era imprescindível vincular as ideias teatrais nas expressões mais
significativas da sua história, ou seja, na época em que “elas se caracterizaram justamente por
se apresentar como puro jogo cênico de comediantes, sem qualquer tentativa de mimeses
mecânica ou cópia naturalista da vida”64. Em seu programa concebido para um Teatro Antigo,
por exemplo, propunha o estudo teórico e prático sobre “todas as épocas particularmente 62 JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 22. 63 POMORSKA. Op. cit., p. 157. 64 GUINSBURB, J. Op. cit., p. 130.
55
teatrais”, voltando-se no primeiro momento para o teatro medieval francês, seguindo para o
teatro espanhol do Século de Ouro, depois para a Commedia dell’Arte, passando do teatro de
Shakespeare ao teatro popular alemão.
Guinsburg65 afirma que o Teatro Antigo, além de atualizar as soluções e realizações
cênicas de outros períodos, procurou fazê-lo tendo em vista o que era, aos olhos de seus
inspiradores, o fator primordial do teatro, o jogo do ator. Evreinov pretendia devolver a
liberdade da atuação e da expressão, vital ao comediante, a partir do restabelecimento dos
meios de comunicação entre palco e plateia, por meio da eliminação de obstáculos materiais
do teatro. O objetivo era restituir ao espectador a participação efetiva e espontânea da
representação e, assim, “o Teatro Antigo não foi um museu do teatro, mas um museu da
teatralidade e durou o suficiente para evidenciar que a essência da teatralidade está na relação
entre a cena e o espectador, e o espectador e a cena”66.
Na série dedicada ao teatro francês medieval, o drama litúrgico Trois Mages teve
prólogo de Evreinov. Já no ciclo de encenações dedicado ao Século de Ouro Espanhol, ele
encenou as obras El Purgatorio de San Patricio, de Calderón; El Gran Duque de Moscovia y
Emperador Perseguido e Fuente Ovejuna, ambas de Lope de Vega; e Marta la Piedosa, de
Tirso de Molina67.
O ator e diretor russo Aleksander Taírov (1885-1950) se esforçou para preservar seu
teatro como um lugar de experimentação cênica. Para isso, ele parte do pressuposto de que
arte e vida são nitidamente distintas, “pois embora possam coincidir aqui ou ali, cada qual
postula um tipo específico de verdade e, na maioria das vezes, ‘o que é verdade na vida não o
é na arte, e a verdade artística soa falsa na vida’.”68
65 Ibid., p. 133. 66 EVREINOV, Nicolás. El teatro en la vida. Buenos Aires: Ediciones Leviatan, 1956, p. 10. 67 Mais detalhes em: EVREINOV, N. Op. cit. 68 GUINSBURG. Op. cit., p. 154.
56
Para Sanchéz69, a intenção de Taírov é apartar-se tanto do teatro naturalista (dominado
pela literatura) como do “teatro de estilo” (dominado pela pintura) ao propor uma via
intermediária e mostrando seu interesse em localizar o ator no centro da criação cênica, longe
tanto do psicologismo como do mecanicismo da estilização. Não há sentido, para o diretor
russo, em submeter a criação dramática à mimese realista nem ao puro formalismo, isto
significa que a preocupação com a forma não implica a rejeição da emoção no palco.
A arte teatral é seriamente afetada em seu âmago se a cena se converte em sério painel para o exercício de um pincel diretorial de composições plásticas. [...] a força vital da operação artística no teatro é desviada da fonte própria e o trabalho do ator, em sua função central na metamorfose cênica, sofre um processo de esvaziamento e estiolamento, que lhe consome a dinamicidade e lhe achata a corporeidade, convertendo a figuração em “mancha pictórica” de um arranjo espetacular, de dominante cenografia, cujo elemento básico de construção teatral é o do efeito de exposição decorativa e não da representação dramática70.
A trajetória artística de Taírov é rica e complexa, no entanto, cabe aqui ressaltar as suas
tentativas de uma prática teatral fundamentada no estilo sintético. Para ele o ator deveria ser
um bailarino, palhaço, cantor e mímico. A sua pesquisa teatral se baseava no âmbito das
expressões artísticas populares, da Commedia dell’Arte e dos mistérios medievais. Para
Taírov, “a síntese na qual a teatralidade é restaurada de um modo pleno e orgânico [...], só se
efetua quando a caixa cênica dá relevo à criatividade do comediante, no que ele tem de
espontâneo como espírito imaginante e controlado como corpo atuante. [...] um virtuose do
corpo, da voz e da elocução.”71.
Em Moscou, no ano de 1914, Taírov prova tais procedimentos no espetáculo Sakuntala,
dramaturgia hindu, escrita no século V a.C., adaptada pelo simbolista russo Balmont. Em
1915, ele dá continuidade às suas experimentações com a montagem de As Bodas de Fígaro,
de Beaumarchais. Esta última, como reconhecia o próprio diretor, “carregava o selo da
69 SANCHÉZ, J. Op. cit., p. 314. 70 GUINSBURG. Op. cit., p. 155-156. 71 Ibid., p.158.
57
‘estilização’, sob cujo verniz era difícil distinguir os lineamentos de novos ritmos e formas
cênicas que haviam sido incorporadas à encenação em vários lugares”72.
De um lado, Evreinov afirma que o teatro em si é pura convenção, desde a decoração do
edifício até o público, propondo a teatralização do teatro, em uma cena essencialmente
convencional, sugerida “pela mímica, pelos gestos e pelo movimento”73. Taírov procura a
“teatralidade pura”, mais preocupado com o estético do que com o cultural na atuação
sintética do ator, “cujo ‘gesto emotivo’, materialização do virtuosismo mímico, rítmico,
acrobático, vocal, etc., e da fantasia criadora, é concebido coreograficamente, como no
balé”74. No entanto, como será visto nos capítulos seguintes, Vsévolod Meierhold, “o Picasso
do palco”75, proclama a teatralidade, recupera a tradição teatral e coloca o movimento cênico
em primeiro plano, utilizando tais procedimentos como “meios capazes de expressar a
emoção em formas coletivamente apreensíveis, isto é, comunicantes e funcionais do ponto de
vista político e ideológico”.76
No entanto, a teatralidade não era apenas um desejo de diretores e encenadores. Em
Teatro, Cine e Futurismo (1913)77, Maiakóvski declara: “Está claro que antes da nossa
chegada, o teatro não existia enquanto arte independente. Nota-se acaso na história as marcas
de tal existência? Sem dúvida!” E para comprovar refere-se ao teatro de Shakespeare que
expunha as convenções cênicas e exaltava a teatralidade. Mais adiante declara a repulsa ao
teatro que se “dedica a representação fotográfica da vida”78 e exemplifica pela arte do ator
shakespeareano, “no qual os movimentos mais poderosos da alma não se exprimem mediante
palavras, mas sim mediante a entonação e atitudes livres e rítmicas. Não importa que as
palavras não tivessem sentido preciso ou que as atitudes fossem improvisadas”. Nesse 72 TAÍROV apud GUINSBURG. Op. cit., p. 166. 73 EVREINOV, N. Op.cit., p. 45. 74 GUINSBURG. Op. cit., p. 212. 75 Ibid. 76 Ibid. 77 Cf. MAIAKÓVSKI, V. Escritos sobre Teatro. In: SANCHÉZ, op. cit., p. 279-282. 78 No caso ao teatro naturalista cuja expressão mais significativa era representada pelo Teatro de Arte de Moscou, sob a direção de Constantin Stanislávski.
58
contexto, a síntese entre o moderno e o tradicional é fator essencial nas peças de Maiakóvski.
Para aniquilar qualquer tentativa de psicologismos na cena, o poeta explora ao máximo as
formas do teatro da tradição popular: o circo, as manifestações dos barracões de feira, o
vaudeville, o teatro de variedades etc.
Schnaiderman79 ao discutir as relações entre Maiakóvski e a tradição refere-se de
imediato à contradição existente entre o futurista, que reagia com furor aos clássicos, que
pregava a destruição dos museus e pinacotecas, e o respeito que devotava à manifestação
popular, à arte russa tradicional, etc. No entanto, não se deve diminuir a atitude iconoclasta do
poeta que erguia seu sarcasmo e rebeldia necessária e fecunda contra as artes dos salões e
contra a glorificação do clássico na qualidade de modelos obrigatórios, mostrando o que havia
de frágil e ultrapassado neles.
Nas tentativas de apropriação do novo, tendo como baluarte as experimentações do
passado, além de esbofetear o chamado bom senso burguês e depreciar o realismo, temas
característicos dos cubo-futuristas; por volta da década de 1910, Maiakóvski adota também o
ideário revolucionário dos proletários e camponeses. E tal posição acentua-se principalmente
com a Revolução de 1917, quando seus temas voltam-se para a situação da Rússia, do
operário e de aspectos essenciais do socialismo: a revolução política e social do período
estava refletida, assim, na revolução das artes, em especial, a teatral. Em suas obras cênicas
isto se expressa por meio da ação e do espetáculo buscando a totalidade da vida,
fundamentando-se nos princípios da teatralidade.
É explícita a clara e vasta aproximação entre este conjunto de ideias e os experimentos
cênicos de Marinetti. Ambos os futurismos, o russo e o italiano, afirmam a necessidade de
aproximar o teatro do music hall, das variedades e feiras, bem como do circo – seus palhaços,
seus acrobatas, trapezistas e funâmbulos que fascinam e provocam o público com seus truques
79 SCHNAIDERMAN, B. Op. cit., p. 47.
59
e maravilhas. Além disso, o princípio wagneriano de obra de arte total também é recuperado
nesse momento: a utilização de múltiplas linguagens na cena futurista, pela colaboração
independente de diferentes artistas, gera grandes níveis de radicalismo cênico.
Na Rússia, a excitação da vanguarda pelas atividades do picadeiro encontra seus
fundamentos no futurismo italiano e nas ideias revolucionárias, já que estas estimularam as
transformações do espetáculo, “quer seja porque colocou a política como uma necessidade
cotidiana de debate, compreensão e superação, quer seja porque acirrou os contrastes entre as
tarefas práticas, no âmbito do social e do econômico, e as práticas artísticas diversas”80. No
entanto, toda a efervescente e complexa aproximação entre o circo e o teatro está intimamente
conectada à ideia de “um homem novo” dotado de vigor físico que iria elevar-se da terra, em
ascensão.
1.3. À imagem e semelhança do homem russo: o acrobata.
O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem, uma corda sobre o abismo. É o perigo de transpô-lo, o perigo de estar a caminho, o perigo de olhar para trás, o perigo de tremer e parar. O que há de grande, no homem, é ser parte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso. [...] Amo aqueles que, para ser ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem.
Friedrich Nietzsche81
Em oposição ao “homem supérfluo”, figura característica do alienado e estagnado
intelectual da nobreza fundiária personificado pela literatura russa, encontra-se o retrato do
“novo homem”, dotado de grande força moral, dedicado a uma prática em benefício social. 80 BOLOGNESI, Mário Fernando. As cidades de Maiakóvski. In: Urdimentos Revista de Estudo Pós-Graduados em Artes Cênicas. Florianópolis: UDESC/CEART, 2004, v. 1, n. 6, p. 41. 81 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 38-39.
60
Assim, o ideal de caráter deste personagem todo-poderoso é composto pela “mobilização dos
seus recursos pessoais no cumprimento de um único objetivo, sempre público, a rejeição sem
questionamento das atividades privadas do homem comum, e a disposição de suportar
qualquer sacrifício”82. Tal homem novo e revolucionário contaminou o pensamento do início
do século XX e influenciou diversas manifestações artísticas e culturais do período.
Com o advento da Revolução de 1917 e o estabelecimento do poder socialista soviético,
em associação a outros elementos, como o Proletkult83, o ideal de homem, como potência
revolucionária estabelecida, torna-se símbolo da Revolução. As experiências artísticas da
década de 1920 exaltam ao máximo a força e eficácia deste sujeito que supera o poder das
máquinas. Tudo isso se materializa no conjunto de saltos, flexões, voos, simulações, vigor
físico dos acrobatas, trapezistas e circenses que eram verdadeiras fontes para artistas e
intelectuais que expressavam o pensamento da época.
O apelo ao circo ocorre precisamente porque ele goza da licença de perturbar e parodiar
os gêneros convencionais por meio das ações vertiginosas, das feéricas acrobacias e
caracteriza um tipo de espetáculo, semelhante às exibições e debates da vanguarda futurista:
que poderiam causar surpresa ou entristecer, entreter ou alienar, baseando-se em seu eclético
arsenal de instrumentos e narrativas de caráter improvisacional. O circo e outras formas de
“magia” desfrutavam uma ampla popularidade na Rússia no início do XX, como, por
exemplo: a trupe de circo Ciniselli, os palhaços Anatolii Durov e Ivan Kozlov, além do
mágico Leoni cujo pseudônimo era V. Larionov84.
Na Rússia dos anos de 1910, novas formas de entretenimento em massa se propagaram,
incluindo o circo profissional – que frequentemente recebia italianos, turcos e ciganos – e a
82 Cf. MATHEWSON, Rufus apud FRANK. A busca de um herói positivo. Op. cit., p. 84. 83 Contração de Cultura Proletária, em russo: Proletarskaia Kultura. Organização de origem independente e grande base popular, estabelecida em 1917, que deposita seu interesse na proposta de traçar uma cultura revolucionária para a massa de operários. 84 Para orientar uma investigação pormenorizada sobre o trabalho destes e de outros artistas circenses que tiveram repercussão neste período, consultar: LITÓVSKI, A. (org.). El Circo Soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975.
61
indústria cinematográfica85. Assim, tais mudanças forneceram para o público um conjunto de
recriações e “ilusões”86, o que tornou cada vez mais complexo o vínculo entre a “magia” e as
possibilidades de avanço tecnológico. Na verdade, a realização daquela “fábrica de sonhos”87,
antes e depois de 1900, ocorre paralelamente ao desenvolvimento de outros e pragmáticos
encantos, como o telefone, o fonógrafo, o refrigerador a gás e demais aparelhos mecânicos e
eletrônicos que “realizavam milagres”. Estas invenções foram apropriadas imediatamente
pelo circo no início do século XX88.
Alguns “truques” – levitações, decapitações, serrar uma mulher ao meio, figurinos,
pintura de rosto, ventriloquismo, adivinhações – puderam ser associados não apenas ao circo
russo, mas também ao movimento modernista, e paralelismos podem ser observados entre tais
elementos. As roupas extravagantes e faces pintadas dos palhaços estão refletidas nas pinturas
de rosto de David Burliuk e outros cubo-futuristas; a cartola e as vestes coloridas do palhaço
Anatolii Durov89 são elogiadas e imitadas por Burliuk e Maiakóvski; o divertido poema de
Kliébnikov, Zakliatie smekhom (Encantação pelo riso, 191090), pode ter inspirado a leitura
“Sobre o riso”, texto proferido por Durov para público de circo. Tudo isso sugere uma grande
simbiose pela qual os futuristas russos, por meio da renovação da linguagem verbal e das artes
visuais, podem ter se apropriado da arte dos ventríloquos, por exemplo, para elaborar os
conceitos de deslocamento e recriação das palavras.
85 BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s Silver Age. Londres: Thames and Hudson, 2008, p. 284-286. 86 Em russo, a palavra “mágico” equivale a illiuzionist, os primeiros cinemas em russo se chamavam illiuziony. 87 Ibid., p. 286. 88 Ibid. 89 A família Durov, na Rússia, é formada por palhaços satíricos e homens de intensa atividade social. Seus artistas inovadores transformaram a arte circense e ajudaram a elevar a qualidade do circo russo. Buscaram em seus números novos enredos e novas formas interpretativas. Anatolii Durov, palhaço, domador, acrobata, prestidigitador e “um magnífico recitador de monólogos” foi um dos principais agentes para estas mudanças. Ver mais em: DMÍTRIEV, Y. Los Durov. In: LITÓVSKI, A. (Org.). Op. cit., p. 7-19. 90 In: Poesia Moderna Russa. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2009, p.118 e 119.
62
9. Anatolli Durov, palhaço e domador de animais
Um dado interessante é que na Rússia, em 1912, o pintor Ivan Miasoedov, filho do
renomado pintor realista do século XIX, Grigorii Miasoedov, publica o Manifesto do
Nudismo. Nele declara que o corpo nu era superior ao corpo vestido e, assim, o pintor tinha
numerosas fotografias nudistas dele próprio. Depois da Revolução de Outubro, o nudismo
russo recebeu uma justificativa ideológica quando, em 1922, os primeiros nudistas soviéticos
organizaram a “Semana do Corpo Nu”, em Moscou, declarando que o nudismo era a prática
mais democrática de se vestir, pois excluía qualquer possibilidade de hierarquia social
determinada pelas vestimentas. Alguns artistas aplicaram em suas atividades tais costumes e
fizeram emergir experimentos físicos para o novo século. O culto ao fisiculturismo, aos
acrobatas e às artes marciais espelhava-se nas obras de pintores como Kazimir Malévitch91
que retratava os robustos camponeses russos92.
A matriz dos números acrobáticos do circo, a sua matéria principal, é o corpo, o corpo
em risco, ou seja, “em desequilíbrio”93. A arte de se inserir na área do perigo pode ser
simbólico (no caso da queda da bola de um malabarista) ou, como acontece na maior parte das
vezes, real e vital. A vida de um trapezista, que se lança em movimentos vertiginosos do 91 Kazimir Malévitch (1878-1935), pintor nascido em Kiev, Ucrânia. Muda-se para Moscou em 1904 onde começa a Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura. Exerce importante influência no modernismo russo e colabora com os cubo-futuristas. Trabalha com Maiakóvski e Krutchônikh. Em 1913, desenha o cenário e o figurino para a ópera futurista Vitória sobre o Sol. Inspirado no cubismo é um dos inventores da arte não figurativa que, em 1915, chamava-se Suprematismo. A famosa tela Quadrado negro sobre fundo branco, pintada em 1913 e 1915, constitui uma radical ruptura com as atividades artísticas da época. 92 BOWLT. Op. cit., p. 292. 93 GOUDARD, Philippe. Estética do risco: do corpo sacrificado ao corpo abandonado. In: WALLON, Emmanuel (org). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 25.
63
trapézio no alto da cúpula do circo, é posta em jogo na cena e a iminência da morte não é
simbólica, mas uma possibilidade constante em todas as acrobacias que só se realiza a partir
da alteração do equilíbrio que impulsiona a ação do acrobata. Entende-se pela ideia do artista
em desequilíbrio:
Diante das diversidades de suas habilidades, o artista de circo se expõe deliberadamente ao desequilíbrio. Esse jogo entre o controle e a queda impõe que se corra o risco, tanto físico quanto estético. Ele exibe uma instabilidade dos corpos e dos objetos que remete a um modo de vida precário, mas também ao frágil estatuto da arte94.
No circo, a interpretação depende intimamente da potencialidade física do intérprete e
as proezas são o seu baluarte; assim sendo, suas características básicas estão pautadas na
realização de um ato supostamente impossível e na superação do natural. É nesse campo que
se delimita o extraordinário. Se no circo o efeito cênico está fundamentado no corpo humano,
a execução dessas ações inconcebíveis no cotidiano pauta-se em uma educação corporal de
apurado requinte técnico, visando afetar diretamente os sentidos dos espectadores. O intenso
regime de treinamento do acrobata para obtenção da força e da técnica capazes de transgredir
os limites físicos almeja a vertigem e assume o risco como princípio do circo.
Bolognesi95 chama atenção para o fato de que essas sensações, no espetáculo circense,
são experimentadas porque o desempenho artístico dos acrobatas não se dá por símbolos ou
metáforas. O sentido é oriundo do corpo e é encontrado na performance em si mesma, no
momento único de sua duração. A “representação” do artista, ao demonstrar e vivenciar em
público suas habilidades, não se remete a nenhuma realidade exterior e ausente.
Representação e vida fundem-se no mesmo ato e como espetáculo representa aquilo que são.
Tudo isso só é possível pela tensão gerada entre o equilíbrio e desequilíbrio provocados pelo
corpo acrobata.
94 WALLON, Emmanuel. Op. cit., p. 23. 95 BOLOGNESI, Mario Fernando. O circo civilizado. In: SIXTH INTERNATIONAL CONGRESS OF THE BRAZILIAN STUDIES ASSOCIATION, 2002, Georgia (EUA). Anais eletrônicos da BRASA VI. Atlanta: BRASA VI, 2002. Disponível em: <http://sitemason.vanderbilt.edu/files/cvBvB6/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf> Acesso em: 12 mai. 2010.
64
A transposição dos limites da condição humana associada à energia física, robustez,
intensidade e poder desenvolve a força, necessidade vital do corpo acrobata. Tais elementos
visam consolidar a regularidade da execução por meio da precisão, almejando a perfeição e a
segurança dos gestos. Com o domínio da técnica para a execução, o acrobata cria “a ilusão do
risco e a ilusão da experiência de superação da morte”96 e exerce sobre o público o fascínio e
vertigem tão aguardados. O circo cumpre, portanto, uma de suas funções: entreter e gerar
beleza, ao adotar, sobretudo, o corpo como centro e espetáculo.
As atividades circenses vinculavam-se às manifestações culturais e artísticas de tradição
popular e por ser uma arte que expõe os riscos e os limites humanos deixou marcas profundas
no imaginário do homem. Na Rússia, por intermédio do apoio do czar e por influência dos
espetáculos apresentados pelos moços de cavalaria franceses, fundou-se, em 1868, o primeiro
Circo que, em seu tempo, era um dos maiores e mais suntuosos. No século XIX o modelo de
circo fixo – não itinerante, por causa de todos os seus aparelhos, máquinas e operações
específicas – invade São Petersburgo e oferece às artes cênicas a reposição do corpo humano
como fator espetacular. No início do século XX, o espetáculo circense cumpria alguns dos
principais tópicos da luta poética da vanguarda modernista: abolição dos limites entre as
linguagens artísticas, a valorização da tradição e cultura popular, a afirmação de uma imagem
de homem que sobrepõe e vence as fronteiras do possível, como também a exaltação do
corpo. Após a Revolução de 1917, o circo é estatizado e passa por um período de conservação
e atualização. Adota-se o modelo de circo internacional, com representantes de diversas
famílias e artistas de países diferentes, o que proporciona uma expansão de mercado e a sua
valorização pela grande massa de espectadores97.
96 GUZZO, Marina Souza Lobo. Risco como estética, corpo como espetáculo. São Paulo: Annablume, 2009, p. 118. 97 COSTA, Eliene Benício Amâncio. Saltimbancos Urbanos: a influência do circo na renovação do teatro brasileiro nas décadas de 80 e 90. Tese de Doutorado (ECA-USP), 1999, p. 59-60. (v. I)
65
Não foi apenas privilégio do circo a irrupção deste homem poderoso, dotado de extremo
vigor físico: a cultura esportiva, por exemplo, desenvolveu-se a partir da Revolução.
Obviamente, tudo está aliado à perspectiva de um extremo rigor técnico, exaltado durante as
revoluções científicas do século XIX. No campo das artes, os Ballets Russos e as
transformações da dança expressam perfeitamente toda esta conjuntura.
Paralelamente ao movimento de decadência na França, o ballet na Rússia contou com o
apoio e patrocínio dos czares que incentivaram a vinda de coreógrafos e intérpretes franceses
e italianos, contribuindo para o grande desenvolvimento da dança. Rapidamente o gosto do
público ficou cada vez mais apurado, o que determinou também o grau de formação dos
artistas russos na Escola Imperial cujo curso para bailarinos era de dez anos em regime de
internato. Coube ao francês Marius Petipa (1818-1910) a concepção do repertório que
glorifica o ballet russo na segunda metade do século XIX, marcando o período de seu reinado.
O contexto histórico na Rússia favorecia tais mudanças, assim, os ballets russos adquiriram
prestígio político, pois eram exibidos com orgulho pelos czares como troféu da coroa.
Contudo, os ballets não eram uma simples diversão do império, eles também estavam
conectados à vida do povo, assim como acontecia com as outras artes e com a literatura.
Petipa esforçou-se ao máximo para desenvolver os aspectos técnicos da dança que exigiam
um impressionante padrão de execução, o que o levou a importar bailarinas italianas para
aprimorar a qualidade técnica. Incorporou os procedimentos da escola francesa ao
virtuosismo, velocidade e exteriorização típicos da Itália, transmutando essas características
ao temperamento russo, apto a fundir contradições. Logo surgiram bailarinos tecnicamente
primorosos; os passos executados caracterizavam-se pelo extremo de sua beleza formal, de
proezas físicas, carregados de forte carga poética, apresentando ao homem uma imagem
idealizada de si. Data desta ocasião, a incorporação da acrobacia nos movimentos de dança,
criticada por alguns puristas como “truque circense”: as “levantadas soviéticas” – pela qual
66
um bailarino levanta sua partner com uma das mãos – ou os 32 fouettès consecutivos,
executados em passos acrobáticos pela italiana Pierina Legnani.
No início do século XX, intelectuais, músicos, artistas e escritores estavam em
efervescência questionadora em busca de renovação e autenticidade; a dança é parte disto.
Serguei Pavlovitch Diaghilev (1872-1929), integrante desse grupo, concentrou forças e
explodiu as regras arcaicas que regiam a dança. Um traço importante neste russo foi o
empenho em valorizar a tradição de seu país, apesar de privilegiar o grupo modernista e
absorver as novas correntes da arte com facilidade. Diaghilev foi convidado a levar uma
mostra da arte russa a Paris, estreando como empresário por volta de 1908. Na mesma
ocasião, acertou levar também um ballet àquela capital. Apesar das dificuldades, pelo
confronto com seus inimigos, Diaghilev, em ímpeto revolucionário, derruba as barreiras e
insistindo na dança como ponto de encontro entre todas as artes, apresenta na França, em
1909, um repertório composto por uma ópera e quatro ballets. O impacto foi forte: a ousadia
dos cenários, a inovação coreográfica, a admirável música de Igor Stravinsky e a revitalização
da dança masculina renderam os parisienses à expressão e às sapatilhas russas. O alto nível
técnico dos bailarinos e certo atletismo existente na dança, em movimentos acrobáticos,
impressionaram o público europeu. O carisma, a agilidade e os “pés alados”, conforme
escreviam os críticos, de Vaslav Nijinsky, colaborador de Diaghilev, como também de outros
dançarinos russos, devolveram à dança o seu caráter viril.
Diaghilev, em parceria com seus colaboradores, provocou uma verdadeira revolução na
dança, orientando os seus novos caminhos na Europa. Ele queria exprimir a vibração da alma
russa em suas obras, por meio da recuperação de contos medievais, do ambiente das feiras e
67
seus tipos populares, como também a partir da concepção de libretos em torno de um rito
tribal, ambientado na Rússia pagã e primitiva.98
A acrobacia, assim, contamina as diversas linguagens artísticas. O jogo acrobático visa
preencher o espaço pelo corpo físico do homem, tendo em vista as distâncias, os pesos e a
superação dos seus limites. Tal preenchimento é feito concretamente por meio dos gestos,
saltos, equilíbrios, voos e força. A execução perfeita, segura e precisa provém de uma prática
elaborada com disciplina e exaustão de um treinamento que oferece vigor ao corpo. O
domínio da técnica impecável possibilita o controle do tempo futuro no que diz respeito à
segurança. Cabe ao sujeito que a executa o aperfeiçoamento da habilidade que o conduzirá à
maestria, nesta não pode haver falhas. O corpo acrobata, portanto, desafia o seu
posicionamento no espaço e sugere a potência de superioridade humana, que ao deter mais
habilidades e probabilidade de ações, visões e experimentações, personifica o ideal do homem
russo do início do século XX: harmônico, audacioso e revolucionário.
O corpo acrobata é aquele que assume o risco como princípio, encarando-o como
imprescindível, real e vital para provocar a sensação de vertigem no público, de proximidade
com os limites humanos. Cabe frisar que a utilização desta fisicalidade é permeada de alta
carga poética, definindo pela expressividade de seus gestos a busca para a transformação da
condição do homem. Ao estar em desequilíbrio e ser desafiado pelo espaço, ele propõe outras
maneiras de posicionar o seu corpo, o que é encarado como potência para, assim, executar
perfeitamente o salto, movimento ou voo.
Se “os primeiros circenses eram exímios caçadores, ágeis, fortes, de grande pontaria e
de muito bom humor”99, reconhece-se, portanto, que o acrobata recupera a imagem do
bogatyr e aproxima-se deste “novo homem”, que representa a materialização da
98 Mais detalhes sobre os ballets russos de Diaghilev e Nijinsky em: PORTINARI, Maribel. Do romantismo à Revolução de Diaghilev. In: História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989, cap. III, p. 81-130. 99 CASTRO, Alice Viveiros de. A arte do insólito. Revista Continente Cultural. Pernambuco, ed. 77, maio 2007.
68
transcendência humana em coerência com as forças naturais, da física. Dessa forma, a
imagem do acrobata permeia o pensamento russo e excita a admiração ao retratar o corpo
desprovido de barreiras, o corpo potente, o corpo em liberdade que realiza ações
extraordinárias, não naturais, carregadas de encanto e beleza.
Antes mesmo de alguns vizinhos europeus, o circo russo já vivia um período de
teatralização e intensa politização, sendo reorganizado sob o controle do Estado. O momento
histórico era de guerra civil, por isso, a mola propulsora para as reformas artísticas era a
Revolução. As preocupações com a política e o ideal revolucionário provocaram mudanças no
espetáculo e a necessidade de discussão era constante. Aliava-se a isto o desejo de uma
poética inovadora e crível, por meio do rompimento com as formas artísticas que não
estivessem a serviço da Revolução. O objetivo era “politizar a arte e a principal opção para se
alcançar essa meta se deu em torno da transformação e da superação das técnicas naturalistas,
aliadas aos temas que a nova sociedade impingia” 100.
O teatro, por outro lado, recorria ao imaginário circense para estimular as manifestações
dramáticas. O intercâmbio entre as duas linguagens, durante o período, e sua aplicação na
cena também já se revelava. O retorno à teatralidade e à tradição popular conduz a
experimentações pedagógicas para a formação do ator em consonância com as aspirações da
revolução inspirado no potencial do “novo homem”. Nesse sentido, os anos de 1920 expõem
uma prática teatral fortemente enraizada nas atividades do picadeiro, revelando uma história
complexa e muita controversa a partir do resultado das experiências pré-revolucionárias e a
posterior formação dos grupos teatrais de agitação e propaganda (agit-prop) com profunda
base acrobática101.
100 BOLOGNESI, Mario Fernando. Op. cit., 2004, p. 41. 101 Para mais detalhes sobre este período consultar: GARCIA, Silvana. A matriz histórica do teatro de natureza política. Ibid., p. 1-45
69
As experimentações pedagógicas, que antecedem a Revolução de 1917, de Vsévolod
Emilievitch Meierhold inserem-se nesse contexto, e, não por acaso, o circo, a grande paixão
do encenador, exerce uma grande influência em toda sua trajetória artística.
70
CAPÍTULO II
O corpo acrobata na pedagogia de V. E. Meierhold.
É preciso que aqueles que se dedicam a todos os gêneros da arte,
ao teatro, às variedades e ao circo, se unam em um trabalho
em comum e todos juntos, o menos separados possível,
se aproximem do público.
Vsévolod Emilievitch Meierhold.
71
Para Ripellino102 é das premissas proclamadas por Marinetti que deriva o entusiasmo da
vanguarda cubo-futurista pelos artistas circenses. Tanto o Manifesto do Teatro de Variedades
(1913) como o Manifesto do Teatro Futurista Sintético (1915) solicitavam a aproximação
entre o teatro de prosa e o music hall, pois este parecia mais adequado aos futuristas pelo
ritmo veloz da época. Dentre os procedimentos cênicos utilizados pelo poeta italiano, a
provocação do público com “maravilhas e truques”, por meio de acrobacias e “fisicofolias”,
era um importante recurso ao opor a ação à atuação psicológica. Isso pode ser ilustrado pelo
seguinte trecho retirado dos seus escritos de 1913:
Fomentar de todas as maneiras o gênero dos palhaços e dos excêntricos americanos, seus efeitos de grotesco exultante, de dinamismo espantoso, suas piadas grosseiras, suas enormes brutalidades, seu paletó com surpresas e suas calças profundas como um porão de barco, de onde surgirá, com mil outras coisas, a grande hilaridade futurista que deve rejuvenescer a face do mundo103.
Muitos dos artistas cênicos e poetas russos do período, que se apoiavam na tese de
Marinetti, tinham experiência com a arte pictórica ou fizeram parcerias com pintores
futuristas. Iúri Ánienov, por exemplo, em setembro de 1919, no Teatro Ermitage, em
Petrogrado, representou a comédia O Primeiro Destilador, de L. Tolstói. A cena do inferno
prestava-se a “bizarras invenções”104 e foi reestruturada numa sequência de números de music
hall. Participaram da montagem dois artistas de circo: um palhaço acrobata, que interpretou o
Bufão do Diabo ancião, e o “Homem-Borracha”, no papel de Diabo vertical.
V. E. Meierhold, em suas experiências no Teatro-Estúdio, já adotava como um dos seus
pilares a perspectiva pictórica – a outra era o texto. Cabia ao diretor articular a dramaturgia
em cena para o sucesso da obra artística e ao intérprete a execução de suas ideias. Nesse
102 RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971, p.140. 103 Fomentar por todos los medios el género de los clowns e los excéntricos americanos, sus efectos de grotesco exultante, de dinamismo espantoso, sus groseras ocurrencias, sus enormes brutalidades, sus chalecos com sorpresas y sus pantalones profundos como bodegas de barco, de donde surgirá con otras mil cosas la gran hilaridad futurista que debe rejuvenecer la faz del mundo. MARINETTI, Fillipo T. El teatro de Variedades (1913). In: SÁNCHEZ, José A. (Ed.). La escena moderna. Madrid: Ediciones Akal, 1999, p. 119. 104 RIPELLINO. Op. cit., 1971, p. 141.
72
sentido, a expressividade do corpo do ator, pela primeira, vez era cultivada e aproximava-se
da linguagem da pintura, tomando-a como base. Inspirado pelos pintores primitivos “a
‘estatuária plástica’ foi experimentada, não como cópia das pinturas, mas a partir da
imaginação criativa do diretor que pretendia concentrar o ator – física e mentalmente –
através das poses, do desenho do gesto e da ênfase do perfil do corpo”.105
Guinsburg106 considera, por exemplo, que a proposta de atuação para o espetáculo A
Morte de Tintagiles, de Maurice Maeterlinck, dirigido por Meierhold durante o período,
deveria integrar-se ao fundo cenográfico de tal modo que o intérprete perderia a sua espessura
e se converteria numa espécie de massa ou mancha de cor a diferenciar-se unicamente pelo
décor107. O desenho rítmico e plástico do gesto “cristalizaria a música de uma recitação
friamente orgiástica”108, logo, o corpo do ator estaria caracterizado como “[...] uma estatuária
cênica que trouxesse não só pelo dito mas sobretudo pelo não dito, pelas áreas de sombra e
silêncio, os signos conotativos dos mistérios inefáveis”109.
Fundado também por Constantin Stanislávski, a liquidação do Estúdio, localizado na
Rua Povárskaia, aconteceu em virtude do desacordo entre os projetos teatrais de ambos os
diretores. As discordâncias sobre os fundamentos da arte teatral; o pensamento
stanislavskiano, sempre em torno da representação mimética, em contraposição aos novos
procedimentos técnicos meierholdianos, assim, “entre a exposição ao natural da vida do
105 THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 23. 106 GUINSBURG, Jacó. Stanislavski, Meierhold & Cia. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 26. 107 Tais proposições também são adequadas aos trabalhos de dois revolucionários da cenografia do século XX: Adolphe Appia (1862-1928) e Edward Gordon Craig (1872-1966). Em linhas gerais, o primeiro foi influenciado pela obra de Richard Wagner e constata que a cenografia deveria ser um complexo sistema de volumes e formas reais que conduz incessantemente o corpo do ator a achar soluções expressivas e plásticas. A teoria cenográfica de Appia se baseia essencialmente em princípios arquitetônicos. Craig, que também é influenciado pelas ideias de Wagner, privilegia a estruturação arquitetônica do espaço. Meierhold, que foi influenciado por Craig, reconhece na Revista Teatral da Sociedade de Literatura e Arte, publicada em São Petersburgo, em 1909-1910, o quão importante são as experiências cênicas de Craig. Para mais detalhes, ver: THAIS, Maria. Op. cit., p. 272-287. 108 GUINSBURG. Op. cit., p. 26. 109 Ibid.
73
homem e a iluminação simbólica de seu mundo não podia haver conciliação estética e
composição teatral satisfatória”110.
Após essas experiências, Meierhold percebe que não era possível reconstruir um novo
teatro nos moldes da atuação pregada pela escola naturalista do Teatro de Arte de Moscou. E,
conforme aponta Maria Thais111, é neste período que ele muda a perspectiva sobre o trabalho
do ator e desenvolve a concepção de uma escola. O ator não era mais visto como um
intérprete das ideias do diretor, mas como criador, e cabia a este último a responsabilidade de
prepará-lo.
O trabalho com a dramaturgia simbolista de Maeterlinck ofereceu a Meierhold o suporte
para a criação de uma nova técnica cênica. Os textos do autor não pressupõem uma
associação com a vida cotidiana e a categoria de ação é definida como uma ocorrência no
mais íntimo do personagem, e não mais em acontecimentos exteriores a ele. Tais teses
ganham vida em cena por meio da pausa, dos silêncios e, especialmente, nas formas e nos
movimentos plásticos. A partir daí surgem os moldes para a expressão do ator e, portanto, “o
novo teatro nasce da literatura”.112
11. Vsévolod E. Meierhold, 1905
110 Ibid., p. 29. 111 THAIS, Maria. Op. cit., p. 28. 112 MEIERHOLD, V. E. Sobre o teatro. In: THAIS, Maria. Op. cit, p. 212.
74
Em 1906, Meierhold aceita o convite da atriz Vera Komissarjérvskaia, intérprete
feminina consagrada nos palcos russos, para dirigir a sua companhia. A atriz aspirava ao
repertório do teatro simbolista, pois acreditava que este seria o teatro do ator, do espírito livre.
A parceria Meierhold-Komissarjérvskaia, num primeiro momento, parecia perfeita:
Pois se ali estava, de um lado, um encenador, que recusando-se a tomar a plausibilidade mimética da ação e a ilusão da realidade na moldura cênica como condições fundantes da representação teatral, atrevia-se a propor uma decidida reelaboração formal da pesada materialidade do palco e do corpo do ator, precisamente a partir de seus elementos inerentes, para o resgate de sua expressividade poético-dramática no tablado e de seu poder de conjuração cênica das vicissitudes da alma na sondagem existencial e na transcendência espiritual, que a arte simbolista anelava comunicar.113
A atriz estava disposta a entregar-se por completo aos procedimentos meierholdianos e,
deste encontro, quatro obras que combinaram o anseio de ambos foram produzidas: Irmã
Beatriz, A Barraca de Feira, O casamento de Zobeida e A vitória da Morte. Tais encenações
simbolistas mudaram os rumos da cena russa, já que investiram na aproximação entre palco e
plateia, bem como no desenvolvimento de ações no proscênio e a utilização de uma
cenografia sugestiva, na qual os elementos eram reduzidos ao mínimo necessário.
As inovações cênicas de Meierhold, por meio de tais princípios e pela estilização, eram
um meio de educar o ator e apresentavam uma nova abordagem ao seu trabalho. Solicitava o
cumprimento de novas tarefas, controlou o seu comportamento e a sua natureza criativa,
almejando que o ator chegasse às motivações interiores por meio de uma interpretação que
fosse satisfatória ao esboço externo da cena, realizado pelo diretor. A trajetória visual e
estética adotada pelo encenador russo oferecia ao intérprete um corpo dotado ora por uma
atitude pictórica, ora por uma atitude escultural. Descobre, então, um princípio criativo: “o da
composição cênica, da encenação, como um procedimento pedagógico”114.
Os procedimentos estéticos simbolistas foram explorados com maestria na encenação do
espetáculo A Barraca de Feira, de Aleksandr Blok. A montagem “marca o início de uma nova 113 GUINSBURG, J. Op. cit., p. 37. 114 KRASOVSKII, I. M. apud THAIS, Maria. Op. cit., p. 35.
75
época no teatro russo”115. A cena “é irrompida por uma quente rajada de clowniere metafísica,
de burlesco devassador”116, utilizando máscaras da Commedia dell’Arte117 italiana e
mesclando aos seus semblantes algumas figuras distritais da Rússia. Cabe considerar aqui a
atuação de Meierhold como Pierrô, fundamentada na agilidade acrobática e numa qualidade
vocal sussurrada, amparada por sua aptidão mimética. É relevante apontar também que, nesta
obra, “junto com a noção de teatralidade, transformou-se também a perspectiva do eixo da
cena”118. Há os primeiros contornos de um teatro que seria realizado a partir do ator, e não da
literatura, e que deveria ser encarado com um acontecimento estético e artístico.
Os conflitos ocasionados pelas diferenças de temperamento, pelo fracasso econômico,
pela crítica, pela autonomia da direção e, especialmente, o choque das tradições teatrais tão
distintas explodiu o projeto comum entre Meierhold-Komissarjévskaia em 1907. Podem ser
levantadas considerações importantes do percurso artístico do encenador russo até então, em
referência ao desejo de Briússov119: “Da verdade inútil das cenas contemporâneas clamo à
115 RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 114. 116 Ibid. 117 Historicamente, somente no século XVIII a Commedia dell’Arte passou a ser reconhecida por este nome e antes de tudo significa uma comédia encenada por atores profissionais, associados por meio de um estatuto próprio de regras, pelo qual os cômicos empenhavam-se em respeitar-se e proteger-se reciprocamente. Segundo Dario Fo o termo “arte” corresponde a ofício. A Commedia dell’Arte não tem sua origem na literatura de textos, mas na prática artística, baseando-se no ajuste entre diálogo e ação, monólogo falado e gesto executado, e nunca unicamente na pantomima. O enredo possui discursos ligeiros e alegres, não premeditado, mas espontâneo, com frases postas de maneira inesperada e com metáforas despropositadas, como se fossem ditas para insinuar assuntos diferentes para parecer tudo uma grande confusão. Os personagens são estereótipos fixos e geralmente usam máscaras e o ator é o próprio autor, diretor, montador, fabulista que possui uma bagagem grande de situações, diálogos, gags, ladainhas, arquivadas na memória para serem utilizadas no momento certo. Além disso, o cômico dell’Arte é dotado de uma multiplicidade técnica: ele canta, toca instrumentos, dança, domina truques acrobáticos e de equilíbrio, é malabarista , prestidigitador, mágico, etc. Ver mais detalhes em: FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. 118 THAIS, Maria. Op. cit., p. 37. 119 Meierhold teve contato com diversos artistas e intelectuais, grande parte formadora do simbolismo russo, que desejavam devolver ao teatro a grandeza sacra perdida, assim como compartilhavam da ideia da superação dos princípios realistas-naturalistas. Briússov, intelectual que lutou contra as teses do Naturalismo, escreveu em 1902 o texto Uma Verdade Inútil cujas proposições prezam por uma obra de arte que manifeste toda a interioridade do artista. Formula a teoria apoiada nas tradições do teatro antigo, que chamava Teatro de Convenção. Era frequentador das reuniões de Ivánov em sua “Torre”.
76
convenção consciente do teatro antigo”120, Meierhold adota, como procedimento cênico
elementar, a convenção121.
A convenção consciente como método artístico de criação, proposta por Briússov, introduziu uma divisão fundamental na organização do pensamento meierholdiano: de um lado, os artistas criadores de uma arte permanente (poetas, escultores, pintores e compositores) e, de outro, os de quem é exigido retomar sua obra para torná-la acessível (atores, encenadores, músicos, dançarinos). O problema da convenção em Meierhold oscilou nestes dois campos: o da composição da obra e o da execução.122
O teatro da “Convenção Consciente” preza por uma cena em que o palco desça ao nível
da orquestra, eliminando a ribalta, e solicita a potência expressiva do ritmo da dicção e do
movimento por meio de uma representação em que a palavra e o gesto sejam guiados cada
qual por seu ritmo próprio, que podem ou não coincidir. O espectador participa do ato criador
do espetáculo juntamente com as figuras do dramaturgo, do encenador e do ator. Este não se
esquece por um só instante da sua ação de compor um quadro no palco e que dispõe plástica e
ritmicamente na cena a sua tela ou as linhas e as massas da corporificação teatral expressiva e
significativa123. Meierhold deseja afirmar a teatralidade em oposição ao teatro naturalista e
certifica-se de que a apropriação de elementos poéticos, musicais, plásticos e simbólicos não
estão de acordo com as tentativas de encantamento da realidade pela ilusão.
Ao declarar que “no teatro de Convenção, a técnica luta contra o procedimento de
ilusão. O teatro não tem necessidade da ilusão, esse sonho apolíneo”124, Meierhold busca
exaltar no espectador a “embriaguez dionisíaca” como a fonte renovadora das artes cênicas.
Sendo assim, o “acento deve recair na composição, estilo, forma, ritmo, movimento, saltação
120 Apud MEIERHOLD. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 231. 121 Convenção: “conjunto de pressupostos ideológicos e estéticos, explícitos ou implícitos, que permitem o espectador a receber o jogo do ator e a representação. A convenção é o contrato firmado entre autor e público, segundo o qual o primeiro compõe e encena a sua obra de acordo com normas conhecidas e aceitas pelo segundo. A convenção compreende tudo aquilo sobre o que plateia e palco devem estar de acordo para que a ficção teatral e o prazer do jogo dramático se produzam”. Para mais detalhes, ver: PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 71. 122 THAIS, Maria. Op. cit., p. 47. 123 GUINSBURG, J. Op. cit., p. 62. 124 MEIERHOLD. THAIS, Maria. Op. cit., p. 237.
77
(dança, mímica, pantomima), arquitetura”125. O teatro torna-se dinâmico e assim deve
comportar-se até o fim. Dessa maneira, “o teatro deve desvelar definitivamente sua essência
dinâmica; e, assim, deve deixar de ser ‘teatro’ no sentido de ‘espetáculo’. Queremos nos unir
para criar, para ‘agir’ em conjunto e não somente contemplar”126.
Esse pensamento foi orientado por uma tendência cada vez mais forte de retorno às
antigas fontes teatrais. O desejo era recuperar as experiências com a tradição dos teatros
populares, dos barracões de feira, da Commedia dell’Arte e das atividades circenses, pois tais
gêneros afirmam a comunicação não essencialmente verbal e eclética. O intérprete de certas
práticas teatrais, até o século XVIII, por exemplo, sabia dançar, cantar, dominava as
disciplinas acrobáticas, proferia textos dos quais poderia ser autor.
Após o período com a companhia da atriz Vera Komissarjévskaia, Meierhold concilia
simultaneamente duas atividades teatrais: em 1908, foi convidado por Vladimir Teliakovski127
para dirigir os Teatros Imperiais, onde desenvolveu a prática oficial até 1917 e, paralelo a isto,
aperfeiçoou seu trabalho experimental ao exercitar e utilizar procedimentos pedagógicos para
a formação do novo intérprete. Reconhece-se que Meierhold, de 1908 até o final da vida,
reflete uma formação para o ator e, portanto, sua atividade como encenador está atrelada a um
projeto pedagógico.
Como diretor dos Teatros Imperiais, encenou sua primeira ópera, Tristão e Isolda
(1909), entre outras produções como, por exemplo, Don Juan (1910) e Orfeu (1911).
Observa-se aqui um fator importante na montagem no Teatro Aleksandrinskii, do espetáculo
Don Juan de Molière. Tal obra, para Maria Thais128, sintetiza uma vertente importante para
este período: o retorno às tradições. A cena era reconstruída de acordo com os princípios do
teatro de máscara, na tentativa da não recuperação histórica e sem recorrer à máscara
125 GUINSBURG, J. Op. cit., 126 MEIERHOLD. THAIS, Maria. Op. cit, p. 234. 127 Vladimir Teliakovski (1861-1924) diretor dos Teatros Imperiais de São Petersburgo de 1901 a 1917. 128 THAIS, Maria. Op. cit., p.50.
78
tradicional. A sua utilização definia um estilo de atuação, por exigir a expressão do
movimento e do gesto, além da palavra. Portanto, a recriação de Don Juan se estabelecia
como “uma partitura cênica semelhante a um balé e seus traços de comédia popular, não
impediam a rigorosa formalização da encenação”129. Data também do período a noção de uma
escritura cênica para o desenvolvimento do drama, fundamentada no roteiro de ações.
A Rússia, durante o período, segue mergulhada numa intensa efervescência artística e
cultural, conforme apontado no capítulo anterior. Nessa época, cresce o número de grupos de
artistas dispostos a renovar a arte do seu país e também o interesse pelos gêneros teatrais
populares como uma alternativa poderosa para combater as formas artísticas estabelecidas.
Paralelamente a esta reivindicação pela tradição, afirma-se a “pompa da ‘obra de arte
total’”130 e a influência de Richard Wagner é cada vez mais sentida desde o início do século
XX,
Na medida em que o desenvolvimento da arte da encenação aprofundou a unidade do espetáculo, pressupondo uma relação de interdependência entre todos os seus componentes. O diálogo com as artes intermediárias foi consciente e constitui o problema principal da criação, e nenhum grande homem de teatro do século XX escapou do confronto com as teorias de Wagner.131
Nesse ambiente, o projeto teatral meierholdiano é imprescindível para o entendimento
da conjugação entre estes elementos e as transformações da cena teatral russa. Nas
experimentações cênicas vividas na primeira década do século XX, esboçam-se
paulatinamente as matrizes teóricas que articulam o pensamento entre encenação e pedagogia.
Meierhold, como encenador, elabora em sua obra um sistema próprio de representação “em
que a encenação era ‘o próprio local de aparecimento do sentido da obra teatral’ e o
espectador só tinha ‘acesso à peça por intermédio desta leitura do encenador’”.132
129 Ibid. 130 PICON-VALLIN, Beatrice. A cena em ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 1. 131 THAIS, Maria. Op. cit., p. 48. 132 Ibid., p.73.
79
Nesta pesquisa, destaca-se um elemento-chave: a questão do movimento cênico como
expressão do ator na composição do espetáculo. Para formação do intérprete e do seu trabalho
corporal, Meierhold recupera os princípios da tradição do teatro e adota os procedimentos
circenses como um elemento indispensável. Trata-se de conferir ao ator, por meio das
atividades do picadeiro, “a obrigação de adquirir o saber, a técnica e a disciplina que lhe
faltam no início do século na Europa”133. Metaforicamente, há o desejo de igualar o ator à
imagem do Bogatyr, trazendo em si “a vontade de esculpir um ‘corpo maravilhoso’ a partir de
seu corpo cotidiano”134. O caminho a ser realizado por Meierhold, a partir das experiências
acumulada ao longo de sua carreira artística, previa a criação de condições para o
desenvolvimento de suas descobertas.
2.1. Apontamentos sobre as experiências pedagógicas do Dr. Dapertutto
Para proteger-se do impedimento de exercer uma prática artística concomitante às
atividades do Teatro Imperial, Meierhold assume o pseudônimo de Dr. Dapertutto,
personagem extraído do conto de Hoffman135 Die Abenteuer der Sylvester-Nacht. Apesar de
vincular-se ao ideal do herói romântico, aventureiro e poeta, Dappertutto (ou o Doutor
Emtodaparte) evidencia um caráter moderno pela sua personalidade diabólica e charlatã. É
esta figura que transita nos cabarés teatrais e encena pantomimas e paródias, revelando suas
experimentações, enquanto as grandiosas encenações meierholdianas surgem na cena
imperial. 133 PICON-VALLIN, Beatrice. A arte do teatro: entre a tradição e a vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Organização de Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006, p. 28. 134 Ibid. 135 E. T. A. Hoffman (1776-1822) escritor, compositor, caricaturista e pintor alemão. Dedicou-se à literatura e às artes. Em 1813 entra em contato com o grupo do romantismo ao se fixar em Berlim. No romantismo alemão foi o mestre da literatura fantástica e influencia sobremaneira o teatro russo pré-revolucionário.
80
A dupla personalidade do encenador se desenvolveu ao longo dos anos, em um trânsito permanente entre os dois mundos, o oficial e o experimental. Doutor Dapertutto brinca, arrisca, experimenta, prova. O encenador Meierhold age com ponderação, com clareza de objetivo, com fundamento. O Doutor Dapertutto improvisa, o encenador Meierhold arranca cada espetáculo de um rigoroso plano, traçado com precisão. [...] Doutor Dapertutto propõe a ideia do novo teatro e, sem protelar, o executa com liberdade, não evitando extremos. O encenador Meierhold, que comunga e encarna as mesmas ideias, as contorna solidamente, definitivamente, irrefutavelmente. Doutor Dapertutto faz com desembaraço o esboço da maturidade criativa do encenador Meierhold136.
As atividades pedagógicas de Meierhold nascem da dificuldade de materializar suas
ideias para a cena. Durante sua trajetória, ele detecta a impossibilidade de estabelecer um
novo teatro regido pelas antigas normas, devido ao choque com os atores pertencentes à outra
tradição teatral: seja dos princípios naturalistas do Teatro de Arte de Moscou, ou do teatro
clássico russo.
Em setembro de 1913, na cidade de São Petersburgo, o encenador dá início às
atividades do Estúdio da Rua Troitskaya nº 18, que funcionava durante quatro dias na semana
das 16 às 19 horas. Era cobrada uma pequena taxa dos estudantes, que cobria as despesas de
funcionamento. Muitos deles, entretanto, não tinham experiência prévia com atuação e no
grupo do qual participavam havia estudantes universitários, estudiosos de teatro, arquitetos,
artistas de diversas áreas, músicos e críticos. O Estúdio, de fato, não funcionava como uma
escola dramática, mas sim como um laboratório para uma grande experiência coletiva em que
Meierhold foi envolvido em um processo de aprendizagem junto de seus alunos137.
136 THAIS, Maria. Op. cit., p. 81 e 82. 137 BRAUM, Edward. Meyerhold – A revolution in theatre. London: Methuen, 1995, p. 126 e 127.
81
12. Vsévolod Meierhold / Dr. Dappertutto, por Boris Grigoriev, 1916
Em 1914, o Estúdio é transferido para a nova sede, na Rua Borondiskaia nº 6, na Casa
dos Engenheiros das Vias de Comunicação do Município de São Petersburgo. A mudança
possibilitou a ampliação do espaço e permitiu ao encenador a criação de melhores condições
para o trabalho criativo. O salão do prédio, por exemplo, era ocupado com um pequeno palco
e uma plateia para, aproximadamente, trezentos espectadores. Neste espaço, portanto,
Meierhold se depara com problemas elementares sobre a constituição da cena e do trabalho do
ator, ou seja, “experimenta uma transformação radical, não apenas dos meios e procedimentos
técnicos que utiliza com o ator, mas, principalmente, na correspondência destes com a
composição da cena”138.
É relevante apontar, neste contexto, a publicação da revista Luibov k Triom Apelsiam, O
Amor das Três Laranjas – A Revista do Dr. Dapertutto, que relatava a sua prática cênica no 138 CARREIRA, André; NASPOLINI, Marisa (Org.). Meyerhold: experimentalismo e vanguarda. Rio de Janeiro: E-papers, 2007, p. 58.
82
Estúdio de 1914 a 1916. Ademais, descrevia o conteúdo das disciplinas e seus orientadores,
bem como a estrutura e organização das aulas, a ocupação do espaço, os exercícios, a sua
ficha técnica, etc. O nome da revista foi dado por Vladimir Nikolaievitchii Soloviov139 e
sintetizava “os temas que predominariam na revista: a obra de Hoffmann e de Carlo Gozzi e
os procedimentos cênicos do teatro de máscara italiano”140.
A poética de Carlo Gozzi141 conduziu o olhar meierholdiano sobre o ator e sua técnica
pela perspectiva do cômico dell’Arte. A obra do dramaturgo italiano desejava representar o
mundo como um lugar festivo, cheio de imaginação, ilusão, encantamento, e não um espelho
fiel da realidade. A apropriação daquele universo garante o retorno aos fundamentos do teatro
e suas convenções, já que não havia a premissa de uma aproximação política, histórica ou
sociológica, mas sim teatral. Em verdade, a Commedia dell’Arte conduziu tematicamente a
revista O Amor das Três Laranjas, pois fez parte do conteúdo do curso teórico e prático do
Estúdio e era assunto de muitos artigos críticos e de reconstrução histórica.
A apropriação das tradições do teatro pretendia reconstruir uma “versão, uma
interpretação bastante mitificada”142 e não recuperar uma verdade histórica. Por intermédio
dos estudos das técnicas tradicionais, o novo comediante não apenas era conduzido ao
domínio técnico, mas seria capaz de reconhecer sua capacidade criativa. Nesse sentido, os
integrantes do Estúdio de Meierhold deveriam recuperar o verdadeiro sentido da linguagem
teatral ao vivenciar a prática da Commedia dell’Arte, por exemplo, os princípios que
fundamentam as leis do teatro, e, especialmente, o treinamento crítico, já que este admitiria a
articulação das ideias para a cena. Ao afirmar o estatuto artístico da arte do ator, articulando o
139 Soloviov (1887-1941) colaborou com a publicação da Revista O Amor das Três Laranjas e foi o responsável pelos estudos da técnica cênica da Commedia dell’Arte no Estúdio da R. Borondskáia em São Petersburgo. Com vinte e quatro anos estudava filologia. 140 THAIS, Maria. Op. cit., p. 81. 141 C. Gozzi (1720-1806) é dramaturgo, nascido em Veneza na Itália. Escreve obras para trupes de Commedia dell’Arte. Em 1761 lança a comédia “O Amor das Três Laranjas”, marcada pelo encantamento e magia, semelhante aos contos de fadas. Esta fábula dá o nome à Revista do Doutor Dapertutto. 142 THAIS, Maria. Op. cit., p. 87
83
discurso teórico às atividades práticas do Estúdio, a Revista, ainda, coloca a figura do ator
popular como o principal personagem de suas reflexões.
Soloviov foi o responsável pela classe da Commedia italiana e sua trajetória artística
está aliada a Meierhold desde 1911. Este, ao conjugar a aprendizagem teórica, que precedia as
atividades práticas, pôde criar as bases para o seu trabalho posterior. O encenador russo foi
orientado à reflexão crítica do movimento cênico e a elaboração de exercícios e pantomimas
para as suas aulas, construídos a partir de roteiros da Commedia, acompanhados por música.
Tudo isso permitia detectar as capacidades expressivas de cada estudante, o que legitima,
portanto, o valor pedagógico desta técnica cênica.
Para Maria Thais “é impossível compreender o projeto pedagógico meierholdiano no
período sem os aportes teóricos de Soloviov”143. Ele entendia o estudo da técnica italiana
como um meio, que através do aprendizado de elementos cênicos diversos, oferecia ao
comediante um determinado modelo de composição da improvisação. Para isso, como na
comédia improvisada, o ator deveria encontrar as emoções por meio da ação corporal,
adotando como viés as características previamente conhecidas das personagens, em
contraponto à motivação psicológica. A expressividade, basicamente, estaria no domínio do
gesto, das poses, da coordenação do movimento do seu corpo no lugar onde a ação é
provocada.
As aulas de Soloviov recorriam ao jogo de máscaras para revelar a personalidade física
e psíquica dos estudantes e, assim, ressaltar suas habilidades e precisão corporal, a capacidade
de manipulação dos objetos, bem como a composição das personagens. Nota-se que, neste
contexto, os alunos assimilavam um treinamento por meio de passos, saltos, “cambalhotas e
golpes de espátula, trambolhões, balbúrdias, trancos, chutes”144. Esta aproximação técnica
143 Ibid., p. 117. 144 RIPPELINO. Op. cit., 1996, p. 147.
84
típica dos comediantes e saltimbancos da Commedia dell’Arte encontra um forte ponto de
confluência com a arte dos acrobatas circenses. Para Pavis:
O saltimbanco era um artista popular que, nas praças públicas, quase sempre em cima de um tablado, fazia demonstrações de habilidades físicas, de acrobacias, de teatro improvisado, antes de vender ao público objetos variados, pomadas ou medicamentos. [...] São os representantes de um teatro não literário, popular e assumidamente satírico e político. [...] O espetáculo dos saltimbancos, na maior parte das vezes, é baseado numa performance física, e não na produção de um sentido textual ou simbólico. Os procedimentos se baseiam numa habilidade física ou burlesca.145
A revista O Amor de Três Laranjas aponta a relevância das técnicas circenses,
enquanto recurso de formação para o ator, nas experimentações do Estúdio da Rua
Borondiskaia. Na edição de 1915, nos livros 1-2-3, p. 79, é publicada uma parte da
monografia de K. Miklachévskii: “Sobre os elementos acrobáticos dos Comediantes
dell’Arte”. O artigo expõe os “indícios da utilização de elementos acrobáticos na commedia e
sua função educativa como treinamento para a destreza corporal do ator, na medida em que “a
habilidade acrobática contribui para a glória do ator, em pé de igualdade com os outros
elementos”146. Miklachévskii relata como certos comediantes italianos conseguiram conservar
as habilidades acrobáticas até o século XVIII. Atores como Menichelli, que podia fazer todas
as espécies de truques no arame, ou Fiorilli, em idade avançada era convocado para realizar
números acrobáticos de bofetadas no parceiro, ou mesmo Biancolelli, que “fazia quase todos
os saltos, saltos mortais, truques de destreza, de força e de escada de mão que fazem os
saltimbancos”147.
Em outra edição da revista, do mesmo ano, livros 4-5-6-7, são anunciados os artigos:
“O Arlequim Russo”, de M. Briankii, e “Sobre os Circos Provincianos”, de A. Rikov. Ambos
145 PAVIS, Patrice. Op. cit., p. 349. 146 THAIS, Maria. Op. cit., p. 92. 147 WALLON, Emmanuel (Org.). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 127.
85
“identificam, na história teatral russa, aspectos da tradição popular e procedimentos cênicos
semelhantes aos da commedia italiana”148.
É no Estúdio da Rua Borondiskaia que o Dr. Dapertutto começou estabelecer as bases
para o seu programa de treinamento para o ator. Este “segue concretamente as pegadas dos
atores do passado, para garantir a exatidão do seu caminhar (no sentido próprio e figurado)
ulterior, autônomo e firme”149, e, assim, é idealizado como aquele que deveria tomar para si
os padrões históricos abordados e arquitetar uma gestualidade convencional, por meio da
disciplina e da máxima concentração, ao mesmo tempo livre e inventiva. O Estúdio
apresentava um caráter laboratorial para experimentações de aprendizagem coletiva e ao
utilizar os procedimentos de diferentes tradições teatrais priorizava o movimento como a
matriz da atuação.
A divisão das atividades cênicas do Estúdio era composta por três disciplinas de base:
História da Técnica Cênica da Commedia dell’Arte, ministrada por Soloviov; Leitura Musical
do Drama, oferecida por M. Gnessin; e Movimento para a Cena, a cargo de Meierhold. Além
disso, havia um grupo de orientadores que desempenhava diferentes funções como, por
exemplo, assistentes ou responsáveis por disciplinas específicas. É o caso de Aleksandr
Chekrygin, dançarino do Teatro Marinsky, que ministrou aulas de dança; Giacomo,
responsável pelas performances circenses; e Donat Donato, professor de acrobacia150.
No Estúdio, as referências às artes do picadeiro são constantes. Meierhold era
declaradamente um apaixonado pelo circo e com frequencia esclarecia aos seus alunos os
fundamentos do trabalho dos acrobatas, malabaristas, equilibristas e palhaços. Na grande sala
do Estúdio, um quadro com a temática circense era utilizado por ele para evidenciar as
habilidades de tais artistas, que dominam ao mesmo tempo acrobacia, música e a palavra.
148 Ibid., p. 93. 149 PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., p. 56. 150 GORDON, Mel e LAW, Ana. Meyerhold, Einsenstein and biomechanics: actor training in revolutionary Russia. Berkeley California: Mc Farland & Company, 1996, p. 24.
86
Outro elemento que revela o grande interesse do encenador por este tipo de linguagem é o
fato de ele, quase todas as noites, levar seus aprendizes aos pequenos circos de São
Petersburgo.
Meierhold oferecia um grande mérito à arte dos palhaços e solicitava aos seus alunos
que observassem com atenção tais artistas que possuíam um encanto próprio e simplicidade
nas evoluções do picadeiro, relacionando-se com grande satisfação com os demais intérpretes
e espectadores. Há registro de circenses que visitaram o Estúdio. O palhaço Donato, por
exemplo, pertencente a uma tradicional família de circo, era um dos frequentadores e chegou
a ministrar aulas de acrobacia.
É interessante observar que os trabalhos realizados em 1915 e 1916151, em parceria
com tais colaboradores, refletem o interesse de Meierhold em aperfeiçoar o corpo do ator. Ele
recomendava a prática do esporte como necessária para todos e o aprimoramento na esgrima,
na dança, no atletismo e na música como obrigatórios. Para o estudo da Técnica dos
Movimentos Cênicos, classe ministrada pelo próprio encenador, recomendava atividades
como tênis, arremesso de disco e vela. Sem contar que “circo e teatro” era um dos temas das
palestras realizadas, que tinham por finalidade valorizar a autonomia dos elementos teatrais.
No primeiro ano de funcionamento do Estúdio não existia provas de admissão e a
maioria dos alunos não possuía experiência cênica. Um dos critérios de permanência neste
ambiente devia-se à capacidade de realização das indicações dos professores pelos recém-
matriculados. A este respeito, Meierhold tinha um papel de grande influência, apesar de
contar com colaboradores importantes, pois a entrada e a continuação de um estudante eram
definidas sob sua ótica, considerando o aproveitamento que ele esperava. Isto afirma que a
pedagogia meierholdiana se dirigia à cena, “pois os escolhidos eram alunos que denotavam
capacidade criativa e de aprendizado técnico, destinado a plasmar um ideal cênico e a
151 MEYERHOLD, V. O Amor de Três Laranjas – Livro 1,2,3 e 4-5-6, 1915 e Livro 2-3, 1916. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 415-437.
87
compreender intelectualmente seus requisitos”152. No decorrer dos anos, Meierhold foi
maturando as normas de ingresso e, em 1916, esboçou uma organização mais rigorosa.
A princípio, aqueles que desejassem entrar no Estúdio no ano letivo de 1916-1917
seriam reunidos em dois grupos, devendo submeter-se a uma prova de seleção: os que já
faziam parte, porque ingressaram em anos anteriores, e ainda não haviam recebido o diploma
de fim de curso; e os que entravam pela primeira vez. Além de uma entrevista preparatória, os
ingressantes deveriam demonstrar algum conhecimento de musicalidade e algum nível de
flexibilidade corporal, realizando exercícios de ginástica, acrobáticos ou trechos de
pantomimas que contivessem truques acrobáticos. Era observado ainda o talento mimético
pela representação de uma cena sem palavras sobre um tema qualquer, logo, a mise-en-scène
seria instituída e as principais técnicas demonstradas por Meierhold. Outros atributos também
eram requeridos: a clareza da dicção, o conhecimento da teoria de versificação, bem como de
outras linguagens artísticas e suas criações (pintura, escultura, poesia e dança). Por fim, era
necessário responder as perguntas do curso escolar, que visava conferir o conhecimento da
história do drama.
Era intensa a circulação de artistas-colaboradores no Estúdio, adeptos do programa
estabelecido por Meierhold e que não necessariamente exerciam uma atividade sistemática. O
aspecto que chamava atenção neste espaço eram as particularidades do ensino, pelo fato de
não haver escola na Rússia que reunisse e ensinasse disciplinas como ali: relacionava matérias
das outras artes do corpo, balé clássico e moderno, esgrima, circo, mímica, de modo que
ampliasse as habilidades e, assim, “tornasse o ator não só um ator dramático, mas um
acrobata, um músico, um iluminador, ou seja, que o ator fosse o dono, com total poder sobre o
palco”.153
152 THAIS, Maria. Op. cit., p.103. 153 A. DIEITCH apud THAIS, Maria. Ibid. p. 105.
88
O que pode ser reconhecido até aqui é o interesse meierholdiano em elaborar a
teatralidade em torno do próprio ator, concebido como criador. A pretensão em estabelecer
tanto o valor artístico do teatro quanto a sua autonomia em relação às outras artes e à
literatura, afirma a liberdade criativa do ator, que não deveria imitar nem recriar, mas criar e
compor. A ideia de liberdade pressupõe obediência e disciplina em relação à estrutura do
espetáculo e leva à compreensão de que a relação entre tais aspectos aparentemente
antagônicos tinha como objetivo “definir a máxima correspondência cênica entre o previsto e
o improvisado”154.
Surge, nesse panorama, o “novo ator” para um “novo teatro”, cuja natureza possuía
um cunho artificial, explicitamente teatral, intrínseco à linguagem artística. Em estratégia de
luta ao psicologismo, o corpo e sua expressividade são preocupações fundamentais para este
tipo de intérprete e isso é explícito nas aulas de Meierhold, Técnica de Movimentos Cênicos,
ministradas no Estúdio. É durante este período que ele elabora um tipo de treinamento para o
movimento cênico do ator, que proporcionará a construção de um corpo de teatro.
A formação do novo ator é um tema recorrente nos artigos e nas pesquisas de
Vsévolod Meierhold durante todo o seu percurso enquanto artista. Em tal contexto, as
investigações teóricas no campo da fisiologia e da psicologia da criação cênica, da formação
do ator e do seu treinamento profissional, bem como os trabalhos técnicos sobre os
personagens, levaram o encenador-pedagogo russo “à criação de um sistema global sobre os
princípios de atuação”155. Tal processo estende-se para além dos anos 1920, tanto em suas
encenações, como nas experiências de seus discípulos.
2.2. O treinamento do ator no Estúdio de Meierhold 154 V. Tcherbakov apud THAIS, Maria. Op. cit., p. 106. 155 MEYERHOLD, V. L’Attore Biomeccanico. Trad. e notas de Fausto Malcovati. Milano: Feltrinelli, 1997, p.17.
89
Não sabemos o que pode um corpo156.
Picon-Vallin157 lembra que as revoluções teatrais no início do século XX no ocidente
colocam como centro de suas investigações aqueles que dão vida ao edifício teatral, o ator. O
desenvolvimento da encenação e a necessidade de uma preparação do ator fora das
instituições oficiais dos fins do século XIX provocaram uma reflexão sobre a pedagogia,
sobre a escola, sobre o ensino e o exercício, como também sobre o processo criativo.
Meierhold surge neste ambiente como um dos primeiros a conduzir tal reflexão ao basear o
teatro por meio da revalorização da arte e do ofício do ator, buscando uma teatralidade não
cotidiana.
Os movimentos teatrais de pesquisa, nesse momento, têm como meta preparar os
atores para o trabalho no palco. Eles são educados para aprofundar seu esquema corporal,
exercitar e dominar seus gestos e movimentos para estar na cena. As práticas visam afastar os
automatismos físicos habituais, psíquicos e sociais do intérprete, favorecem a luta contra os
padrões de comportamento impostos pela sociedade aos homens e mulheres, além de auxiliar
a compreensão das leis do movimento e expressividade cênica, e ajudam a se liberar do corpo
cotidiano para apropriar-se de um corpo de teatro.
Para Romano158, as técnicas do corpo, em qualquer sociedade, reúnem os modos como
o homem usa o corpo. Tal utilização é um fenômeno social complexo presente nas condutas
mais “habituais”, físicas ou fisiológicas, cognitivas, psicológicas e sociológicas. Cada técnica
possui sua forma determinada, assim como cada atitude do corpo muda de sociedade para
sociedade e mesmo de sexo para sexo. Dessa maneira, a natureza do processo de educação, o
156 DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. 157 PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 2008, p. 62. 158 ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: o teatro físico. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 178.
90
treinamento, caracteriza a técnica ao adaptar o próprio corpo para o uso dele e solicita,
sobretudo, disciplina e continuidade sistemática.
A partir do treinamento corporal, acontece a transição de um corpo “comum” para um corpo “diferenciado”, no mesmo sujeito. [...] A articulação dos meios pelo artista, selecionados num repertório de signos, organizados em operações várias vezes repetidas e conduzindo a uma configuração, determinará – num recorte temporal, supondo um processo acumulativo, mas nem sempre numa lógica direta de causa/efeito – uma transformação de qualidades, perceptível em maior ou menor grau nas manifestações do próprio corpo.159
O treinamento do ator poderia ser definido como um conjunto de exercícios ou, nas
palavras de Ruffini, “o processo artificial por intermédio do qual o ator se adapta ao meio-
cena”160. Ele seria ainda um trabalho coerente realizado de maneira contínua, prolongada e
independente – pelo menos a princípio – da composição de um espetáculo em que o ator
esteja envolvido durante o mesmo período. O treinamento diz respeito ao “meio-cena”,
porém, na prática pode fazer parte ou ser a preparação do espetáculo, pois não há um processo
de adaptação para o meio cênico estabelecido – o que existe apenas é “a necessidade e a
lógica de tal processo: sabe-se em direção a que objetivo ele deve tender, ignora-se de que
modo e segundo quais modalidades deve-se alcançá-lo”161.
Meierhold investe em uma técnica de representação baseada no corpo do ator. No
período do Estúdio, o movimento cênico é o elemento fundamental do teatro e o meio de
expressão do intérprete para a composição de uma obra teatral. Não é possível dissociar as
afirmações deste encenador do contexto da vanguarda histórica russa das primeiras décadas
do século XX e em diálogo intrínseco com o contexto histórico, político, social e cultural
daquele momento. Os atores meierholdianos, com formação e aperfeiçoamento contínuo no
Estúdio, “estão em relação com a formação e o aperfeiçoamento do homem, individual e
159 Ibid., p. 180. 160 RUFFINI, Franco. Le Milieu-scène: pré-expression, énergie, présence. In: L’Energie de l’acteur, Bouffonneries, n. 15-16. Lectoure, 1987, p. 47. 161 Ibid., p. 48.
91
social que ele é, ele lhe atribui a obrigação de ser ‘um homem excepcional’ (expressão dos
anos 1910)”162.
A busca meierholdiana em compreender as leis do teatro, que são opostas às da vida,
coloca em evidência o corpo. O apuramento da corporeidade do ator se dá pelos exercícios
que recuperam a tradição do teatro, ao movimento que se define em estreita relação com o
espaço em que ele se encontra, com a manipulação de objetos (flexíveis ou rígidos, reais ou
imaginários) e em acompanhamento musical. Para alcançar a desejada teatralidade, por meio
da técnica do ator, ele adota como procedimento a exclusão da palavra como meio expressivo,
pois assim seria possível captar da obra uma expressividade centralizada. Meierhold justifica
a sua importância em 1914:
A relação com o movimento como fenômeno sujeito às leis da forma na arte. O movimento como o mais potente meio de expressão na criação do espetáculo teatral. O papel do movimento cênico é mais importante que de outros elementos teatrais. Eliminando-se a palavra, o figurino do ator, o palco cênico, o edifício teatral e os bastidores, deixando-se somente o ator e a sua arte do movimento, o teatro continuará sendo teatro: o ator comunicará seu pensamento ao espectador por meio do seu movimento, do seu gesto, da sua mímica – o principal edifício para o ator – qualquer praça sem construção, onde ele pode construir e firmar o que desejar, como desejar e tão rapidamente como sua liberdade o permitir163.
A disciplina que Meierhold ministrava no Estúdio da Rua Borondiskaia não por acaso
chamava-se Técnicas de Movimento Cênico. Meierhold descobriu no corpo do ator um
instrumento de criação e constrói os exercícios a partir da relação entre o gesto e o
movimento. O curso tinha um caráter exclusivamente prático e estava conectado a todas as
outras matérias do Estúdio. Assim, balizado nos aspectos técnicos e nas ideias teóricas,
experimentava estes componentes em função da composição cênica. Entre os temas
abordados encontra-se, por exemplo, o ritmo como base do movimento cênico, o domínio do
corpo no espaço, a musicalidade no melodrama, o circo e a Commedia dell’Arte.
162 PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2006, p. 27. 163 MEYERHOLD, V. O Amor de Três Laranjas, livro 2, 1914. In: THAIS, Maria. Op. cit., p. 398-399.
92
Um componente importante já presente no Estúdio é a atenção que Meierhold dá à
gestualidade do ator oriental, com a sua abstração perfeita, sua definição rítmica de ambientes
espaciais, nos limites entre a dança e o teatro. O ator desejado por ele deveria possuir aptidões
corporais semelhantes ao intérprete japonês, pelo simples fato de ser, na perspectiva de
Meierhold, acrobata e dançarino. Apoiando-se em suas próprias habilidades, assim como os
orientais, o ator meierholdiano “deve reunir todos os modelos históricos para uma
gestualidade longe do cotidiano, livre e criativo, ao desafiar as leis da natureza, mas obrigado
a uma absoluta disciplina, a uma absoluta concentração”164.
O treinamento técnico do intérprete no Estúdio, fundamentado na arte do movimento e
do gesto, era realizado e organizado pelo encenador. Dessa maneira, o jogo de improvisações
com objetos induzia o ator ao desenho de movimentos cênicos em complexos percursos no
espaço, como uma coreografia. Tais procedimentos ajudavam o ator na descoberta de um
vocabulário expressivo “próximo ao virtuosismo do ator oriental com objetos, ou à agilidade e
influência dos malabaristas”165. Meierhold pedia ao estudante que “ande expressivamente,
com a ponta dos pés en-dehors e saltitando sem parar, de modo que esteja sempre pronto a
reagir rapidamente aos parceiros”166. Reconhece-se aí um princípio da arte do acrobata, que se
torna mais explícito quando associado à etimologia da palavra cujo significado diz respeito
àquele que anda sobre a ponta dos pés.
Junto à V. Soloviov, Meierhold planejou uma série de dezesseis estudos167, extraídos
de varias culturas teatrais e captados das diversas fontes da tradição, incluindo a Commedia
dell’Arte, o teatro oriental e o circo. Esses estudos, concebidos e desenvolvidos com a
colaboração de seus alunos, tem o objetivo de ensinar aos estudantes um número de princípios
164 MALCOVATI, Fausto. Op. cit., p. 8-9. 165 THAIS, Maria. Op. cit., p. 147. 166 PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 2006, p. 55. 167 Para Maria Thais, a palavra “estudo” tem uma rica tradição no teatro russo e não é possível precisar quem estabeleceu o conceito. O mesmo termo é utilizado em grande escala por Meierhold, em francês Étude, no período das experiências pedagógicas no Estúdio da Rua Borondiskaia. Pode ser definido como “uma improvisação dentro de uma estrutura”. In: Op. cit. P. 148.
93
específicos do movimento cênico, como, por exemplo, a lei de Guglielmo Ebreo di Pesaro168,
segundo o partiere di terreno, ou seja, a repartição do terreno, a habilidade de avaliar o
espaço onde se vai evoluir; como se mover em certos padrões (círculo, quadrado ou
triângulo); como a alternância dos números pares e ímpares afeta o estilo de interpretação; a
relação entre movimentos e as configurações das plataformas de representação ou dos limites
do proscênio; as tradicionais “acrobacias adequadas para o teatro”, implicando o contraste
entre as realidades de espaço e tempo no palco e na vida; a relação entre as bases métricas da
música e do movimento (abarcando a ideia das pausas no movimento); trabalho com os
objetos de cena; e, de um modo genérico, os efeitos da interpretação no espectador (a
diferença entre grandes e pequenos gestos)169.
Os estudos foram criados a partir de uma ação dramática real, retirada de temas ou
argumentos cotidianos, ou alguma obra literária, e incluem atividades corporais – quedas,
saltos, corridas e bofetadas – recursos de acrobacia e malabarismo. O ator, ao articular as
ações corporais em uma situação mais complexa, como estratégia de desenvolvimento de um
roteiro, transformava o estudo em pantomima.
Apresentados publicamente em 12 de fevereiro, 2 e 29 de março de 1915, junto de
outras pantomimas e esquetes, os estudos lançaram as bases para o que finalmente se tornou a
Biomecânica. Embora a única documentação detalhada que exista sobre os estudos sejam as
descrições das aulas de Meierhold e Soloviov na Revista O Amor de Três Laranjas e aqueles
poucos demonstrados em 1915, os títulos e as genéricas descrições abaixo fornecem algumas
informações sobre a sua possível utilização na formação do ator:
1. Duas Cestas ou Quem Levou a Melhor sobre Quem. Um estudo composto de
“acrobacias adequadas ao teatro”.
168 Guglielmo Ebreo de Pesaro (1420-1484) coreógrafo italiano. Lutou não só para a reforma do balé da corte, mas, sobretudo, para completar o processo de sublimação dos gestos e posturas que se tornaria marca registrada da dança de corte européia dos dois séculos seguintes. É autor do Tratado sobre a dança. 169 GORDON, Mel. Meyerhold’s Biomechanical. In: The Drama Review (T57), março de 1973, p. 73-88.
94
2. Dois Malabaristas, uma Velha Mulher com a Cobra, e o Clímax Sangrento sob
o Pavilhão. Pantomima composta por Meierhold e Soloviov.
3. Ofélia. Um estudo retirado de uma cena da loucura em Hamlet.
4. A História da Pajem Que Foi Fiel ao Seu Mestre e de Outros Eventos Dignos
de Apresentação. Um estudo tratado no estilo de uma história sentimental, na antiga história
do século XVII (apresentado no palco principal; exercício em câmera lenta).
5. Arlequim, o Vendedor de Pauladas. Uma pantomima no estilo da arlequinada
francesa de 1850. (“acrobacias adequadas ao teatro”).
6. Fragmentos de uma Peça Chinesa – “A Mulher-Gato, a Ave, e a Cobra”. Uma
pantomima de Meierhold e Soloviov (A utilização das convenções da cena chinesa que
poderiam ser interpretadas por Carlo Gozzi; o uso da mise-en-scène para criar a ilusão de mais
personagens dos que realmente aparecem de fato).
7. As Duas Esmeraldinas. Um esquete do enredo da Commedia dell’Arte.
8. Collin Maillard. Um estudo realizado de perfil, nas formas das pinturas de
Lancret.
9. Os Prestidigitadores Ambulantes. Uma pantomima no estilo das representações
populares da antiga Veneza do século XVIII. (Uso de audiência no palco para guiar as
emoções da audiência real; atuação em dois níveis; “acrobacias adequadas ao teatro”).
10. De Cinco Cadeiras a uma Quadrilha. Um estudo de Meierhold e Soloviov no
formato da década de 1840.
11. O Padeiro e o Limpador de Chaminé. Um estudo.
12. A Perda da Bolsa.
13. O Cabo.
14. Três Deles
95
15. Três Laranjas, o Telescópio Astrológico, ou A Que o Amor de Alguém para o
Mestre do Palco Pode Conduzir. Uma bufonada circense. (uso de objetos de cena para
truques; “acrobacias adequadas ao teatro”).
16. Como Eles Realizaram as suas Intenções.170
Por meio dos dezesseis estudos, Meierhold tentou criar um treinamento limitado e
preciso que abrangesse todas as situações expressivas fundamentais que o ator encontraria no
palco. Esses estudos dizem respeito precisamente à fase pré-revolucionária meierholdiana e
ao seu trabalho no Estúdio, associado a uma síntese dos elementos das convenções teatrais,
portanto, diferem da Biomecânica de um modo puramente funcional. É interessante perceber
a utilização dos procedimentos circenses em alguns dos estudos da época e, não obstante, eles
estarão presentes nos futuros exercícios biomecânicos.
Um aspecto relevante é a chegada de Valery Inkizhinov171 no Estúdio da Rua
Borondiskaia, em outubro de 1916. Sem dúvida ele desempenhou um papel importante no
início do que viria a tornar-se a “Biomecânica de Meierhold”. Uma das alunas do Estúdio,
Aleksandra Smirnova-Iskander, recorda: “Ele cativou a todos nós, e especialmente a
Meierhold, com o seu virtuosismo acrobático e plasticidade técnica. A flexibilidade e a
destreza dos seus movimentos demonstravam uma naturalidade espantosa, lembrando a
plasticidade de um tigre, ou de um gato”172. Junto a Inkizhinov, Meierhold pôde trabalhar
vários exercícios baseados no jogo acrobático, que julgava ser um elemento indispensável pra
o ator.
Picon-Vallin173 comenta que nas experiências meierholdianas dos anos 1910
predominam simultaneamente uma concepção romântica e uma científica do ator e de sua
atuação, que se abrem a uma busca da forma, um controle técnico cujos princípios são visíveis
170 GORDON E LAW. Op. cit., p. 25. 171 Valery Inkizhinov (1895-1973) foi ator e colaborador de Meierhold. Mais tarde se tornou professor de Biomecânica do Laboratório Estadual Superior de Teatro (GVTM). 172 Ibid. p. 26 173 PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2006, p. 57.
96
num corpo treinado em diversas modalidades esportivas e acrobáticas e organizado nas aulas
de movimento cênico. Nessa prática, solicita-se constantemente do corpo artificial uma linha
dupla de comportamento no ritmo e no desenho do espaço, bem como nos temas e estilos: a
disposição espacial, em níveis distintos dos planos materiais de apresentação (praticáveis,
escadas), e disposição poética dos contrastes, a busca do tragicômico.
O termo “Biomecânica” define uma espécie de treinamento para o movimento cênico,
e apenas foi utilizado por Meierhold nos anos de 1920, em seu Laboratório de Técnicas do
Ator. Os exercícios biomecânicos concentraram as pesquisas desenvolvidas desde os anos de
1910 sobre a dança e a arte do ator por meio das experimentações com a Commedia dell’Arte.
Além disso, o treinamento biomecânico gestou-se a partir de um estudo iconográfico e
bibliográfico do teatro oriental, da observação e da análise dos grandes atores dos teatros
ocidentais de sua época, como também por meio da observação das técnicas das diferentes
disciplinas circenses.
Duas premissas são indispensáveis para compreender qualquer coisa sobre a Biomecânica: em primeiro lugar não é um “sistema” de representação, mas um treinamento global do ator em função de um momento sucessivo que é a recitação e em segundo lugar não nasce no início dos anos vinte (quando foi cunhado o termo), mas afunda suas raízes nos primeiros experimentos pedagógicos meierholdianos, em particular nas atividades do Estúdio da Rua Borondiskaia174.
Em sua busca renovadora, Meierhold não sistematizou um método único de sua
prática pedagógica. Isto denuncia a impossibilidade atual de uma análise conclusiva sobre sua
obra, apontando diversas lacunas relativas à perspectiva do trabalho do ator. No entanto, o não
estabelecimento por Meierhold de um modelo exclusivo da atividade teatral se opõe também à
produção de Stanislávski acerca da prática do ator. Este último elabora um Sistema de
Atuação baseado nos moldes realistas-naturalistas, experimentados ao longo de sua trajetória
artística. Contudo, no final de sua vida, Stanislávski, adotando como referência suas
174 MALCOVITI, Fausto. Op. cit., p. 8.
97
descobertas sobre a ação e a fisicalidade na interpretação, reformula os princípios de seu
Sistema175.
A concepção meierholdiana da Biomecânica não sofreu grandes alterações ao longo
de sua trajetória artística e parecia ser ao mesmo tempo grandiosa e modesta. Por um lado,
assegurava que o domínio deste treinamento permitia que o intérprete adquirisse as
habilidades essenciais para o movimento cênico e, por outro, “ele relegava suas próprias aulas
de Biomecânica, em sua Oficina, a um ‘status’ semelhante ao dos outros estudos de
movimento corporal que ali eram ensinados, tais como acrobacia, dança moderna e
‘eurhythmics’” 176. A palavra Biomecânica reflete o ardor revolucionário com paixão por
todos os termos tecnológicos e está intimamente conectada às metodologias científicas que
então predominavam na indústria e na cultura, bem como na psicologia e educação da Rússia.
Três componentes, consequentemente, são enxertados no tronco da velha matriz simbolista,
que também permanece central: o taylorismo, a reflexologia e o produtivismo177.
O Taylorismo – elaborado por Frederick Winslow Taylor (1856-1915), nos primeiros
anos de 1910 – caracteriza-se pelos estudos científicos dos processos de trabalho, da
racionalização do tempo por meio dos movimentos corporais dos trabalhadores das indústrias,
levados ao máximo da economia. Descartava-se, portanto, movimentos supérfluos e
desajeitados que desqualificavam o trabalho. A Reflexologia é resultado dos estudos do
psicólogo americano William James (1842-1910), que investiga a natureza mais íntima das
emoções e conclui que a consciência emocional e seus transitórios estados estavam ligados
diretamente à estrutura física do corpo, logo, a maneira como o corpo responde aos estímulos
é pela emoção, que precede a percepção mental dela. James fala: “Vejo um urso, antes tremo,
depois tenho medo”, substituindo por “Vejo um urso, antes tenho medo, depois tremo”.
175 Ver mais em: STANISLÁVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. 176 GORDON, M. Op. cit. 177 Ibid. p. 9.
98
Vladímir Bekhterev (1857-1927) complementa estas referências afirmando que todo
comportamento do homem pode ser explicado pelo padrão de reflexos produzidos pelas
condições externas do seu sistema nervoso. Já o Produtivismo inspira a famosa frase da
Biomecânica: N = A1 + A2, na qual N simboliza o ator, que organiza o próprio material; o A1
é justamente o construtor que ordena e concebe todas as funções da realização do projeto; A2,
contudo, é o corpo do ator que organiza e dá ordens ao A1. Tal formulação, alegoricamente,
almeja uma liberdade de criação que deve ser conquistada pelo ator, por meio de um intenso
processo de treinamento.
A Biomecânica coloca em primeiro plano a compreensão da atividade psicofísica do
ator, cujo pensamento, segundo tal concepção, é submetido à plasticidade. Primeiro surge o
movimento, mesmo se imperceptível, e, ao final, a palavra, existindo a necessidade da
emoção, para tornar possível a comunicação. Nessa lógica, é por meio de uma boa posição do
corpo no espaço e no tempo que é possível o aparecimento da emoção e da entonação:
Pensamento Movimento Emoção Palavra.
Tal princípio estava concatenado à excitabilidade dos reflexos, uma capacidade
importante que o ator deve possuir ao reduzir ao máximo o tempo de passagem pelos
elementos citados acima. Os aspectos da excitabilidade dos reflexos constituem os elementos
de interpretação do ator que são formados por três momentos preciosos: em primeiro lugar a
Intenção, seguido pela Realização e, por fim, a Reação.
A intenção é a percepção intelectual de uma tarefa recebida externamente (autor, diretor, iniciativa pessoal do ator). A realização é o ciclo dos reflexos miméticos e vocais (o adjetivo mimético indica todos aqueles movimentos que surgem da periferia do corpo do ator, e também do ator no espaço). A reação é a diminuição da vontade que foi satisfeita pela realização dos reflexos miméticos e vocais e coincide com a preparação de uma nova intenção.178
178 CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese (Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p. 59.
99
Tudo isso só é possível a partir do uso correto de um corpo treinado. Dessa maneira,
a Biomecânica deveria instruir o “novo ator” nos elementos essenciais do movimento cênico.
No entanto, Meierhold esperava que seus praticantes fossem além do virtuosismo técnico. Ele
afirmava a necessidade de vincular o processo à ideia da emoção, da vida. O gesto preciso e a
correta adequação do corpo no espaço influi sobre a emoção: “Quando nós falamos da
fisiologia dos movimentos, não podemos considerar os movimentos físicos sem os
mecanismos internos, isto é, do sistema nervoso no seu complexo”179. Um arriscado
movimento acrobático não é o suficiente, dizia Meierhold: “através do salto deve-se passar
alguma outra coisa de conhecido para todos, de conhecido no profundo, deve-se passar a
vida”.180
No que concerne aos procedimentos técnicos e expressivos, detecta-se uma série de
Estudos Biomecânicos, semelhantes àqueles praticados no Estúdio, uma composição cênica
extraída das atividades do circo, da dança e do teatro – uma espécie de ginástica cênica –, que
permite construir um novo repertório para o ator, partindo da decomposição do movimento,
sem perder de vista a sua expressividade. Há o conhecimento, no entanto, de 13 destes
estudos que foram descritos por Mel Gordon181 a partir de relatos de participantes e
observadores da oficina de interpretação de Meierhold. São eles: Disparando o Arco; Atirando
a Pedra, A Bofetada no Rosto; Golpe com a Adaga; Construindo a Pirâmide; Golpe com os
Pés; O Salto Sobre o Peito; Soltando o Peso; O Cavalo e o Cavaleiro; Passando uma Rasteira;
Carregando o Saco; O Salto pelas Costas; O Círculo.
Baseando-se no pensamento formalista182 do período, Meierhold buscava por meio
desta ginástica para a cena a organização do “material”, representado pelo corpo do ator, para
179 MEYERHOLD, V. Relação sobre o sistema e os métodos de interpretação no Instituto de História das Artes de Leningrado, 192. In: MALCOVATI, F. Op. cit., p. 20. 180 Ibid., p. 13. 181 GORDON, M. Op. cit. 182 A teoria formalista na cena russa abarcou, conforme esboçado no capítulo anterior, muitos tipos de teatro que dividiam princípios específicos não somente sobre a encenação, mas sobre cenografia. Meierhold
100
transformar sua maneira de se movimentar no palco. Para isso o ator deveria dispor de uma
gama de habilidades técnicas e, portanto, ter a capacidade de organizar a si próprio. A arte da
atuação possui a peculiaridade e a dificuldade de que “o ator é, ao mesmo tempo, material e
organizador do material. O ofício do ator é uma coisa complicada. A todo o instante o ator é
compositor”183.
Assim, Chaves184 reconhece que a discussão proposta por Meierhold oferece
demasiada relevância à corporeidade: do corpo que é visto enquanto matéria para a
composição – significante cênico –, do corpo que readquire a sua autonomia cênica –
enquanto organizador do próprio material –, do corpo que deixa de ser apenas “um corpo”
para reafirmar a sua função cívica, princípio ético, e que fundamenta a filosofia, tanto ética
como estética do ator meierholdiano.
Meierhold, como já apontado, não publicou um sistema fechado sobre a Biomecânica.
Ele escrevia trabalhando, experimentando, falando, caminhando: “mas seu livro sobre a
Biomecânica permaneceu em suas páginas mentais”185. Tais pesquisas apresentam alguns dos
princípios da Biomecânica, a partir do material recolhido pelo colaborador e instrutor M.
Koreniev, no Curso de Biomecânica, desenvolvido entre 1921-1922186. Naquele conjunto
complexo de elementos, pode-se identificar princípios elementares que regem o treinamento
de um acrobata circense.
De antemão, o primeiro princípio da Biomecânica revela que toda ela fundamenta-se
na lei segundo a qual “se a ponta do nariz se move, todo o corpo também se move. Todo o
corpo participa do movimento do menor órgão. Deve-se, antes de tudo, encontrar a adere ao trabalho baseado nas tipologias dos personagens, fincados nas expressões populares. Outra referência importante que o formalismo russo abarca é o conceito de estrutura, que também caracteriza o pensamento sobre o corpo. É necessário não só colocar no primeiro plano esta estrutura rítmica como dominante, como também, deformar a palavra, desprovendo-a de significados semânticos, formatando-as em uma sonoridade específica e em componente pictórico. 183 MEYERHOLD, V. Princípios da Biomecânica. In: MALCOVATI, F. Op. cit., p. 77. Ver Anexo I desta pesquisa. 184 CHAVES, Yedda C. Op. cit., p. 45. 185 MALCOVOTI, V. Op. cit., p. 7. 186 Ver Anexo I, p. 169-175.
101
estabilidade do corpo. À menor tensão, todo o corpo reage”187. É imprescindível para a
realização de qualquer ação acrobática a tonificação das partes do corpo. Todas elas atuam no
movimento, o que garante a precisão, o virtuosismo e a expressividade do salto. Todo o corpo
deve atuar em um salto mortal, porque o “abandono” de qualquer parte durante o movimento
custaria a vida do acrobata.
Meierhold solicita de seus atores a extrema racionalização do gesto, já que “A
biomecânica não tolera nada de casual, tudo deve ser feito conscientemente, com cálculo. A
todo o momento o ator deve estabelecer e saber à perfeição em que posição se encontra seu
corpo.”188. Na acrobacia, é essencial pensar o rolamento, o salto ou a pirueta antes e durante a
execução. Isso para qualquer correção da postura corporal durante o seu desenvolvimento,
possibilitando o seu reparo e o aumento da expressividade. Paralelamente a todos esses
elementos, o acrobata deve estar consciente de cada parte do corpo em relação ao espaço,
onde colocar a mão e o pé durante a execução do movimento, se a perna está esticada, onde e
como cair, quantos passos caminhar para realizar o salto. O cálculo deve ser preciso e, para
tal, é solicitada algo semelhante a uma “calma imperturbável” e “perfeito equilíbrio”, já que
“os requisitos básicos da Biomecânica são a coordenação no espaço e em cena”189.
Em relação aos procedimentos citados, o rakursy solicita do ator a consciência do que
se está mostrando em cena, por meio da plasticidade que os corpos assumem. O jogo do
rakursy é justamente esta habilidade de colocar e deslocar o corpo no espaço cênico, ou seja,
as variações visuais da forma que o corpo assume numa determinada posição para o
espectador. Assim como para o acrobata, que a todo o momento revela diversas perspectivas
do seu corpo colocado em situação pouco comum ao espectador, o ator meierholdiano “deve
dar conta imediatamente de cada mudança de posição do seu corpo em cada mínima parte”190.
187 Ver Anexo I, p. 169. 188 Ver Anexo I, p. 173. 189 Ver anexo I, p. 170. 190 Ver anexo I, p. 171.
102
O acrobata deve possuir um amplo domínio do corpo e isto é consolidado por meio do
seu treinamento e exercícios de preparo físico. Uma boa condição física regulamenta a boa
atuação do circense. Por outro lado, Meierhold requer do ator que cada tarefa venha
programada com precisão em conexão ao espaço cênico para que o movimento esteja
rigorosamente organizado. Isto, para o encenador, afirma a ideia segundo a qual “o
fundamento do nosso sistema de interpretação é a condição física do material sobreposto ao
treinamento”191.
A severa economia de movimentos e o controle do corpo são primordiais ao acrobata
e ao ator meierholdiano. De modo algum se deve esgotar toda a reserva de material – o corpo
– de que se dispõe, o que implica uma precisão e agilidade característica do corpo acrobático.
Ao organizar o próprio material, é necessário o reconhecimento “das próprias possibilidades e
todos os expedientes técnicos dos quais dispõe para realizar um dado propósito”192. A
Biomecânica tem um princípio segundo o qual “o corpo é a máquina, o ator é o mecânico”193.
A noção do otkaz194, fundamental no trabalho da Biomecânica, pode ser entendida
como um movimento que tem seu ponto de partida no sentido contrário ao seu
desenvolvimento e tem como objetivo preparar o ator para a execução da ação. Em paralelo,
os movimentos acrobáticos se fundamentam neste princípio. Para a realização de um flic-
flac195, por exemplo, o acrobata deve primeiro flexionar joelhos e tronco, deslocando seu
centro de gravidade para baixo, para criar as alavancas para o salto. O princípio da oposição,
otkaz, na Biomecânica tem uma função ampla e complexa e, portanto, indispensável ao ator
meierholdiano, visto que, “é a recusa da própria expressividade inerente do puro automatismo,
191 Ver anexo I, p. 172. 192 Ver anexo I, p. 174. 193 Ver anexo I, p. 175. 194 Em russo significa recusa. 195 Flic-Flac é um movimento preparatório para acrobacias. O ginasta leva os braços ao solo ao mesmo tempo em que seus pés deixam o solo, usando um grande impulso dos ombros. Pode ser executado para a frente ou para trás
103
e que necessita de uma constante vigilância e principalmente da contínua possibilidade de
freio”196.
Não é ingênuo o olhar de Meierhold em relação às técnicas circenses. O sonho de um
ator dotado de uma polivalência técnica, articulada em função da cena, pretendia consolidar
uma atuação sintética. O ator como um dançarino, um acrobata, um malabarista do palco. O
ator, que num primeiro momento deveria voltar-se para fora do teatro (para o equilibrista,
palhaços, trapezistas... para os artistas de circo) e adquirir os saberes, técnicas e disciplina que
lhe falta. Esculpir, portanto, um corpo maravilhoso:
O teatro começará a se tornar algo de grande quando o ator dotar de uma nova forma o material que lhe foi dado, uma nova forma que a natureza não deu ao homem e que só o ator pode criar em si, cinzelar e mostrar. Se o ator observasse mais amiúde o trabalho do acrobata!197
2.3. Viva o Malabarista! (1917)198
Meierhold era um apaixonado declarado pelo circo. Se no Estúdio da Rua
Borondiskaia nos anos de 1910 ele já levava, como exposto anteriormente, os alunos quase
todas as noites aos pequenos circos de São Petersburgo, na década seguinte sua evolução
teatral passa pelas atividades do picadeiro, pelo teatro de praça pública que, como será visto
mais adiante, o novo contexto político e social russo passa a defender e desenvolver. Dois
meses antes de outubro de 1917, o encenador russo se questiona: “Por que então vocês,
acrobatas russos, não vão à direção deste povo que tanto lhes espera?”199
Depois da derrubada da autocracia do Czar Nicolau II, em fevereiro de 1917, a Rússia
enfrentava tentativas de estabelecimento de uma República de cunho liberal. É sobre tal
ambiente de grandes estremecimentos políticos que Meierhold opõe-se ao “teatro literário”,
196 CHAVES, Yedda C. Op. cit., p. 131. 197 MEYERHOLD apud PICON-VALLIN. Op. cit., 2006, p. 28. 198 Texto originalmente escrito por V. E. Meierhold e publicado na Revista Eho Cirka, n. 3, p. 3, em agosto de 1917, não reeditado. Ver tradução para o português em Anexo II, p. 176-181. 199 Ver Anexo II, p. 180.
104
fundamentado no psicologismo da cena naturalista e aprisionado na estreita caixa cênica. O
encenador defendia o teatro popular e o circo, que ao romper com o edifício teatral deveria
ganhar as ruas. O teatro desejado por ele quer ficar “mais próximo do circo encarado sob o
ângulo do feito esportivo do que da magia das máscaras”200. Isso porque o tempo era outro,
não viviam mais “em tempos de decadência de espírito, em tempos de desesperança”201 e,
assim, a recuperação do circo deve-se por seu apelo ao seu dinamismo, ao gosto do risco, pela
flexibilidade e habilidade do corpo humano que triunfa sobre qualquer limitação ou bloqueio
– o acrobata como o super-homem, o Bogatyr.
Em agosto de 1917, Meierhold publica Viva o Malabarista!. Em linhas gerais, neste
artigo, consagrado aos artistas do picadeiro, ele descreve uma multidão de espectadores, em
um grande tédio, perante o “jorro impetuoso de palavras derramadas”202 por um orador
partidário de Lênin. Enquanto isso, do outro lado da rua, um malabarista cativa toda atenção
do público com o seu rato adestrado, espadas, mágicas, argolas e firulas. Instala-se uma zona
repartida em dois mundos completamente distintos: o do orador e o seu comício e o do
malabarista de rua com suas habilidades vertiginosas. Sem dúvidas, para Meierhold, é a força
deste circense que encanta o público e vence o declamador. A nova época exige audácia e
uma coragem imensa, o povo russo carece de distração: “Veja como seu público (os de teatro
de inverno) se entedia, como se convalesce, como ele parece esperar alguma coisa”203. Um
público que esmagado pelo tédio não conhece mais a alegria. Meierhold vê nas manifestações
circenses a possibilidade de fazer fluir no homem “dentre o nosso sangue o doce veneno da
audácia”204.
Este artigo traduz ainda, uma ode ao balagan, que siginifica “barraca de feira de
atrações” em russo, que antes de 1917 tinha por consequência leveza contundente, formas de
200 PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 7. 201 Ver Anexo II, p. 178. 202 Ver Anexo II, p. 176. 203 Ver Anexo II, p. 179. 204 Ver Anexo II, p. 179.
105
concisão modernas, virtuose corporal, rejeição à predominância da palavra e magia. O
balagan oferecia a Meierhold a liberdade artística tão desejada, bem como representava a
imagem dual da condição humana. Quando criança, ele frequentou as barracas de Penza, sua
cidade natal, que o marcaram profundamente. Nota-se, portanto, a utilização do recurso em
suas obras, sobretudo, nos anos de 1920, “com suas marionetes em tamanho natural, seus
malabaristas orientais, Kalmouks (povo de origem mongol) mudos com serpentes amestradas,
realejos com papagaios, ou ainda passos de gigante em que os jovens voam pelos ares”205.
A origem do termo “Balagan” é tártara, e na Rússia simboliza a barraca montada em
dias festivos, em terrenos baldios e relativos às feiras nas cidades e nos burgos, onde podem
ser vistos acontecimentos completamente fora do comum. Ela era apenas uma parte de uma
tradição cultural popular russa que incluía bazares e bufões, trovadores, vendedores
ambulantes e charlatões, além de brinquedos de parques de diversão (carrossel, rodas-gigantes
e balanços). Por volta do século XIX, no entanto, muito dessas características desapareceram,
ou melhor, fundiram-se com o circo, às viagens dos prestidigitadores, ao marketing das pulgas
e, ulteriormente, ao cinema206.
Nesses espaços eram apresentadas todas as formas de arte do espetáculo: o “teatro de
bichos”, realizado por domadores, exibição de animais de circo e combate entre animais; o
“teatro mágico”, com seus prestidigitadores, ilusionistas, hipnotizadores, autômatos,
exibidores de monstros e figuras bizarras; o “teatro dramático”, feito por atores ou
marionetes; e demonstração de habilidades ou de força humana, malabaristas, funâmbulos e
acrobatas. Em muitos aspectos, tais diversões eram cópias dos modelos das feiras da Europa
Ocidental, mas tudo o que veio do exterior foi imbuído das especificidades do “espírito
russo”207.
205 PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 3. 206 BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s Silver Age. Londres: Thames and Hudson, 2008, p. 262. 207 Ibid., p. 262.
106
As formas do teatro de balagan, desenvolvidas a partir da passagem dos atores italianos
na Rússia, conserva o tom sintético, em espetáculos curtos entre cinco e dez números. Picon-
Vallin208 ainda afirma que opera entre eles uma fusão mais estreita, graças aos atores que são
também acrobatas, funâmbulos, mágicos, engolidores de fogo e palhaços, sendo na agitação e
balbúrdia das grandes feiras que são representados seus dramas.
No fim do século XIX esse formato de teatro esbarra no desprezo da intelligentsia
liberal que se dedica à criação de “teatros populares”, com fins didáticos e que se direcionava
para as classes de menor renda. Estes espetáculos gratuitos favorecem a marginalização dos
balagany, achatados por uma cultura dominante que vigia e censura. Nesse sentido, se por um
lado desaparecem as barracas de feira de atrações, por outro, conforme visto no capítulo
anterior, o circo passa por um período de incorporação de artistas e técnicas, englobando um
grande número de atores do balagan, enquanto outros mudam para os parques de diversão.
Também nessa época, apesar de sufocado por estes teatros “populares”, o balagan “reaparece
nos artistas, no âmbito de uma visão estética que se interessa por suas figuras exóticas numa
óptica ‘retrô’, historicizante, estilizada”209.
No pensamento meierholdiano, o balagan torna-se aos poucos um conceito de trabalho
que universaliza de maneira heterogênea as formas de expressão da cultura popular, seja o
circo, as variedades, a Commedia dell’Arte, a pantomima. Elas são entendidas como
fundamentais e extremamente necessárias para erguer o teatro do futuro, adotando como
pilares o tradicional ofício do ator e, simultaneamente, a nova concepção do encenador
relativa à composição e cujos procedimentos Meierhold experimentava no Estúdio. Nasce aí
um teatro que instiga à ação, à luta, e renova as energias do público para as dificuldades da
vida cotidiana.
208 PICON-VALLIN, B. Op. cit., 2008, p. 3. 209 Ibid.
107
Como declara ainda Picon-Vallin210, a palavra cirkizacija (“cirquização”) foi inventada
em russo nesta época. Ela foi proclamada por toda a escola meierholdiana, especialmente após
1917, exaltando em primeiro lugar toda a alegria do picadeiro que devolveria para o palco o
regozijo, a satisfação e o heroísmo. O desejo era injetar no teatro os “sumos vivificantes” do
circo. A imagem do artista circense como fonte do renascimento, aquele que salta e não cai, o
corpo superpoderoso, que encarna o espírito revolucionário. Embriagado deste pensamento,
em novembro de 1920, Meierhold recomenda instalar trapézios em cena para que acrobatas
pudessem trabalhar.
Esta ideia de fonte de renascimento reflete o princípio material e corporal que é
apreendido como universal e popular pelo pensamento de Bakhtin:
O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas o povo, um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por isso o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse exagero tem um caráter positivo e afirmativo. [...] A abundância e a universalidade determinam por sua vez o caráter alegre e festivo (não cotidiano) das imagens referentes à vida material e corporal. O princípio material e corporal é o princípio da festa, do banquete, da alegria, da “festança”211.
Tudo isso revela um procedimento chave presente no teatro popular e no circo, que vai
contaminar a vanguarda russa e o teatro meierholdiano, o grotesco212:
A imagem grotesca caracteriza um fenômeno em estado de transformação, de metamorfose ainda incompleta, no estágio da morte e do nascimento, do crescimento e da evolução. A atitude em relação ao tempo, à evolução, é um traço constitutivo (determinante) indispensável da imagem grotesca. Seu segundo ato indispensável, que decorre do primeiro, é a sua ambivalência: os dois polos da mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce, o princípio e o fim da metamorfose – são expressados (ou esboçados) em uma ou outra forma.213
210 Ibid., p. 7 211 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1993, p. 17. 212 O grotesco no teatro de Meierhold é um procedimento de grande complexidade. Ele o reconhece como uma etapa fundamental no princípio de estilização, que adota o método rigorosamente sintético. O grotesco cria o sentido de inverossimilhança ao associar os polos contrários e ao exacerbar conscientemente as contradições. Meierhold afirma: “O essencial no grotesco é a constante tendência que o artista tem em transportar o espectador de um plano, apenas alcançado, para um outro plano, absolutamente imprevisível e inesperado”. MEYERHOLD, V. La Rivoluzione Teatrale. Tradução e organização de Giovanni Crino. Roma: Editori Riuniti, 1962, p. 123. 213 Ibid., p. 21-22
108
Esta lógica enfatiza a vontade do rompimento do teatro dramático, por Meierhold,
por meio da restauração de uma atuação sintética, audaciosa, corajosa, repleta de alegria e
consciente de suas habilidades. Para tanto, solicita o retorno do teatro de feira, exige o
aparecimento do Petrouchka214 e do Teatro de Marionetes. E, especialmente, propõe para os
artistas de circo que eles ofereçam a sua arte “a estes que têm sede do seu excentrismo, que
desejam o canto do seu corpo maleável, que param à sua frente, suplicando para que lhes
deem um espetáculo, apesar de todo seu tédio na reza para o pão de cada dia?”215
Meierhold se empenhou em criar uma nova cultura corporal o ator por meio das
técnicas circenses; seu desejo era desenvolver o ator acrobata, malabarista, equilibrista, o ator
dançarino, músico embutido de uma polivalência técnica como os intérpretes orientais. E em
sua empreitada, buscava estruturar não só um corpo saudável, ágil, habilidoso, forte e
audacioso, como também uma mente equilibrada. Em 15 de maio de 1919, afirma:
O circo é uma casa onde a arte da educação física, da beleza física, eleva-se em grande altura. [...] Um corpo saudável, um espírito também saudável... Quanto mais intensa é a luta espiritual que é preciso sustentar, tanto maior é a força física que se necessita. Organizaremos escolas de onde sairão corpos belos e cheios de ânimo, um rosto radiante216.
Reconhece-se aí o desejo de elevar o intérprete ao patamar do “homem novo”,
engajado na luta revolucionária. A construção do corpo esportivo e subversivo viria por meio
do processo de “cirquização” que ganha potência nos anos 1920, porém afunda suas raízes nas
décadas precedentes. A virtuose, a força e a precisão do jogo físico do acrobata, sem qualquer
trato psicológico, abrem espaço para a criatividade corporal do novo ator. Meierhold
reconhecia nos artistas de circo a multiplicidade de técnicas, visto que cada um possui
214 Petrouchka é um ballet cuja música foi composta pelo russo Igor Stravinsky e coreografado por Michel Fokine. A história é sobre um fantoche tradicional russo, Petrouchka, feito de palha e com um saco de serragem como corpo, que acaba por tomar vida e ter a capacidade de amar. O teatro de marionetes era uma referência importante para Meierhold na medida em que colabora para a expressividade do gesto, precisão, beleza do movimento e síntese em oposição à psicologia das personagens. 215 Ver Anexo II, p. 181. 216 MEIERHOLD apud FEVRALSKI, A. Meyerhold y el circo. In: El circo soviético. Organização: A. Litovski. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 319.
109
competências e habilidades múltiplas como a música, a dança, a mímica, a palavra. Nesse
sentido, Meierhold requer um ator que volte a ser acrobata, tanto no nível da formação como
no da criação.
A polifonia teatral experimentada pelo encenador russo, “no qual os elementos que
compunham a cena perdiam sua função ilustrativa e ganhavam autonomia, podendo inclusive
divergir”217, sugere ao ator que se transformasse também em instrumento cênico polifônico.
De fato, o discurso cênico de Meierhold no período solicitava a coexistência de contrários, a
junção de planos, a justaposição. Contaminado pelas ideias do simbolismo e da tradição
teatral, ele requeria uma cena constituída por pequenas estruturas independentes, que quando
organizados pelo encenador, ordenavam uma complexa partitura cênica, embriagada de
diversidade e, portanto, polifônica.
A organização dos estudos e pantomimas no Estúdio demonstrava que o processo de elaboração e criação das cenas realizava-se em um sistema de decomposição de partes. Ao separar cada seguimento da estrutura cênica, Meierhold descobriu a possibilidade de existência simultânea e de independência dos planos. A pantomima e a música, coincidentes ou não, corriam em um plano paralelo e formavam o que ele denominou polifonia218.
As habilidades circenses era um dos recursos expressivos para tal mudança e pode ser
visto não só como procedimento técnico durante a formação do ator, mas também exposto em
cena, a exemplo de suas encenações dos anos de 1920. Descobrindo a importância do
treinamento atlético para o ator, aproximando-os aos funâmbulos e acrobatas, ele anuncia a
Biomecânica.
Goethe dizia que o ator devia assemelhar-se a um funâmbulo. Claro, não entendia dizer que um ator que interpretasse Hamlet devesse dançar sobre uma corda. Mas, é justamente em virtude dele poder assemelhar-se a um boneco, fantoche, que ele pode obter efeitos que outro ator nunca obteria219.
217 THAIS, Maria. Op. cit., p. 154. 218 Ibid., p. 169. 219 MEYERHOLD, V.E. Aulas no GVYTM, 1921. In: MALCOVATI, F. Op.cit., p. 61
110
Tudo isso é resultado de uma investigação nos anos de 1910 que prenuncia as
realizações de Meierhold durante o período soviético. Por outro lado, o encontro com
Vladímir Maikóvski possibilita um grande amadurecimento cênico para o encenador, pois
eram muitas as suas afinidades artísticas, estéticas, políticas e ideológicas. Com Mistério-
Bufo, escrito por Maiakóvski, em 1918, Meierhold “encontra, enfim, uma expressão concreta
da Revolução”220 e pode experimentar as pesquisas sobre a ideia da polifonia do teatro
formuladas por ele durante o período no Estúdio da Rua Borondiskaia.
220 PICON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater, vol. II. Paris: La Cité – L’Age d’homme, 1975, p. 9.
111
CAPÍTULO III
A “cirquização” do teatro: Mistério-Bufo (1918 e 1921), de
Meierhold-Maiakóvski.
Queria que o palco fosse tão estreito como a corda de um equilibrista:
isto tiraria de muitos tolos o desejo de ir pra cena.
Aleksander Taírov
112
Até aqui esta pesquisa mapeou a aproximação entre o circo e as demais linguagens
artísticas na Rússia, desde a virada do século XIX para o XX até os anos que antecederam a
Revolução de 1917. O movimento simbolista desenvolvido naquele país é uma referência
imprescindível, pois engendrou modificações literárias e artísticas que reverberam no
pensamento russo e, particularmente, serviu de suporte para as experimentações da vanguarda
cubo-futurista. Movimento que foi embebido pelo ideal do “homem novo”, que já se
enraizava na sociedade eslava pré-revolucionária, conforme visto nos capítulos anteriores, e
se tornou símbolo da Revolução, a partir de 1917.
O teatro de vanguarda desenvolvido na Rússia orientou-se pela abstração221,
experimentada tanto na dramaturgia quanto na cena. Isto ocorreu em reação ao naturalismo e
se acentuou a partir de 1917. Toda esta renovação que se processou nas linguagens artísticas
foi sugada pela cena pós-revolucionária, que resultou numa junção de novas propostas e
práticas teatrais. Os primeiros anos após a Revolução Russa, portanto, foram regidos “sob o
signo do antirrealismo no teatro, e todas as novas tendências concebidas no período pré-
revolucionário se desenvolveram e se intensificaram depois de 1917”222.
Reconhece-se que, nos anos de 1920, tendo em vista as experiências artísticas das
décadas anteriores, houve uma vasta apropriação e utilização das artes circenses pela cena
teatral223. O encenador Vsévolod Meierhold não ficou alheio a isso. Mesmo antes da
221 A arte abstrata tende a eliminar a relação entre a realidade e a tela, entre planos e linhas, as cores e a significação que esses componentes podem suscitar no espírito. Neste caso, a acepção do quadro depende intimamente da cor e da forma, elementos de maior expressividade, quando o artista rompe com os elos que conectam a sua obra à realidade percebida ou visível, ela passa a ser abstrata. O pintor russo Wassily Kandinsky (1866-1944), por exemplo, queria pintar sentimentos, desejos e paixões da alma. Ele oferecia mais valor ao espiritual das coisas do que o modo como elas são vistas e assumiu o princípio de liberdade do artista para expressar sentimentos interiores. 222 CAVALIERI, Arlete. O teatro de Maiakóvski: mistério ou bufo?. In: Teatro Russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas, 2009, p. 266. 223 É extensa a lista de encenadores que utilizaram os procedimentos circenses para composição das suas obras. Um dos casos são os espetáculos dirigidos por Sierguéi Radlov, no Teatro da Comédia Popular, em 1920-1922, que utilizavam artistas de circo em suas encenações, como o acrobata A. Serge Aleksandrov, por exemplo, que em A macaca delatora interpretava a macaca, pendurado no trapézio, e na perseguição final subia ao topo da sala balançando sobre os espectadores. Cabe mencionar também que neste Teatro apresentavam-se “comédias de circo” (“tzírkovie comiédii”) como: O filho adotivo, O amor e o ouro e O Sultão e o Diabo. Dentre outras experiências, destacam-se as de Grigóri Kózintzev e Leonid Trauberg cujos espetáculos se apoiavam no credo do
113
Revolução, o circo já era uma de suas paixões – vale ressaltar as referências ao picadeiro no
Estúdio da Rua Borondiskaia – ;“depois de 1917 muitos momentos de sua evolução teatral
passam pelo circo, pelo teatro de praça pública, que o novo contexto político e social deve
defender”224. O encontro com Vladímir Maiakóvski, em cujas obras “o que chama mais
atenção é sempre a feliz junção das experiências modernas com a tradição do teatro
popular”225, possibilitou o aperfeiçoamento e o aprofundamento de tais elementos a partir de
uma dramaturgia.
Em dezembro de 1913, Meierhold assistiu à performance, em São Petersburgo, da
primeira peça de Maiakóvski, intitulada Vladímir Maiakóvski: uma tragédia, e, sem dúvida,
detectou afinidades com a obra vista. Meierhold, ao longo de sua carreira, esteve interessado
no trabalho de novos dramaturgos. Apesar de sua grande admiração por Aleksandr Blok, foi
com Maiakóvski que o diretor estabeleceu a relação mais frutífera, e, ainda que esta parceria
tenha produzido apenas três espetáculos nos anos de 1920, ela pode ser considerada como
fundamental para o contexto artístico da época226. Não se sabe precisar se foi no ano de 1915
ou 1916 que os dois se encontraram, quando Maiakóvski frequentou o Estúdio da Rua
Borondiskaia, onde lia seus poemas para os estudantes. Em 1917, a amizade amadureceu, pois
como declarava o próprio Meierhold havia uma concordância imediata entre ambos sobre
questões políticas, que ganhava uma importância primordial.
O fato é que as convicções artísticas de Maiakóvski concordavam com as de Meierhold,
por exemplo, os dois também admiravam os excêntricos do circo, os acrobatas e os gêneros de
excêntrico americano; eles organizaram, em 1922, o Estúdio Dramático FEKS, a Fábrica do Ator Excêntrico que visava “[...] transformar o teatro numa síntese de rixas, algazarras, acrobacias, perseguições, num jogo de incessantes transformações ‘tchetchotka’ (dança rítmica, espécie de ‘ponta e salto’) como base do novo ritmo”. Ver mais em: RIPELLINO, Angelo Maria. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 144. 224 PICON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater, vol. II. Paris: La Cité – L’Age d’homme, 1975, p. 8. 225 RIPELLINO. Op. cit., 1971, p. 224-225. 226 Esta pesquisa não pretende deter-se e analisar extensamente a parceria entre Meierhold e Maiakóvski, bem como as obras produzidas. Há diversos estudos sobre isto. Ver mais em: LEACHED, Robert. Meyerhold and Maiakovsky. In: Vsevolod Meyerhold. New York: University of Cambridge, 1989, p. 152-167.
114
feira. Nota-se que grande parte da atividade teatral do poeta cubo-futurista desenvolve-se
segundo a prática meierholdiana. Ainda para Ripellino227, as comédias de Maiakóvski
coincidem com as experimentações do encenador russo na impostação política, nos paradoxos
grotescos, na partição mecânica dos personagens em heróis e clowns, nos trechos polêmicos,
na tendência a dilatar hiperbolicamente as cerimônias, o ritual de um dado ambiente.
Durante a década de 1910, Meierhold e Maiakóvski estão imersos num complexo
momento histórico na Rússia, abordado nos capítulos anteriores, e vinculados às pesquisas
estéticas do período no que diz respeito às investigações e experiências inovadoras em poesia,
pintura e teatro. Esses dois artistas russos, junto a outro grupo de artistas, poetas, pintores,
músicos e diretores de teatro também buscavam a transformação nas artes, motivados pela
efervescência do contexto revolucionário.
Em Maiakóvski, como relata Cavalieri228, o vigor e entusiasmo criativo convergiam,
particularmente, para a busca incessante de uma inovação estética e artística capaz de
expressar a conjuntura da sua época e de contribuir de modo fundamental para a criação de
um novo mundo que, então, surgia a partir da recém-criada sociedade soviética. A sua
personalidade não só como artista, mas como homem de seu tempo, converteu-se quase num
emblema da Revolução Russa de 17, já que o poeta se considerava um artista do povo
operário e à serviço do poder do proletariado.
O ano de 1917 é um claro divisor de águas para a Rússia. No que se refere aos caminhos
desta pesquisa, não se pode desconsiderar a repercussão deste período na política, na cultura e
na arte russa e, sobretudo, na trajetória artística de Meierhold-Maiakóvski. Enquanto diretor
no Teatro Imperial, por exemplo, Meierhold acolhe a Revolução de braços abertos, pois
“sempre teve uma percepção muito aguda, muito espontânea dos acontecimentos, e é nisto
227 Ibid., p. 234. 228 CAVALIERI, Arlete. Op. cit., 2009, p. 263.
115
que podemos ver seu maior engajamento”229. Neste movimento, em 1918, com colaboração
de Maiakóvski, o encenador leva à cena Mistério-Bufo, a primeira peça soviética, em que os
atores são palhaços e acrobatas.
Mistério-Bufo é um elemento-chave para esta pesquisa, pois não só se verifica nesse
espetáculo a expressão dos princípios meierholdianos experimentados no Estúdio da Rua
Borondiskaia, como também se reconhece a imagem do Bogatyr ao revelar em cena o corpo
acrobata e outros procedimentos circenses.
No entanto, para se chegar a tal momento, de antemão cabe abordar historicamente um
primeiro e importante ponto de transformação que desencadeará as análises que se seguem.
3.1. Os novos rumos a partir de 1917 na Rússia
Troa na praça o tumulto! Altivos píncaros – testas! Águas de um novo dilúvio lavando os confins da terra.230
A partir do século XV, a Rússia adotou o regime político czarista, de caráter despótico,
que se converteu em poder onipresente e decisivo. O czar (ou tzar), monarca autocrata,
governava amparado socialmente pela nobreza rural. O Estado regido pelo czarismo foi
formado originalmente por Ivan, o Grande; Basílio III e Ivan, o Temível; entre 1462 e 1584,
sendo que o último coroou-se imperador supremo e intitulou-se “czar autocrata eleito por
Deus”.
A sociedade russa foi obrigada a unir-se em torno do czar para defender sua terra natal
e, assim, o que restava era aceitar a organização do regime. O século XIX prenunciava 229 PICON-VALLIN, Beatrice. Op. cit., 1975, p. 7. 230 Nossa marcha, 1917. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Poemas. Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 83.
116
revoltas contra o poder; dentre elas, a geração da intelligentsia, marcada pela tomada de
consciência e pela propagação do desejo de transformação. Foram necessárias várias décadas
para que ela vencesse.
Ferro231 afirma que por muito tempo o atraso econômico e as tentativas fracassadas de
revolução constituíram outros tantos obstáculos à transformação da sociedade. Imobilizados
em sua situação, os trabalhadores da cidade ou do campo eram animados por uma consciência
revolucionária mais viva que em outros países. Como tinha chegado tarde à cidade, a classe
operária, “marcada na carne pelo longo martirológio do campo russo”232, permanecia como se
estivesse em solo estrangeiro, em sua grande maioria fora do centro da povoação,
participando do movimento das greves, manifestações e das repressões.
Uma grande parte do povo russo opunha-se ao sistema de governo dos seus dirigentes
e reconhecia a necessidade de derrubar o czarismo – “era para ele um dever tão sagrado como
a defesa da pátria”233. Foi sob tal perspectiva que, em 1905, brotou uma grande sublevação
que teria por objetivo fundar uma nova sociedade. Elaborou-se uma petição234 ao czar Nicolau
II, organizada pelo padre Gapon235, em nome dos trabalhadores urbanos e rurais, para ser
entregue no Palácio de Inverno, acompanhada de uma manifestação pública. Em 9 de janeiro
de 1905, os manifestantes pacíficos, operários e suas famílias, ao se dirigirem ao Palácio,
foram “metralhados à queima-roupa por milhares de soldados. Durante a noite, trens repletos
231 FERRO, Marc. A revolução russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 16 232 Ibid. 233 Ibid., p. 15. 234 Neste documento exigiam liberdade de imprensa, tanto falada quanto escrita, bem como liberdade de associação sindical; direito de greve; o desapossamento de grandes latifúndios em virtude das comunidades camponesas; educação gratuita e obrigatória; convocação de uma Assembleia Constituinte; 8 horas de jornada de trabalho. 235 Padre George Gapon (1870-1906) padre cristão ortodoxo russo, quem liderou a manifestação de janeiro de 1905. Depois da repressão do czar aos manifestantes, o padre Gapon redigiu um documento pedindo-lhe perdão; o czar, em troca, pediu que ele informasse à Okharana (polícia secreta) tudo o que soubesse sobre o Partido Socialista Revolucionário, no passado e suas relações atuais, pois sabia que o padre tinha envolvimento com este grupo. Gapon foi enforcado por trabalhadores, membros do partido, que descobriram a delação.
117
de cadáveres conduziam-nos aos bosques, para enterrá-los em valas comuns abertas às
pressas”236. Este dia entrou para história como o Domingo Sangrento.
No dia seguinte houve greve geral e, em São Petersburgo, entre janeiro e fevereiro
funda-se o primeiro Soviet, resultado de um movimento recíproco entre os trabalhadores com
o objetivo de arcar com o período da greve. Outros Soviets surgiram pelo país, o que garantia
uma ação social estável e segura. Em outubro de 1905 ocorre uma greve geral nacional na
Rússia, estruturada pelos Soviets, movimento operário e comitês de fábrica. O regime czarista
reage e há prisões em massa de opositores e o desaparecimento dos Soviets. Uma insurreição
armada é organizada pelos operários de Moscou, mas, em dezembro de 1905, ela é destruída
pelo exército.
Nesse contexto, é imprescindível mencionar a formação de dois grupos políticos de
ações determinantes para a Revolução. Tais facções, resultantes do Partido Operário Social-
Democrata237, foram dividas em duas correntes distintas num dos congressos do partido, em
1903, com o objetivo de criar uma organização unida. Na ocasião, um jovem intelectual
utilizando o pseudônimo de Lênin238 expôs suas posições políticas: somente a classe operária,
juntamente com o campesinato, forçaria a burguesia a realizar a Revolução e, uma vez
derrotado o czarismo, poderia ser instituído um governo provisório e centralizado. Lênin teve
o apoio da maioria, mas logo o grupo se dividiu em dois: o que obteve o maior número de
votos sobre a questão da estrutura partidária foi chamado de bolcheviques239 (majoritários); o
236 TRAGTENBERG, Maurício. A Revolução Russa. São Paulo: Editora Unesp, 2007, p.81. 237 O Partido Operário Social-Democrata foi fundado em 1898 para reunir as diversas organizações revolucionárias em um mesmo partido. Seus membros estavam vinculados às teorias de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) e acreditavam que o proletário concentrava o real potencial da revolução. Ver mais sobre este partido e a organizações dos demais em: Ibid., p. 83-86. 238 Nome de nascimento Vladimir Ilyitch Ulianov (1870-1924), depois chamado de Vladimir Ilyitch Lenin. Foi um dos chefes de Estado da Rússia e revolucionário. Foi também um dos responsáveis pela Revolução Russa de 1917. Influenciou teoricamente os Paridos Comunistas pelo mundo, o que resultou na criação de uma corrente intitulada leninismo. 239 Os bolcheviques eram liderados por Lênin e seus personagens fundamentais eram Trotski, Lunatcharski, Kamenev, Zinoviev, Radek. Eles defendiam que os trabalhadores somente chegariam ao poder por meio da luta revolucionária. “Paz imediata e revolução socialista mundial eram seus objetivos principais. No plano interno, implantação da ditadura do proletariado, dominação dos Soviets e sindicatos e dissolução da Constituinte”. Ver mais em: Ibid., p. 86.
118
outro, a minoria, foi chamado de mencheviques240 e era liderado por Julius Martov (1873-
1923).
Depois das experiências de 1905, Nicolau II recuou e prometeu reformas no país ao
convocar eleições para a Duma241 (parlamento), que estava subordinada aos poderes do czar e
tinha caráter consultivo. Outro fato importante que antecede a Revolução de 1917 ocorreu em
1914, quando a Rússia envolveu-se na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e sofreu uma
grande derrota no combate contra os alemães. A Rússia não estava preparada para enfrentar
uma guerra de longa duração e por não possuir um corpo suficiente de oficiais de reserva, o
exército sofreu uma desintegração considerável e logo os soldados russos, descontentes com o
seu governo, não viam motivos para seguir com a guerra. “A miséria e a fome levavam esse
soldado, filho de camponês ou camponês, a lutar pela paz e pela terra. Soldados se
amotinando contra oficiais, marinheiros contra seus comandantes e operários contra
patrões”242. As greves recomeçavam com proporções extraordinárias. A fome nas cidades, a
pobreza, a diminuição do poder de compra, a repressão provocavam no povo um sentimento
de descontentamento cada vez mais profundo.
O governo já não era capaz de deter a onda de insatisfação. Em fevereiro de 1917, os
grevistas saíram em passeata com o apoio dos bolcheviques e quase todas as fábricas entraram
em greve. Numa das marchas de operários em direção ao centro, oficiais atacaram e
dispararam contra os manifestantes, que fugiram. No entanto, o movimento dos soldados
coincidia com o ímpeto dos revoltosos e ambos se organizaram contra os oficiais. Em 27 de
240 Os mencheviques, liderados por Martov, Martinov e Axelrod, defendiam que os trabalhadores podiam conquistar o poder participando normalmente das atividades políticas. Pregavam que o início efetivo da ação revolucionária só seria possível com o desenvolvimento capitalista e o surgimento de suas contradições. Depois da experiência de 1905, os mencheviques tiravam a conclusão de que “era necessário ajudar a burguesia a derrubar o czarismo e, por isto, não cumpria ‘assustá-la’. Posteriormente, se deveria preparar o caminho para uma revolução socialista e prevenir toda a tentativa da burguesia de praticar uma política antioperária”. Ver mais em: FERRO, Marc. Op. cit., p. 20. 241 Ver mais sobre o papel da Duma no processo revolucionário em: Ibid., p. 26-30. 242 TRAGTENBERG. Op. cit., p. 87.
119
fevereiro, operários e soldados formaram uma passeata, tomaram as armas e invadiram o
Palácio de Inverno. Puseram fim, em 5 dias, ao reino dos Romanov.
O czar e a autocracia foram derrubados por um movimento popular. O novo
governo243, provisório e burguês, é estabelecido e chefiado por Kerenski, membro da Duma e
líder dos Soviets244, e conta com o apoio dos mencheviques, que não vislumbravam outra
alternativa. Para este grupo não era possível lutar imediatamente pelo socialismo, e não apoiar
o novo governo significava o retorno do czar. Na contramão deste pensamento, Lênin, em
exílio na Suíça, já observava as consequências negativas do capitalismo em toda a Europa e
como elas se manifestaram com a Primeira Guerra Mundial245. Com a notícia da queda do
czar, Lênin volta a Petrogrado, é ovacionado pelos operários e declara “todo poder aos
Soviets”.
A volta de Lenin a Petrogrado, em 13 de abril de 1917, foi imediatamente seguida da publicação de suas “Teses de Abril”, que estabeleceram a estratégia da Revolução de Outubro, proclamando a transição desde “a primeira etapa da revolução que ofereceu o poder à burguesia” à “sua segunda etapa, que haveria de colocar o poder na mão do proletariado e das camadas mais pobres do campesinato”246.
A burguesia, no novo governo, adota o comportamento de classe dirigente e pretendia
atingir seus próprios objetivos, “que quase sempre eram opostos aos das classes populares.
[...] a classe burguesa não pretendia deixar declinar o esforço da guerra, opondo-se por isto à
primeira das reivindicações operárias, as oito horas. Dizia-se também incapacitada para elevar
243 Não é interesse desta pesquisa analisar exaustivamente os processos da Revolução de 1917, que foram demasiadamente complexos, mas contextualizar o período e as principais mudanças que transformaram a arte russa e o teatro de Meierhold. Sobre o estabelecimento e o regime do Governo Provisório, após a Revolução de Fevereiro, ver: Ibid., 34-83. 244 Nesta ocasião, os Soviets estavam presentes por toda a Rússia e eram quase todos dirigidos por socialistas moderados (mencheviques, socialistas-revolucionários). Eles julgavam que a Revolução era essencialmente burguesa e consideravam que qualquer participação no poder seria prematura. A função dos Soviets era fiscalizar a ação governamental, para que ela exercesse as reformas democráticas que consolidaria, mais tarde, o regime socialista. Os bolcheviques, minoritários, optaram qualificar os Soviets como um gérmen do futuro Estado Socialista. 245 Para Carr, Lênin era um discípulo de Marx e, nas vésperas da Revolução, sua contribuição à economia do socialismo foi uma exaustiva e minuciosa análise da última fase da economia capitalista. Ver mais sobre os programas que influenciaram a economia socialista russa em: CARR, E. H. Historia de la Rusia Soviética: La Revolución Bolchevique (1917-1923) – El orden econômico. Madrid: Alianza Universidade, 1987, p. 15-38. 246 Ibid., p. 37.
120
os salários e contrária aos comitês de fábricas”247. Lênin esperava a oportunidade precisa para
atacar o Governo Provisório e pensava em termos concretos da Revolução Russa, em um país
com uma esmagadora maioria de camponeses, que desejavam uma distribuição melhor das
terras e a erradicação da fome248, além disso, o povo russo esperava uma reação do governo
contra a guerra mundial, um dos principais problemas da Revolução.
O processo de desintegração do Estado Russo continuou e com o descontentamento do
operariado as teses defendidas por Lênin tiveram grande repercussão. Assim, o partido
bolchevique foi ganhando cada vez mais espaço entre operários das grandes fábricas,
camponeses e soldados249. Diante de tal cenário, Lênin recebeu ordem de prisão e buscou
refúgio na Finlândia; entrementes, o general Kornilov tentou armar um golpe de Estado para
restabelecer o czarismo. O Governo Provisório buscou o apoio dos Soviets e dos bolcheviques
capazes de fazer frente à contrarrevolução. Com a vitória sobre Kornilov, o prestígio popular
bolchevique aumentou e Lênin, em 12 de setembro, escreveu uma carta intitulada “Os
bolcheviques devem tomar o poder”, explicitando os seus argumentos250.
Os trabalhadores, por meio dos Soviets, bem como soldados e marinheiros,
manifestaram sua adesão aos bolcheviques. Eles formavam a Guarda Vermelha e assumiram o
controle sem encontrar resistência. No dia 24 de outubro, somente o Palácio de Inverno
resistia aos manifestantes, mas logo Kerenski deixou a capital. No dia seguinte, o governo foi
derrubado e os bolcheviques marcharam e tomaram o Palácio de Inverno.
O novo Congresso de Soviets foi aberto e os bolcheviques foram eleitos como
representantes do Congresso. Lênin, Trotski e Lunatcharski surgiram como chefes da
Revolução. Um decreto bolchevique eliminou os latifúndios, terras foram distribuídas para os
camponeses e Lênin obteve o apoio esmagador dos operários, que passaram a ter o controle
247 FERRO. Op. cit., p., 44. 248 CARR. Op. cit., p. 38. 249 O historiador Marc Ferro chama esta recuperação da personalidade do partido bolchevique de processo de bolchevização. Ver em: FERRO. Op. cit., p. 81-83. 250 Ver mais em: Ibid., p. 85-88.
121
das fábricas. Outro elemento significante foi a saída da Rússia da Guerra Mundial pelo
Tratado de Brest-Litóvski251 e a institituição da ditadura do partido de Lênin em nome do
socialismo.
A Rússia estava fora da Guerra Mundial, entretanto, de 1918 a 1921, o país viveu uma
guerra civil: de um lado o exército branco, composto por ex-generais czaristas e republicanos
liberais contrarrevolucionários; de outro, e na defensiva, o exército vermelho com a adesão
dos operários e camponeses. Além disso, cerca de 14 nações estrangeiras – Estados Unidos,
Inglaterra e Japão, por exemplo – ainda se posicionaram contra o governo bolchevique e
enviaram tropas para ocupar a Rússia. Foi criado um “cordão sanitário” pelos países que iam
de encontro ao regime socialista com o objetivo de sufocá-lo economicamente. A Rússia, que
já estava arrasada e pobre, com a guerra civil ficou em uma situação caótica.
Para esta pesquisa, interessa apontar particularmente as repercussões da Revolução na
esfera cultural. Strada252 revela que se houve oposição dos intelectuais à Revolução de
Outubro, ela foi feita em nome de uma revolução democrática, em favor da Revolução de
Fevereiro que abrira os horizontes de uma nova esperança de vida na Rússia. Para este
historiador foi “precisamente na vida cultural que todas as contradições imanentes da
revolução bolchevique iriam se revelar desde o início com particular clareza, já que foi
própria dessa revolução a defasagem entre o dizer e o fazer”253.
Na época pós-revolucionária que se esboçou a partir de então, as formas e os
objetivos da vida política e intelectual da cultura russa sofreram uma transformação
251 Ver mais em: Ibid., p. 92-94. 252 STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.). História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: a URSS da construção do socialismo ao stalinismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 110. (v. IX) 253 Cf.: Ibid. Sobre isto, Strada compara o artigo “Os bolcheviques devem tomar o poder”, escrito por Lênin nas vésperas da Revolução em setembro de 1917, com a sua posterior declaração: “Somente o nosso Partido, depois de tomar o poder, pode garantir a convocação da Assembleia Constituinte; e, depois de ter tomado o poder, ele acusará os outros partidos de terem protelado indefinidamente a convocação e provocará a acusação”. Aqui, Strada aponta que Lênin subordina as reivindicações democráticas a “seu específico socialismo, entendido antes de mais nada como conquista do poder pelo partido, e que faz daquelas reivindicações um instrumento desta conquista” (Ibid., p. 110-111).
122
perceptível e abafaram aquela continuidade e liberdade que possibilitaram à política e à
cultura um vigoroso trabalho em conjunto, realizado ao mesmo tempo por colaboração mútua
e autonomia. Após a Revolução de Outubro, o elo estabelecido entre cultura e sociedade no
contexto pré-revolucionário254 se modificou, ou seja,
[...] se quebra e é substituído por uma relação de subordinação da cultura à política (uma política, obviamente, monopolizada por um só partido dotado de absoluto poder estatal); e, por outro, a vida artístico-literária perde gradualmente, mas de modo seguro, sua ligação criadora com a cultura, a qual é invadida por uma única ideologia, a marxista, inicialmente ainda em parte ligada ao marxismo “tradicional”, pré-revolucionário, mas depois cada vez mais fechada em sua esquematicidade e pobreza intelectual (o “marxismo-leninismo”)255.
Neste sentido, a vida cultural sofreu com a perda crescente de valores, de filósofos, de
economistas, de historiadores, etc., que abandonaram o país ou foram submetidos à censura.
Por outro lado, a arte e a literatura estabeleceram-se como o centro de “atividade espiritual do
país”256, e por consequência o foco de atenção do governo: elas eram manifestações
“populares” e ao mesmo tempo alusivas e matizadas, logo, passíveis de serem utilizadas como
meio de comunicação para amplas camadas da sociedade. O investimento na arte e na
literatura pelo governo, portanto, justificou-se como possibilidade de verificação e influência
por aqueles que estão no poder.
É nesse contexto de uma Moscou em guerra civil que o teatro encontrou o terreno
fértil pra prosperar257:
Anos de teatromania. Como células enlouquecidas, multiplicavam-se os círculos, os pequenos palcos, os estúdios, os laboratórios dramáticos. Nas festas, até mesmo as praças transformavam-se em teatro, enfeitando-se de painéis e marchetes pintados em cores berrantes. Faltava tecido para os vestidos, mas todo diretor sempre acabava conseguindo desencavar preciosos veludos e brocados para os figurinos. À noite, as “largas goelas dos teatros” (como se lê num verso de Mandelstam) derramavam
254 Na época pré-revolucionária a vida cultural da sociedade se conectava intimamente à vida política e social no seu conjunto. Sobre este assunto ver o capítulo I desta pesquisa. 255 Ibid., p. 112. 256 Ibid. 257 Não é objetivo deste momento da pesquisa realizar o mapeamento da produção teatral russa que emerge com a Revolução de 1917. Sobre este assunto consultar: RUDNÍTSKI, K. Russian & Soviet Theatre. London: Thames and Hudson, 1988. Outro estudo, em português, que pode se mencionado aqui sobre o assunto: GARCIA, Silvana. A matriz histórica do teatro de natureza política. In: Teatro da Militância: a intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990, p. 1-45.
123
sobre as ruas desertas, entre gelo, na escuridão, multidões “tétrico-jocosas” de espectadores258.
Após a Revolução, ainda no ano de 1917, Lênin assinou o decreto de Sovnarkom
(Conselhos de Comissários do Povo) e fundou o Comissariado do Povo para a Educação, o
Narkompros259; elegeu Anatoli Lunatcharski (1875-1933) como o primeiro comissário do
povo e transferiu o controle da vida teatral para o Estado. O mundo artístico se divide em
agora em dois campos. Uma parte era composta pelo grupo da vanguarda futurista, que se
dedicou às tarefas imediatas da Revolução, articulando sua arte às atividades de propaganda e
divulgação dos ideais revolucionários. As experimentações pré-revolucionárias do futurismo
com a cultura popular e com a linguagem poética e pictórica foram utilizadas para a criação e
confecção de panfletos e cartazes. Do outro lado estavam os homens que afirmavam a
impossibilidade de separar as artes e a sociedade, sua psicologia, seu passado e seu caráter
nacional.
Diante de tal panorama, o encenador Vsévolod Meierhold, particularmente,
aproximou-se das ideias futuristas e, ao mesmo tempo, defendeu uma prática artística
separada do Estado.
Eu tenho falado entre a separação da arte e do Estado (é o interesse da arte ao redor do mundo, é o interesse da Rússia inteira). Este comentário foi transformado pelo cronista do “Rietch” [jornal burguês contrarrevolucionário], que conclui que era “uma rejeição à Russia”. Minha proposta foi de afirmar a independência da arte sobre a política, para impulsionar a criação de uma Comuna mundial de artistas, única instituição capaz, sob o meu ponto de vista, de salvar o patrimônio artístico da destruição e de assegurar uma autêntica liberdade aos criadores. Pensei que isto fosse interpretado como um “apelo ao internacionalismo”260.
Meierhold esperava que o Governo Bolchevique fosse continuar com a política de não
intervenção nas artes, como aconteceu após a Revolução de Fevereiro com o Governo
Provisório. Os grandes artistas da vanguarda, de Blok a Maiakóvski, alimentaram-se desta 258 RIPELLINO, Angelo Maria. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 191. 259 Instituído em 27 de outubro de 1917, o Narkompros foi o departamento soviético responsável pela administração da educação pública e pela grande maioria das matérias relativas à cultura. 260 “Pis’mo Vs. Mejerhol’da”, Petrogradskaja vecernjaja pocta, 12/5/1917. In: ABENSOUR. Op. cit., p. 276.
124
utopia de uma arte livre, que poderia ser dirigida diretamente ao povo e, com isso, assegurar o
seu desenvolvimento espiritual261.
Meierhold, a convite de Maiakóvski e outros poetas futuristas, apresentou uma
exposição, em forma de manifesto, sobre o tratamento do teatro contemporâneo. Na ocasião,
ele colocou-se como defensor do pensamento da vanguarda cubo-futurista e esta seria uma
saída para o “retorno ao ‘anarquismo místico’ de sua juventude. Ele compartilhou com
Maiakóvski a ilusão que a rebelião anarquista e a rebelião das formas estavam operantes e
alinhadas com a revolução política e social em curso”262.
Dois campos de reivindicação passaram a ter o apoio das autoridades
simultaneamente: de um lado, a vanguarda; do outro, opostos às pretensões meierholdianas,
estavam os defensores do teatro como suporte político. Meierhold entende rapidamente que
será excluído se ele não se integrar ao Estado, “a máquina de decisões que está tomando
lugar”. Nessa fase de grande turbulência no seu país, ele compreendeu que é melhor participar
do poder do que ter de sofrer passivamente aos seus caprichos.
Em Petersburgo foi realizada a primeira conferência com o objetivo de discutir a
reorganização das artes. Lunatcharski convidou em torno de 120 artistas, dentre eles Blok,
Maiakóvski e Meierhold. Segundo Braun263, pode-se argumentar que Meierhold esteve
simplesmente utilizando a Revolução para propagar suas próprias reformas. A cautela, porém,
utilizada pela grande maioria dos participantes era significativa: o poder bolchevique ainda
não estava estabilizado e uma declaração de solidariedade, por alguns que estavam na
conferência, elevou-se a um perigoso ato de confiança em favor do partido revolucionário.
Meierhold foi um deles, e o único a se mostrar partidário de uma renovação imediata, de uma
atualização política de repertório.
261 ABENSOUR. Op. cit. 262 Ibid., p. 280. 263 BRAUN, Edward. Meyerhold on theatre. London: Methuen Drama, 1998, p. 160.
125
Em 1918 foi fundado o TEO264 (Seção Teatral junto ao Narkompros). Meierhold
ocupou a vice-direção, tornando-se responsável pela seção de história do teatro, repertório e
pedagogia; ele se dedicou às atividades de formação teatral e aprofundou as experiências do
Estúdio da Rua Borondiskaia, lecionando cursos bimestrais em São Petersburgo. O “Curso de
Ensino de Encenação para Instrutores”, organizado por ele mesmo, foi destinado à formação
de encenadores, e contou com ex-colaboradores do seu Estúdio com o propósito de expandir
estes experimentos. Meierhold explicava que o desenvolvimento de espetáculos de amadores,
nas usinas, nas aldeias e nos quartéis impunha uma rápida formação de encenadores
competentes e motivados por sentimentos revolucionários265.
Meierhold organizou também a “Escola para o Treinamento dos Atores”. Chaves266
identifica que naquele momento a questão, para ele, não se tratava mais do “novo ator”, mas
sim do “homem teatral total”, orgânico e polivalente. O programa da Escola foi escrito em
1918 e apresentava grandes afinidades com o aquele escrito cinco anos antes para o Estúdio
da Rua Borondiskaia, como, por exemplo, as disciplinas ensinadas: Técnicas de Movimento
Cênico, Pantomima e Commedia dell’Arte. No entanto, houve uma importante diferença entre
os programas do Estúdio e os do ano de 1918: em 1913 havia o desejo de experimentar novas
formas, novas técnicas de improvisação, ou averiguar a validade, a contemporaneidade de
formas teatrais antigas; em 1918, Meierhold propunha oferecer uma preparação profissional
para as novas gerações de atores e, especialmente, estabelecer uma educação polivalente das
artes teatrais.
264 O Conselho Teatral, vinculado ao Narkompros, foi criado em Petersburgo e iniciou suas atividades em 19 de janeiro de 1918 sob direção de Olga Davydovna Kameneva, e Meierhold era um de seus membros. O Conselho Teatral tinha como ação conduzir o proletário ao teatro, ajudar os teatros provinciais e fiscalizar os teatros provados, controlar a autonomia dos teatros nacionais e requerer a renovação do repertório em função da nova ordem política e social. Tal Conselho não durou muito tempo e em junho de 1918 deu lugar ao TEO. 265 É possível encontrar anotações do próprio Meierhold sobre as suas aulas no “Curso de Encenação”, no período de 1918-1919 em: PICCON-VALLIN, Beatrice. Vsevolod Meyerhold. France: Actes Sud – Papiers / CNSAD, 2005. 266 CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese (Mestrado em Artes – Artes Cênicas) Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001, p. 15.
126
Os objetivos dos cursos foram expostos por Meierhold da seguinte maneira:
Até hoje artistas e técnicos têm oferecido o próprio trabalho ao teatro como forma de preparação desenvolvida fora dos teatros; até hoje eles têm trabalhado independentemente um do outro, e eles têm trazido para o teatro cada um as suas próprias exigências, literárias para os diretores, artísticas para os cenógrafos, técnicas para os operários, costureiras, etc. A ideia dos organizadores destes cursos é colocada da seguinte maneira: tudo o que é feito em teatro deve ser submetido às leis, as exigências, às necessidades do teatro. Em teatro não deve haver lugar para uma arte nascida fora do teatro, com outros objetivos que não sejam aqueles do teatro. O teatro deve utilizar todas as artes de modo autônomo, mas não deve ser um lugar onde literatos, técnicos e artistas mostrem as próprias habilidades. Hoje o teatro deve criar os próprios artistas e os próprios técnicos. É a necessidade de um trabalho coletivo de artistas e técnicos das várias especialidades que levaram à fundação destes cursos especializados para a formação de diretores, cenógrafos, etc.267
Meierhold, neste discurso, revela as diferenças da sua prática artística antes e depois
de 1917. Após a Revolução Bolchevique, o encenador entende a arte como um instrumento de
organização no mundo, e o teatro posto para a construção da sociedade. Para Meierhold, a
questão que se colocava no momento era o pensamento do homem na sociedade, adotando
como referência o homem de teatro.
No final de 1918, Meierhold abandonou a direção dos Teatros Imperiais, que se
encontravam num clima de tensão e de dificuldade após a Revolução268. No verão de 1919,
enfraquecido por uma grave infecção na garganta e pelo excesso de trabalho, a fim de se
tratar, Meierhold saiu de Petrogrado e partiu para Yalta, onde recebeu tratamento para
tuberculose e permaneceu isolado pela guerra civil. Com dificuldades chegou a Novorossíski,
outra cidade sitiada mais ao norte, onde viviam alguns de seus familiares. Por causa de
denúncias, Meierhold foi preso pelos contrarrevolucionários como favorecedor dos
bolcheviques e passou quatro meses na prisão, até o momento em que conseguiu escapar do
fuzilamento com a chegada do Exército Vermelho. Meierhold uniu-se, então, ao partido
267 MEIERHOLD apud CHAVES. Op. cit., p. 15. 268 O clima neste período é de protestos por algumas pessoas de teatro contra as decisões tomadas por Lunatcharski. Ver mais sobre a condição dos Teatros Imperiais e a reação da comunidade teatral no ano de 1917 em: ABENSOUR, Gérard. Les théâtres impériaux et les événements d’octobre 1917. In: Vsévolod Meyerhold ou l’Invention de la mise em scène. Paris: Foyard, 1998, p. 273-276.
127
comunista e foi nomeado por Lunatcharski como diretor do TEO, posição que ocupará até
1921.269
Encarnando o contexto revolucionário da época e a partir dos fatos ocorridos no verão
de 1919, houve uma mudança na postura de Meierhold, descrita por Rippelino270 nas
seguintes palavras:
Meyerhold aterrizou em Moscou como um demônio rebelde e briguento. Os lábios apertados, o olhar sombrio, usava um gasto sobretudo de soldado com um revólver à cintura, um cachecol de lã vinho, botas enfaixadas de soldado, um barrete de estrela vermelha. Uma nova transformação? O Dr. Dapertutto deixara de vestir casaca e cartola, para camuflar-se nas vestes de um comissário político. [...] Mais tarde, porém, meditando, se percebe que aquela mutação é, no fundo, uma lógica consequência de seu percurso anterior, de sua precedente trajetória em ziguezague. De suas aspirações remotas.
O encenador Meierhold, em tal ambiente revolucionário, desejou que o teatro se
transformasse em “tribuna de propaganda, falando a linguagem abrasada da revolução”271. Os
espetáculos que ele vislumbrou seguiram os moldes do comunismo e propagavam os
acontecimentos imediatos da Rússia em alvoroço. Assim, a prática teatral estaria submersa na
dinâmica revolucionária e refletindo o propósito do proletariado. No entanto, equivalente ao
movimento cubo-futurista272, Meierhold, ao fundir-se neste contexto, “não renunciava às
audácias das experimentações nem nunca teria consentido em humilhar a essência da arte.”273
Em 1919, ele escreveu:
Estamos certos em convidar os cubistas para trabalhar conosco, pois precisamos de cenários que se assemelhem àqueles contra os quais estaremos nos colocando amanhã. Queremos que nosso cenário seja um tubo de ferro do mar aberto ou alguma coisa construída pelo novo homem. [...] Montaremos um trapézio e nele colocaremos nossos acrobatas, que com os seus corpos expressarão a própria
269 Lunatcharski, dois anos mais tarde da fundação do TEO, nomeou Meierhold como diretor, como prova de admiração e confiança. O encenador exerceu tal função até o ano de 1921, quando os discursos políticos de Meierhold foram ficando mais extremistas e Lunatcharski ordenou o fechamento do seu teatro, o RSFSR I (República Socialista Federativa Soviética Russa). O Comissário do Povo declara: “Seus pontos de vista extremistas são incompatíveis com o ponto de vista administrativo do Estado”. 270 RIPELLINO. Op. cit., 1996, p. 252. 271 Ibid. 272 Os poetas e pintores da vanguarda cubo-futurista foram os primeiros a se identificar com a Revolução e foram por um breve tempo seus porta-vozes “oficiais”. Grande parte deles torna-se devoto às tarefas imediatas da revolta, conferindo suas artes às práticas de propaganda e divulgação da causa revolucionária. 273 Ibid.
128
essência de nosso teatro revolucionário e nos lembrarão que estamos tendo prazer nesta luta em que nos engajamos274.
O objetivo de Meierhold era criar o teatro revolucionário na Rússia revolucionária. Ele
foi encarregado também da direção do Primeiro Teatro República Socialista Federativa
Soviética Russa (RSFSR I), onde realizou, em 1920, o “Outubro Teatral”, cujo programa,
como o próprio nome sugere, propunha uma “revolução” teatral que deveria seguir
diretamente os princípios da revolução social, destruindo radicalmente a velha arte e
construindo em suas ruínas a arte nova. Desde a queda do czarismo, os revolucionários
argumentavam que os velhos teatros, em sua opinião “feudal” e “burguês”, deveriam também
ser derrubados. Para os revolucionários, era um grave erro o governo proteger estes teatros
hostis ao proletário.
Meierhold publicou críticas e outros artigos polêmicos no jornal Vestnik teatra
(Mensageiro teatral), que se tornou o arauto do “Outubro Teatral”. Antes de Meierhold
assumir a direção do TEO, este jornal se contentava em publicar informações genéricas sobre
os últimos acontecimentos teatrais no mundo. Depois de nomeado diretor, os artigos
ganharam imediatamente um tom agudo, até mesmo agressivo: o termo “guerra civil no
teatro” era utilizado, bem como uma e outra vez apareceu o termo “front teatral”. Vestinik
teatra alegava que os velhos teatros foram simplesmente “ninhos de recreação”, abrigos para
aparentes ou ocultos inimigos da Revolução, e sustentou que a própria Revolução não iria
tolerar a existência de tais “ninhos” por muito tempo. Na publicação do jornal, em 1920, nº
76-77, Meierhold declarou:
O Outubro Teatral é um fenômeno gigantesco: inclui a revolução dos teatros profissionais, a criação de Ateliês de dramaturgia, de encenação e de representação, as experiências no domínio do teatro amador do Exército Vermelho que representa uma liga interessante de trabalhadores e camponeses, e inclui enfim a revolução e o aperfeiçoamento dos teatros da província275.
274 MEIERHOLD apud GOLBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 275 In: PICON-VALLIN. Op. cit., 1975, p. 10.
129
O “Outubro Teatral” declarou guerra aos personagens não políticos presente na antiga
cena artística russa e solicitou a mais rápida e completa renovação das artes teatrais, de cima
para baixo. Os revolucionários desejavam que o palco cênico se transformasse em plataforma
para as ideias revolucionárias, onde fosse celebrada a vitória do proletário.
Os revolucionários declaravam que era necessário para o teatro sair de sua caixa
cênica, abandonar suas telas pintadas e seu psicologismo gerador de ilusões. No entanto,
embora fosse fácil proclamar os princípios do “Outubro Teatral” na teoria, na realidade
revelou-se uma enorme dificuldade para se opor a arte dos antigos teatros com as novas
formas de teatralidade. As tentativas dos revolucionários de encontrar uma linguagem comum
com os novos públicos nem sempre foram bem-sucedidas276.
Gradualmente, Meierhold vai compreendendo que era mais fácil proclamar o
“Outubro Teatral” do que implementá-lo. As ideias do movimento do Comitê Central das
Organizações Culturais, Proletkult277, sobre a “invenção” das formas artísticas sem
precedentes não obteve a simpatia de Meierhold por um simples motivo: ele, como diretor
teatral, não percebeu a realidade por detrás disto. Para ele, os propositores do Proletkult
tinham uma imaginação muito distante da prática e por desapontamento o encenador os
deixou de lado. Meierhold, portanto, “não poderia habitar este reino dos inteligentes, das
construções verbais, ele queria dirigir produções”278.
Para Picon-Vallin279, a atitude de Meierhold perante os acontecimentos de Outubro,
antes de ser uma imediata adesão ideológica, foi uma adesão de ordem artística. A Revolução
vai lhe permitir realizar o autêntico teatro de feira e aprofundar suas experimentações sobre a
276 Sobre isto, ver mais detalhes em: RUDNITSKY. Op. cit., p. 59-64. 277 Para o grupo do Proletkult o passado deveria ser abandonado para a criação e prosperidade de uma nova cultura, não burguesa, para o proletário. No entanto, eles não apresentaram uma ideia clara para oferecer em detrimento do que chamavam de “velho”. No teatro, o Proletkult propunha a substituição das obras burguesas, “velhas”, por espetáculos de “massa”, de agitação e propaganda, e pelo desejo de encontrar formas novas para os conteúdos revolucionários seu percurso se encontra com o da vanguarda cubo-futurista. 278 Ibid., p. 60. 279 PICON-VALLIN. Op. cit., 1975, p. 7.
130
teatralidade. “Meierhold sente que vai poder chegar enfim a sua plena medida, começar uma
nova aventura artística que prolongará suas pesquisas pré-revolucionárias”280.
A produção artística de Meierhold se tornou mais complexa com os novos rumos de
1917281, o que só foi possível graças às experimentações cênicas pré-revolucionárias. Naquele
ano, depois da Revolução de Fevereiro, ele já publicava o texto “Viva o Malabarista”, e
solicitava o renascimento do circo e a presença do teatro de feira, que o contexto
revolucionário deve defender e desenvolver. Neste ambiente foi encenada, por duas vezes, a
obra Mistério-Bufo, em parceria com o Maiakóvski, cujos atores clowns e acrobatas
materializaram o ideal revolucionário, o homem total e polifônico.
3.2. Na cena revolucionária: Mistério-Bufo (1918 e 1921)
Não há mais tolos boquiabertos, esperando a palavra do “mestre”. Dai-nos camaradas, uma arte nova – nova – que arranque a república da escória 282.
Meierhold e Maiakóvski se reencontraram na turbulência dos acontecimentos do ano
de 1917. Porém, agora eles estavam sob o regime bolchevique e ambos unidos pelo mesmo
desejo de transformar o mundo. Em 27 de setembro de 1918, o poeta leu pela primeira vez aos
amigos, na presença de Lunatcharski e Meierhold, sua nova peça que relata – com audácia,
280 Ibid. 281 De 1918 a 1921, o encenador Meierhold dirige Mistério-Bufo (1918 e 1921) e As auroras (1920). Esta pesquisa não tem quaisquer pretensões de dar conta da produção artística meierholdiana após a Revolução de Outubro. Sobre isto já existe uma grande bibliografia escrita, como por exemplo, as obras de: ABENSOUR, G. Op. cit., 1998. PICCON-VALLIN, B. Op. cit., 1975. RIPELLINO. Op. cit., 1996. RUDNITSKY, K. Op. cit., 1988. O que é relevante pra esta pesquisa são os avatares da prática artística de Meierhold e a relação com o espetáculo Mistério-Bufo, obra investigada aqui, e o corpo acrobata. 282 Ordem nº 2 ao exército das artes, 1921. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Op. cit., Tradução: Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 93.
131
grosseria, blasfêmia e alegria – a história de uma revolução popular em estilo de desenho
animado. Seduzido pela inventividade revelada, Meierhold ansiosamente propôs encená-la e,
assim, apresentou o seu autor: “Camaradas, vocês conhecem Goethe, vocês conhecem
Puchkin, bom, deixe-me apresentar-lhes o maior poeta dos tempos modernos: Vladímir
Vladimirovitch Maiakóvski”283.
No município de Levshov, região de Petrogrado, em sua datcha, casa de campo, em
pleno verão de 1918, Maiakóvski escreveu a peça em versos, Mistério-Bufo (Mistéria-Buf),
projetada para comemorar o primeiro aniversário da Revolução. Esta obra levava o seguinte
subtítulo: retrato heroico, épico e satírico de nossa época, desvendando seu elevado cunho
político e o acelerado ritmo futurista “expresso na liberdade formal que os acontecimentos de
Outubro imprimiram em sua pesquisa teatral”284. O próprio dramaturgo definiu esta obra
como uma mescla entre o “sagrado”, pelos aspectos grandiosos da revolução, e o “burlesco”,
pelo que há de ridículo nela.
Mistério-Bufo apresenta a luta de classes na Rússia e deposita na Revolução de
Outubro as expectativas por uma sociedade mais justa. A obra narra a trajetória política dos
operários em direção à Terra Prometida, uma intrépida viagem rumo à cidade do futuro. O
tom é festivo, e expressa o entusiasmo do poeta Maiakóvski pelo proletário. De um lado, sete
pares de “Puros”, burgueses exploradores: um francês gordo, um australiano com a sua
esposa, um oficial italiano, outro oficial alemão, um mercador-valentão russo, o Negus
abissínio, um chinês, um persa bem-nutrido, um rajá hindu, um paxá turco, um Pope, um
americano e um estudante; e, de outro, os “Impuros”, proletários explorados: um limpa-
chaminés, um lanterneiro, um chofer, uma costureira, um mineiro, um carpinteiro, um peão,
283 ABENSOUR. Op.cit., p. 283. 284 CAVALIERE, Arlete. Op. cit., p. 278. Cabe esclarecer que as pesquisas teatrais de Maiakóvski se integram de maneira orgânica às convicções, preocupações e princípios de ordem moral, social, política, estética ou poética que ele expressa em momentos diferentes e formas diferentes nas suas variadas formas de expressão (poemas, textos, manifestos, cartazes de propaganda, etc.) submetidas à complexidade dos reveses históricos e artísticos que marcaram seu tempo.
132
um criado, um sapateiro, um ferreiro, um padeiro, uma lavadeira e dois esquimós (pescador e
caçador).
Os espaços de ação são “O universo todo”, uma Arca, o Inferno, o Paraíso e a Terra
Prometida. Numa grande metáfora, Maiakóvski descreveu a Revolução como um dilúvio que
se abateu sobre o planeta Terra. Após este acontecimento, “Puros” e “Impuros” de todos os
lugares do mundo se agrupam no polo ártico, o único espaço ainda não inundado. No entanto,
como o alagamento também ameaça o polo, uma arca é construída e todos começam a
navegar rumo ao Monte Ararat. Enquanto os “Impuros” não estão presentes, os “Puros”,
famintos, organizam um golpe de Estado, proclamando o Negus da Abissínia como seu
soberano. Ao perceber que este se comporta como um comilão descontrolado, os “Puros”
decretam o fim da autocracia e atiram o seu rei no mar, aliando-se aos outros para
coletivamente instituir a República Democrática. Mesmo assim não há mudanças no modo de
organização dos “Puros” e “Impuros” na arca. O primeiro grupo, que possui a comida, obriga
o segundo ao serviço. É nessa situação que os “Impuros”, descontentes com o novo governo,
arremessam os burgueses ao mar e seguem ao Monte Ararat.
Mineiro – Camaradas! O que é isso! Antes tudo devorava uma só boca e agora o nosso um batalhão emborca. Aconteceu que a República, horra é o mesmo tzar, só que de cem bocas.
Francês (esgravatando os dentes) – Vocês estão esquentando demais. Prometemos e
dividimos em partes iguais: para um – a rosca, para outro – o buraco dela. A república democrática é assim que se revela.
Mercador – Então precisa alguém ficar com as sementes – não é a melancia para
todos os dentes. Impuros – Nós vamos mostrar a vocês a luta de classes! Em frente!285
Na viagem a fome se torna o grande problema para os “Impuros”, até o momento
da chegada do Homem Simplesmente, o mais comum dos homens, que caminha sobre as
285 MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo: um retrato heróico, épico e satírico da nossa época. Tradução de Dmitri Beliaev. São Paulo: Musa Editora, 1998, p. 135.
133
águas como numa alucinação e anuncia um lugar onde “o doce trabalho não caleja as mãos. O
trabalho floresce como rosa na palma da mão”286, a Terra Prometida é apresentada e passa ser
o objetivo de chegada, um paraíso para os proletários, ou seja, um Estado Utópico é
anunciado.
Os “Impuros”, motivados pelas palavras, saem da arca, sobem em árvores,
ultrapassam as nuvens e passam pelo inferno, onde encontram Diabos e o Belzebu, e seguem
em busca de alimentos, chegando ao Paraíso. Aí estão grupos monótonos de anjos, figuras
decorativas de Rousseau, Tolstói e Matusalém. Os “Impuros” fogem destes lugares e se
deparam com os portões da Terra Prometida. As portas se abrem e as ferramentas vêm ao
encontro dos “Impuros” para servi-los, trazendo alimentos para recepcioná-los. No final,
todos cantam o Hino à Comuna287.
Maiakóvski realizou uma leitura da peça junto dos atores do Teatro
Aleksandrinskii, enquanto Meierhold explicava o plano de montagem do espetáculo e
Malévitch, a cenografia288. A obra provocou uma rejeição violenta pela maior parte do elenco,
não somente pela contaminação dos princípios futuristas em contraponto à visão conservadora
dos “velhos” atores, mas, sobretudo, porque Mistério-Bufo parecia simbolizar a invasão do
bolchevismo no seio do Teatro Alexandrinskii, bem como uma agressão ao sentimento
religioso, que chocava particularmente o elenco. Muitos deles “faziam o sinal da cruz,
perturbados por aquela mistura de religioso e blasfemo”289.
A encenação não ocorreria, evidentemente, no espaço do Teatro Alexandrinskii,
nem no picadeiro do Circo Moderno, que foi concedido por Mária Fiódorovna Andriéiva, que
dirigia a presidência dos espetáculos da Comuna de Petrogrado. Ela teve a autorização
286 Ibid., p. 163. 287 Este Hino cantado pelos “Impuros” pode ser encontrado em: Ibid., p. 265-267. 288 Malévitch combina em seu cenário estruturas arquitetônicas e painéis decorativos. Um grande globo azul indicava a Terra, outras formas cúbicas assinalavam a arca. O paraíso era caracterizado por tons cinzas e alinhavam bolas de nuvens multicores, já o inferno era uma sala gótica vermelha e verde. A Terra Prometida era designada por uma grande tela suprematista, um amplo arco e a armação de uma máquina. 289 RIPELLINO, A. M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 86.
134
retirada, em virtude das péssimas condições da estrutura local. Com a intervenção de
Lunatcharski, foi cedida para a montagem a sede do Teatro do Drama Musical por três dias: 7,
8 e 9 de novembro de 1918. A apresentação foi preparada às pressas, com poucos ensaios, e
se limitou a poucos dias em virtude das críticas violentas e sob a acusação de ser
inconveniente para as massas. Dois dias antes da estreia do espetáculo, Lunatcharski escreveu
o artigo “Espetáculo Comunista” para o jornal e declarou: “A única peça que foi idealizada
com a influência de nossa revolução e portanto possui o seu carimbo de tom maior, de
entusiasmo, de ousadia é o Mistério-Bufo de Maiakóvski”290.
14. Cartaz anunciando as apresentações do espetáculo Mistério-Bufo em 1918.
O curioso é que para a montagem foram convidados atores por intermédio de
jornais, o “Apelo aos Atores”, assinado por Maiakóvski e outros colaboradores:
Camaradas atores! Vocês são obrigados a marcar a grande festa da revolução com um espetáculo revolucionário. Vocês devem encenar Mistério-Bufo, um retrato heroico, épico e satírico de nossa época, feito por Vladimir Maiakóvski. Venham todos no domingo, dia 13 de outubro, na sala do colégio Tenishevski (Mohovaia, 33). O autor lerá o Mistério, o diretor exporá o plano de encenação, o pintor mostrará os figurinos, e aqueles de vocês que arderem por fazer este trabalho serão o elenco. O Bureau Central de Petrogrado para os Festejos oferece todos os recursos
290 In: MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1998, p. 8.
135
necessários para a realização do Mistério. Todos ao trabalho! O tempo é caro. Somente os camaradas que desejarem participar da encenação são solicitados a vir. O número de lugares é limitado.
A aproximação da obra aos Mistérios Medievais291 reforça a proposta alegórica,
personagens e espaços metafísicos, mistura entre o solene e o cômico através da aproximação
com os temas bíblicos. Mistério-Bufo está imerso em personagens e citações de cunho
religioso para instalar um diálogo intrínseco com a tradição da cultura russa, neste caso, com
zombaria e escárnio. Percebe-se o grande número de referências à religião, já que o autor
efetua uma reversão iconoclasta sobre esta problemática ao recuperar a tradição russa e
transformá-la em agitação antirreligiosa e política. Isto pode ser observado no surgimento do
personagem do Homem Simplesmente, interpretado pelo próprio Maiakóvski no espetáculo
dirigido por Meierhold, que como um “Cristo Anarquista”292 profere seu sermão da montanha
em tons surrealistas, incitando a lucidez e rejeitando toda a autoridade estabelecida.
Meu paraíso é para todos, exceto para os pobres de espírito de tantas quaresmas inchados como a lua gigante. É mais fácil um camelo passar de uma agulha o buraco estrito, do que chegar a mim tal elefante! Até mim – quem cravou tranquilamente o facão e deixou o corpo do inimigo com uma canção! (...) Venham todos, quem não é mula de carga, todo aquele que está desesperado no limite seu, saiba: é pra ele – o meu reino do céu293.
Como afirma Abensour294, o poeta apresentava a Revolução como um fenômeno
cósmico, um dilúvio que faz emergir a arca da salvação que conduzirá os condenados à Terra
291 Os Mistérios Medievais são dramas medievais religiosos, registrados do século XIV ao século XVI. Eles colocam em cena acontecimentos bíblicos ou da vida dos santos, que são representados nas festas religiosas por atores amadores, principalmente mímicos e menestréis, em palcos simultâneos. As apresentações dos Mistérios normalmente duram muitos dias e a conexão entre os seus episódios e espaços cênicos geralmente é feita através da figura do narrador. Os Mistérios foram proibidos pela Igreja que se espantou com o grau de burlesco, grosseria, comicidade e zombaria, que eram expressos através do grotesco. 292 ABENSOUR. Op. cit., p. 284. 293 MAIAKÓVSKI, Op. cit., 1998, p. 165. 294 ABNSOUR. Op. cit.
136
Prometida, lugar de reconciliação do homem com ele mesmo e com a natureza. Os artistas da
revolução aderiram à revolta não pela determinação da luta de classes, mas pelos horrores da
guerra.
Cavaliere295 chama atenção para a base paródica do texto, em que se inscrevem
inversões cômicos-grotescas de toda a ordem: procedimentos dramáticos-cênicos dos
mistérios medievais edificantes, com seus temas e episódios bíblicos, que interagem de forma
festiva e espetacular com “máscaras-caricaturas”, que possuem o caráter vital, luminoso e ágil
do teatro popular com sua mistura de assuntos sacros e profanos, a linguagem dos trocadilhos
e da linguagem irreverente. Outra característica relevante da estrutura dramatúrgica é a
dualidade que contrapõe dois mundos e dois tempos: o último se estabelece pela imposição do
novo sobre o velho, e aparece de forma esquemática para por em evidência o conflito entre as
diferentes máscaras sociais: o embate entre os puros e os impuros.
Essas figuras carnavalizadas conformam uma estranha alegoria teatral capaz de incluir no espaço cênico o paraíso, o inferno e a Terra Prometida, e de justapor a luta de classes e a revolução do proletariado (os impuros) e seus oponentes, burgueses redondos e balofos [...], à imagem do dilúvio universal e à construção da arca de Noé, referência ao livro bíblico de Moisés (Gênesis), numa alusão parodística ao cataclismo revolucionário que transformara os destinos da Rússia.296
Muitos dos elementos de Mistério-Bufo se aproximam dos teatros de feira russo, o
balagan: as cenas curtas destacadas como vinhetas, o desenvolvimento rítmico das falas, a
agilidade verbal dos diálogos dos personagens, bem como a própria estrutura espetacular.
Justamente pela grande popularidade das atrações do balagan, Maiakóvski recorre a tais
procedimentos para oferecer a este texto a inflexão de formas tradicionais íntimas ao
proletariado, às pessoas de baixa renda e incultas, que lotavam os teatros.
Rippelino297 relata que para a construção do episódio do inferno, o autor recordou-
se das pantomimas do balagan. Quando foi encomendado o texto, Maiakóvski entrou em
295 CAVLIERE, Arlete. Op. cit., p. 280-281. 296 Ibid., p. 281-282. 297 RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 82.
137
contato com um diretor de espetáculos de teatro de feira e observou detidamente uma maquete
do inferno que o último modelava. Um enorme demônio barrigudo de cuja goela escancarada
saltavam diabinhos de malha vermelha e tridente era uma figura característica do inferno, que
cravado na terra engolia os malvados, soltando fumaça das narinas e das orelhas. Os diabos de
Maiakóvski, portanto, seriam provenientes dos teatros e estampas populares.
15. Figurinos desenhados por Maiakóvski para os Puros, 1918
16. Figurinos desenhados por Maiakóvski para os Impuros, 1918
As aspirações de Maiakóvski se encontravam com as de Meierhold, que viu, nesta
obra, a possibilidade de realizar o teatro que desejava, um teatro que educa e diverte o
138
público: ele formulou e iniciou um tipo de concepção muito viva sobre a arte teatral e sobre a
própria arte e convidou a todos para participar das atividades de criação artística (autor,
atores, cenógrafo, músico e encenador) de modo a realizar trabalhos em conjunto. Pela
primeira vez, Meierhold partilhou sua visão com um autor que foi, ao mesmo tempo, ator e
assistente de direção. Ele deixou aos cuidados de Maiakóvski o trabalho de iniciar os atores às
particularidades da dicção rítmica dos seus versos, que quebravam decisivamente com a
pronúncia do verso musical russo.
A genialidade do discurso verbal dos versos maiakovskianos em Mistério-Bufo é
construída pelas próprias falas sobre um vivo jogo de discussões, de trocadilhos e de recursos
fonéticos. O autor de Mistério-Bufo constrói os diálogos por meio da linguagem versificada e
colorida dos heróis presentes que caracterizam e identificam os diferentes tipos sociais, como
a linguagem do povo nas ruas que se opõe de forma libertina ao discurso oficial, às palavras
de ordem da época política. A matéria verbal do futurismo concorda com a do teatro popular.
As críticas foram violentas e cruéis para a primeira versão de Mistério-Bufo, pois
seus adversários protestavam contra a intervenção da política no teatro e chegaram a afirmar
que a obra não era adequada aos proletários. Maiakóvski era acusado de ser ininteligível para
o novo público, marca que foi recorrente ao longo de sua carreira enquanto poeta.
Em outubro de 1920, com os caminhos estabelecidos pela Revolução, Maiakóvski
reescreveu Mistério-Bufo sob forte influência das suas experiências adquiridas na ROSTA
(Agência Telegráfica Russa)298. Consciente das transformações na Rússia nos últimos anos,
Maiakóvski ponderou que a obra deveria ser remexida, retocada, adaptada às circunstâncias
298 Com a transferência para Moscou em 1919, Maiakóvski trabalhou na Agência Telegráfica Russa (ROSTA), permanecendo aí de outubro daquele ano até fevereiro de 1922, confeccionando cartazes políticos, acompanhados de vinhetas e comentários versificados. Os cartazes, expostos nas janelas das lojas, chamavam atenção nas ruas de Moscou pelas suas cores vivas e versos intensos em contraste com uma Moscou coberta de neve e sob guerra. Os desenhos pintados nos cartazes da ROSTA receberam os nomes de “janelas” (okna). As janelas de Maiakóvski retratavam uma Rússia atordoada pela guerra civil, pelas epidemias, pela rebeldia, abatida pela perseguição dos contrarrevolucionários e pelo caos econômico. Os tipos representados por Maiakóvski nestas janelas se desdobram nos personagens dos “Puros” e dos “Impuros”, de um lado pretensiosos burgueses e, de outro, majestosos operários.
139
recentes. Ele manteve-se fiel ao partido bolchevique, reforçou a sátira ao pequeno-burguês e
aprofundou a imagem de pureza dos operários revolucionários.
Mistério-Bufo é o caminho. O caminho da revolução. Ninguém profetizará com precisão quais montanhas a mais teremos de explodir, nós que estamos indo por este caminho. Hoje arrebenta os tímpanos a palavra. Lloyd-George, mas amanhã seu nome será esquecido pelos próprios ingleses. Hoje aspira à comuna a vontade dos milhões, mas dentro de uma meia centena de anos, pode ser que em um ataque contra planetas longínquos se atirem encouraçados aéreos da comuna: É por isto que, tendo mantido o caminho (a forma), eu novamente mudei partes da paisagem (o conteúdo). No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis, lerem e imprimirem o Mistério-Bufo, mudem o conteúdo, – façam ele ficar contemporâneo, hodierno, do momento299.
Existem diferenças significativas entre as duas versões escritas. Na segunda versão de
Mistério-Bufo, o dramaturgo atualizou o texto, enriquecendo-o de dados políticos, acentuando
a característica antirreligiosa, abrangendo os recentes fatos históricos e a conjuntura do
momento, como, por exemplo, a guerra civil, a interferência de países ocidentais, a falta de
alimentos, o racionamento, etc. Tais assuntos eram discutidos insistentemente em suas
“janelas” do ROSTA. Maiakóvski também substituiu alguns personagens: o mercador russo
transformou-se em um especulador; o francês se tornou Clemenceau, o estudante e o oficial
italiano viraram um diplomata e Lloyde George; o alemão militar se converteu num burguês
de Berlim. Foram incluídos no grupo dos “Puros” a Mulher das Caixas de Papelão, uma
versão da Mulher Histérica, que frequentemente troca de opinião, o intelectual fútil e tagarela
e o Conciliador Menchevique, que sempre acabava apanhando nas tentativas de conciliar os
antagonistas. Do lado dos “Impuros” entraram o Soldado Vermelho e o Maquinista,
substituindo outros operários. O Homem Simplesmente se converteu na figura do herói
utópico o Homem do Futuro, que expurga os bons costumes e afirma que o puritanismo
recuperou a supremacia na terra dos soviets. Os “Puros” reaparecem no Inferno, após serem
atirados fora da arca.
299 MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1998, p. 7.
140
Há alterações na estrutura dramatúrgica do texto. O primeiro e o segundo quadros da
versão de 1918 transformaram-se, respectivamente, no 3º ato e no Inferno; e no 4º ato e no
Paraíso. Do terceiro quadro foi extraído para a segunda versão um 6º ato, a Terra Prometida.
Foi incluído um ato novo, o 5º, que descreve o País das Ruínas300, esta seria uma “tentativa de
propaganda industrial dramatizada”301 que “espelha a luta do governo soviético contra a crise
econômica”302. No final do texto, os “Impuros” cantam alegremente a “Internacional”303.
Meierhold, entusiasmado com a nova versão, decidiu fazer a remontagem. Em 29 de
dezembro de 1920, Maiakóvski leu a peça aos atores do Teatro RSFSR I304 e os ensaios
começaram no dia 5 de janeiro de 1921, com a participação ativa do poeta. Assim, a aliança
entre o encenador e o dramaturgo foi novamente selada no combate simultâneo sobre o texto e
a forma de encená-lo305.
Na preparação para a representação surgiram protestos, essencialmente, de escritores
marxistas que denunciaram ao Comitê Central do Partido que tal obra era incompreensível
para os proletários, pois estava contaminada do pensamento anarquista. Maiakóvski, então,
começou a visitar diversos bairros de Moscou e Petrogrado, onde relia o texto em comícios e
assembleias, para verificar que a sua obra não era apenas bem compreendida, como era bem
aceita pelo operariado. Foi organizado em janeiro de 1921, pelo Teatro RSFSR I, um debate
sobre o tema “É preciso encenar Mistério-Bufo?”, com a presença de representantes do
partido que, por fim, enfatizaram o conteúdo proletário da comédia e orientou que
prosseguissem os ensaios e a representação nos palcos russos em função do 1º de maio.
300 Quando os “Impuros” chegam ao País das Ruínas, pilhas de fragmentos e restos de objetos obstruem seu caminho. Os objetos sepultados gemem abaixo dos detritos e, assim, os proletários cavam e retiram uma locomotiva e um barco. Surge alegoricamente a Ruína, velha, repugnante e imperiosa, juntamente com o seu bando indisciplinado de indolentes e tratantes, semelhante aos Mistérios Medievais. Os “Impuros” a enxotam, reanimam a locomotiva e o barco com carvão e gasolina e seguem para a Terra Prometida. 301 RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 97. 302 Ibid. 303 O poema “Internacional” pode ser encontrado em: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo. Tradução de Lila Guerrero. Buenos Aires: Editorial Platina, 1958, p. 194. 304 Este Teatro foi inaugurado em 7 de novembro de 1920 com a montagem de As auroras, de Verhaeren, encenada por Meierhold. 305 Ver mais em: ABENSOUR. Op. cit., p. 308.
141
Maiakóvski assim se expressou: “Abrindo caminho entre delongas, odes, estorvos
burocráticos, obtusidade, represento a segunda variante de Mistério-Bufo”306.
O espetáculo, sob a direção de Vsévolod Meierhold, estreou no dia 1º de maio de
1921, no Teatro da RSFSR I. O sucesso foi tão grande que Mistério-Bufo teve apresentações
diárias até o final da sua temporada, em 7 de julho de 1921.
O encenador aboliu a caixa cênica, utilizou os princípios formais do cubo-futurismo e
toda a ideia de cenário servia como pano de fundo para a ação dos atores, a valorização de seu
jogo e a libertação de seu corpo “por meio de pantomimas acrobáticas que desenham os
hábeis movimentos de todos aqueles clowns grotescos”307. Os cenógrafos Anton Lavinsky,
escultor, e Vladimir Khrakovsky, pintor, montaram uma grande construção que se
assemelhava com as linhas de uma arca. O ato do paraíso acontecia quase no ar, num tipo de
toldo, que continha duas escadas que se ligavam ao chão. Neste lugar, no nível dos
espectadores, um globo terrestre coberto por um sistema de sinais geográficos se destacava.
Era deste aparato, também, que pulavam os demônios na cena do inferno. Nesta versão, as
estruturas arquitetônicas substituíam os painéis de fundo e em certos momentos a ação se
colocava por entre o público. Como afirma Rudnitsky, a interação entre ator e público
alcançou o máximo de liberdade e facilidade. As experimentações no Estúdio da Rua
Borondiskaia finalmente tinham produzido resultados. As tentativas praticadas anteriormente
nos experimentos cênicos, através de hipóteses, suposições e incertezas, de repente se
tornaram coerentes e não apenas possíveis, como essenciais308.
306 In: RIPELLINO. Op. cit, 1986, p. 100. 307 CAVALIERE. Op. cit., 2009, p. 283. 308 Ver mais em: RUDNITSKY. Op. cit., p. 62.
142
17. Cenário para segunda versão de Mistério-Bufo, 1921
Os figurinos ficaram a cargo de V. Kissielióv, que utilizou tecidos ornados com jornal.
Os “Impuros” não utilizavam maquiagem e vestiam blusões de trabalho de cor azul: a
composição era pálida e monótona. Em contraposição, os “Puros” possuíam o tom dos
cartazes satíricos, “janelas”, e da extravagância circense para oferecer ao espetáculo o caráter
alegre, festivo e ruidoso. Os demônios do 3º ato com rabos, chapéu-coco e couraças pareciam
verdadeiros palhaços. Destaque seja dado também para Igor Ilínski, que fez seu primeiro
grande sucesso no papel do Conciliador. O ator utilizava-se em cena de mímicas clownescas
para representar o personagem político do menchevique. De peruca avermelhada, barbudo,
com os olhos espantados e arregalados, agitando um guarda-chuva aberto com a mão
esquerda como se manipulasse um objeto circense e com a direita tentava freneticamente
fechar o casaco aberto pelo vento. Lunatcharski, que ainda não sabia o nome de Ilínski,
comentou: “O ator que faz o menchevique é brilhante”309.
309 Ibid., p. 63.
143
18. Desenhos para o figurino da segunda versão de Mistério-Bufo. Na imagem um Puro e um Impuro.
O espetáculo não escapou a polêmicas. Para Ripellino310, como na primeira redação,
também agora a marcada tendência política despertou o sentimento de ódio nos intelectuais de
direita, enquanto a novidade da forma se opõe a mesquinhez dos funcionários do partido. Foi
quando Mistério-Bufo, no dia 24 de junho, foi apresentado no Primeiro Circo Estadual de
Moscou, “em honra ao III Congresso do Comintern, na versão alemã de Rita Rait, que
trabalhava com Maiakóvski na ROSTA”311.
Meierhold admirava particularmente Maiakóvski, “ele tinha o comando sobre o
teatro”312 e acreditava que o poeta “era brilhante no campo da composição”313. Maiakóvski
oferecia ao encenador as formas teatrais que se conectavam, através de suas convicções
particulares, às exigências de sua época. Na segunda versão de Mistério-Bufo, os elementos
circenses são muito mais ressaltados do que na primeira, ao mesmo tempo atualizando a peça
e fazendo dela uma espécie de revista política. As utilizações dos procedimentos do circo,
particularmente, interessam a esta pesquisa.
Cavaliere314 define o espetáculo Mistério-Bufo como uma “comédia clownesca”,
contaminada de máscaras circenses. Ela aponta que o prólogo da segunda variante, por
exemplo, é inspirado nas apresentações do circo ambulante e dos teatros de feira ao expor, em
310 RIPELLINO. Op. cit., 1986, p. 102. 311 Ibid. 312 RUDNITSKY. Op. cit., p. 62. 313 Ibid. 314 CAVALIERE. Op. cit., 2009, p. 279-280.
144
síntese didática e jocosa, a estrutura da peça em argumento, tema e constituição de cada ato. O
prólogo perde a agilidade política da primeira versão, e mantém a sua polêmica vivacidade no
domínio estético, proclamando uma reforma no campo das artes por meio da teatralidade.
Para outros teatros a representação carece de importância: para eles a cena é como olhar um buraco da fechadura. E a gente, sentado corretamente ou inclinado, contempla uma fatia de vida alheia. Contempla e vê fungar sobre sofás tias Manias e tios Vânias. Para nós não interessam tios nem tias, tios e tias vocês encontrarão em casa. Também nós mostraremos a vocês a verdadeira vida, Porém transformada pelo teatro num espetáculo surpreendente315.
Maiakóvski declara, com o trecho citado acima, sua oposição ao realismo e,
especificamente, aos princípios das peças representadas pelo Teatro de Arte de Moscou316,
que, para ele, é uma instituição que se opõe a causa revolucionária da época, que exclui o
proletário e afirma a burguesia. O próprio poeta esclareceu a dualidade entre o sério e o
cômico, a tradição e a modernidade ao explicar o título da peça no programa do espetáculo
que foi encenado no ano de 1921:
Mistério-Bufo é a nossa grande revolução, condensada em versos e em ação teatral. Mistério: aquilo que há de grande na revolução. Bufo: aquilo que há nela de ridículo. Os versos de Mistério-Bufo são as epígrafes dos comícios, a gritaria das ruas, a linguagem dos jornais. A ação de Mistério-Bufo é o movimento de massa, o conflito de classes, a luta das ideias: a miniatura do mundo entre as paredes do circo317.
A estrutura dramatúrgica se assemelha ao espetáculo circense318: sucessão de cenas
rápidas, breves diálogos, cenas bem definidas pelos grupos de personagens, os temas
abordados e os espaços da ação, além do tom cômico-satírico e dos efeitos espetaculares.
315 MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1958, p. 62. 316 No prólogo de Mistério-Bufo, Maiakóvski se refere diretamente à montagem do espetáculo “Tio Vânia”, de Anton P. Tchekov, encenado por Constantin Stanislávski no Teatro de Arte de Moscou pela primeira vez em 1899. 317 Ibid., p. 278-279. 318 Esta semelhança não é casual, pois nas comédias de Maiakóvski, que inclusive conviveu com muitos circenses, um ponto comum é a utilização de procedimentos do picadeiro e muitos personagens clownescos. O poeta russo, que desejava recitar seus versos na garupa de um elefante, encara o circo como um “espetáculo terrestre, sem subentendimentos simbólicos, e propôs-se infundir-lhe os esquemas e os phatos do cartaz, transformando os palhaços em máscaras sociais”, retirando o cunho metafísico retratado pelos poetas simbolistas.
145
Estes elementos estão interligados por um fio condutor cuja temática política conecta todos os
acontecimentos da peça, a luta de classes universal e a revolução mundial, associadas às
circunstâncias imediatas da época. Nota-se, também, que os espaços de desenvolvimento da
trama parecem concebidos na perspectiva de uma pantomima circense: são simples na sua
construção, necessitando de poucas transformações, e utilizam materiais que solicitam do
intérprete a demonstração de suas habilidades corporais.
A introdução de aparelhos próprios do circo impôs a realização de exercícios
acrobáticos, como, por exemplo, o momento em que os “Puros”, no 1º ato, descem
rapidamente pelos meridianos e paralelos do globo terrestre. O palhaço-acrobata Vitáli
Lazárienko319, que desempenhou um dos diabos, descia por uma longa corda executando
diversos truques acrobáticos. Sobre o desempenho desses artistas, Valeri Sisóev, que
interpretou o Homem do Futuro, escreveu: “Lazárienko, iluminado por um refletor vermelho,
realizou arriscados truques em um trapézio. Por exemplo, se sentava no trapézio, balançando-
se nele e mexendo os braços, logo em seguida, se deixava cair, mantendo-se preso aos
ângulos do trapézio com a ponta dos pés”320. Também as nuvens de balão do Paraíso foram
utilizadas para malabarismos e saltos. Em Mistério-Bufo os jogos cênicos estabelecidos com
ou sem acessórios foram sempre sustentados por uma intenção precisa. As acrobacias e as
manipulações de objetos estavam de acordo com as cenas de palhaço, ou a representação
excêntrica de números, e serviu para ridicularizar a religião, o capitalismo estrangeiro e a 319 Vitáli Lazárienko, palhaço e acrobata russo, aderiu ao movimento cubo-futurista antes mesmo do ano de 1917, inclusive fazendo parte do filme Quero ser um futurista, e participando das manifestações do 1º de maio em grandes pernas de pau. Dedicado à vida política russa, ele reagia com sagacidade aos acontecimentos de sua época, ganhando inclusive destaque nas “janelas” do ROSTA. Para Ripellino, pela rapidez imediata jornalística e a matéria polêmica, a arte de Lazárieko concordava plenamente com as aspirações de Maiakóvski. Palhaço e poeta conviviam juntos numa forte amizade e de seus encontros, nos primeiros anos soviéticos, escreve Lazárienko: “Maiakóvski interessava-se muito pelo circo e conversava frequentemente comigo, sugerindo-me temas e deixas. Vinha encontrar-me no camarim nos intervalos. Ressaltando os méritos e os defeitos, aprovava a tendência dos meus números e elogiava-me, sobretudo, porque no meu repertório havia muita sátira política e de costumes. Naqueles dias de fato muitos dos ‘importantes’ do circo, para não se comprometer politicamente, recorriam a ‘eternos’, fora do tempo e do espaço... Encontrei um apoio constante em Maiakóvski. Infelizmente não tomei nota dos temas que ele me fornecia: os fatos de então envelheciam depressa, passando de moda, eu mudava sempre de repertório e nunca me ocorreu, confesso, que em seguida tudo aquilo teria tamanha importância”. In: RIPELLINO. Op.cit., 1986, p. 216. 320 FEVRALSKI, A. Meyerhold y el circo. In: El circo soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 321.
146
literatura clássica. Uma das atrações favoritas das pantomimas de circo, o episódio aquático,
foi revivida e apresentada como o dilúvio da revolução que invade o globo terrestre321.
19. Vitáli Lazárienko
Meierhold valorizou na encenação o caráter circense até mesmo na concepção dos
personagens. O grupo de “Impuros” foi abordado como máscaras sérias; eles eram circenses,
apresentados como acrobatas para realçar sua engenhosidade, sua destreza, seu vigor e suas
habilidades corporais: eles estavam mais próximos dos heróis retratados nas pinturas da
época. Maiakóvski apresentou os “Impuros” com desenhos cuja concepção cubista enfatizava
corpos poderosos, resistentes e fortes proletários. No texto, encontra-se uma passagem para
ilustrar tal situação: no momento em que todos discutem a questão da fome, o Ferreiro fala:
Não vamos é parar no meio do caminho. O consumido pelos afogados não vai poder voltar. Agora, só há uma coisa pra gente poder lutar, que a força não se esgote até chegarmos ao Ararat. Mesmo que as tempestades nos batam, e o calor nos asse e mate, mesmo que passemos fome – vamos nos olhos dela olhar, e comeremos só a espuma do mar. Mas aqui em troca somos os senhores de tudo!322
321 AMIARD-CHEVREL, Claudine. La cirquisation du théâtre chez Maiakóvski. In: Du cirque au théâtre. Lausanne: L’Âge D’Homme, 1983, p. 108.
147
Por outro lado, os “Puros” foram projetados pelo dramaturgo por meio de desenhos
em formato circular: barrigas enormes identificam este grupo de aproveitadores, enquanto a
cabeça e os corpos circulares contrastam com os membros finos, enfatizando o aspecto
grotesco. O comportamento deste grupo de opressores se assemelha ao dos palhaços: eles
tentam parecer espertos e inteligentes, porém falham em seus planos e terminam sempre nas
piores condições, além disso, eles usam trocadilhos verbais e recebem tapas e pontapés.
Mesmo representados como inimigos da classe operária, eles são tratados como palhaços
tanto pelo texto proferido como pelo comportamento físico, caracterizado pelos ridículos
jogos cênicos entre os personagens, acrobacias cômicas, brigas, quedas, etc.
Tais características que distinguem os “Puros” dos “Impuros” são extremamente
importantes para esta investigação, pois, além de demonstrar concretamente a simbiose entre
palco e picadeiro, elas revelam concretamente em cena o personagem principal desta
pesquisa: o Bogatyr.
Para o povo russo, o que emergia da Revolução de 1917 era a esperança de se
construir uma nova sociedade. Assim, tanto bolcheviques quanto mencheviques concordavam
que a classe operária era a única força com que a revolução poderia contar. Esta pesquisa
reconhece, portanto, que quem melhor encarnaria a metáfora do Bogatyr, para artistas, poetas
e intelectuais, era o proletário. Do ponto de vista artístico, a vanguarda interpretava a vitória
da classe operária como o desmoronamento do realismo e do tradicionalismo, fundamentado
no individualismo burguês e egoísta. Em Mistério-Bufo, a potência do Bogatyr é revelada no
grupo dos “Impuros”, cujo corpo acrobata, forte, resistente, veloz e disciplinado expressa todo
o poder revolucionário, definindo o desejo de homem total, orgânico e polifônico.
322 MAIAKÓVSKI. Op. cit., 1958, p. 117.
148
3.3. O desvendamento do Bogatyr
Olha, em meus grandes olhos abertos como o pórtico duma catedral. Homens! Amados e não amados conhecidos e desconhecidos, desfilai por este pórtico num vasto cortejo! O homem livre – de que vos falo – virá, acreditai, acreditai-me!323
Para Amiard-Chevrel324, se a vanguarda teatral russa almejava ardentemente a
teatralização do teatro reconhece-se, também, o seu desejo de “cirquização” dos espetáculos,
sua reconstrução de acordo com o modelo e os princípios da arte do picadeiro. O elemento
formal essencial pelo qual se manifesta a teatralidade, a exibição espetacular do artista em
cena, e a sua linha resultante fundamental, a paródia exagerada, são conservados pelo circo
em uma forma intangível. A exibição espetacular e a paródia, para Meierhold e Maiakóvski,
são os princípios fundamentais encontrados nas atividades circenses. A parceria entre o
encenador e o poeta desenvolveu esta prática com maestria, particularmente em seu primeiro
espetáculo Mistério-Bufo. Entretanto, isso somente foi possível pelas experiências pré-
revolucionárias de Meierhold no Estúdio da Rua Borondskaia.
Meierhold e Maiakóvski, assim como grande parte dos futuristas russos, tinham
grande atração pelas atividades circenses, pois um motivo fundamental era que a estrutura de
tal espetáculo ignora a lógica psicológica, busca a máxima expressividade e apresenta um
ritmo dinâmico. A rejeição do público burguês e o desejo do poeta e do encenador a favor de
uma criação artística para o proletário oferecem um ímpeto excepcional a esta revolução das 323 Dedicatória. In: MAIAKÓVSKI, Vladimir. Vida e poesia. São Paulo: Martin Claret, 2008, p. 96. 324 AMIARD-CHEVREL. Op. cit., p. 104.
149
estruturas poéticas, nascida antes mesmo da revolução política, conforme visto no decorrer
desta pesquisa. O circo foi reconhecido pelos revolucionários como um espetáculo puro,
material, submisso a um extremo rigor e profissionalismo, exemplo de um alegre
desenvolvimento dos corpos e do heroísmo (habita a região do risco, afrontando
permanentemente as dificuldades e o perigo), produzindo efeitos espetaculares, ultrapassando
os seus limites e oferecendo ao homem a condição de superioridade.
Particularmente, Meierhold privilegiou as atividades circenses em 1918 enquanto
esteve ligado ao TEO. Foi notável sua preocupação em estabelecer uma educação básica para
as escolas de artes circenses, que formariam instrutores cuja atuação por distintos lugares da
Rússia organizariam grupos desportivos com o objetivo de criar uma nova cultura física. Em
1919, em uma reunião da Seção Teatral da Direção de Arte do Congresso de Instrução Extra-
Escolar de toda a Rússia, ele anunciava a ideia de que um corpo belo conduz à saúde do
espírito, pois “quanto mais intensa for a luta espiritual que é preciso sustentar, tanto maior é a
força física que se necessita. Construiremos escolas das quais sairão um corpo belo e vivo e
um rosto radiante”325.
Por outro lado, os planos de Meierhold em relação ao circo não se limitavam a este
prisma, eles iam muito além. O encenador defendia que a reinvenção do circo deveria partir
do empenho dos próprios artistas circenses. Em 17 de fevereiro de 1919, ele manifestou
publicamente estas ideias no debate sobre a exposição do encenador Nikolai Foregger326 sobre
325 FEVRALSKI. Op. cit, p. 319. 326 Nikolai Foregger chegou a Moscou em 1916 saído de Kiev, cidade onde nascera. Foi fascinado pelas grandes discussões pela mecanização e abstração da arte e do teatro, e ampliou isto para que fossem incluídas na dança. Ele estudou os gestos cênicos e movimentos da dança, procurando os meios físicos para a reflexão das concepções visuais da vanguarda pré-revolucionária. Estes estudos foram desenvolvidos em Petrogrado em seu Estúdio. É sua a teoria do “tafiatrenage”, uma espécie de treinamento que, apesar de nunca ter sido codificado, foca na relevância da técnica para o desenvolvimento físico e psicológico do intérprete. Foregger buscava com isto um novo sistema de dança e de treinamento físico, referindo-se sempre ao circo, “irmão-siamês” do teatro, na tentativa de consolidar novas modalidades de expressão “teatro-circo”. Encenou espetáculos como: Os gêmeos (1920), O rapto das crianças (1922), Danças mecênicas (1923).
150
O Renascimento do Circo327, lido na União Internacional dos Artistas de Circo, existente na
época.
Na ocasião, Foregger via o circo como o reino da destreza e “eloquência do corpo” e
defendia a união entre as linguagens circenses e teatrais como uma nova modalidade de
espetáculo. “Para ele, não há fronteiras entre o circo e o teatro. O teatro e o circo são irmãos
siameses. Os elementos teatrais irrompem no circo, e o circo aspira impregnar com seus
sortilégios o domínio do teatro”328. O que este encenador propôs, na verdade, foi uma grande
reforma no circo, que supostamente conhecia a “crise” que o teatro passava época. Ele
convida, para isto, artistas ligados ao teatro para conceber pantomimas para o picadeiro e
espetáculos extraordinários, em tom feérico, bem como novos figurinos, música poderosa e
dinâmica, aprimoramento da cenografia, etc. Para Foregger, portanto, a reforma do circo
somente seria possível pelos homens de teatro e por fim o que ocorreria era “de um lado, o
teatro do drama, ‘o teatro das grandes paixões’, do outro, o circo, ‘teatro da alegria
despreocupada’. E a conclusão conduzia ao sonho de um teatro-circo”329.
Meierhold, por outro lado, criticou violentamente o sonho de um “teatro-circo” de
Foregger, e defendeu a independência entre ambas as linguagens, já que “o circo não deve ser
reconstruído por princípios que lhe sejam estranhos”330. Tanto o circo como o teatro deveriam
se desenvolver em consonância com as suas especificidades arquitetônicas, podendo cada
uma delas utilizar princípios e procedimentos da outra, porém conservando a independência
necesessária. Para ele, “as criações dos mestres do circo e as dos mestres do teatro realizam-se
e devem realizar-se no contexto das particularidades arquiteturais de dois espaços cênicos
diferentes e de acordo com leis que estão longe de serem idênticas”331.
327 Texto retirado do livro: PICON-VALLIN, Beatrice . Op. cit., 1975. Ver tradução para o português em Anexo III desta pesquisa, p. 182-184. 328 Ver anexo III, p. 182. 329 Ver anexo III, p. 182. 330 Ver anexo III, p. 182. 331 Ver anexo III, p. 183.
151
Deve-se olhar com atenção o posicionamento de Meierhold sobre essa questão.
Segundo ele, o circo, “nas mais teatrais das épocas teatrais”332, contribuiu para o
florescimento do teatro, especificamente na Commedia dell’Arte italiana e no antigo Japão.
Entretanto, no ambiente russo revolucionário, os atores e encenadores do teatro dramático
nada tinham a oferecer aos artistas circenses. Nesse sentido, as ideias meierholdianas
asseguravam que o ator teatral é quem deveria aprender com os artistas do picadeiro, pois “se
o teatro contemporâneo deve se impregnar de elementos acrobáticos, isto não quer dizer
absolutamente que se deva fundir as representações de circo e de teatro em um espetáculo de
um novo tipo”333.
Para esta pesquisa, mais do que a discussão entre a fusão do circo e do teatro em um
espetáculo único, discussão inclusive que ganhará mais força na década de 1920, interessa
aqui a abordagem sobre o ideal de homem contida no pensamento destes artistas.
Bogdanov334, importante filósofo russo que influenciou intelectuais, políticos e artistas da
Rússia no início do século XX, afirmava que o entendimento do homem como um ser
desenvolvido e total, não embrionário e fracionado, ainda não fora alcançado, mas estava
próximo e seu perfil já “se desenha claramente no horizonte”335. Para ele a “cultura
proletária”336 tinha a tarefa de favorecer o aparecimento deste homem, “ou, se se quer do
Homem (ou do Super-Homem), e de antecipar a sua formação já no presente”337.
Na Rússia revolucionária, o lugar de destaque foi dado ao proletário, o herói coletivo,
retratado pela vanguarda. Este movimento lutou exaustivamente por uma nova conformação
do homem, fortemente marcado pelo ideal socialista marxista, da não alienação da matéria e 332 Ver anexo III, p. 183. 333 Ver anexo III, p. 183. 334 STRADA, Vittorio. Da “revolução cultural” ao “realismo socialista”. In: HOBSBAWN, Eric (Org.). História Social do Marxismo: o marxismo na época da terceira internacional: problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 124. 335 Ibid. 336 Segundo Bogdanov, a noção de “cultura proletária” tinha um significado global, que abrangia todos os aspectos da vida social e individual, já que o seu objetivo era a formação do homem. Sobre isto, ver mais detalhes na parte dedicada à “Cultura proletária e revolução cultural” em: Ibid., p. 125- 129. 337 Ibid.
152
do espírito. Jakobson338 afirma que, em Maiakóvski, a materialização deste homem que
surgirá no futuro virá revestida de músculos e para o ato revolucionário se faz necessária a
“revolução do espírito”, para uma nova organização da vida, de uma nova arte e de uma
ciência nova.
Pode-se afirmar que o circo seria um dos espaços possíveis para a formação deste
modelo de homem, já que retomou no período suas especificidades de arte do corpo, que
eleva o homem à condição de superioridade. Isso foi possível graças à implementação de uma
rede de ensino e propagação das redes circenses, pelo próprio governo soviético, que tinha
como suporte ideológico a busca de um corpo belo e extremamente saudável, encarnando a
ideia de homem proclamada por Bogdanov.
Tal pensamento é claramente detectado na exposição de Meierhold, pois ele defendia
que o próprio artista deveria escolher os caminhos que desejava seguir, teatro ou circo. Na
contramão de Foregger, ele acreditava que o aspirante deveria passar primeiramente por
alguma escola que tornasse seu corpo mais flexível, cheio de vigor e belo, que o
disponibilizasse para qualquer tipo de atuação. O circo, assim, seria uma arma de combate aos
procedimentos realistas-naturalistas e para tal seria necessário a criação de uma “escola
artística e acrobática”
cujo programa deve ser construído de tal forma que o aluno, ao final dos estudos, seja um adolescente são, hábil, forte, arrebatado, pronto a fazer uma escolha de acordo com a sua vocação: o trabalho de circo, ou o teatro de tragédia, da comédia, do drama339.
A formação deste artista se aproxima do ideal do bogatyr. Fevralski340 reconheceu que
Meierhold acreditava que o domínio dos fundamentos acrobáticos é imprescindível para o
desempenho físico do ator, bem como, quando conveniente, era necessário levar para cena
certos elementos da arte circense. Isto porque Meierhold estava localizado no momento de
338 JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 14-21. 339 Ver Anexo III, p. 184. 340 FEVRALSKI. Op. cit., p. 320.
153
valorização da cultura do movimento cênico e da educação do artista, este deveria dominar
perfeitamente seu corpo, em função da criação de uma arte teatral capaz de cumprir as
complexas e variadas tarefas que pregava a revolução. Ele, em toda sua atividade pedagógica
(desde o período como o Dr. Dapertutto) e em sua obra como encenador, “procurou sempre
encarnar a realidade destes princípios”.
Cabe recordar que cabia a Meierhold a preparação técnica do seu ator, que se baseava
primordialmente no aperfeiçoamento da linguagem corporal. O pedagogo acreditava que a
arte do movimento demandava precisão, agilidade, leveza e ritmo e, para tal, induziu o ator ao
desenho do movimento cênico, à percepção do espaço e ao descobrimento de um vocabulário
– próximo ao virtuosismo e agilidade do acrobata ou a fluência do malabarista. As diversas
disciplinas do Estúdio da Rua Borondiskaia, portanto, tinham duas funções primordiais: a
formação técnica do comediante e, ao mesmo tempo, sua transformação em um inventor, ou
seja, além de o ator concentrar uma polivalência técnica era necessário reunir uma
criatividade ampla. “Visto que o intérprete meierholdiano é, ao mesmo tempo, um acrobata e
um cantor, um jongleur e um bailarino, um atleta e um orador, aspirava-se inventar novas
formas que abolissem as fronteiras que delimitam as pretensões especializadas”341.
Encontram-se aí alguns dos princípios sobre a polifonia que rege o ator meierholdiano.
Como foi visto anteriormente, o encenador procurou dotar o ator de múltiplos recursos
expressivos e orientá-lo também como um instrumento polifônico. Para Maria Thais342, a
formação deste tipo de ator pretendia torná-lo sujeito, uma voz autônoma que pudesse gerar,
através de seus movimentos e de sua fala, planos independentes que dialogariam entre si na
simultaneidade da cena. E ainda assim, este mesmo ator deveria se comunicar com os outros
elementos cênicos: a cenografia e objetos, o espaço cênico, outros atores, o texto, a música,
etc. O princípio da polifonia regeu os espetáculos meierholdianos, conforme visto, por 341 ROUBINE, Jean-Jacques apud THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 46. 342 Ibid., p. 169-170.
154
exemplo, na análise de Mistério-Bufo. Verifica-se que para a construção desta obra exigia-se
“um ator adestrado, capaz não só de reproduzir o movimento convencionado pela encenação,
mas, sobretudo, de criar”343.
Um paralelo pode ser traçado em relação ao artista circense e o seu caráter polifônico.
Longe de ser apenas um espetáculo de entretenimento, o espetáculo circense manifesta-se
como resultado de um rigoroso e complexo processo de formação artística e foi estruturado a
partir da ideia de fusão ou da mistura de linguagens artísticas. É para fundamentar estas
questões que surge o conceito de teatralidade circense344. Para ela, este termo engloba as
mais diversificadas formas de expressão artística que compõem o espetáculo do circo e,
portanto, é expressa e constituída por qualquer apresentação, seja acrobática, seja a
performance dos palhaços, a representação teatral, etc. Afinal ela é composta pela ação de
conjugar todos os componentes de seu espetáculo: o controle de um aparelho, gestos,
movimentos, coreografia, a comunicação não verbal com o público, maquiagem, roupa,
música, iluminação e a relação com as outras representações envolvidas.
Os artistas que compõem o espetáculo circense, os palhaços – herdeiros diretos dos
cômicos que habitavam as feiras, festas profanas ou religiosas –, os funâmbulos, os paradistas
e os saltimbancos, todos eles reuniam em suas práticas a teatralidade, destreza corporal,
mímica, dança, música e a palavra. Cabe frisar que o circo consolida-se, no final da primeira
metade do século XIX na Europa, como um lugar de múltiplas linguagens artísticas, que
implicava um agrupamento de saberes que determinavam novas formas de organização e
produção do espetáculo: acrobacias, magia, animais, números aéreos, show de variedades,
representações teatrais com pantomimas e entradas de palhaço com ou sem texto. Esse tipo de
343 Ibid., p. 160. 344 SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Altana, 2007, p. 20-21.
155
espetáculo, carregado de multiplicidade, foi o que migrou pelos países europeus, “marcando
relações plurais com as realidades culturais e sociais de cada região ou país”345.
Este conjunto de elementos revela a noção de polifonia, pois os artistas circenses, além
de combinar as diversas habilidades físicas acrobáticas, o canto, a dança e a representação
teatral, também aproveitavam os assuntos dos jornais, revistas e folhetins, assimilando os
temas que faziam parte da localidade onde estavam, e montavam pantomimas que seriam
representadas sob a lona. Os artistas reelaboravam os textos da apresentação para incorporar
as particularidades das situações locais e, assim, configuravam novas versões para o
espetáculo.
Os artistas das mais diferentes origens e experiências – homens e mulheres –, com suas representações teatrais, gestuais e musicais, ao trabalharem no espaço que combinava picadeiro e palco, consolidavam o intercâmbio de sabres e técnicas que esboçavam um novo tipo de atuação. A interação das técnicas espetaculares entre o teatro e o circo – a crescente busca pelo domínio e utilização da mímica pelo ator da época; a pista circular que aproximava a ação do espectador; o palco unido ao círculo por rampas laterais, que se levantavam como uma plataforma e todo o maquinário necessário para isso; o pano de boca, que permanecia fechado durante as apresentações das provas circenses e, quando iniciava a pantomima com um quadro no picadeiro, descobria uma cenografia, que “respondia cânones ilusionistas do momento: fortalezas, bosques, lagos, marinas, etc., pintados sobre a tela e iluminados por lamparinas”, os mesmos artistas saltando no solo ou em cavalos e representando as pantomimas, intercalando arena e palco, esboçavam também a formação de um novo campo de trabalho e um novo tipo de profissional.346
Esta reflexão conduz ao processo de aprendizagem do artista circense que
cotidianamente ia se qualificando para exercer tarefas, pois no circo ninguém nasce trapezista,
ninguém nasce palhaço, equilibrista ou malabarista. Foi determinante para a formação do
artista circense a noção de sintonia e contemporaneidade entre as diversas expressões
culturais, uma vez que era o próprio circense que deveria dirigir e produzir seus espetáculos e
necessitava ter abertura para se atualizar e se transformar. Por este prisma, a constituição do
espetáculo, que aliava destreza física, comicidade, musicalidade, dança e representação
345 Ibid., p. 52. 346 Ibid., p. 81
156
teatral, consolidava o “conjunto de expressões daquela teatralidade, que definia o circo como
um espaço polissêmico e polifônico”347.
Os palhaços raramente eram apenas palhaços. O palhaço tinha outras técnicas, podia ser a música, a acrobacia, o malabarismo, ser amestrador de animais. Meu pai sempre dizia que não se começava sendo palhaço; isso vinha depois. A primeira coisa era aprender um ofício, uma técnica. E com a vida, com a experiência do contato humano, e com o gosto de ter contato humano, lentamente a técnica ia se tornando menos importante, e o mais importante ficaria sendo a personalidade348.
347 Ibid., p. 281. 348 BASSI, Leo apud SILVA, Ermínia. Op. cit., p. 129-130.
157
CONCLUSÃO
O circo é o melhor lugar do mundo!
Constantin Stanislávski
158
Esta pesquisa revelou que do final do século XIX até os anos que antecederam a
Revolução de 1917, na Rússia, a imagem do artista circense povoou o imaginário de
intelectuais, artistas e poetas, influenciando as formas de expressão artística e literária do
período. Fruto da inquietação de todo um momento histórico, o país vive um momento de
florescimento cultural que possibilitou o aparecimento de gerações que provocaram
importantes transformações literárias e artísticas, bem como desenvolveram uma revolução
social, política e cultural. Nesse contexto, o desejo do “novo homem”, um super-homem,
influenciou o pensamento dos artistas e intelectuais russos e encontrará expressão nas
linguagens artísticas. Destacou-se, neste estudo, que o corpo acrobata se aproximaria da
concepção de tal Homem, e pelo fato da tradição eslava ser um traço tão peculiar do povo
russo recuperou-se a figura do Bogatyr.
O simbolismo que se desenvolveu na Rússia na virada do século XIX para o XX é o
primeiro movimento que fomenta a recriação de uma arte total e religiosa, o desejo de superar
as fronteiras entre as linguagens artísticas. No entanto, a aproximação com o circo por parte
dos simbolistas ocorre no sentido poético e idealizado, não havendo de fato uma apropriação.
As reformas do simbolismo preparam o caminho para o desenvolvimento da vanguarda
futurista russa, que também se unificaram em protesto contra seus antecessores.
As experimentações da vanguarda cubo-futurista foram radicais em relação às artes.
Uma característica particular deste movimento foi a reivindicação da autêntica tradição eslava
em diálogo com a ruptura das convenções e o seu alastramento para todos os setores da
cultura. As atividades circenses ganharam grande relevância nas práticas dos poetas e pintores
da vanguarda, pois se aproximam sobremaneira de seus objetivos. No que diz respeito à
vanguarda teatral, por exemplo, a teatralidade foi adotada como mote e o circo exerceu uma
extraordinária influência sobre as atividades de encenadores e dramaturgos em reação violenta
aos procedimentos realistas-naturalistas.
159
Vladímir Maiakóvski, poeta cubo-futurista, foi destacado em virtude de sua
significativa contribuição à arte e literatura russa, e, particularmente, por seu interesse pela
cultura popular e pelo circo. Ele convivia com artistas do picadeiro e adota em diversas obras
elementos do universo circense, conforme visto no texto Mistério-Bufo, encenado em duas
versões, em 1918 e 1921.
O encenador e pedagogo russo Vsévelod Emilievitch Meierhold foi um elemento-
chave desta pesquisa: com ele a aproximação com as atividades circenses ocorre devido ao
resgate da tradição russa e do seu particular interesse pelo picadeiro. O encenador adota como
referência para o modelo do “novo ator” a arte dos atores ambulantes, malabaristas,
equilibristas, acrobatas, ilusionistas, palhaços e cômicos, característicos do balagan e que
habitavam as ruas e praças. Meierhold faz uma ode a este universo no texto Viva o
Malabarista!, em 1917. Tais procedimentos puderam ser experimentados por Meierhold
como procedimento pedagógico nos anos de 1910 no Estúdio da Rua Borondiskaia, já que
também artistas de circo, cada um possuindo habilidades múltiplas, foram convidados para
ensinar aos alunos técnicas de palhaço, a arte de saltar e de fazer malabares.
Após a Revolução de 1917, com a transformação do ideal de homem russo e o desejo
de uma arte engajada, acentua-se a simbiose entre palco teatral e picadeiro. Neste movimento,
os artistas de circo são até mesmo convidados para participar de espetáculos no palco do
recém-criado teatro soviético, um exemplo célebre é a representação de Vitáli Lazárienko no
espetáculo Mistério-Bufo. Meierhold exalta o circo como uma escola de saúde, destreza,
disciplina e beleza, bem como reconhece no artista do picadeiro a sua multiplicidade artística,
a sua polifonia. Ele manifestou publicamente estas ideias no debate sobre a exposição de
Nikolai Foregger sobre O Renascimento do Circo, no ano de 1919.
Mistério-Bufo, espetáculo encenado em duas versões em 1918 e em 1921, resultado da
parceria entre Meierhold e Maiakóvski, é considerado um marco para a Rússia Soviética. Em
160
tal obra localizam-se os procedimentos pedagógicos desenvolvidos por Meierhold na época
pré-revolucionária, as experimentações futuristas de Maiakóvski e a apropriação do circo
como elemento fundamental da encenação.
O circo foi reconhecido pelos intelectuais russos como um lugar de desenvolvimento e
aprimoramento do corpo, oferecendo ao homem o lugar de herói ao produzir efeitos
espetaculares, ultrapassando seus limites e o elevando a condição de superioridade. Além da
exigência da proeza corporal, conquistada por meio de treinamento e preparo físico intensivo,
que é marca do artista circense, é possível identificar nesta figura a capacidade de diálogo
com outras linguagens artísticas. Ele é reconhecido como criador e agente de sua obra, capaz
de se relacionar com as outras áreas artísticas, dotado de pluralidade técnica, pois disto
dependia a sua sobrevivência e a do próprio circo. Essa tendência, portanto, converge para a
polifonia do próprio circense.
Na Rússia, grande parte dos artistas se volta para o circo no início do século XX. O
interesse por esta atividade não é casual, pois neste momento há o sonho pelo homem
harmônico do futuro e nele tudo deve ser belo. O acrobata causa admiração pela força,
destreza e ousadia, qualidades ligadas ao ideal do novo homem russo. Eles identificavam no
circo o espírito de camaradagem e de solidariedade, pois como relatou um acrobata a Máximo
Gorki (1869-1936): “Nosso trabalho é tão perigoso que temos que proteger uns aos outros”349.
Para este dramaturgo, os artistas circenses não pareciam homens comuns no seu
comportamento e na sua conduta.
O fato é que a lona foi um espaço aberto à pluralidade de gêneros e de linguagens; é
extensa a lista de companhias que buscam referências para suas obras em outras disciplinas350.
A linha divisória entre os circenses e as outras expressões artísticas não estão bem definidas e,
349 LÉBEDEVA A. Maximo Gorki y el circo. In: El circo Soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975, p. 306. 350 Para ilustrar este contexto, pode-se citar as famosas companhias: Cirque Plume, Archaos, The 7 fingers, La Fura dels Baus. No Brasil: Intrépida Trupe, La Mínima, Circo Mínimo e Teatro de Anônimo.
161
numa outra perspectiva, para alguns atores de teatro, dos cabarés e music halls, por exemplo,
o circo também era um espaço de trabalho. Sobre esta simbiose afirma Barbey d’Aurevilly351:
O Circo [...] é o teatro dos pintores, dos escultores e dos poetas que amam a beleza e que querem realizá-la em suas obras. [...] É o teatro da beleza e das forças plásticas e visíveis, que nunca são discutidas, pois a beleza intelectual e moral são discutidas, miseravelmente contestadas, mas a beleza física não se discute. Ela se impõe! O Circo, mais estético que dramático, tem seu tipo de patético e de emoção como tem seu tipo de beleza. [...] O Circo é o único teatro onde a perfeição é obrigatória. [...] Mas no circo, onde a arte tem a dignidade do perigo, se o ator ou a atriz, cuja pessoa é o papel todo e mesmo a peça inteira, não são seguros de si – se eles fazem um falso movimento, se eles se distraem, durante um instante de esquecimento, uma fadiga momentânea –, eles arriscam a se quebrarem!... O corpo, que como o espírito tem suas falhas, se paga aqui de modo terrível... No Circo, a mediocridade é de súbito ameaçada a romper seu pescoço – que deliciosa perspectiva! – enquanto nos outros teatros ela se espreguiça vocês sabem com que ar! Ela se porta muito bem e não arrisca absolutamente nada.
O circo povoa o imaginário do povo pela sua capacidade de produzir eventos
sinestésicos extraordinários. Os vertiginosos, belos e matematicamente exatos movimentos
dos acrobatas expressam a sua excelente preparação técnica, valentia e primor artístico. Ainda
no circo encontra-se o grande poder de síntese. Aí reside a extraordinária amplitude e
variedade de meios expressivos capazes de transmitir pensamentos audazes e oferecer
liberdade à fantasia do espectador. Criam-se, a partir disso, imagens de grande heroísmo e ao
mesmo tempo patéticas, isto é, a morte e o sorriso, o perigo, o risco e o cômico, a farsa.
Meierhold, por exemplo, tinha consciência do grande alcance e da popularidade das
artes circenses. Ele considerava o circo um espaço de valentia, audácia, destreza e beleza do
corpo humano, o circo era visto como um modelo de educação da cultura física do homem,
necessária para o desenvolvimento físico e espiritual da pessoa que trabalha, luta e porta
elevados valores culturais. Este pensamento emparelha-se com o ideal do “novo homem” e
não por acaso após o ano de 1917 os procedimentos acrobáticos invadiram a cena soviética.
Por outro lado, não é à toa que após a Revolução de 1917 o circo russo se desenvolve
sobremaneira e passa a ser um dos focos de investimento do governo soviético, que
implementa uma rede de educação e difusão das artes circenses. O circo encontra o terreno
351 BARBEY D’AUREVILLY, Jules. Le cirque. In: Théâtre contemporain, 1881-1883. Paris: Stock, 1896, p. 23-25.
162
fértil para o seu florescimento ao retomar, assim, a especificidade das artes do corpo, que
eleva o homem à condição de superioridade. Data deste período a famosa disciplina e técnica
russa do circo e a sua propagação e influência nos países ocidentais. No entanto, não é
possível realizar tal abordagem sem mencionar o uso ideológico do circo pelos soviéticos. A
situação na Rússia em 1929, após a queda de Lênin, era a da ditadura implantada por Josef
Stálin (1878-1953); o governo investiu na imagem do proletário vigoroso e sadio e, assim,
acolheu o circo como ponto importante na sua política cultural, porque ele exaltava
perfeitamente o exemplo da supremacia do corpo ao formar, sob a sua cúpula, novos bogatyrs
à serviço do Estado Socialista Soviético.
Mas esta já é outra história...
163
BIBLIOGRAFIA
1. LIVROS
ABENSOUR, Gérard. Vsévolod Meyerhold ou l’Invention de la mise em scène. Paris: Fayard, 1998. AMIARD-CHEVREL, Claudine. Du cirque au théâtre. Lausanne: L’Âge D’Homme, 1983. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 1993. BALAKIAN, Anna. O simbolismo. São Paulo: Perspectiva, 2000. BARBEY D’AUREVILLY, Jules. Le cirque. In: ______. Théâtre contemporain, 1881-1883. Paris: Stock, 1896. BOLOGNESI, Mario Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003. BOWLT, Jonh E. Moscow and St. Petersburg in Russia’s silver age. Londres: Thames and Hudson, 2008. BRAUM, Edward. Meyerhold: a revolution in theatre. London: Methuen Drama, 1995. ______. Meyerhold on theatre. London: Methuen Drama, 1998. CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; SCHNAIDERMAN, Boris. Poesia moderna russa. São Paulo: Perspectiva, 2009. CARR, Edward. H. Historia de la Rusia Soviética: la revolución bolchevique (1917-1923) – El orden económico. Madrid: Alianza Universidad, 1987. CARREIRA, André; NASPOLINI, Marisa (Org.). Meyerhold: experimentalismo e vanguarda. Rio de Janeiro: E-papers, 2007.
164
CAVALIERE, Arlete. Teatro russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas, 2009. CONRADO, Aldemar. O teatro de Meyerhold. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. EVREINOV, Nicolás. El teatro en la vida. Buenos Aires: Ediciones Leviatan, 1956. FERRO, Marc. A revolução russa de 1917. São Paulo: Perspectiva, 2007. FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004. ______. Teatro da militância: a intenção do popular no engajamento político. São Paulo: Perspectiva, 1990. FRANK, Joseph. Pelo prisma russo: ensaio sobre literatura e cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1992. GARCIA, Silvana. As trombetas de Jericó: teatro das vanguardas históricas. São Paulo: Hucitec, 1997. GENET, Jean. O funâmbulo. Lisboa: Hiena Editora, 1984. GOLBERG, RoseLee. A arte da performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GORDON, Mel; LAW, Ana. Meyerhold, Einsenstein and biomechanics: actor training in revolutionary Russia. Berkeley California: Mc Farland & Company, 1996. GUINSBURG, Jacó. Stanislávski, Meierhold & cia. São Paulo: Perspectiva, 2001. GUZZO, Marina S. L. Risco como estética, corpo como espetáculo. São Paulo: Annablume, 2009.
165
HOBSBAWN, Eric (Org.). História social do marxismo: o marxismo na época da terceira internacional – Problemas da cultura e da ideologia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v. IX. HUMPHREYS, Richard. Futurismo. Tradução de Luiz Antonio Araújo. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. JAKOBSON, Roman. A geração que esbanjou seus poetas. São Paulo: Cosac Naify, 2006. LEACHED, Robert. Vsevolod Meyerhold. New York: University of Cambridge, 1989. LITÓVSKI, A. (Org.). El circo soviético. Moscú: Editorial Progreso, 1975. MAIAKÓVSKI, Vladimir. Mistério-Bufo. Tradução de Lila Guerrero. Buenos Aires: Editorial Platina, 1958. ______. Mistério-Bufo: um retrato heróico, épico e satírico da nossa época. Tradução de Dmitri Beliaev. São Paulo: Musa Editora, 1998. ______. Poemas. Tradução de Augusto e Haroldo de Campos. São Paulo: Perspectiva, 2008. ______. Vida e poesia. São Paulo: Martin Claret, 2008. MEYERHOLD, V. L’attore biomeccanico. Tradução e notas de Fausto Malcovati. Milano: Feltrinelli, 1997. ______. La rivoluzione teatrale. Tradução e organização de Giovanni Crino. Roma: Editori Riuniti, 1962 ______. Teoría teatral. Tradução de Augustín Barreno e Milavia. Madrid: Editorial Fundamentos, 1971. NIETZSCHE, Friederich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
166
PICON-VALLIN, Beatrice. A arte do teatro: entre a tradição e a vanguarda – Meyerhold e a cena contemporânea. Organização de Fátima Saadi. Rio de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto; Letra e Imagem, 2006. ______. A cena em ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2008. ______. Meyerhold: Les Voies de la Création Teatrale, nº 17. Paris: Éditions du CNRS, 1990.
______ (Org.). Vsevolod Meyerhold. France: Actes Sud – Papiers/ CNSAD, 2005. ______. Vsevolod Meyerhold: Escrits sur le theater. Paris: La Cité – L’Age d’homme, 1975. v. II.
POMORSKA, Krystyna. Formalismo e futurismo. São Paulo: Perspectiva, 1972. PORTINARI, Maribel. História da dança. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. RIPELLINO, Angelo M. Maiakóvski e o teatro de vanguarda. São Paulo: Perspectiva, 1986. ______. O truque e a alma. São Paulo: Perspectiva, 1996. ROMANO, Lúcia. O teatro do corpo manifesto: O teatro físico. São Paulo: Perspectiva, 2005. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1998. RUDNÍTSKI, Konstantin. Russian & soviet theatre. London: Thames and Hudson, 1988. RUFFINI, Franco. Le Milieu-scène: pré-expression, énergie, présence. In: L’energie de l’acteur, Bouffonneries, n. 15-16. Lectoure, 1987. SÁNCHEZ, José A. La escena moderna. Madrid: Ediciones Akal, 1999.
167
SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Altana, 2007. SCHNAIDERMAN, Boris. A poética de Maiakóvski. São Paulo: Persectiva, 1971. STANISLÁVSKI, Constantin. Minha vida na arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro; apresentações dos principais poemas metalingüísticos, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas, de 1857 a 1972. Petrópolis: Vozes, 2009. TAKEDA, Cristiane L. O cotidiano de uma lenda: cartas do Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Perspectiva, 2003. THAIS, Maria. Na cena do Dr. Dapertutto. São Paulo: Perspectiva, 2010. TRAGTENBERG, Maurício. A revolução russa. São Paulo: Editora Unesp, 2007. VÁSSINA, Elena.; CAVALIERE, Arlete.; SILVA, Noé. (Org.). Tipologia do simbolismo nas culturas russa e ocidental. São Paulo: Humanitas, 2005. VEIGA, Guilherme. Ritual, risco e arte circense. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. WALLON, Emmanuel (Org). O circo no risco da arte. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
2. DISSERTAÇÃO E TESES
BOLOGNESI, Mario Fernando. Tragédia: uma alegoria da alienação. 1987. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987. CHAVES, Yedda Carvalho. A biomecânica como princípio constitutivo da arte do ator. 2001. Tese (Mestrado em Artes Cênicas) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
168
COSTA, Eliene Benício Amâncio. Saltimbancos urbanos: a influência do circo na renovação do teatro brasileiro nas décadas de 80 e 90. Tese (Doutorado em Artes – Teatro) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. v. I.
3. MATÉRIAS DE REVISTA
BOLOGNESI, Mario Fernando. As cidades de Maiakóvski. Urdimentos Revista de Estudo Pós-Graduados em Artes Cênicas, Florianópolis: UDESC/CEART, v. 1, n. 6, p. 34-43, 2004. CASTRO, Alice Viveiros de. A arte do insólito. Revista Continente Cultural, Pernambuco, v. 77, maio/ 2007. GORDON, Mel. Meyerhold’s biomechanical. The Drama Review, New York University/ School of Arts, v. 17, n. 1 (T57), p. 73-88, mar/ 1973
4. INTERNET
BOLOGNESI, Mario Fernando. O circo civilizado. In: SIXTH INTERNATIONAL CONGRESS OF THE BRAZILIAN STUDIES ASSOCIATION, 2002, Georgia (EUA). Anais eletrônicos da BRASA VI. Atlanta: BRASA VI, 2002. Disponível em: <http://sitemason.vanderbilt.edu/files/cvBvB6/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf> Acesso em: 12 mai. 2010.
169
ANEXOS
ANEXO I
V. E. MEIERHOLD, CURSO DE BIOMECÂNICA, 1921-22352
Material recolhido por M. Korenev
Tradução353: Rosyane Trotta
Princípios da Biomecânica
1.
Toda a biomecânica é fundada sobre o princípio segundo o qual se a ponta do nariz se move,
todo o corpo se move junto.
Todo o corpo participa do movimento do menor órgão. Deve-se, antes de tudo, encontrar a
estabilidade do corpo. À menor tensão, todo o corpo reage.
2.
Fixar um tema no exercício é uma necessidade difícil de dispensar. Com um tema fixado,
interpretar torna-se muito mais fácil para o corpo. Todavia, é necessário não se deixar levar
pelo tema e evitar interpretá-lo.
É preciso prestar a máxima atenção a cada elemento do exercício. Só assim se obtém um
trabalho cuidado nos mínimos detalhes. 352 In: L’Attore Biomeccanico. Trad. e notas de Fausto Malcovati. Milano: Feltrinelli, 1997, p. 76-79. 353 A tradução realizada por Rosyane Trotta teve finalidade instrumental para o grupo de estudos sobre Meierhold no Rio de Janeiro, no período de outubro de 2009.
170
3.
Na fase de controle do trabalho, todos aqueles que participaram do exercício devem
demonstrar haver assimilado o método e compreendido as indicações.
[...]
5.
Cada movimento em biomecânica é composto de três momentos: a) intenção; b) equilíbrio; c)
execução.
[...]
8.
Os requisitos básicos da biomecânica são a coordenação no espaço e em cena, a capacidade
de encontrar o próprio centro em meio a um grupo em movimento, a capacidade de adaptação,
o cálculo e o golpe de vista preciso.
9.
A emissão vocal – indicador do grau de reatividade – deve ser sempre um fundamento
técnico. Ela só pode se oferecer quando tudo está em tensão, quando o material técnico está
completamente organizado.
10.
Calma imperturbável e perfeito equilíbrio são condições imprescindíveis de um trabalho de
boa qualidade.
[...]
171
14.
Cada ator deve possuir um equilíbrio convincente, certa quantidade de posições e diversos
rakursy que o permitam manter o equilíbrio. Cada um deve procurar sozinho o equilíbrio
necessário a cada momento específico.
15.
[...] deve dar conta imediatamente de cada mudança de posição do corpo em cada mínima
parte.
16.
O gesto é o resultado do trabalho de todo o corpo. O gesto é sempre o resultado do que o ator
traz na sua bagagem técnica.
17.
A reatividade nasce no decorrer do trabalho como resultado do uso correto de um material
sobreposto a um bom treinamento.
18.
Cada forma de arte implica a organização de um material. Para organizar a si próprio, o ator
deve dispor de uma gama vastíssima de meios técnicos.
A peculiaridade, e também a dificuldade, da arte atorial está no fato de que o ator é, ao mesmo
tempo, material e organizador do material. O ofício do ator é uma coisa complicada. A todo
instante o ator é compositor.
172
19.
Uma dificuldade da arte atorial esta em conciliar com extremo rigor todos os elementos do
trabalho.
20.
O fundamento do nosso sistema de interpretação é a condição física do material sobreposto ao
treinamento. Durante a execução, cada tarefa vem programada com precisão em relação ao
espaço cênico; todos os movimentos do ator, até mesmo os reflexos, devem ser sempre
rigorosamente organizados.
[...]
23.
Em cada exercício coletivo o indivíduo deve renunciar de uma vez por todas ao eterno desejo
de todo ator: tornar-se solista.
[...]
25.
É importante que qualquer exercício seja executado de forma precisa, não apenas no sentido
da fluência do trabalho, mas também da beleza exterior (“parad”), da utilização do espaço
cênico, do efeito e assim por diante.
26.
Toda ação do ator tem a sua beleza exterior (“parad”).
[...]
173
28.
Toda forma de arte se baseia na sua autolimitação. A arte é, sempre e antes de tudo, uma luta
contra o material.
29.
Não se pode dar liberdade ao movimento. Deve-se, ao contrário, manter uma severa economia
de movimentos. É assim que se avalia a adequação do diretor e do ator.
30.
Piano e forte são sempre relativos. O público na sala deve sempre ter a impressão de que uma
reserva de material permanece não utilizada. O ator não deve em hipótese alguma esgotar toda
a reserva de material de que dispõe. Até mesmo o gesto mais explícito deve deixar a
possibilidade de alguma coisa ainda mais explícita.
[...]
32.
A biomecânica não tolera nada de casual, tudo deve ser feito conscientemente, com cálculo. A
todo o momento o ator deve estabelecer e saber à perfeição em que posição se encontra seu
corpo e utilizar desenvoltamente cada parte para colocar em prática seu propósito.
33.
Lei geral do teatro: quem dá livre saída ao próprio temperamento no início do trabalho,
inevitavelmente o esgotará antes de chegar ao fim e arruinará toda a interpretação.
34.
174
É inadmissível qualquer ligeireza no plano técnico. Você só se sente completamente à
vontade quando o material é desenvolvido do ponto de vista técnico e testado em um sólido
treinamento. Apenas então se pode abrir caminho àquilo que chamamos reatividade, caso
contrário, o trabalho seria arruinado.
35.
Durante o exercício, todas as emoções são apenas esboçadas, limitando-se a indicar com
precisão onde e quando deve acontecer uma explosão. Um choro não adequadamente
preparado do ponto de vista técnico faz com que se perca inevitavelmente o equilíbrio e
depois é preciso procurá-lo de novo, o que equivale a partir do zero.
[...]
37.
Para um ator, o controle do corpo está sempre em primeiro lugar. Não é a imagem que conta,
mas a bagagem do material técnico. O ator é um homem que organiza sem cessar o próprio
material. Deve conhecer de cor a gama das próprias possibilidades e todos os expedientes
técnicos dos quais dispõe para realizar um dado propósito. A capacidade profissional de um
ator é diretamente proporcional ao número das combinações possíveis da bagagem dos seus
meios técnicos.
[...]
43.
[...] A condição descontrolada da pessoa com os nervos à flor da pele é inadmissível.
44.
175
Primeiro princípio da biomecânica: o corpo é a máquina, o ator é o mecânico.
(A numeração é casual, nota de M. Korenev.)
176
ANEXO II
VIVA O MALABARISTA! (1917), Vsévolod Meierhold
Vejamos aqui algo do qual fui testemunha um dia, em Petrogrado354, na época das
primeiras intervenções dos partidários de Lênin: na entrada da avenida Kamenoostroviski, a
multidão cercava (hoje como ontem) a tribuna do Hotel Kchesinski e bebia avidamente as
palavras do orador de serviço que discursava, contra o conjunto de balaústres de um balcão
decadente, como um Petrouchka355, que parecia tão bem que nada poderia arrancar dali seus
desocupados, vindos de uma periferia longínqua de uma capital de conto de fadas.
Ora, no mais grosseiro jorro impetuoso de palavras derramadas pelo orador
desprendido, do outro lado da avenida, próximo da estátua de Steregouchtchi, chega um
malabarista, membro de uma trupe chinesa ambulante356. O Chinês apresenta um pequeno
picadeiro, uma “roda do diabo” que um rato adestrado faz girar. Apelando ao socorro de uma
feitiçaria de uma boneca de madeira (“Andriouchka”), o Chinês murmura obscuras
lamentações, exibe uma bola de trapos, e a faz saltar magicamente de uma tigela a outra,
354 São Petersburgo ou Sampetersburgo - г, Sankt-Peterburg em russo) é uma cidade federal da Rússia localizada às margens do rio Neva, na entrada do Golfo da Finlândia, no Mar Báltico. Os outros nomes da cidade foram Petrogrado , 1914–1924) e Leninegrado , 1924–1991). É frequentem
). Fundada pelo czar Pedro, o Grande, em 27 de maio de 1703, serviu de capital do Império Russo por mais de duzentos anos (1713–1728 e 1732–1918). São Petersburgo deixou de ser a capital em 1918, após a Revolução Russa de 1917. É a segunda maior cidade da Rússia e a quarta da Europa (em território) atrás de Moscou, Londres e Paris. São Petersburgo é um dos maiores centros culturais da Europa e um importante porto russo no Mar Báltico. 355 Petrouchka (Francês: Pétrouchka; Russo: Петрушка) é um ballet cuja música foi composta pelo russo Igor Stravinsky e coreografado por Michel Fokine. A história é sobre um fantoche tradicional russo, Petrushka, feito de palha e com um saco de serragem como corpo, que acaba por tomar vida e ter a capacidade de amar, uma história que se assemelha superficialmente àquela de Pinocchio. 356 Em 1917, haviam muitos Chineses e Japoneses nos circos de Moscou: no Circo Nikitine, em outubro 1917, "Tsao-San", trupe de artistas japoneses; no Circo Salomonski, no mesmo ano, estão os "Van Khoun-Dji", da celebre trupe chinesa. Nos anuncios do Eco do Circo (L'Echo Du Cirque), 1917, n° 5, fala-se também de "Imasaki", trupe japonesa onde trabalham do mesmo modo Chineses e Coreanos, sob pseudonimos japoneses (citação da tradução do francês).
177
engole uma bola de vidro e a faz reaparecer ora pela orelha, ora pelo cotovelo. O Chinês
mostra, sem esconder nada, a solda de doze círculos de aço que tem diante de si, depois ele as
toca com suas mãos hábeis, e a dúzia de argolas tilinta bem alta no ar, agrupando-se em uma
única corrente. O que se passou? Cada argola penetrou uma à outra por uma abertura
invisível? Ou temos bem aqui uma magia diabólica?
O prestidigitador vindo do Oriente é rodeado de soldados e alunos, de idosos
respeitáveis e de crianças, de dandies357 e de cozinheiras. Dentro do chapéu do Chinês voam
bilhetes rasgados, imundos. A multidão se diverte, aplaude, e depois segue alegre para o
trabalho. Perdendo-se em inúmeros percursos pela rua.
Quanto ao observador que aqui está por acaso dentro dessa zona violentamente
dividida em dois mundos, num lugar de duplo bombardeamento – esse do orador que tem seu
comício, e esse do malabarista de rua –, está curioso para saber qual dos dois vai lhe
conquistar. Ele ignora o resultado do jogo de ontem, e ele não prevê o de amanhã: mas hoje é
o malabarista quem ganha, quem vence este jogo entre o leninista e o Chinês.
Viva o Malabarista!
Eu gostaria de perguntar a vocês, vocês que trabalham sobre o picadeiro, a vocês, sim,
artistas de circo, se conhecem sua força.
Eu sei que a resposta será “sim”. Vocês têm o direito de responder assim (e somente
assim). Então, permita-me outra questão: por que não ajudam ao seu povo?
Se me perguntassem de quais distrações precisam nosso povo, agora, nesses dias em
que a Rússia se mostra ao mundo redimida de suas correntes, eu responderia sem hesitar: ele
tem necessidade de distração que apenas a arte do circo pode lhe trazer.
Quando um homem, em pânico, foge do seu dever, quando o bacilo da covardia –
como o bacilo da peste –, arranca as pessoas, por rebanhos inteiros, da arena da luta pela 357 Um dandie (dandy, origem inglesa) é um homem de extrema elegância e muito refinado, mas também de um espírito afetado e impertinente. Termo proveniente do movimento “dandismo” dos fins do século XVIII da Inglaterra.
178
honra; quando a força de caráter está quase em via de extinção, é preciso oferecer ao púbico
uma vanguarda capaz de difundir o eficaz contágio de uma coragem imensa.
Glória à revolução que reduz a censura à fumaça! Mas qual censura dever-se-ia
instituir hoje? Essa que saberia estritamente interditar qualquer arte que gotejaria na nossa
vida o definhamento da vontade. Desde que a liberdade da palavra foi adquirida, uma
completa desordem se instala na cena, os atores começam a apresentar peças outrora proibidas
pela censura, e cegos pela faixa vermelha do veto do censor, ele apenas viram essas peças
representando o aspecto miserável de nossa cinzenta vida, nossa vida cotidiana, nada além do
nosso cotidiano; eles não pensaram que essas obras tinham sido encenadas em tempos de
decadências do espírito, em tempos de desesperanças.
O que pensam disso? Se ele ousasse arriscar sua vida por um looping, este aviador a
quem a estreia atraiu se, no teatro, nossos atores tivessem-lhe apresentado no dia anterior um
espetáculo de mais de três horas: uma peça à moda num ambiente “panpsicológico”? Ele
nunca teria conseguido! Quando então hesitava, achou ajuda levando-o a decidir arriscar sua
vida? Apenas com vocês, senhores prestidigitadores, equilibristas, saltadores e trapezistas de
alto voo!
Pequenas taças de porcelanas dispostas sobre um palco, o Chinês pega o palco em suas
mãos e enfia sua cabeça embaixo de um praticável de 6,50 metros de altura; dá piruetas no ar,
a venda já sobre seus pés e mostrando ao público a porcelana intacta. “O homem sem nervos”
dá um salto arriscado para trás do alto de uma pirâmide de mesas, sem deixar sua cadeira e,
colocando-se de pé, sorri para público que o aplaude.
O palhaço-saltador projeta seu corpo do alto de um trampolim, do alto de uma
pirâmide de garotos do picadeiro, consegue repetir seu número inúmeras vezes. O salto
arriscado sobre cavalos montados sem preparo... Os acrobatas dos “Quatro diabos”... Esse que
é endurecido pelo amor ao circo completa a lista desses números vertiginosos que nem sequer
179
podem se inscrever na memória de nossos aviadores. Agora que os aviadores giram ao redor
dos tetos de nossas casas, quando a velocidade atinge quase 120 km/h para que se viva sem
vegetar, em meio à resplandecência do sol, para criar uma vida feliz, uma vida forte, o homem
deve saber o que é a audácia.
Mas junto a quem aprender esta arte: criar e viver dentro da audácia?
Junto a vocês, senhores circenses.
Esse que voa ao som de uma doce valsa, bem ao alto da cúpula do circo, não sabe o
que é o medo da morte.
Convide-nos rápido ao seu “espaço de criação”, rápido, faça fluir dentre o nosso
sangue o doce veneno da audácia!
Leve-nos a ver vosso trabalho, a cada dia, a cada novo dia.
Mas por que a porta de nossos circos continua condenada às tábuas pregadas?
Condenados pelas sólidas partes dos teatros de inverno, eis uma explicação: As
pessoas em férias (que é seu próprio público) devem viver dentro de suas datcha358. Seu
público que é a “intelligentsia” de prudência excessiva precisa de audácia para terminar de
morrer?
Trabalhadores do circo, eu lhes chamo, eu lhes questiono; pois todo seu público está
presente. Veja os domingos e os feriados, os sábados e as vésperas de festas, ele está aqui, nas
praças e nas ruas da cidade, dia e noite.
Veja como seu público se entedia, como se convalesce, como ele parece esperar
alguma coisa. Esmagado de tédio, esta multidão rói as sementes de girassol (eis a sua única
distração), ela desaprendeu a rir e apenas sorri raramente quando diante de si vem este artista
358 Do russo ( ) datcha é o nome para fazenda, casa de campo ou mansão, para ser usada no verão e primavera. Muito comuns na Rússia, pessoas que moram nas grandes cidades costumam ir para suas datchas nas férias. Algumas ficam à beira de rios ou lagos, outras em colinas e outras em meio a bosques, mas sempre em locais abertos com paisagens ricas, utilizada sempre como casa de veraneio.
180
estranho, esse malabarista Chinês com seus ratos e suas espadas, seus malabares e suas facas e
seu “Andriouchka”.
Por que então vocês, acrobatas russos, não vão à direção deste povo que tanto lhes
espera?
Por que não temos mais nas praças acrobatas voadores? Por que não temos mais circos
ambulantes, ao exemplo desses que se instalaram facilmente nas praças dos mercados em
nossas pequenas cidades de província como Kouznetz ou Belebei-Aksakov, ou nas cidades de
água da Finlândia e os fiordes noruegueses359 se protegendo das chuvas nórdicas pela
cobertura de telhados impermeáveis?
Oh, onde está o balagan360 russo? Onde se esconde Petrouchka? Por onde passaram os
garotos equilibristas que andavam pelos corredores – não faz nem tanto tempo –, e que
esticavam diante de nossos pés os tapetes que teciam? Onde estão os teatros de marionetes?
Onde estão as pantomimas com as cozinheiras e os Indianos, com os acrobatas dos papéis
femininos?
Eu vi ontem no cinema Os Mistérios de Nova Iorque361. O filme é construído
inteiramente sobre as bases do excentrismo circense. Retirem desse filme americano todos os
truques acrobáticos e nada restará dele além de uma bola de sabão. Eu vi também o público de
Moscou forçando a porta do cinema. Querem saber por quê? Eu respondo: para ver a luta,
para ver a vitória do vale-tudo sobre o medroso. Eu tenho certeza, pois dentro desse filme, o
encenador energético não quis experimentar nenhum motivo estético.
Tenho uma pergunta, e tenho uma proposta.
359 Fiorde é uma grande entrada do mar em volta de altas montanhas rochosas. Localizam-se principalmente na costa oeste da península escandinava e têm origem na erosão das montanhas por causa do gelo. 360 Teatro de Feira em Russo. 361 Les Mystères de New York (The exploits of Elaine) é um seriado em preto e branco de Louis Gasnier de 1915.
181
Por que então vocês, gente do circo, não se apressam a propor sua arte a estes que têm
sede do seu excentrismo, que desejam o canto do seu corpo maleável, que param à sua frente,
suplicando para que lhes deem um espetáculo, apesar de todo seu tédio na reza para o pão de
cada dia?
Digam-me por que cedem seu espetáculo ao cinema ávido que se nutre de seu cardápio
com a única diferença que os pratos são falsificados pelas histórias de “mão misteriosa” e
outras idiotas invenções de hábeis fabricantes de cinema do mercado americano?
(Tradução para o português de Gabriela Itocazzo
da versão em francês de Beatrice Picon-Vallin.
Eco do Circo, n° 3, agosto de 1917, p.3)
182
ANEXO III
O RENASCIMENTO DO CIRCO (1919)
No dia 17 de fevereiro, na sala da União Internacional dos Artistas de Circo, N.
Foregger fez uma exposição sobre o tema “O renascimento do circo”. Para ele, não há
fronteiras entre o circo e o teatro. O teatro e o circo são “irmãos siameses”. Elementos teatrais
irrompem no circo, e o circo aspira impregnar com seus sortilégios o domínio do teatro.
Foregger lembrou que na Espanha do século XVII, um cão adestrado passeava entre os
espectadores no teatro, e que na época elisabetana um funâmbulo fazia a ligação entre os atos
de Hamlet. Foregger conclama os atores, cenógrafos e encenadores contemporâneos a
trabalhar no circo, reino da destreza e da “eloquência do corpo”. O circo também conhece a
mesma “crise” sobre a qual debatemos violentamente, há pouco tempo, a propósito do teatro.
Também no circo é tempo de começar a empreender reformas. Foregger convidou os homens
de teatro contemporâneos a criar para o picadeiro “milhares de pantomimas e espetáculos
feéricos extraordinários”, uma música potente e dinâmica, um figurino novo, a aperfeiçoar o
cenário, pintar as celas dos cavalos, etc. Acredita que somente os homens de teatro são
chamados a reformar os espetáculos de circo. No final da exposição, tínhamos a seguinte
situação: de um lado, o teatro do drama, “teatro das grandes paixões”, do outro, o circo,
“teatro da alegria despreocupada”. E a conclusão terminava no sonho de um teatro-circo.
A exposição do camarada Foregger suscitou uma violenta crítica do camarada
Meierhold que interveio como contraditor único. Segundo o camarada Meierhold, o circo não
deve ser reconstruído sobre princípios que lhe sejam estranhos. Sua reforma deve nascer do
interior, ou seja, dos esforços dos próprios artistas de circo, pois não há e nem deve haver
183
teatro-circo. Esses dois elementos existem e devem existir cada um por si: circo e teatro. As
criações dos mestres do circo e as dos mestres do teatro realizam-se e devem realizar-se no
contexto das particularidades arquiteturais de dois espaços cênicos diferentes e de acordo com
leis que estão longe de serem idênticas.
A bem dizer, o teatro e as variedades, introduzindo no circo alguns de seus elementos,
fizeram e ainda fazem muito mal à prosperidade da arte do circo enquanto tal. A bem dizer, o
circo, nas mais teatrais das épocas teatrais, contribuiu fortemente para a prosperidade da arte
teatral enquanto tal (particularmente no antigo Japão, e na Itália da época da commedia
dell'arte). Entretanto, para reformar tanto o circo contemporâneo quanto o teatro
contemporâneo, é necessário criar condições tais que a arte do circo e a arte do teatro possam
desenvolver-se cada uma em seu campo, seguindo linhas paralelas, e não secantes.
Sabemos, disse o contraditor, o que aconteceu recentemente, quando Moissi e Iurev
introduziram-se na pista circular do picadeiro. O circo, sem que se saiba porque, permaneceu
inativo enquanto aconteciam as representações trágicas, mas os espetáculos dirigidos sobre o
picadeiro pelos encenadores da moda revelaram-se indignos de serem apresentados sob o
capitel de um circo, que exige de todos que ali entram uma maestria particular.
Como fazer então?
Os artistas de circo não têm nada a aprender nem com os atores nem com os
encenadores do teatro dramático. Se o teatro contemporâneo deve se impregnar de elementos
acrobáticos, isto não quer dizer absolutamente que se deva fundir as representações de circo e
de teatro em um espetáculo de um novo tipo, em um espetáculo de teatro-circo à Foregger.
Esta proposição sabe-a amadorismo.
Sim, o ator contemporâneo deve lembrar-se constantemente que Motchalov,
evidentemente, havia compreendido de certa forma os segredos da acrobacia, pois era capaz
de maravilhar o público e os críticos de sua época com seus saltos excepcionais no teatro na
184
cena do canto do galo, em Hamlet. É preciso lembrar constantemente ao ator de hoje que o
teatro do antigo Japão não permitia que ninguém se tornasse ator trágico sem ter passado
primeiro pelas escolas de acrobacia e de dança.
E o camarada Meierhold coloca uma tese oposta à de Foregger: não é com um teatro-
circo que devem sonhar os reformadores contemporâneos do circo; mas que, antes que o
artista escolha um desses caminhos, teatro ou circo, ele deve passar desde sua primeira
infância por uma escola especial que o ajudará a tornar seu corpo flexível, belo e vigoroso; e
isto não somente para o salto-mortale, mas para qualquer papel trágico (recordemos o jogo de
Sadda Yacco e de Ganako).
O ator contemporâneo que morre em cena utiliza a convulsão, ato curto, tedioso e
pouco expressivo, de um naturalismo assaz primitivo. Mas eis como morria em cena um ator
do antigo teatro chinês: ferido no coração, o ator projetava seu corpo no ar como um
equilibrista, e somente depois dessa “brincadeira própria ao teatro” ele se permitia desabar
como um bloco sobre o espaço cênico.
O camarada Meierhold acha que é necessário criar uma espécie de escola artística e
acrobática, cujo programa deve ser construído de tal forma que o aluno, ao final dos estudos,
seja um adolescente são, flexível, hábil, forte, arrebatado, pronto a fazer uma escolha de
acordo com sua vocação: o trabalho no circo, ou o teatro da tragédia, da comédia, do drama.
(Tradução para o português de Roberto Mallet
da versão original em PICON-VALLIN, Beatrice.
Vsevolod Meyerhold, Escrits sur le theater,
vol. II. Paris: La Cité – L’Age d’homme, 1975.)