Upload
buique
View
218
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
“A MI LA ROJA ME LA TRAE FLOJA”: REFLEXÕES SOBRE MINORIAS
NACIONAIS E A RECUSA EM APOIAR A SELEÇÃO ESPANHOLA
MÁRIO SÉRGIO BARBOSA COSTA1
RESUMO
O moderno estado espanhol foi constituído por meio da união de diversos povos
ao longo dos séculos. A união de diferentes culturas sob uma única nação não significou
a eliminação das particularidades presentes em cada uma das regiões que compõem a
Espanha contemporânea. Nas últimas décadas, algumas dessas entidades políticas têm
buscado maior autonomia ou a reivindicação de soberania em relação ao poder central,
sob a defesa de que possuem culturas diferenciadas do restante do país. O sonho de uma
possível independência sempre esbarrou em ditaduras ou em arranjos orquestrados em
períodos democráticos. Três dessas regiões possuem movimentos nacionais separatistas
mais evidentes: Catalunha, País Basco e Galícia, cujas diferenças fazem com que parte
dos habitantes desses locais repudie tudo aquilo que simboliza aquela nação ibérica. No
âmbito esportivo, a situação não é diferente. A seleção espanhola de futebol, que
encantou o mundo no período de 2008 a 2012, não recebeu apoio de boa parte dos
moradores desses locais porque os mesmos não se sentem representados pela roja. Ao
contrário, para esses grupos, a equipe é um dos símbolos do domínio exercido pelo
estado sobre suas culturas. Mais do que torcer contra a vermelha, os movimentos
nacionalistas daquelas regiões sonham com suas seleções locais disputando competições
oficiais. Desde manifestações em redes sociais, até atos cívicos pela autodeterminação
de suas ditas nações, catalães, bascos e galegos expressam sua insatisfação por não
poderem atuar com equipes próprias. O futebol transcende ao ato esportivo para ser um
dos instrumentos de busca de valorização de identidade, resistência e autoafirmação
desses povos. Nesses processos estão inseridos elementos de ordem política, cultural,
histórica e de memória. Não apoiar a seleção campeã do mundo de 2010 significa, para
os defensores da independência, não possuírem o sentimento de pertença para com a
nação das touradas.
Palavras-chaves: Futebol, Identidade, Nacionalismo, Separatismo, Espanha.
1 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Ceará.
2
INTRODUÇÃO
Dos quase cinquenta estados nacionais existentes atualmente no continente
europeu, apenas Portugal, Islândia e Grécia não possuem algum tipo de movimento
separatista que atue de forma mais evidente.2 As demais nações do “velho mundo”
conviveram ou convivem com permanentes tensões dentro de suas fronteiras, tendo que
lidar com constantes reivindicações de soberania ou pelo menos de maior autonomia
exigidas por determinados grupos que se autopercebem como diferenciados em relação
ao estado.
Em um passado não muito distante, a porção leste da Europa foi sacudida por
diversas transformações políticas que resultaram na criação de novos países, como
resultado das aspirações de diferentes etnias que conviviam até então sob uma mesma
bandeira. Alguns desses processos ocorreram de forma pacífica, como foi o caso da
então Tchecoslováquia que se dividiu nas atuais República Tcheca e Eslováquia, um
fato que ficou conhecido popularmente como “divórcio de veludo”; outros, no entanto,
foram bastante conturbados, caso da antiga Iugoslávia, que se esfacelou em um punhado
de pequenos países depois de um longo período de guerra civil. Ainda hoje existem
pendências naquela região.3
Existem diversos fatores que podem ocasionar o surgimento e ascensão de
movimentos separatistas dentro de um estado nacional, mas esses podem variar caso a
caso. Elementos de ordem cultural, especialmente no tocante às diferenças linguísticas,
quase sempre são determinantes para o surgimento de conflitos entre aqueles que
convivem dentro de um mesmo território, mas questões políticas e econômicas também
contribuem para a configuração do separatismo. Uma combinação desses três aspectos
resulta em conflitos sem a necessidade de ocorrência de guerras internas. Um exemplo
2 Portugal possui duas regiões insulares autônomas: Madeira e Açores, mas não existem movimentos que
reivindiquem independência política para esses arquipélagos. A Grécia disputa com a Turquia a posse da
ilha de Chipre. Essa ilha, que atualmente se constitui como um estado soberano é habitada por uma
maioria absoluta de pessoas de origem grega e ¼ de turcos. O sonho dos cipriotas gregos era unir
politicamente seu território à nação grega, mas isso se chocava com os interesses dos turcos. Assim
sendo, para impedir a união, a Turquia ocupou a porção norte da ilha, proclamando a República Popular
de Chipre do Norte, não reconhecida pela ONU. As tensões entre os dois países permanecem até os dias
atuais. Em 2004, durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas, a delegação turca foi
bastante vaiada pelo público grego. 3 A então Iugoslávia hoje se encontra dividida em Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Macedônia,
Montenegro e Sérvia, essa última considerada a herdeira do antigo país. O Kosovo, ocupado pelas Forças
de Paz da ONU, continua com sua situação política indefinida, reconhecido como nação por poucos
países.
3
moderno disso vem da Bélgica, a qual um periódico alemão afirmou ser “o estado falido
mais bem sucedido de todos os tempos”.
O país é dividido linguisticamente, sendo a porção norte (Flandres) falante de
um idioma do tipo neerlandês (considerado mais “puro” do que aquele falado nos Países
Baixos) e o sul (Valônia) onde a população majoritariamente fala francês. Além da
diferença linguística, existe a disparidade econômica: os flamengos, mais ricos, acusam
os valões de serem um “fardo” o qual os primeiros precisam suportar.
Aqui ocorre o conflito pela diferenciação cultural e também pela insatisfação
com o aspecto econômico, o que resultou também em uma crise política, onde os dois
lados não conseguiam um entendimento para a formação de um governo estável de
união nacional, fato que fez com que o país ficasse durante mais de um ano sem um
primeiro-ministro.
No presente momento, contudo, é outro país da Europa Ocidental que tem se
assustado com a atuação de correntes nacionalistas de caráter separatista: a Espanha. o
país ibérico ao longo do ultimo século tem comportado dentro de seu território uma
pluralidade de culturas regionais que sonham possuir estados nacionais próprios. A
união foi mantida com relativo sucesso ao custo de imposições de governos ditatoriais
que procuraram, utilizando todos os meios possíveis, homogeneizar o estado, com a
finalidade de apagar as diferenças regionais.
Essa situação conflitante levou o país durante boa parte do século XX a ser
governado por regimes autoritários. Primeiramente com Primo de Rivera (1923-1931) e
depois com o General Francisco Franco (1939-1975), sem contar com a guerra civil que
assolou o país na segunda metade da década de 1930.
Na contemporaneidade, os movimentos que buscam soberania política para as
suas respectivas regiões têm atuado de maneira a canalizar os sentimentos de repúdio ao
estado espanhol por meio de vias pacíficas (com a exceção de um pequeno grupo
guerrilheiro atuante na Galícia), buscando valorizar o sentimento de identidade local em
oposição ao domínio da cultura castelhana sobre as comunidades que possuem cultura
própria.
Nesse cenário, o campo esportivo exerce um papel peculiar entre os movimentos
separatistas: o futebol, por ser o esporte mais popular na Espanha, converte-se em um
4
importante instrumento de expressão das diferenças existentes, sendo utilizado para
manifestações públicas de repúdio aos símbolos do estado espanhol. Talvez em nenhum
outro país esse esporte tenha tanta associação com movimentos políticos e identitários.
Grandes clubes tradicionais são assumidamente defensores da independência de suas
regiões e participam ativamente de atos em prol da soberania de suas comunidades.
O F. C. Barcelona (Catalunha) e o Athletic Club (País Basco) são claramente
adeptos do separatismo. Mais timidamente o Celta de Vigo (Galícia) e Sevilla F. C.
(Andaluzia) também representam suas regiões. Diversas torcidas organizadas de
diferentes clubes da Liga são engajadas politicamente com as questões internas do país,
sejam elas separatistas ou unionistas.4 Essa conjuntura se reflete também nas relações
entre os torcedores e jogadores para com a seleção nacional, que mesmo contando com
a participação de inúmeros profissionais dos clubes localizados nas regiões
nacionalistas, não conta com o apoio incondicional de toda a população residente dessas
comunidades.
AS “TRÊS REBELDES” NO FUTEBOL
O atual território espanhol encontra-se dividido, de acordo com a constituição de
1978, em dezessete comunidades autônomas que, por sua vez, se divide em províncias,
sendo que algumas delas são monoprovinciais.5 Cada uma dessas comunidades possui
um elevado grau de autonomia, possuindo governos próprios e parlamentos regionais.
Essa divisão foi estabelecida com o propósito de diminuir as tensões existentes entre o
governo central e as diferentes regiões que reivindicavam maior liberdade de se
autogovernarem.
Inicialmente, essa maior autonomia seria aplicada somente àquelas regiões que
possuem características culturais diferenciadas do restante do país. Assim sendo, País
Basco, Catalunha e Galícia (e depois a Andaluzia) foram os primeiros a obter o estatuto
de comunidade autônoma dentro da Espanha. Como as demais também passaram a
possuir o mesmo estatuto, às citadas acima foram atribuídas a condição de “comunidade
4 Liga, conhecida por motivos de patrocínio como Liga-BBVA, corresponde à Primeira Divisão,
composta por 20 equipes. Na Espanha, o campeonato nacional não é organizado pela federação de futebol
e sim pelos próprios clubes. Àquela compete apenas a Copa del Rey, segundo torneio mais importante. 5 Andaluzia, Aragão, Astúrias, Baleares, Canárias, Cantábria, Castela-a-Mancha, Castela e Leão,
Catalunha, Extremadura, Galícia, La Rioja, Madri, Múrcia, Navarra, País Basco e Valência. Baleares e
Canárias são grupos de ilhas localizadas no Mediterrâneo. Existem ainda duas cidades autônomas: Ceuta
e Melilla, situadas em território marroquino.
5
autônoma dotada de nacionalidade histórica”. Para os defensores da independência
dessas regiões, essa mudança acabou com a singularidade existente entre as primeiras e
as demais.
A adoção desse modelo de divisão em comunidades, com fins político-
administrativos, não significou o fim dos conflitos entre essas regiões e o poder central
de Madri, embora esse tenha reconhecido as particularidades regionais presentes dentro
do Estado, um contraponto ao modelo vigente durante a ditadura de Francisco Franco,
que impunha de forma repressiva a homogeneização cultural para todo o território.
Como são conhecidos na contemporaneidade, bascos, catalães e galegos são os
grupos que mais expressam o sentimento antiespanhol. Desse modo, o futebol tem se
revelado como um importante instrumento de expressão desse sentimento, que
ultrapassa a jogo das quatro linhas e se estende para diversos setores da vida social
desses locais. Segue uma breve descrição dessas regiões e o cenário futebolístico de
cada uma delas.
País Basco – O País Basco compreende a atual comunidade autônoma formada
por três províncias (Álava, Biscaia e Guiposcuá). O território, contudo, segundo os
nacionalistas, se estende à Navarra e uma pequena porção do território francês, chamada
pelos locais de Iparralde. A região possui uma língua completamente diferente do
castelhano e durante muito tempo ficou conhecida pelas ações armadas do grupo
separatista ETA.6 No futebol, a equipe de maior destaque é o Athletic Club de Bilbao
(conhecido por suas posições nacionalistas); além da Real Sociedad, Deportivo Alavés
(talvez o mais espanhol dos clubes bascos), S.D. Eibar e do C.A. Ossassuna de
Pamplona (Navarra).
Catalunha – A Catalunha é formada por quatro províncias: Barcelona, Girona,
Lérida e Tarragona. Ocupa o nordeste do país e uma pequena porção do território
francês. Os separatistas mais radicais afirmam que a Comunidade de Valência e as Ilhas
Baleares também fazem parte daquilo que consideram como “Paisos Catalans”. Possui
língua e cultura próprias e, no passado, possuía movimentos armados, inativos desde
1995. O clube mais conhecido da Catalunha é o F. C. Barcelona (separatista e disparado
6 Sigla de Euskadi Ta Askatasuna (Pátria Basca e Liberdade). A organização surgiu como movimento
estudantil de resistência à ditadura de Francisco Franco, em 1959. Sua ação mais famosa foi o assassinato
de Luis Carrero Blanco, provável sucessor do ditador, em 1973. Encerrou suas atividades armadas em
2011.
6
um dos mais vitoriosos do mundo). Utiliza como slogan o “més que un club”, deixando
claro seu compromisso com uma Catalunha independente. Outras equipes que
pertencem à região são o R. C. D. Espanyol (pró-Espanha), o Sabadell F. C. e o F. C.
Girona.
Galícia – A Galícia está situada no noroeste espanhol e se divide em quatro
províncias (A Corunha, Lugo, Ourense e Pontevedra). Os independentistas dessa região
também consideram que alguns municípios das Astúrias e de Castela e Leão e a
fronteira sul com Portugal são territórios galegos. A língua galega é um idioma muito
semelhante ao português e alguns defendem que a comunidade seja integrada ao estado
lusitano. Atualmente existe um movimento armado atuante no local, conhecido como
Resistência Galega, que age principalmente contra diretórios locais do Partido Popular
sem, no entanto, causar vítimas fatais. No esporte, o clube de maior êxito é o R. C.
Deportivo la Corunha, única equipe galega a conquistar títulos nacionais. Outros clubes
importantes da região são o Celta de Vigo, o Ponferradina e o Compostela. O Deportivo
e o Celta estão na primeira divisão espanhola.
Figura 1 - Divisão da Espanha por Comunidades Autônomas. Fonte: Wikipedia
Marcadas por décadas de repressão pelas diferentes ditaduras e por intimidações
em períodos democráticos, boa parte dos habitantes dessas regiões desenvolveram um
sentimento de não pertença em relação à Espanha. Isso se deveu, sobretudo, às
7
tentativas de se eliminar as diferenças regionais por meio da força, especialmente no
tocante á questão linguística e pela insistência em suprimir as identidades locais em
favor da identidade nacional hegemônica. No futebol não foi diferente; embora a
seleção espanhola nunca obtivesse grande destaque no cenário internacional, foi muito
utilizada pelos governantes como símbolo de unificação do país.
Não é de se estranhar, portanto, os atos que ocorrem com certa frequência nos
eventos esportivos realizados na Espanha. Vaias ao hino, recusa em respeitar à figura do
rei, ostentar bandeiras regionais no lugar do pendão nacional, se negar a defender a
seleção, estender faixas nos estádios com mensagens que defendem que determinado
território não pertence ao país, presidente de clube emitindo declarações a favor da
soberania de sua região, entre outras manifestações simbólicas que traduzem as
diferenças e tensões existentes no interior da nação ibérica e que se constituem como
elementos que ajudam a determinar e compreender esse “país de retalhos”.7
Figura 2 Mapa linguístico espanhol. Em vermelho, castelhano; amarelo, galego; verde claro, asturiano-leonês;
azul claro, basco; roso, catalão; verde escuro, extremenho; laranja, fala e cinza, aragonês. O ponto verde
situado entre a região aragonesa e catalã corresponde ao dialeto aranês. O Castelhano é oficial em todo o país.
O catalão, o basco e o galego são cooficiais em suas respectivas regiões. Os demais não possuem estatuto e
sobrevivem apenas por iniciativas isoladas que visam mantê-los. Na Comunidade Valenciana, o catalão
também é conhecido por “valenciano”. Fonte: Wikipedia
A seleção espanhola não consegue unir, mas ao mesmo tempo faz com que se
acirrem as disputas regionais e nos períodos de maior êxito em campo a insatisfação por
não poder ver sua seleção local participando de competições oficiais torna-se mais
7 Essa expressão foi utilizada em uma matéria da revista eletrônica portuguesa Futebol Magazine,
justamente ao abordar as manifestações de separatismo exibidas nos eventos de futebol espanhol.
8
evidente, desde manifestações em redes sociais, até às posturas de indiferença durante
as comemorações dos títulos conquistados pelo “onze nacional”.
“NÃO TORÇO POR ESSA SELEÇÃO PORQUE ELA NÃO REPRESENTA A
MINHA CULTURA”: PERCEPÇÕES DE BASCOS, CATALÃES E GALEGOS
A seleção de futebol da Espanha, historicamente, nunca tinha sido uma das
protagonistas do futebol mundial. Ela estreou na Copa do Mundo da FIFA em 1934,
vencendo o Brasil pelo placar de 3 a 1. Embora fizesse boas campanhas nos torneios
que disputava, jamais conquistou um título de expressão. Esse panorama só mudou um
pouco na primeira metade da década de 1960, quando finalmente conseguiu vencer uma
competição – a Eurocopa de 1964, disputada em casa e teve como adversário na final a
extinta União Soviética.
Uma curiosidade desse período é que a seleção daquele país possuía um apelido
bastante sugestivo: fúria. Acredita-se que o ditador Franco tenha sido o idealizador
dessa denominação. No seu incessante projeto de homogeneizar a nação, o governante
resolveu associar o futebol com outro símbolo da cultura castelhana: as touradas. A
fúria dos touros agora também estava representada no campo futebolístico. O objetivo
era passar para o mundo a imagem de uma Espanha unida e uniforme, por meio das
conquistas no esporte, assim como já acontecera anos antes com a utilização da imagem
do Real Madri como símbolo do sucesso espanhol e de seu governo, bem como ajudar a
abafar qualquer movimento contestatório, sobretudo das minorias nacionais.8
O sucesso da seleção, contudo, parou por aí. A equipe não ganharia uma
competição de renome pelos próximos quarenta e quatro anos. Mesmo disputando uma
Copa do Mundo em casa, não obteve êxito. A escrita só foi quebrada em 2008, o ano
em que o time ibérico começaria a exercer seu domínio no futebol internacional.
Contando com jogadores dos dois principais clubes do país e adotando um esquema de
jogo que envolve completamente o adversário, a agora rebatizada roja (supõe-se que o
8 Na primeira metade da década de 1950, o Real Madri até então era um clube decadente no cenário
futebolístico do país. Conta-se que Franco, torcedor da equipe, emprestou dinheiro público para que os
merengues pudessem contratar alguns dos melhores jogadores daquele período, entre eles, o argentino
Alfredo di Stefano, que viria a se tornar um dos craques da década. O jogador estava quase certo para
atuar pelo grande rival Barcelona, uma vez que esse clube encontrava-se em melhores condições
financeiras para contratá-lo. A intervenção do governo mudou os rumos da história e o Real Madri
tornou-se uma grande potência, vencendo as cinco primeiras edições da Copa dos Campeões da Europa
(atual Liga dos Campeões) e onze dos quinze campeonatos espanhóis entre as décadas de 1950 e 1960.
Esse fato, entretanto, quase que obrigou o clube branco a se associar ao regime. Até hoje, os torcedores de
outras equipes veem o clube da capital como uma instituição que apoia regimes não democráticos.
9
novo apelido seja uma forma de se desvencilhar da imagem idealizada por Franco)
conquistou a UEFA Euro e, dois anos depois, atingiria o ápice com a conquista do
mundial da África do Sul, em 2010, antes de sagrar-se campeã novamente do
campeonato europeu de 2012.
Foi, entretanto, o período no qual a equipe não contou com a torcida de boa parte
dos habitantes dessas regiões. Por questões políticas, culturais, históricas e de memória,
esses grupos veem a equipe, assim como todos os símbolos nacionais, como um
elemento que se sobrepõe às culturas locais. Até mesmo o fato de a bandeira espanhola
estar posta em algum local de Barcelona, Bilbao ou Vigo causa incômodo àqueles que
não se sentem representados. Tomo como exemplo a declaração de uma mulher catalã
durante a Copa do Mundo de 2010.
“Sou cidadã de um povo colonizado e oprimido por mais de 300 anos pelo
estado espanhol e por isso repudio tudo o que simboliza a Espanha. Me entristece
muito ver a falta de cultura em nosso país (Paisos Catalans). Aqui muita gente se
deixa levar pela massa espanhola eufórica sem refletir sobre os fatos históricos e
culturais (depoimento de Irene Cabrera, GLOBO ESPORTE.COM, 09/07/2010)”.
Nota-se que nesse discurso, ao afirmar que se trata de um povo subjugado pelo
estado ibérico, a entrevistada deixa claro sua posição anti Espanha, preferindo não
torcer pelo time nacional, uma vez que esse simboliza a própria dominação de um povo
sobre outro, isto é, para ela, os castelhanos tomaram o direito dos catalães de existirem
como nação, e, consequentemente, sem um estado nacional o que, ainda de acordo com
a depoente, tomou-lhes o direito à autodeterminação. Desse modo, a Catalunha não
pode disputar nenhuma competição oficial, estando limitada a fazer jogos amigáveis,
uma vez que boa parte de seus integrantes, a princípio, devem atuar pelo time nacional.
Esse tipo de sentimento de não se vê como representado pela equipe vermelha
ultrapassa as fronteiras catalãs. Não seria diferente. As regiões com ares
independentistas resistiram durante anos às imposições outorgadas por Madri e, mesmo
que tenham seus traços culturais forçosamente apagados por aquilo que eles denominam
por “espanholização”, a insistência em manter vivos os aspectos que as distinguem do
restante do país se faz presente na contemporaneidade. A abertura política do estado
10
significou uma renovação das aspirações nacionalistas nesses lugares e um resgate, pelo
menos de modo parcial, de símbolos que se encontravam banidos havia anos.9
Figuras 3, 4 e 5 – Acima à esquerda: cartaz basco reivindicando a existência oficial de uma seleção da região,
ao mesmo tempo em que conclama a torcer por qualquer outra equipe que não a Espanha: “Todos com a
outra!!”; à direita, pôster galego “Galícia é a nossa seleção. Espanha não nos representa”; embaixo, “Eu tenho
duas seleções: Catalunha e qualquer outra que jogue contra a Espanha. Não se engane, Catalunha não é
Espanha”. As bandeiras que aparecem no cartaz galego e no catalão não são as oficiais e sim dos
independentistas.
9 Em março de 1976, apenas quatro meses após a morte de Francisco Franco, uma partida entre Real
Sociedad e Athletic Club de Bilbao tornou-se simbólica das reivindicações nacionalistas no País Basco.
Os capitães das equipes entraram em campo segurando uma Ikurriña (a bandeira da região). Foi a
primeira vez em quatro décadas que aquele pendão pôde ser exibido em público, ainda com a vigência da
lei que proibia a exibição de símbolos não espanhóis, para a alegria dos cerca de 35.000 espectadores
presentes ao Estádio Atotxa, então a casa da Real Sociedad. Fonte: futebolinteriorano.blogspot.com.
11
Ainda sim, o discurso de que o time não é o representante de sua verdadeira
nação é predominante entre os nacionalistas. Ao associarem a equipe a uma cultura
dominante, os defensores da independência dessas comunidades autônomas percebem a
seleção nacional como um instrumento de supressão da cultura local. A seguir o
discurso de um galego, no qual aponta alguns dos motivos pelos quais não torce pela
Espanha, bem como o sonho de ver os seus “legítimos representantes”.
“Esta seleção representa a cultura que leva 500 anos tentando fazer
desaparecer o meu idioma. A propósito, foi o que eles conseguiram com muitas outras
línguas na América do Sul. A Galícia não é uma comunidade da Espanha, nas sim
uma nação sem estado colonizada pelo estado espanhol. Eu gostaria de poder vibrar
vendo os jogos da minha seleção, a galega (fala de Manuel Villot, GLOBO
ESPORTE.COM, 09/07/2010)”.
Mais uma vez é perceptível um discurso que liga diferentes elementos: esporte,
cultura, memória e reivindicação de soberania para a sua região. Os galegos
separatistas, assim como os bascos e catalães, preferem, assim, desprezar a seleção
nacional, não a apoiando de modo algum (embora, muitas vezes, o elenco possua
jogadores oriundos dessas regiões) e, não raro, torcem por qualquer outro time que
enfrente a equipe espanhola. Um exemplo disso ocorreu durante o mundial da África do
Sul, quando a roja enfrentou a seleção portuguesa pelas oitavas de final: cidadãos
galegos cruzaram a fronteira só para mostrar seu apoio ao esquadrão lusitano ao mesmo
tempo em que expressava a sua insatisfação por não poder prestigiar a participação
daqueles que representam suas “verdadeiras nações”.
O discurso daqueles que defendem a separação política de das comunidades do
restante do país é carregado de um sentimento de que não se sentem como espanhóis e
sim como nações sem estado ocupadas por outro estado. Os galegos costumam
comparar a sua situação com aquela vivida pelos palestinos no Oriente Médio os quais
veem como uma nação subjugada pelo estado israelense e com o qual demonstram
solidariedade.
Feitas essas considerações, é preciso deixar evidente que estado e nação são
coisas distintas. Para esses povos, eles existem como nações, mas não existem como
estados, uma vez que não possuem soberania sobre o território no qual vivem. O
conceito de nação envolve uma gama de elementos que estão para além do fato de se
possuir um território. Weber (1982) credita que o conceito de nação se fundamenta a
12
partir da construção de uma “comunidade de sentimentos”, onde determinados símbolos
são cultuados, mas, ao contrário das religiões, os objetos de culto não são divindades e
sim os símbolos que representam a nação, tais como, hinos e bandeiras.
Para Damo e Oliven (2001), a associação entre futebol e sentimentos nacionais
ocorre de três formas. O uso do esporte como elemento de expressão de uma
nacionalidade está, segundo os autores, para além do aspecto lúdico. Derrotar o
adversário é algo que é dotado de enorme carga simbólica.
“En lo que se refiere a los estados-nación, se puede vislumbrar una triple
relación entre ellos y el fútbol: la primera metafórica, estaria mucho más próxima a
las representaciones; la segunda, analógica, puede ser observda empiricamente cuando
lós hinchas se perciben en tanto pertencientes a una comunidad de sentimiento y la
denominam nación (...); finalmente, la tercera, relación complementaria, donde
estado-nación y fútbol estabelecen relaciones manteniendo cada cual su autonomia
(DAMO E OLIVEN, P. 21, grifos no original)”.
As comunidades espanholas em questão, contudo, não podem estabelecer por
completo essas relações, uma vez que, como afirmado anteriormente, suas respectivas
seleções estão limitadas a atuarem apenas em partidas não oficiais e, ainda assim,
apenas uma ou duas vezes ao ano. Nessas condições, torcer contra a equipe ibérica
representa uma forma de satisfação; se sua seleção local não pode derrotá-la, outra que
o fizer ganha a simpatia dos nacionalistas.
Um caso recente ocorreu no mundial de 2014, disputado no Brasil. A Espanha
chegara à competição como uma das grandes favoritas a repetir o que fizera em 2010,
mas, logo na partida de estreia, o time foi goleado pelos Países Baixos por 5 a 1,
fazendo o mesmo desandar de vez no torneio e ser eliminado na primeira fase dias
depois. Se para a maior parte do país ficou um sentimento de decepção, para os
nacionalistas o que ficou foi o sentimento de vitória pelo retumbante fracasso. O
periódico basco Gara, estampou quase que em clima geral de comemoração a manchete
“Holanda baixa a bola da Espanha”. 10
Algo semelhante ocorrera no ano anterior, quando o selecionado ibérico
enfrentou o Brasil na final da Copa das Confederações e perdeu por 3 a 0. Os relatos
posteriores ao fim da partida de que setores nacionalistas das três regiões separatistas
10
Edição do dia 13/06/2014. O Gara é um jornal de esquerda e sempre se portou como o principal veículo
de comunicação da ETA.
13
lançaram fogos em cidades como Barcelona, Bilbao e Vigo, comemorando o fracasso
do time em conseguir um título inédito para o futebol espanhol. Para aqueles que não se
sentem como integrantes da nação, a conquista do título não foi somente do Brasil,
também foi um troféu para eles.
Esse permanente conflito se manifesta nos mais diversos setores da vida social
espanhola. Na imprensa jornalística não poderia ser diferente. Quando a roja conseguiu
a classificação à final do mundial de 2010, foi notável a diferença de cobertura feita por
alguns dos jornais esportivos mais importantes do país. O “Marca”, de Madri,
estampava em sua capa a classificação como algo extraordinário, um acontecimento
digno, a nação havia, naquele exato momento, dado o penúltimo passo para alcançar a
glória; por sua vez, o “Sport”, de Barcelona, mal dava destaque àquele feito,
estampando uma discreta frase: “Viva España”, no alto da página; preferindo noticiar
assuntos relativos ao F. C. Barcelona e outros esportes.
Figuras 6 e 7 – As capas de dois dos mais importantes da Espanha: no “Marca” uma ode à
classificação para a final. “Todos agora com a Vermelha”; no “Sport”, indiferença. Fonte: sítios
oficiais. Julho de 2010.
O futebol, portanto, revela-se como um campo privilegiado para
compreendermos as diferenças regionais existentes na Espanha contemporânea.
Decerto, os adeptos do separatismo constroem sua recusa em torcer pela seleção
nacional na consciência de que, por constituírem-se como lugares que possuem
diferenças culturais significativas em relação ao restante do país, e que este, por sua vez,
tentou de diversos modos eliminar essas diferenças.
Nesse sentido, é possível afirmar que os habitantes desses movimentos
nacionalistas de caráter periférico não possuem o sentimento de pertença em relação a
14
tudo o que representa a Espanha, ou melhor, o sentimento de pertença o qual alimentam
está direcionado às suas identidades regionais. Para um catalão independentista, por
exemplo, não torcer pela seleção espanhola possui o mesmo significado da recusa em
assistir espetáculos de touradas, uma vez que esses eventos fazem parte da “essência” da
cultura castelhana e não da catalã. A construção desse sentimento em contextos
nacionalistas dá-se por meio da passagem da comunidade imaginada para uma situação
real. De acordo com Guibernau,
“(...) nesses momentos, o indivíduo esquece de si mesmo e o sentimento de
pertencer ao grupo ocupa a primeira posição. A vida coletiva da comunidade coloca-
se acima do indivíduo. Através de simbolismo ritual, os indivíduos podem sentir uma
emoção de intensidade incomum, que provém de sua identificação com uma entidade
– a nação – que os transcende, e de que eles ativamente se sentem parte. Nessas
ocasiões (...) ganham força a adaptabilidade, e são capazes de se empenhar em atos
heroicos, bem como bárbaros (...) (p.94)”.
O sentimento de pertença produzido por esses indivíduos requer sempre uma
reatualização, necessária para que a comunidade mantenha seus laços de união e, como
tal, reproduzam e reforcem o sentido de ser uma nação (Damo, 1998). Posto isso, a cada
ocasião em que a seleção espanhola esteja em evidência, essas coletividades
manifestam-se de forma veemente.
Na contemporaneidade, onde o capital apregoa a constituição de uma suposta
“aldeia global”, as minorias nacionais presentes no estado espanhol reafirmam seus
desejos e esperanças em constituírem suas próprias “aldeias” e o “esporte das massas”
ou, para utilizar a expressão cunhada por Giulianotti (1999), o “esporte das multidões”
pode ser uma vitrine para mostrar ao mundo tudo aquilo que, de modo geral, é ofuscado
pela cultura dominante exercida pelo estado ibérico.
“UMA NAÇÃO, UMA SELEÇÃO”
Se para os cidadãos das três regiões espanholas onde os movimentos de caráter
nacional-separatistas são mais atuantes são dadas as condições para que os mesmos
manifestem seu repúdio aos símbolos que representam a Espanha, para um jogador
profissional, mesmo que ele manifeste esses sentimentos, não pode exercê-los de modo
tão espontâneo como fazem muitos de seus conterrâneos. Seria impensável o mundo
15
presenciar um futebolista vaiando um hino ou queimando uma bandeira porque ele não
se sente um cidadão de um determinado país.
Na Espanha, é comum ver torcidas de clubes independentistas vaiarem a
execução do hino nacional, entre outras atitudes. Nas finais da Copa del Rey de 2009,
2012 e 2015, F. C. Barcelona e Athletic Club de Bilbao se enfrentaram para decidir o
título e, nas três ocasiões, os adeptos das equipes esqueceram a disputa dentro de campo
e se uniram nos apupos à “Marcha Real”. Os jogadores, entretanto, permaneciam
indiferentes àquela ação, embora nessa última um atleta do clube basco tenha sido
flagrado com um discreto sorriso, como se quisesse demonstrar a sua satisfação em
ouvir aquele efeito sonoro.11
Outra forma de se demonstrar o sentimento anti-castelhano consiste em negar a
presença do rei. Para ambos, esse é um símbolo ultrapassado que exerce seu poder de
dominador sobre suas regiões. Os próprios clubes colaboram indireta mas
intencionalmente para isso ao excluírem o nome do rei do torneio em questão.
O F. C. Barcelona constitui-se, na realidade, como um exemplo bastante
paradoxal. A equipe culé se autoproclama como o verdadeiro representante dos
interesses catalães. Foer (2005) apresenta uma visão um tanto crítica a respeito do
posicionamento do clube quanto à questão de uma possível independência da região,
afirmando que os blaugranas servem para a demonstração de um “charmoso
nacionalismo burguês”, que em nada representa os verdadeiros ideais dos catalães.
Independente de concordar ou não com a percepção desse autor, o fato é que,
ironicamente, o Barcelona foi o que historicamente mais cedeu jogadores para a seleção
da Espanha. O “cérebro” do time que exerceu a hegemonia no futebol mundial era
formado por atletas que vestem a camisa azul-grená, embora nem todos sejam oriundos
da Catalunha.
Ao mesmo tempo, entretanto, o clube é o maior patrocinador da seleção de sua
região. A Catalunha, o País Basco e a Galícia sonham em disputar torneios oficiais, mas
esbarram nas imposições da Federação Espanhola, da UEFA e consequentemente da
11
Na final de 2009, a TVE (Televisão Pública Espanhola) cortou a transmissão e desligou o áudio, como
forma de abafar as vaias ao hino. Segundo o jornal francês “Le Monde”, o diretor da TV foi demitido dois
dias depois. Já na final de 2012, a partida seria realizada no estádio do Real Madri, que se negou a cedê-
lo. A presidente da Comunidade de Madri, Esperanza Aguirre, do Partido Popular(PP) propôs que o jogo
ocorresse sem a presença da torcida. Por fim, o confronto foi realizado no estádio do Atletico de Madri.
16
FIFA. Como afirmado anteriormente, elas estão limitadas a jogarem partidas amistosas,
às vezes, enfrentando entre si, outras vezes, convidando alguma seleção reconhecida
oficialmente. Inegável é o slogan escrito e falado pelos nacionalistas dessas regiões:
uma nação, uma seleção. Em cada partida que lhes é permitido atuar, os jogadores que
atuam por essas esquadras apresentam para a torcida uma faixa com esses dizeres.
Trata-se de uma ação simbólica que expressa um desejo que, no estágio atual, está longe
de se concretizar.
Mas se os profissionais não podem praticar atos ditos radicais, pelo menos
podem, em princípio, se recusarem a defender a seleção com a qual eles não
simpatizam. A questão se mostra um tanto complexa: todo jogador sonha em disputar a
competição máxima do futebol mundial, ainda que não tenha plena convicção em atuar
vestindo outra camisa que não aquela que ele gostaria de usar. Os jogadores do
Barcelona são um exemplo disso. É provável que sonhassem em por o manto amarelo e
vermelho, mas como ainda não é possível, usaram suas melhores habilidades a serviço
de outro uniforme. Disputar e ganhar títulos importantes, é uma das grandes
recompensas que um jogador profissional pode conseguir, além de dinheiro e prestígio
dentro do mundo esportivo.
Isso, contudo, não é regra e casos de futebolistas que se negaram a atuar pela
Espanha são relativamente comuns, mais até do que se poderia imaginar. Um dos
primeiros a adotar tal postura foi Iñaxio Kortabarria, logo após o fim da ditadura de
Francisco Franco. Kortabarria era um dos melhores jogadores do campeonato nacional
na época e sua recusa em por a camisa vermelha abriu precedentes para que outros
atletas fizesse o mesmo. Afirmou ele que só defenderia a camisa vermelha, verde e
branca do País Basco.
“Dentro do quadro político espanhol, a presença de desportistas
independentistas com a camisola da selecção sempre levantou muita polémica. Até ao
final do franquismo a participação era obrigatória, apesar do próprio regime ter o
cuidado de evitar seleccionar os desportistas mais conflictivos politicamente. Com a
época da Transição, começaram a surgir as primeiras imagens públicas de negação a
colaborar com a selecção espanhola. Num derby basco, os capitães da Real Sociedad e
Athletic Bilbao exibiram orgulhosos a bandeira de Euskadi perante uma multidão
eufórica. Foi precisamente nessa zona que surgiram os primeiros casos de oposição
frontal ao conceito de selecção espanhola por parte de futebolistas. Em 1976, Iñaxio
Kortabarría, então internacional absoluto, renunciou à selecção como símbolo da sua
17
devoção pela causa independentista basca. Aberto o precedente, o cenário voltou a
repetir-se como futebolistas galegos e catalães nos anos seguintes (FUTEBOL
MAGAZINE, 01/06/2013)”.
O ato inaugural do meio campista da Real Sociedad foi, de fato, um prelúdio ao
que viria acontecer nos anos seguintes. As seleções das regiões independentistas
estiveram marginalizadas durante décadas em virtude dos fatores políticos que se
sucediam no país ibérico. Para poderem recuperar um pouco suas atividades seria
necessário primeiramente questionar a própria seleção nacional. Recentemente,
futebolistas das três regiões têm se empenhado em divulgar mais as suas seleções locais,
seja se recusando a vestir a camisa da campeã do mundo de 2010, seja por responder
prontamente às convocações para os selecionados de suas comunidades.
Figura 8 – Manifestantes seguram faixa com o slogan “Uma Nação, Uma Seleção” escrita nos três idiomas das
regiões independentistas. Essa frase surgiu em 2008, em um vídeo catalão, no qual uma criança com a camisa
da Espanha jogava bola e impedia outra criança com a camisa catalã de participar do jogo. O vídeo gerou
debates acalorados no cenário interno e o Partido Popular entrou na justiça contra a sua exibição. Desde
então, essa frase tem sido utilizada para pedir reconhecimento para suas seleções e até mesmo em protestos
por soberania dessas comunidades.
O ano de 2008 foi marcado por um acirramento entre os que apregoam a unidade
nacional no campo futebolístico e os adeptos de que sejam feitas concessões às equipes
das diferentes regiões que compõem o país. O auge desse conflito ocorreu quando a
seleção do País Basco foi impedida de atuar sob a denominação Euskal Herria. Os
dirigentes espanhóis só autorizariam a partida se os atletas utilizassem o termo Euskadi.
Isso se deve ao fato de que o primeiro termo se refere ao território como um todo,
enquanto o segundo designa apenas a comunidade autônoma. O resultado final foi que
os jogadores decidiram cancelar o jogo que fariam contra o Irã.
18
"Não estamos dispostos a voltar atrás. Queremos representar uma nação de sete
territórios, 21 mil quilômetros quadrados, cujo nome hoje é Euskal Herria (manifesto
dos atletas da seleção basca)”.
O conceito de nação mais uma vez é evocado pelos defensores de suas
respectivas regiões. Possuir uma seleção que os represente significa existir como tal,
ainda que de modo simbólico. Como pode se notar, não há um fim próximo para as
disputas travadas no cenário interno do futebol espanhol. Construídos sob várias
vertentes, os nacionalismos periféricos, de uma forma ou de outra estão sempre a causar
incômodos ao governo central. Ao serem estabelecidas as bases democráticas do
moderno estado espanhol, esses movimentos separatistas saíram das sombras do
franquismo e, como foi mencionado, o esporte converteu-se em uma das primeiras
ferramentas de expressão dessas nacionalidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No final dos anos 1980 e começo da década de 1990 o mundo passava por
transformações significativas, com o declínio dos regimes comunistas no leste europeu,
o que aflorou movimentos separatistas em diversos países daquela região. O resultado,
como mencionei na abertura desse texto, foi a dissolução de antigos estados nacionais,
surgimento de novos países e rupturas por vezes violentas.
Naquela ocasião, diversos teóricos defensores da política neoliberal afirmavam
que a Europa Ocidental estaria imune a esses problemas, pois, alegavam que os países
do oeste já teriam consolidado suas bases democráticas e que, portanto, não havia com o
que se preocupar com relação ao fenômeno do independentismo dentro de suas
fronteiras. Passados menos de trinta anos, presenciamos um cenário bem diferente.
Longe do que imaginavam aqueles pensadores, diversos países têm que lidar com as
constantes ameaças de secessão de seus territórios.
O caso da Espanha é apenas um dos mais contundentes. O país se nega a ser uma
federação, mas não consegue solucionar suas questões no tocante às diferenças
regionais. A Espanha não está sozinha: a formação de partidos na Itália com caráter
independentista (além de acusações de racismo e xenofobia); a tentativa de separação
política da Escócia por meio de plebiscito, em 2014, além da já citada Bélgica,
demonstram que os países ocidentais por mais que tenham alcançado elevados níveis de
19
desenvolvimento social e econômico, jamais conseguiram conciliar plenamente a
existência de povos tão diferentes sob a mesma bandeira.
Giddens (1991) já nos alertava que quanto mais o sistema hegemônico tenta
impor a sua ideia de uma “comunidade mundial”, mais os movimentos de resistência
local tendem a se intensificarem. Nesse sentido, as reivindicações soberanistas que
perturbam o estado espanhol não seriam mais que um reflexo desse processo de
fragmentação. O estado foi capaz de manter suas fronteiras estáveis até o momento em
que as bases dos nacionalismos periféricos ainda não estavam completamente
edificadas, mas que começam, ainda que timidamente, a sofrer pequenos abalos.
Curiosamente, foi no período de maiores glórias obtidas dentro das quatro linhas
que a Espanha entrou em uma das maiores crises econômica e social da sua história. As
medidas adotadas pelo governo têm causado grande descontentamento e inflamado os
grupos nacionalistas de diferentes orientações políticas. O uso do esporte mais popular
do planeta como arma de expressão das diferenças internas é apenas o início de
construção de processos, os quais ainda não se sabem o que poderão resultar
futuramente.
REFERÊNCIAS
FOER, Franklin. Como o Futebol Explica o Mundo: um olhar inesperado sobre a
globalização. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
GIDDENS, Anthony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
GIULIANOTTI, Richard. Sociologia do Futebol: dimensões históricas e socioculturais
do esporte das multidões. São Paulo: Nova Alexandria, 2010.
GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismo: o estado nacional e o nacionalismo no século
XX. Rio de Janeiro: Zahar, 1997
MARQUES, Edgard. Nacionalistas catalães, galegos e bascos ignoram a seleção
espanhola. GLOBOESPORTE.COM. 09 de julho de 2010. Visitado em 30 de março
de 2015.
MARTINS, Alexandre. Independentismo no relvado, o puzlle do futebolespanhol.
Futebol Magazine. 01/06/2013. Visitado em 25 de abril de 2015.
OLIVEN, Ruben G. & DAMO, Arlei Sander. Fútbol y Cultura. Bogotá: Editorial
Norma, 2001.
WEBER, Max. A Nação In: GERTH, H. H. & MILLS W. (org.), Ensaios de
Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.