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1 “A MI LA ROJA ME LA TRAE FLOJA”: REFLEXÕES SOBRE MINORIAS NACIONAIS E A RECUSA EM APOIAR A SELEÇÃO ESPANHOLA MÁRIO SÉRGIO BARBOSA COSTA 1 RESUMO O moderno estado espanhol foi constituído por meio da união de diversos povos ao longo dos séculos. A união de diferentes culturas sob uma única nação não significou a eliminação das particularidades presentes em cada uma das regiões que compõem a Espanha contemporânea. Nas últimas décadas, algumas dessas entidades políticas têm buscado maior autonomia ou a reivindicação de soberania em relação ao poder central, sob a defesa de que possuem culturas diferenciadas do restante do país. O sonho de uma possível independência sempre esbarrou em ditaduras ou em arranjos orquestrados em períodos democráticos. Três dessas regiões possuem movimentos nacionais separatistas mais evidentes: Catalunha, País Basco e Galícia, cujas diferenças fazem com que parte dos habitantes desses locais repudie tudo aquilo que simboliza aquela nação ibérica. No âmbito esportivo, a situação não é diferente. A seleção espanhola de futebol, que encantou o mundo no período de 2008 a 2012, não recebeu apoio de boa parte dos moradores desses locais porque os mesmos não se sentem representados pela roja. Ao contrário, para esses grupos, a equipe é um dos símbolos do domínio exercido pelo estado sobre suas culturas. Mais do que torcer contra a vermelha, os movimentos nacionalistas daquelas regiões sonham com suas seleções locais disputando competições oficiais. Desde manifestações em redes sociais, até atos cívicos pela autodeterminação de suas ditas nações, catalães, bascos e galegos expressam sua insatisfação por não poderem atuar com equipes próprias. O futebol transcende ao ato esportivo para ser um dos instrumentos de busca de valorização de identidade, resistência e autoafirmação desses povos. Nesses processos estão inseridos elementos de ordem política, cultural, histórica e de memória. Não apoiar a seleção campeã do mundo de 2010 significa, para os defensores da independência, não possuírem o sentimento de pertença para com a nação das touradas. Palavras-chaves: Futebol, Identidade, Nacionalismo, Separatismo, Espanha. 1 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.

“A MI LA ROJA ME LA TRAE FLOJA”: REFLEXÕES SOBRE … Sergio Barbosa...quase sempre são determinantes para o surgimento de conflitos entre aqueles que convivem dentro de um mesmo

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“A MI LA ROJA ME LA TRAE FLOJA”: REFLEXÕES SOBRE MINORIAS

NACIONAIS E A RECUSA EM APOIAR A SELEÇÃO ESPANHOLA

MÁRIO SÉRGIO BARBOSA COSTA1

RESUMO

O moderno estado espanhol foi constituído por meio da união de diversos povos

ao longo dos séculos. A união de diferentes culturas sob uma única nação não significou

a eliminação das particularidades presentes em cada uma das regiões que compõem a

Espanha contemporânea. Nas últimas décadas, algumas dessas entidades políticas têm

buscado maior autonomia ou a reivindicação de soberania em relação ao poder central,

sob a defesa de que possuem culturas diferenciadas do restante do país. O sonho de uma

possível independência sempre esbarrou em ditaduras ou em arranjos orquestrados em

períodos democráticos. Três dessas regiões possuem movimentos nacionais separatistas

mais evidentes: Catalunha, País Basco e Galícia, cujas diferenças fazem com que parte

dos habitantes desses locais repudie tudo aquilo que simboliza aquela nação ibérica. No

âmbito esportivo, a situação não é diferente. A seleção espanhola de futebol, que

encantou o mundo no período de 2008 a 2012, não recebeu apoio de boa parte dos

moradores desses locais porque os mesmos não se sentem representados pela roja. Ao

contrário, para esses grupos, a equipe é um dos símbolos do domínio exercido pelo

estado sobre suas culturas. Mais do que torcer contra a vermelha, os movimentos

nacionalistas daquelas regiões sonham com suas seleções locais disputando competições

oficiais. Desde manifestações em redes sociais, até atos cívicos pela autodeterminação

de suas ditas nações, catalães, bascos e galegos expressam sua insatisfação por não

poderem atuar com equipes próprias. O futebol transcende ao ato esportivo para ser um

dos instrumentos de busca de valorização de identidade, resistência e autoafirmação

desses povos. Nesses processos estão inseridos elementos de ordem política, cultural,

histórica e de memória. Não apoiar a seleção campeã do mundo de 2010 significa, para

os defensores da independência, não possuírem o sentimento de pertença para com a

nação das touradas.

Palavras-chaves: Futebol, Identidade, Nacionalismo, Separatismo, Espanha.

1 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do

Ceará.

2

INTRODUÇÃO

Dos quase cinquenta estados nacionais existentes atualmente no continente

europeu, apenas Portugal, Islândia e Grécia não possuem algum tipo de movimento

separatista que atue de forma mais evidente.2 As demais nações do “velho mundo”

conviveram ou convivem com permanentes tensões dentro de suas fronteiras, tendo que

lidar com constantes reivindicações de soberania ou pelo menos de maior autonomia

exigidas por determinados grupos que se autopercebem como diferenciados em relação

ao estado.

Em um passado não muito distante, a porção leste da Europa foi sacudida por

diversas transformações políticas que resultaram na criação de novos países, como

resultado das aspirações de diferentes etnias que conviviam até então sob uma mesma

bandeira. Alguns desses processos ocorreram de forma pacífica, como foi o caso da

então Tchecoslováquia que se dividiu nas atuais República Tcheca e Eslováquia, um

fato que ficou conhecido popularmente como “divórcio de veludo”; outros, no entanto,

foram bastante conturbados, caso da antiga Iugoslávia, que se esfacelou em um punhado

de pequenos países depois de um longo período de guerra civil. Ainda hoje existem

pendências naquela região.3

Existem diversos fatores que podem ocasionar o surgimento e ascensão de

movimentos separatistas dentro de um estado nacional, mas esses podem variar caso a

caso. Elementos de ordem cultural, especialmente no tocante às diferenças linguísticas,

quase sempre são determinantes para o surgimento de conflitos entre aqueles que

convivem dentro de um mesmo território, mas questões políticas e econômicas também

contribuem para a configuração do separatismo. Uma combinação desses três aspectos

resulta em conflitos sem a necessidade de ocorrência de guerras internas. Um exemplo

2 Portugal possui duas regiões insulares autônomas: Madeira e Açores, mas não existem movimentos que

reivindiquem independência política para esses arquipélagos. A Grécia disputa com a Turquia a posse da

ilha de Chipre. Essa ilha, que atualmente se constitui como um estado soberano é habitada por uma

maioria absoluta de pessoas de origem grega e ¼ de turcos. O sonho dos cipriotas gregos era unir

politicamente seu território à nação grega, mas isso se chocava com os interesses dos turcos. Assim

sendo, para impedir a união, a Turquia ocupou a porção norte da ilha, proclamando a República Popular

de Chipre do Norte, não reconhecida pela ONU. As tensões entre os dois países permanecem até os dias

atuais. Em 2004, durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas, a delegação turca foi

bastante vaiada pelo público grego. 3 A então Iugoslávia hoje se encontra dividida em Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia,

Montenegro e Sérvia, essa última considerada a herdeira do antigo país. O Kosovo, ocupado pelas Forças

de Paz da ONU, continua com sua situação política indefinida, reconhecido como nação por poucos

países.

3

moderno disso vem da Bélgica, a qual um periódico alemão afirmou ser “o estado falido

mais bem sucedido de todos os tempos”.

O país é dividido linguisticamente, sendo a porção norte (Flandres) falante de

um idioma do tipo neerlandês (considerado mais “puro” do que aquele falado nos Países

Baixos) e o sul (Valônia) onde a população majoritariamente fala francês. Além da

diferença linguística, existe a disparidade econômica: os flamengos, mais ricos, acusam

os valões de serem um “fardo” o qual os primeiros precisam suportar.

Aqui ocorre o conflito pela diferenciação cultural e também pela insatisfação

com o aspecto econômico, o que resultou também em uma crise política, onde os dois

lados não conseguiam um entendimento para a formação de um governo estável de

união nacional, fato que fez com que o país ficasse durante mais de um ano sem um

primeiro-ministro.

No presente momento, contudo, é outro país da Europa Ocidental que tem se

assustado com a atuação de correntes nacionalistas de caráter separatista: a Espanha. o

país ibérico ao longo do ultimo século tem comportado dentro de seu território uma

pluralidade de culturas regionais que sonham possuir estados nacionais próprios. A

união foi mantida com relativo sucesso ao custo de imposições de governos ditatoriais

que procuraram, utilizando todos os meios possíveis, homogeneizar o estado, com a

finalidade de apagar as diferenças regionais.

Essa situação conflitante levou o país durante boa parte do século XX a ser

governado por regimes autoritários. Primeiramente com Primo de Rivera (1923-1931) e

depois com o General Francisco Franco (1939-1975), sem contar com a guerra civil que

assolou o país na segunda metade da década de 1930.

Na contemporaneidade, os movimentos que buscam soberania política para as

suas respectivas regiões têm atuado de maneira a canalizar os sentimentos de repúdio ao

estado espanhol por meio de vias pacíficas (com a exceção de um pequeno grupo

guerrilheiro atuante na Galícia), buscando valorizar o sentimento de identidade local em

oposição ao domínio da cultura castelhana sobre as comunidades que possuem cultura

própria.

Nesse cenário, o campo esportivo exerce um papel peculiar entre os movimentos

separatistas: o futebol, por ser o esporte mais popular na Espanha, converte-se em um

4

importante instrumento de expressão das diferenças existentes, sendo utilizado para

manifestações públicas de repúdio aos símbolos do estado espanhol. Talvez em nenhum

outro país esse esporte tenha tanta associação com movimentos políticos e identitários.

Grandes clubes tradicionais são assumidamente defensores da independência de suas

regiões e participam ativamente de atos em prol da soberania de suas comunidades.

O F. C. Barcelona (Catalunha) e o Athletic Club (País Basco) são claramente

adeptos do separatismo. Mais timidamente o Celta de Vigo (Galícia) e Sevilla F. C.

(Andaluzia) também representam suas regiões. Diversas torcidas organizadas de

diferentes clubes da Liga são engajadas politicamente com as questões internas do país,

sejam elas separatistas ou unionistas.4 Essa conjuntura se reflete também nas relações

entre os torcedores e jogadores para com a seleção nacional, que mesmo contando com

a participação de inúmeros profissionais dos clubes localizados nas regiões

nacionalistas, não conta com o apoio incondicional de toda a população residente dessas

comunidades.

AS “TRÊS REBELDES” NO FUTEBOL

O atual território espanhol encontra-se dividido, de acordo com a constituição de

1978, em dezessete comunidades autônomas que, por sua vez, se divide em províncias,

sendo que algumas delas são monoprovinciais.5 Cada uma dessas comunidades possui

um elevado grau de autonomia, possuindo governos próprios e parlamentos regionais.

Essa divisão foi estabelecida com o propósito de diminuir as tensões existentes entre o

governo central e as diferentes regiões que reivindicavam maior liberdade de se

autogovernarem.

Inicialmente, essa maior autonomia seria aplicada somente àquelas regiões que

possuem características culturais diferenciadas do restante do país. Assim sendo, País

Basco, Catalunha e Galícia (e depois a Andaluzia) foram os primeiros a obter o estatuto

de comunidade autônoma dentro da Espanha. Como as demais também passaram a

possuir o mesmo estatuto, às citadas acima foram atribuídas a condição de “comunidade

4 Liga, conhecida por motivos de patrocínio como Liga-BBVA, corresponde à Primeira Divisão,

composta por 20 equipes. Na Espanha, o campeonato nacional não é organizado pela federação de futebol

e sim pelos próprios clubes. Àquela compete apenas a Copa del Rey, segundo torneio mais importante. 5 Andaluzia, Aragão, Astúrias, Baleares, Canárias, Cantábria, Castela-a-Mancha, Castela e Leão,

Catalunha, Extremadura, Galícia, La Rioja, Madri, Múrcia, Navarra, País Basco e Valência. Baleares e

Canárias são grupos de ilhas localizadas no Mediterrâneo. Existem ainda duas cidades autônomas: Ceuta

e Melilla, situadas em território marroquino.

5

autônoma dotada de nacionalidade histórica”. Para os defensores da independência

dessas regiões, essa mudança acabou com a singularidade existente entre as primeiras e

as demais.

A adoção desse modelo de divisão em comunidades, com fins político-

administrativos, não significou o fim dos conflitos entre essas regiões e o poder central

de Madri, embora esse tenha reconhecido as particularidades regionais presentes dentro

do Estado, um contraponto ao modelo vigente durante a ditadura de Francisco Franco,

que impunha de forma repressiva a homogeneização cultural para todo o território.

Como são conhecidos na contemporaneidade, bascos, catalães e galegos são os

grupos que mais expressam o sentimento antiespanhol. Desse modo, o futebol tem se

revelado como um importante instrumento de expressão desse sentimento, que

ultrapassa a jogo das quatro linhas e se estende para diversos setores da vida social

desses locais. Segue uma breve descrição dessas regiões e o cenário futebolístico de

cada uma delas.

País Basco – O País Basco compreende a atual comunidade autônoma formada

por três províncias (Álava, Biscaia e Guiposcuá). O território, contudo, segundo os

nacionalistas, se estende à Navarra e uma pequena porção do território francês, chamada

pelos locais de Iparralde. A região possui uma língua completamente diferente do

castelhano e durante muito tempo ficou conhecida pelas ações armadas do grupo

separatista ETA.6 No futebol, a equipe de maior destaque é o Athletic Club de Bilbao

(conhecido por suas posições nacionalistas); além da Real Sociedad, Deportivo Alavés

(talvez o mais espanhol dos clubes bascos), S.D. Eibar e do C.A. Ossassuna de

Pamplona (Navarra).

Catalunha – A Catalunha é formada por quatro províncias: Barcelona, Girona,

Lérida e Tarragona. Ocupa o nordeste do país e uma pequena porção do território

francês. Os separatistas mais radicais afirmam que a Comunidade de Valência e as Ilhas

Baleares também fazem parte daquilo que consideram como “Paisos Catalans”. Possui

língua e cultura próprias e, no passado, possuía movimentos armados, inativos desde

1995. O clube mais conhecido da Catalunha é o F. C. Barcelona (separatista e disparado

6 Sigla de Euskadi Ta Askatasuna (Pátria Basca e Liberdade). A organização surgiu como movimento

estudantil de resistência à ditadura de Francisco Franco, em 1959. Sua ação mais famosa foi o assassinato

de Luis Carrero Blanco, provável sucessor do ditador, em 1973. Encerrou suas atividades armadas em

2011.

6

um dos mais vitoriosos do mundo). Utiliza como slogan o “més que un club”, deixando

claro seu compromisso com uma Catalunha independente. Outras equipes que

pertencem à região são o R. C. D. Espanyol (pró-Espanha), o Sabadell F. C. e o F. C.

Girona.

Galícia – A Galícia está situada no noroeste espanhol e se divide em quatro

províncias (A Corunha, Lugo, Ourense e Pontevedra). Os independentistas dessa região

também consideram que alguns municípios das Astúrias e de Castela e Leão e a

fronteira sul com Portugal são territórios galegos. A língua galega é um idioma muito

semelhante ao português e alguns defendem que a comunidade seja integrada ao estado

lusitano. Atualmente existe um movimento armado atuante no local, conhecido como

Resistência Galega, que age principalmente contra diretórios locais do Partido Popular

sem, no entanto, causar vítimas fatais. No esporte, o clube de maior êxito é o R. C.

Deportivo la Corunha, única equipe galega a conquistar títulos nacionais. Outros clubes

importantes da região são o Celta de Vigo, o Ponferradina e o Compostela. O Deportivo

e o Celta estão na primeira divisão espanhola.

Figura 1 - Divisão da Espanha por Comunidades Autônomas. Fonte: Wikipedia

Marcadas por décadas de repressão pelas diferentes ditaduras e por intimidações

em períodos democráticos, boa parte dos habitantes dessas regiões desenvolveram um

sentimento de não pertença em relação à Espanha. Isso se deveu, sobretudo, às

7

tentativas de se eliminar as diferenças regionais por meio da força, especialmente no

tocante á questão linguística e pela insistência em suprimir as identidades locais em

favor da identidade nacional hegemônica. No futebol não foi diferente; embora a

seleção espanhola nunca obtivesse grande destaque no cenário internacional, foi muito

utilizada pelos governantes como símbolo de unificação do país.

Não é de se estranhar, portanto, os atos que ocorrem com certa frequência nos

eventos esportivos realizados na Espanha. Vaias ao hino, recusa em respeitar à figura do

rei, ostentar bandeiras regionais no lugar do pendão nacional, se negar a defender a

seleção, estender faixas nos estádios com mensagens que defendem que determinado

território não pertence ao país, presidente de clube emitindo declarações a favor da

soberania de sua região, entre outras manifestações simbólicas que traduzem as

diferenças e tensões existentes no interior da nação ibérica e que se constituem como

elementos que ajudam a determinar e compreender esse “país de retalhos”.7

Figura 2 Mapa linguístico espanhol. Em vermelho, castelhano; amarelo, galego; verde claro, asturiano-leonês;

azul claro, basco; roso, catalão; verde escuro, extremenho; laranja, fala e cinza, aragonês. O ponto verde

situado entre a região aragonesa e catalã corresponde ao dialeto aranês. O Castelhano é oficial em todo o país.

O catalão, o basco e o galego são cooficiais em suas respectivas regiões. Os demais não possuem estatuto e

sobrevivem apenas por iniciativas isoladas que visam mantê-los. Na Comunidade Valenciana, o catalão

também é conhecido por “valenciano”. Fonte: Wikipedia

A seleção espanhola não consegue unir, mas ao mesmo tempo faz com que se

acirrem as disputas regionais e nos períodos de maior êxito em campo a insatisfação por

não poder ver sua seleção local participando de competições oficiais torna-se mais

7 Essa expressão foi utilizada em uma matéria da revista eletrônica portuguesa Futebol Magazine,

justamente ao abordar as manifestações de separatismo exibidas nos eventos de futebol espanhol.

8

evidente, desde manifestações em redes sociais, até às posturas de indiferença durante

as comemorações dos títulos conquistados pelo “onze nacional”.

“NÃO TORÇO POR ESSA SELEÇÃO PORQUE ELA NÃO REPRESENTA A

MINHA CULTURA”: PERCEPÇÕES DE BASCOS, CATALÃES E GALEGOS

A seleção de futebol da Espanha, historicamente, nunca tinha sido uma das

protagonistas do futebol mundial. Ela estreou na Copa do Mundo da FIFA em 1934,

vencendo o Brasil pelo placar de 3 a 1. Embora fizesse boas campanhas nos torneios

que disputava, jamais conquistou um título de expressão. Esse panorama só mudou um

pouco na primeira metade da década de 1960, quando finalmente conseguiu vencer uma

competição – a Eurocopa de 1964, disputada em casa e teve como adversário na final a

extinta União Soviética.

Uma curiosidade desse período é que a seleção daquele país possuía um apelido

bastante sugestivo: fúria. Acredita-se que o ditador Franco tenha sido o idealizador

dessa denominação. No seu incessante projeto de homogeneizar a nação, o governante

resolveu associar o futebol com outro símbolo da cultura castelhana: as touradas. A

fúria dos touros agora também estava representada no campo futebolístico. O objetivo

era passar para o mundo a imagem de uma Espanha unida e uniforme, por meio das

conquistas no esporte, assim como já acontecera anos antes com a utilização da imagem

do Real Madri como símbolo do sucesso espanhol e de seu governo, bem como ajudar a

abafar qualquer movimento contestatório, sobretudo das minorias nacionais.8

O sucesso da seleção, contudo, parou por aí. A equipe não ganharia uma

competição de renome pelos próximos quarenta e quatro anos. Mesmo disputando uma

Copa do Mundo em casa, não obteve êxito. A escrita só foi quebrada em 2008, o ano

em que o time ibérico começaria a exercer seu domínio no futebol internacional.

Contando com jogadores dos dois principais clubes do país e adotando um esquema de

jogo que envolve completamente o adversário, a agora rebatizada roja (supõe-se que o

8 Na primeira metade da década de 1950, o Real Madri até então era um clube decadente no cenário

futebolístico do país. Conta-se que Franco, torcedor da equipe, emprestou dinheiro público para que os

merengues pudessem contratar alguns dos melhores jogadores daquele período, entre eles, o argentino

Alfredo di Stefano, que viria a se tornar um dos craques da década. O jogador estava quase certo para

atuar pelo grande rival Barcelona, uma vez que esse clube encontrava-se em melhores condições

financeiras para contratá-lo. A intervenção do governo mudou os rumos da história e o Real Madri

tornou-se uma grande potência, vencendo as cinco primeiras edições da Copa dos Campeões da Europa

(atual Liga dos Campeões) e onze dos quinze campeonatos espanhóis entre as décadas de 1950 e 1960.

Esse fato, entretanto, quase que obrigou o clube branco a se associar ao regime. Até hoje, os torcedores de

outras equipes veem o clube da capital como uma instituição que apoia regimes não democráticos.

9

novo apelido seja uma forma de se desvencilhar da imagem idealizada por Franco)

conquistou a UEFA Euro e, dois anos depois, atingiria o ápice com a conquista do

mundial da África do Sul, em 2010, antes de sagrar-se campeã novamente do

campeonato europeu de 2012.

Foi, entretanto, o período no qual a equipe não contou com a torcida de boa parte

dos habitantes dessas regiões. Por questões políticas, culturais, históricas e de memória,

esses grupos veem a equipe, assim como todos os símbolos nacionais, como um

elemento que se sobrepõe às culturas locais. Até mesmo o fato de a bandeira espanhola

estar posta em algum local de Barcelona, Bilbao ou Vigo causa incômodo àqueles que

não se sentem representados. Tomo como exemplo a declaração de uma mulher catalã

durante a Copa do Mundo de 2010.

“Sou cidadã de um povo colonizado e oprimido por mais de 300 anos pelo

estado espanhol e por isso repudio tudo o que simboliza a Espanha. Me entristece

muito ver a falta de cultura em nosso país (Paisos Catalans). Aqui muita gente se

deixa levar pela massa espanhola eufórica sem refletir sobre os fatos históricos e

culturais (depoimento de Irene Cabrera, GLOBO ESPORTE.COM, 09/07/2010)”.

Nota-se que nesse discurso, ao afirmar que se trata de um povo subjugado pelo

estado ibérico, a entrevistada deixa claro sua posição anti Espanha, preferindo não

torcer pelo time nacional, uma vez que esse simboliza a própria dominação de um povo

sobre outro, isto é, para ela, os castelhanos tomaram o direito dos catalães de existirem

como nação, e, consequentemente, sem um estado nacional o que, ainda de acordo com

a depoente, tomou-lhes o direito à autodeterminação. Desse modo, a Catalunha não

pode disputar nenhuma competição oficial, estando limitada a fazer jogos amigáveis,

uma vez que boa parte de seus integrantes, a princípio, devem atuar pelo time nacional.

Esse tipo de sentimento de não se vê como representado pela equipe vermelha

ultrapassa as fronteiras catalãs. Não seria diferente. As regiões com ares

independentistas resistiram durante anos às imposições outorgadas por Madri e, mesmo

que tenham seus traços culturais forçosamente apagados por aquilo que eles denominam

por “espanholização”, a insistência em manter vivos os aspectos que as distinguem do

restante do país se faz presente na contemporaneidade. A abertura política do estado

10

significou uma renovação das aspirações nacionalistas nesses lugares e um resgate, pelo

menos de modo parcial, de símbolos que se encontravam banidos havia anos.9

Figuras 3, 4 e 5 – Acima à esquerda: cartaz basco reivindicando a existência oficial de uma seleção da região,

ao mesmo tempo em que conclama a torcer por qualquer outra equipe que não a Espanha: “Todos com a

outra!!”; à direita, pôster galego “Galícia é a nossa seleção. Espanha não nos representa”; embaixo, “Eu tenho

duas seleções: Catalunha e qualquer outra que jogue contra a Espanha. Não se engane, Catalunha não é

Espanha”. As bandeiras que aparecem no cartaz galego e no catalão não são as oficiais e sim dos

independentistas.

9 Em março de 1976, apenas quatro meses após a morte de Francisco Franco, uma partida entre Real

Sociedad e Athletic Club de Bilbao tornou-se simbólica das reivindicações nacionalistas no País Basco.

Os capitães das equipes entraram em campo segurando uma Ikurriña (a bandeira da região). Foi a

primeira vez em quatro décadas que aquele pendão pôde ser exibido em público, ainda com a vigência da

lei que proibia a exibição de símbolos não espanhóis, para a alegria dos cerca de 35.000 espectadores

presentes ao Estádio Atotxa, então a casa da Real Sociedad. Fonte: futebolinteriorano.blogspot.com.

11

Ainda sim, o discurso de que o time não é o representante de sua verdadeira

nação é predominante entre os nacionalistas. Ao associarem a equipe a uma cultura

dominante, os defensores da independência dessas comunidades autônomas percebem a

seleção nacional como um instrumento de supressão da cultura local. A seguir o

discurso de um galego, no qual aponta alguns dos motivos pelos quais não torce pela

Espanha, bem como o sonho de ver os seus “legítimos representantes”.

“Esta seleção representa a cultura que leva 500 anos tentando fazer

desaparecer o meu idioma. A propósito, foi o que eles conseguiram com muitas outras

línguas na América do Sul. A Galícia não é uma comunidade da Espanha, nas sim

uma nação sem estado colonizada pelo estado espanhol. Eu gostaria de poder vibrar

vendo os jogos da minha seleção, a galega (fala de Manuel Villot, GLOBO

ESPORTE.COM, 09/07/2010)”.

Mais uma vez é perceptível um discurso que liga diferentes elementos: esporte,

cultura, memória e reivindicação de soberania para a sua região. Os galegos

separatistas, assim como os bascos e catalães, preferem, assim, desprezar a seleção

nacional, não a apoiando de modo algum (embora, muitas vezes, o elenco possua

jogadores oriundos dessas regiões) e, não raro, torcem por qualquer outro time que

enfrente a equipe espanhola. Um exemplo disso ocorreu durante o mundial da África do

Sul, quando a roja enfrentou a seleção portuguesa pelas oitavas de final: cidadãos

galegos cruzaram a fronteira só para mostrar seu apoio ao esquadrão lusitano ao mesmo

tempo em que expressava a sua insatisfação por não poder prestigiar a participação

daqueles que representam suas “verdadeiras nações”.

O discurso daqueles que defendem a separação política de das comunidades do

restante do país é carregado de um sentimento de que não se sentem como espanhóis e

sim como nações sem estado ocupadas por outro estado. Os galegos costumam

comparar a sua situação com aquela vivida pelos palestinos no Oriente Médio os quais

veem como uma nação subjugada pelo estado israelense e com o qual demonstram

solidariedade.

Feitas essas considerações, é preciso deixar evidente que estado e nação são

coisas distintas. Para esses povos, eles existem como nações, mas não existem como

estados, uma vez que não possuem soberania sobre o território no qual vivem. O

conceito de nação envolve uma gama de elementos que estão para além do fato de se

possuir um território. Weber (1982) credita que o conceito de nação se fundamenta a

12

partir da construção de uma “comunidade de sentimentos”, onde determinados símbolos

são cultuados, mas, ao contrário das religiões, os objetos de culto não são divindades e

sim os símbolos que representam a nação, tais como, hinos e bandeiras.

Para Damo e Oliven (2001), a associação entre futebol e sentimentos nacionais

ocorre de três formas. O uso do esporte como elemento de expressão de uma

nacionalidade está, segundo os autores, para além do aspecto lúdico. Derrotar o

adversário é algo que é dotado de enorme carga simbólica.

“En lo que se refiere a los estados-nación, se puede vislumbrar una triple

relación entre ellos y el fútbol: la primera metafórica, estaria mucho más próxima a

las representaciones; la segunda, analógica, puede ser observda empiricamente cuando

lós hinchas se perciben en tanto pertencientes a una comunidad de sentimiento y la

denominam nación (...); finalmente, la tercera, relación complementaria, donde

estado-nación y fútbol estabelecen relaciones manteniendo cada cual su autonomia

(DAMO E OLIVEN, P. 21, grifos no original)”.

As comunidades espanholas em questão, contudo, não podem estabelecer por

completo essas relações, uma vez que, como afirmado anteriormente, suas respectivas

seleções estão limitadas a atuarem apenas em partidas não oficiais e, ainda assim,

apenas uma ou duas vezes ao ano. Nessas condições, torcer contra a equipe ibérica

representa uma forma de satisfação; se sua seleção local não pode derrotá-la, outra que

o fizer ganha a simpatia dos nacionalistas.

Um caso recente ocorreu no mundial de 2014, disputado no Brasil. A Espanha

chegara à competição como uma das grandes favoritas a repetir o que fizera em 2010,

mas, logo na partida de estreia, o time foi goleado pelos Países Baixos por 5 a 1,

fazendo o mesmo desandar de vez no torneio e ser eliminado na primeira fase dias

depois. Se para a maior parte do país ficou um sentimento de decepção, para os

nacionalistas o que ficou foi o sentimento de vitória pelo retumbante fracasso. O

periódico basco Gara, estampou quase que em clima geral de comemoração a manchete

“Holanda baixa a bola da Espanha”. 10

Algo semelhante ocorrera no ano anterior, quando o selecionado ibérico

enfrentou o Brasil na final da Copa das Confederações e perdeu por 3 a 0. Os relatos

posteriores ao fim da partida de que setores nacionalistas das três regiões separatistas

10

Edição do dia 13/06/2014. O Gara é um jornal de esquerda e sempre se portou como o principal veículo

de comunicação da ETA.

13

lançaram fogos em cidades como Barcelona, Bilbao e Vigo, comemorando o fracasso

do time em conseguir um título inédito para o futebol espanhol. Para aqueles que não se

sentem como integrantes da nação, a conquista do título não foi somente do Brasil,

também foi um troféu para eles.

Esse permanente conflito se manifesta nos mais diversos setores da vida social

espanhola. Na imprensa jornalística não poderia ser diferente. Quando a roja conseguiu

a classificação à final do mundial de 2010, foi notável a diferença de cobertura feita por

alguns dos jornais esportivos mais importantes do país. O “Marca”, de Madri,

estampava em sua capa a classificação como algo extraordinário, um acontecimento

digno, a nação havia, naquele exato momento, dado o penúltimo passo para alcançar a

glória; por sua vez, o “Sport”, de Barcelona, mal dava destaque àquele feito,

estampando uma discreta frase: “Viva España”, no alto da página; preferindo noticiar

assuntos relativos ao F. C. Barcelona e outros esportes.

Figuras 6 e 7 – As capas de dois dos mais importantes da Espanha: no “Marca” uma ode à

classificação para a final. “Todos agora com a Vermelha”; no “Sport”, indiferença. Fonte: sítios

oficiais. Julho de 2010.

O futebol, portanto, revela-se como um campo privilegiado para

compreendermos as diferenças regionais existentes na Espanha contemporânea.

Decerto, os adeptos do separatismo constroem sua recusa em torcer pela seleção

nacional na consciência de que, por constituírem-se como lugares que possuem

diferenças culturais significativas em relação ao restante do país, e que este, por sua vez,

tentou de diversos modos eliminar essas diferenças.

Nesse sentido, é possível afirmar que os habitantes desses movimentos

nacionalistas de caráter periférico não possuem o sentimento de pertença em relação a

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tudo o que representa a Espanha, ou melhor, o sentimento de pertença o qual alimentam

está direcionado às suas identidades regionais. Para um catalão independentista, por

exemplo, não torcer pela seleção espanhola possui o mesmo significado da recusa em

assistir espetáculos de touradas, uma vez que esses eventos fazem parte da “essência” da

cultura castelhana e não da catalã. A construção desse sentimento em contextos

nacionalistas dá-se por meio da passagem da comunidade imaginada para uma situação

real. De acordo com Guibernau,

“(...) nesses momentos, o indivíduo esquece de si mesmo e o sentimento de

pertencer ao grupo ocupa a primeira posição. A vida coletiva da comunidade coloca-

se acima do indivíduo. Através de simbolismo ritual, os indivíduos podem sentir uma

emoção de intensidade incomum, que provém de sua identificação com uma entidade

– a nação – que os transcende, e de que eles ativamente se sentem parte. Nessas

ocasiões (...) ganham força a adaptabilidade, e são capazes de se empenhar em atos

heroicos, bem como bárbaros (...) (p.94)”.

O sentimento de pertença produzido por esses indivíduos requer sempre uma

reatualização, necessária para que a comunidade mantenha seus laços de união e, como

tal, reproduzam e reforcem o sentido de ser uma nação (Damo, 1998). Posto isso, a cada

ocasião em que a seleção espanhola esteja em evidência, essas coletividades

manifestam-se de forma veemente.

Na contemporaneidade, onde o capital apregoa a constituição de uma suposta

“aldeia global”, as minorias nacionais presentes no estado espanhol reafirmam seus

desejos e esperanças em constituírem suas próprias “aldeias” e o “esporte das massas”

ou, para utilizar a expressão cunhada por Giulianotti (1999), o “esporte das multidões”

pode ser uma vitrine para mostrar ao mundo tudo aquilo que, de modo geral, é ofuscado

pela cultura dominante exercida pelo estado ibérico.

“UMA NAÇÃO, UMA SELEÇÃO”

Se para os cidadãos das três regiões espanholas onde os movimentos de caráter

nacional-separatistas são mais atuantes são dadas as condições para que os mesmos

manifestem seu repúdio aos símbolos que representam a Espanha, para um jogador

profissional, mesmo que ele manifeste esses sentimentos, não pode exercê-los de modo

tão espontâneo como fazem muitos de seus conterrâneos. Seria impensável o mundo

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presenciar um futebolista vaiando um hino ou queimando uma bandeira porque ele não

se sente um cidadão de um determinado país.

Na Espanha, é comum ver torcidas de clubes independentistas vaiarem a

execução do hino nacional, entre outras atitudes. Nas finais da Copa del Rey de 2009,

2012 e 2015, F. C. Barcelona e Athletic Club de Bilbao se enfrentaram para decidir o

título e, nas três ocasiões, os adeptos das equipes esqueceram a disputa dentro de campo

e se uniram nos apupos à “Marcha Real”. Os jogadores, entretanto, permaneciam

indiferentes àquela ação, embora nessa última um atleta do clube basco tenha sido

flagrado com um discreto sorriso, como se quisesse demonstrar a sua satisfação em

ouvir aquele efeito sonoro.11

Outra forma de se demonstrar o sentimento anti-castelhano consiste em negar a

presença do rei. Para ambos, esse é um símbolo ultrapassado que exerce seu poder de

dominador sobre suas regiões. Os próprios clubes colaboram indireta mas

intencionalmente para isso ao excluírem o nome do rei do torneio em questão.

O F. C. Barcelona constitui-se, na realidade, como um exemplo bastante

paradoxal. A equipe culé se autoproclama como o verdadeiro representante dos

interesses catalães. Foer (2005) apresenta uma visão um tanto crítica a respeito do

posicionamento do clube quanto à questão de uma possível independência da região,

afirmando que os blaugranas servem para a demonstração de um “charmoso

nacionalismo burguês”, que em nada representa os verdadeiros ideais dos catalães.

Independente de concordar ou não com a percepção desse autor, o fato é que,

ironicamente, o Barcelona foi o que historicamente mais cedeu jogadores para a seleção

da Espanha. O “cérebro” do time que exerceu a hegemonia no futebol mundial era

formado por atletas que vestem a camisa azul-grená, embora nem todos sejam oriundos

da Catalunha.

Ao mesmo tempo, entretanto, o clube é o maior patrocinador da seleção de sua

região. A Catalunha, o País Basco e a Galícia sonham em disputar torneios oficiais, mas

esbarram nas imposições da Federação Espanhola, da UEFA e consequentemente da

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Na final de 2009, a TVE (Televisão Pública Espanhola) cortou a transmissão e desligou o áudio, como

forma de abafar as vaias ao hino. Segundo o jornal francês “Le Monde”, o diretor da TV foi demitido dois

dias depois. Já na final de 2012, a partida seria realizada no estádio do Real Madri, que se negou a cedê-

lo. A presidente da Comunidade de Madri, Esperanza Aguirre, do Partido Popular(PP) propôs que o jogo

ocorresse sem a presença da torcida. Por fim, o confronto foi realizado no estádio do Atletico de Madri.

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FIFA. Como afirmado anteriormente, elas estão limitadas a jogarem partidas amistosas,

às vezes, enfrentando entre si, outras vezes, convidando alguma seleção reconhecida

oficialmente. Inegável é o slogan escrito e falado pelos nacionalistas dessas regiões:

uma nação, uma seleção. Em cada partida que lhes é permitido atuar, os jogadores que

atuam por essas esquadras apresentam para a torcida uma faixa com esses dizeres.

Trata-se de uma ação simbólica que expressa um desejo que, no estágio atual, está longe

de se concretizar.

Mas se os profissionais não podem praticar atos ditos radicais, pelo menos

podem, em princípio, se recusarem a defender a seleção com a qual eles não

simpatizam. A questão se mostra um tanto complexa: todo jogador sonha em disputar a

competição máxima do futebol mundial, ainda que não tenha plena convicção em atuar

vestindo outra camisa que não aquela que ele gostaria de usar. Os jogadores do

Barcelona são um exemplo disso. É provável que sonhassem em por o manto amarelo e

vermelho, mas como ainda não é possível, usaram suas melhores habilidades a serviço

de outro uniforme. Disputar e ganhar títulos importantes, é uma das grandes

recompensas que um jogador profissional pode conseguir, além de dinheiro e prestígio

dentro do mundo esportivo.

Isso, contudo, não é regra e casos de futebolistas que se negaram a atuar pela

Espanha são relativamente comuns, mais até do que se poderia imaginar. Um dos

primeiros a adotar tal postura foi Iñaxio Kortabarria, logo após o fim da ditadura de

Francisco Franco. Kortabarria era um dos melhores jogadores do campeonato nacional

na época e sua recusa em por a camisa vermelha abriu precedentes para que outros

atletas fizesse o mesmo. Afirmou ele que só defenderia a camisa vermelha, verde e

branca do País Basco.

“Dentro do quadro político espanhol, a presença de desportistas

independentistas com a camisola da selecção sempre levantou muita polémica. Até ao

final do franquismo a participação era obrigatória, apesar do próprio regime ter o

cuidado de evitar seleccionar os desportistas mais conflictivos politicamente. Com a

época da Transição, começaram a surgir as primeiras imagens públicas de negação a

colaborar com a selecção espanhola. Num derby basco, os capitães da Real Sociedad e

Athletic Bilbao exibiram orgulhosos a bandeira de Euskadi perante uma multidão

eufórica. Foi precisamente nessa zona que surgiram os primeiros casos de oposição

frontal ao conceito de selecção espanhola por parte de futebolistas. Em 1976, Iñaxio

Kortabarría, então internacional absoluto, renunciou à selecção como símbolo da sua

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devoção pela causa independentista basca. Aberto o precedente, o cenário voltou a

repetir-se como futebolistas galegos e catalães nos anos seguintes (FUTEBOL

MAGAZINE, 01/06/2013)”.

O ato inaugural do meio campista da Real Sociedad foi, de fato, um prelúdio ao

que viria acontecer nos anos seguintes. As seleções das regiões independentistas

estiveram marginalizadas durante décadas em virtude dos fatores políticos que se

sucediam no país ibérico. Para poderem recuperar um pouco suas atividades seria

necessário primeiramente questionar a própria seleção nacional. Recentemente,

futebolistas das três regiões têm se empenhado em divulgar mais as suas seleções locais,

seja se recusando a vestir a camisa da campeã do mundo de 2010, seja por responder

prontamente às convocações para os selecionados de suas comunidades.

Figura 8 – Manifestantes seguram faixa com o slogan “Uma Nação, Uma Seleção” escrita nos três idiomas das

regiões independentistas. Essa frase surgiu em 2008, em um vídeo catalão, no qual uma criança com a camisa

da Espanha jogava bola e impedia outra criança com a camisa catalã de participar do jogo. O vídeo gerou

debates acalorados no cenário interno e o Partido Popular entrou na justiça contra a sua exibição. Desde

então, essa frase tem sido utilizada para pedir reconhecimento para suas seleções e até mesmo em protestos

por soberania dessas comunidades.

O ano de 2008 foi marcado por um acirramento entre os que apregoam a unidade

nacional no campo futebolístico e os adeptos de que sejam feitas concessões às equipes

das diferentes regiões que compõem o país. O auge desse conflito ocorreu quando a

seleção do País Basco foi impedida de atuar sob a denominação Euskal Herria. Os

dirigentes espanhóis só autorizariam a partida se os atletas utilizassem o termo Euskadi.

Isso se deve ao fato de que o primeiro termo se refere ao território como um todo,

enquanto o segundo designa apenas a comunidade autônoma. O resultado final foi que

os jogadores decidiram cancelar o jogo que fariam contra o Irã.

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"Não estamos dispostos a voltar atrás. Queremos representar uma nação de sete

territórios, 21 mil quilômetros quadrados, cujo nome hoje é Euskal Herria (manifesto

dos atletas da seleção basca)”.

O conceito de nação mais uma vez é evocado pelos defensores de suas

respectivas regiões. Possuir uma seleção que os represente significa existir como tal,

ainda que de modo simbólico. Como pode se notar, não há um fim próximo para as

disputas travadas no cenário interno do futebol espanhol. Construídos sob várias

vertentes, os nacionalismos periféricos, de uma forma ou de outra estão sempre a causar

incômodos ao governo central. Ao serem estabelecidas as bases democráticas do

moderno estado espanhol, esses movimentos separatistas saíram das sombras do

franquismo e, como foi mencionado, o esporte converteu-se em uma das primeiras

ferramentas de expressão dessas nacionalidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No final dos anos 1980 e começo da década de 1990 o mundo passava por

transformações significativas, com o declínio dos regimes comunistas no leste europeu,

o que aflorou movimentos separatistas em diversos países daquela região. O resultado,

como mencionei na abertura desse texto, foi a dissolução de antigos estados nacionais,

surgimento de novos países e rupturas por vezes violentas.

Naquela ocasião, diversos teóricos defensores da política neoliberal afirmavam

que a Europa Ocidental estaria imune a esses problemas, pois, alegavam que os países

do oeste já teriam consolidado suas bases democráticas e que, portanto, não havia com o

que se preocupar com relação ao fenômeno do independentismo dentro de suas

fronteiras. Passados menos de trinta anos, presenciamos um cenário bem diferente.

Longe do que imaginavam aqueles pensadores, diversos países têm que lidar com as

constantes ameaças de secessão de seus territórios.

O caso da Espanha é apenas um dos mais contundentes. O país se nega a ser uma

federação, mas não consegue solucionar suas questões no tocante às diferenças

regionais. A Espanha não está sozinha: a formação de partidos na Itália com caráter

independentista (além de acusações de racismo e xenofobia); a tentativa de separação

política da Escócia por meio de plebiscito, em 2014, além da já citada Bélgica,

demonstram que os países ocidentais por mais que tenham alcançado elevados níveis de

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desenvolvimento social e econômico, jamais conseguiram conciliar plenamente a

existência de povos tão diferentes sob a mesma bandeira.

Giddens (1991) já nos alertava que quanto mais o sistema hegemônico tenta

impor a sua ideia de uma “comunidade mundial”, mais os movimentos de resistência

local tendem a se intensificarem. Nesse sentido, as reivindicações soberanistas que

perturbam o estado espanhol não seriam mais que um reflexo desse processo de

fragmentação. O estado foi capaz de manter suas fronteiras estáveis até o momento em

que as bases dos nacionalismos periféricos ainda não estavam completamente

edificadas, mas que começam, ainda que timidamente, a sofrer pequenos abalos.

Curiosamente, foi no período de maiores glórias obtidas dentro das quatro linhas

que a Espanha entrou em uma das maiores crises econômica e social da sua história. As

medidas adotadas pelo governo têm causado grande descontentamento e inflamado os

grupos nacionalistas de diferentes orientações políticas. O uso do esporte mais popular

do planeta como arma de expressão das diferenças internas é apenas o início de

construção de processos, os quais ainda não se sabem o que poderão resultar

futuramente.

REFERÊNCIAS

FOER, Franklin. Como o Futebol Explica o Mundo: um olhar inesperado sobre a

globalização. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol: dimensões históricas e socioculturais

do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.

GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismo: o estado nacional e o nacionalismo no século

XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997

MARQUES, Edgard. Nacionalistas catalães, galegos e bascos ignoram a seleção

espanhola. GLOBOESPORTE.COM. 09 de julho de 2010. Visitado em 30 de março

de 2015.

MARTINS, Alexandre. Independentismo no relvado, o puzlle do futebolespanhol.

Futebol Magazine. 01/06/2013. Visitado em 25 de abril de 2015.

OLIVEN, Ruben G. & DAMO, Arlei Sander. Fútbol y Cultura. Bogotá: Editorial

Norma, 2001.

WEBER, Max. A Nação In: GERTH, H. H. & MILLS W. (org.), Ensaios de

Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.