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1 A morte de Jesus e seu impacto na história A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz de Jesus e seu valor salvífico é um dos pontos que a reflexão cristológica nos últimos anos tem procurado interpretar. Este tema continua atualmente como eixo de grandes debates onde notadamente destacam-se tendências que se opõem em sua expressão. Há os que veem a morte de Jesus como desígnio divino para trazer a salvação, como também há os que afirmam que a morte de Jesus foi consequência de sua práxis. Tais afirmações quando vistas isoladamente, em desarmonia, podem correr o risco de desviar o sentido originário da cruz de Jesus. Em 1979 a Comissão Teológica Internacional reuniu-se para tratar de Questões Seletas de Teologia, dentre elas a análise da produção cristológica, principalmente européia, dos vinte anos antecedentes, com o intuito de “discernir como harmonizar a verdade sobre Jesus Cristo transmitida pelo Novo Testamento e os dogmas eclesiais cristológicos com a presente situação, em que se deu uma nova ênfase à verdadeira humanidade de Cristo e seu caráter salvífico” 11 . A reflexão teológica tem a preocupação de apresentar o dogma com um olhar atual, mas sem perder o seu significado original. Implicitamente ressalta-se o objetivo de transmitir as verdades da fé em Jesus Cristo com eloquência e com uma linguagem atual e mais próxima do dado bíblico. Por muitos séculos foram mais exaltados os aspectos da divindade de Cristo e como consequência isto trouxe certo distanciamento entre Jesus e o ser humano em suas relações. Na América Latina a Cristologia, e toda a teologia em geral, foi um reflexo da européia por muito tempo. As afirmações dogmáticas que sublinhavam mais a divindade de Cristo do que a verdadeira humanidade eram aceitas sem questionamentos e se enfatizava mais o seu significado salvífico individual e transcendente do que o histórico. Nas devoções da religiosidade popular o destaque foi dado, sobretudo, ao Cristo sofredor, onde o povo sentia maior 11 SOBRINO, J., Jesus na América Latina p. 17.

A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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Page 1: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

1 A morte de Jesus e seu impacto na histoacuteria

A morte de cruz de Jesus eacute um fato O significado da cruz de Jesus e seu

valor salviacutefico eacute um dos pontos que a reflexatildeo cristoloacutegica nos uacuteltimos anos tem

procurado interpretar Este tema continua atualmente como eixo de grandes

debates onde notadamente destacam-se tendecircncias que se opotildeem em sua

expressatildeo Haacute os que veem a morte de Jesus como desiacutegnio divino para trazer a

salvaccedilatildeo como tambeacutem haacute os que afirmam que a morte de Jesus foi

consequecircncia de sua praacutexis Tais afirmaccedilotildees quando vistas isoladamente em

desarmonia podem correr o risco de desviar o sentido originaacuterio da cruz de

Jesus

Em 1979 a Comissatildeo Teoloacutegica Internacional reuniu-se para tratar de

Questotildees Seletas de Teologia dentre elas a anaacutelise da produccedilatildeo cristoloacutegica

principalmente europeacuteia dos vinte anos antecedentes com o intuito de ldquodiscernir

como harmonizar a verdade sobre Jesus Cristo transmitida pelo Novo

Testamento e os dogmas eclesiais cristoloacutegicos com a presente situaccedilatildeo em

que se deu uma nova ecircnfase agrave verdadeira humanidade de Cristo e seu caraacuteter

salviacuteficordquo11

A reflexatildeo teoloacutegica tem a preocupaccedilatildeo de apresentar o dogma com um

olhar atual mas sem perder o seu significado original Implicitamente ressalta-se

o objetivo de transmitir as verdades da feacute em Jesus Cristo com eloquecircncia e com

uma linguagem atual e mais proacutexima do dado biacuteblico Por muitos seacuteculos foram

mais exaltados os aspectos da divindade de Cristo e como consequecircncia isto

trouxe certo distanciamento entre Jesus e o ser humano em suas relaccedilotildees

Na Ameacuterica Latina a Cristologia e toda a teologia em geral foi um reflexo

da europeacuteia por muito tempo As afirmaccedilotildees dogmaacuteticas que sublinhavam mais

a divindade de Cristo do que a verdadeira humanidade eram aceitas sem

questionamentos e se enfatizava mais o seu significado salviacutefico individual e

transcendente do que o histoacuterico Nas devoccedilotildees da religiosidade popular o

destaque foi dado sobretudo ao Cristo sofredor onde o povo sentia maior

11

SOBRINO J Jesus na Ameacuterica Latina p 17

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proximidade a Deus em seus sofrimentos12 A partir de Medelliacuten a reflexatildeo

cristoloacutegica ganha rosto na Ameacuterica Latina e a teologia comeccedila a ser

desenvolvida a partir do seu ldquoproacuteprio poccedilordquo13 isto eacute nasce uma teologia fonte

Metodologicamente o momento do Jesus histoacuterico foi ressaltado dentro

da totalidade de Jesus Cristo14 Sua pessoa atividade atitudes processualidade

e destino que satildeo acessiacuteveis agrave investigaccedilatildeo histoacuterica e exegeacutetica foram

privilegiados

A Cristologia latino-americana entende por Jesus histoacuterico a totalidade da

histoacuteria de Jesus e a finalidade de comeccedilar com o Jesus histoacuterico eacute a de que se

prossiga sua histoacuteria na atualidade15 ldquoO interesse que os latino-americanos tecircm

demonstrado pelo Jesus histoacuterico natildeo proveacutem do mero interesse exegeacutetico e

histoacuterico mas porque veem nele o modo mais adequado e mais teoloacutegico de

enfocar os diversos temas da teologia da libertaccedilatildeordquo16

Uma das reflexotildees da Cristologia latino-americana eacute a de Jon Sobrino

Para ele eacute necessaacuterio sublinhar que natildeo se pode conceber nem chegar ao

absoluto senatildeo atraveacutes da histoacuteria17 Um dos temas centrais de sua reflexatildeo eacute a

cruz de Jesus como ponto fundante do seu seguimento

Desde os primeiros seacuteculos da Igreja o escacircndalo da cruz de Jesus foi

motivo de grandes debates e de natildeo aceitaccedilatildeo por muitos pois a concepccedilatildeo de

um Deus que sofre eacute contraditoacuteria Poreacutem temos aqui o nuacutecleo que nos

12

Cf Ibid p17 Exemplo tiacutepico das devoccedilotildees ao Cristo sofredor eacute ecircnfase dada na Sexta-feira Santa onde a participaccedilatildeo do povo eacute maior do que nos outros dias do Triacuteduo pascal Aleacutem disso em determinadas regiotildees privilegia-se a procissatildeo do Senhor morto Haacute tambeacutem inuacutemeras letras de hinos que enfatizam a morte de Cristo na cruz como expiaccedilatildeo de nossos pecados dentre elas destacamos Por que Ele vive ldquoDeus enviou seu Filho amado para morrer no meu lugar na cruz sofreu por meus pecadosrdquo 13

Expressatildeo utilizada por G Gutierrez no tiacutetulo de sua obra Beber em seu proacuteprio poccedilo 14

Cf SOBRINO J op cit p 87 15

A cristologia europeacuteia iniciou a busca do Jesus histoacuterico no seacutec XVII Nesta primeira fase foram vaacuterias as tentativas de escrever a vida de Jesus para chegar ao Jesus histoacuterico isto eacute ao que os evangelhos afirmam de Jesus que natildeo seja interpretaccedilatildeo de feacute Nos seacuteculos seguintes houve uma reaccedilatildeo agrave busca do Jesus histoacuterico onde se procurou aceitar o Cristo da feacute sem os dados histoacutericos O principal expoente dessa reaccedilatildeo foi R Bultmann Contrapondo Bultmann deu-se iniacutecio em 1953 uma segunda fase na busca do Jesus histoacuterico denominada New Quest Logo apoacutes em 1985 iniciou-se a terceira etapa Third Quest Sobrino apresenta o significado do Jesus histoacuterico nessas cristologias em SOBRINO J Jesus o libertador pp 78-82 Ao falar da diferenccedila entre voltar a Jesus na Europa e na Ameacuterica Latina Sobrino cita J L Gonzaacuteles Faus ldquoNa Europa o Jesus histoacuterico eacute objeto de investigaccedilatildeo ao passo que na Ameacuterica Latina eacute criteacuterio de seguimento Na Europa o estudo do Jesus histoacuterico pretende estabelecer as possibilidades e racionalidade do fato de crer ou natildeo crer Na Ameacuterica Latina a apelaccedilatildeo ao Jesus histoacuterico pretende levar ao dilema de converter-se ou natildeordquo (Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 82) Em relaccedilatildeo ao nosso tema sobre a morte de Jesus podemos citar as seguintes obras da Third Quest The Death of the Messiah (A Morte do Messias) de Raymond Brown Who Killed Jesus (Quem Matou Jesus) de John Dominic Crossan e El destino de Jesuacutes su vida y su muerte de H Schuumlrmann 16

SOBRINO J El Jesus histoacuterico crisis y desafio para la fe p 202 In ECA abril 1975 n 318 pp 201-224 17

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p16

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diferencia de outras religiotildees Apenas no cristianismo Deus se faz tatildeo humano e

tatildeo proacuteximo ateacute mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina18 de 1976 Sobrino faz um

primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a

partir da perspectiva da libertaccedilatildeo No sexto capiacutetulo desta obra ele apresenta

sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses

Em 1991 lanccedila outra obra intitulada Jesus o libertador19 com a mesma

finalidade da anterior poreacutem esta eacute mais elaborada fruto de um grandioso

trabalho Assim jaacute na introduccedilatildeo da segunda obra justifica a necessidade de

outro livro de Cristologia onde aprofunda os conteuacutedos da primeira e ressalta a

diferenccedila entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias

europeacuteias Para Sobrino enfatizar Jesus como o libertador eacute de fundamental

importacircncia para a realidade latino-americana onde a crucificaccedilatildeo acontece a

cada momento Portanto haacute a necessidade do anuacutencio da esperanccedila de

libertaccedilatildeo20 Devido a este contexto Sobrino teve o desejo de intitular sua obra

Jesus Cristo crucificado pois para ele tanto Cristo como o Continente estatildeo hoje

crucificados21 Assim podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia

ldquoO Jesus Cristo crucificado tatildeo onipresente eacute realmente uma boa notiacutecia eacute na

verdade um Jesus Cristo libertadorrdquo22 Nesta obra ele faz uma leitura histoacuterico-

teoloacutegica da vida e morte de Jesus

Dando continuidade agrave reflexatildeo lanccedila em 1999 a obra A feacute em Jesus

Cristo Ensaio a partir das viacutetimas23 onde trata da realidade uacuteltima de Jesus

Cristo proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreiccedilatildeo e confessado

como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na feacute da Igreja

A cruz de Jesus eacute um ponto de partida para olharmos toda a sua vida A

realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos

nossos olhos do que olhar a ldquobeleza escondidardquo na cruz assim colocamos

ldquoadornosrdquo em torno dela para melhor explicaacute-la Sobrino enfatiza que

ldquona praacutetica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus eacute que com ela o homem foi salvo A repeticcedilatildeo irreflexiva desta afirmaccedilatildeo chegou a uma concepccedilatildeo maacutegica da redenccedilatildeo e no fundo a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histoacuterica de Jesusrdquo

24

18

Tiacutetulo original Cristologiacutea desde Ameacuterica Latina 19

Tiacutetulo original Jesucristo liberador 20

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 11 21

Cf Ibid p 11 22

Cf Ibid p 22 23

Tiacutetulo original La fe em Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas 24

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p192

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Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu

violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais

especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua

paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam

morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a

cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos

histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz

a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus

25

Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem

distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute

relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam

Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte

ldquopor que Jesus morrerdquo26

Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon

Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder

ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da

libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que

igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um

acaso Segundo Sobrino

ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo

27

Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca

iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia

25

Id Jesus o libertador p288 26

Cf Ibid p 287 27

Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz

Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz

Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que

houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e

rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa

ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo

28

A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de

pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses

e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados

podiam ser decapitados

Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal

judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no

madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e

assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus

ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30

Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de

Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a

eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais

quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como

um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte

Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave

cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos

processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo

O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada

relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio

enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio

Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos

evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas

28

KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29

Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30

Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31

THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216

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informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios

judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da

crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs

liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33

As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o

objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo

descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo

completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim

encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores

e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

como uma morte criminosa e escandalosa34

Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que

Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute

condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer

Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as

causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada

por Sobrino

Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam

a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que

tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como

justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel

portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que

salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo

estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de

corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado

sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um

ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os

outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total

desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses

33

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35

Cf Ibid p 216 36

Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37

Ibid

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etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 2: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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proximidade a Deus em seus sofrimentos12 A partir de Medelliacuten a reflexatildeo

cristoloacutegica ganha rosto na Ameacuterica Latina e a teologia comeccedila a ser

desenvolvida a partir do seu ldquoproacuteprio poccedilordquo13 isto eacute nasce uma teologia fonte

Metodologicamente o momento do Jesus histoacuterico foi ressaltado dentro

da totalidade de Jesus Cristo14 Sua pessoa atividade atitudes processualidade

e destino que satildeo acessiacuteveis agrave investigaccedilatildeo histoacuterica e exegeacutetica foram

privilegiados

A Cristologia latino-americana entende por Jesus histoacuterico a totalidade da

histoacuteria de Jesus e a finalidade de comeccedilar com o Jesus histoacuterico eacute a de que se

prossiga sua histoacuteria na atualidade15 ldquoO interesse que os latino-americanos tecircm

demonstrado pelo Jesus histoacuterico natildeo proveacutem do mero interesse exegeacutetico e

histoacuterico mas porque veem nele o modo mais adequado e mais teoloacutegico de

enfocar os diversos temas da teologia da libertaccedilatildeordquo16

Uma das reflexotildees da Cristologia latino-americana eacute a de Jon Sobrino

Para ele eacute necessaacuterio sublinhar que natildeo se pode conceber nem chegar ao

absoluto senatildeo atraveacutes da histoacuteria17 Um dos temas centrais de sua reflexatildeo eacute a

cruz de Jesus como ponto fundante do seu seguimento

Desde os primeiros seacuteculos da Igreja o escacircndalo da cruz de Jesus foi

motivo de grandes debates e de natildeo aceitaccedilatildeo por muitos pois a concepccedilatildeo de

um Deus que sofre eacute contraditoacuteria Poreacutem temos aqui o nuacutecleo que nos

12

Cf Ibid p17 Exemplo tiacutepico das devoccedilotildees ao Cristo sofredor eacute ecircnfase dada na Sexta-feira Santa onde a participaccedilatildeo do povo eacute maior do que nos outros dias do Triacuteduo pascal Aleacutem disso em determinadas regiotildees privilegia-se a procissatildeo do Senhor morto Haacute tambeacutem inuacutemeras letras de hinos que enfatizam a morte de Cristo na cruz como expiaccedilatildeo de nossos pecados dentre elas destacamos Por que Ele vive ldquoDeus enviou seu Filho amado para morrer no meu lugar na cruz sofreu por meus pecadosrdquo 13

Expressatildeo utilizada por G Gutierrez no tiacutetulo de sua obra Beber em seu proacuteprio poccedilo 14

Cf SOBRINO J op cit p 87 15

A cristologia europeacuteia iniciou a busca do Jesus histoacuterico no seacutec XVII Nesta primeira fase foram vaacuterias as tentativas de escrever a vida de Jesus para chegar ao Jesus histoacuterico isto eacute ao que os evangelhos afirmam de Jesus que natildeo seja interpretaccedilatildeo de feacute Nos seacuteculos seguintes houve uma reaccedilatildeo agrave busca do Jesus histoacuterico onde se procurou aceitar o Cristo da feacute sem os dados histoacutericos O principal expoente dessa reaccedilatildeo foi R Bultmann Contrapondo Bultmann deu-se iniacutecio em 1953 uma segunda fase na busca do Jesus histoacuterico denominada New Quest Logo apoacutes em 1985 iniciou-se a terceira etapa Third Quest Sobrino apresenta o significado do Jesus histoacuterico nessas cristologias em SOBRINO J Jesus o libertador pp 78-82 Ao falar da diferenccedila entre voltar a Jesus na Europa e na Ameacuterica Latina Sobrino cita J L Gonzaacuteles Faus ldquoNa Europa o Jesus histoacuterico eacute objeto de investigaccedilatildeo ao passo que na Ameacuterica Latina eacute criteacuterio de seguimento Na Europa o estudo do Jesus histoacuterico pretende estabelecer as possibilidades e racionalidade do fato de crer ou natildeo crer Na Ameacuterica Latina a apelaccedilatildeo ao Jesus histoacuterico pretende levar ao dilema de converter-se ou natildeordquo (Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 82) Em relaccedilatildeo ao nosso tema sobre a morte de Jesus podemos citar as seguintes obras da Third Quest The Death of the Messiah (A Morte do Messias) de Raymond Brown Who Killed Jesus (Quem Matou Jesus) de John Dominic Crossan e El destino de Jesuacutes su vida y su muerte de H Schuumlrmann 16

SOBRINO J El Jesus histoacuterico crisis y desafio para la fe p 202 In ECA abril 1975 n 318 pp 201-224 17

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p16

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diferencia de outras religiotildees Apenas no cristianismo Deus se faz tatildeo humano e

tatildeo proacuteximo ateacute mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina18 de 1976 Sobrino faz um

primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a

partir da perspectiva da libertaccedilatildeo No sexto capiacutetulo desta obra ele apresenta

sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses

Em 1991 lanccedila outra obra intitulada Jesus o libertador19 com a mesma

finalidade da anterior poreacutem esta eacute mais elaborada fruto de um grandioso

trabalho Assim jaacute na introduccedilatildeo da segunda obra justifica a necessidade de

outro livro de Cristologia onde aprofunda os conteuacutedos da primeira e ressalta a

diferenccedila entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias

europeacuteias Para Sobrino enfatizar Jesus como o libertador eacute de fundamental

importacircncia para a realidade latino-americana onde a crucificaccedilatildeo acontece a

cada momento Portanto haacute a necessidade do anuacutencio da esperanccedila de

libertaccedilatildeo20 Devido a este contexto Sobrino teve o desejo de intitular sua obra

Jesus Cristo crucificado pois para ele tanto Cristo como o Continente estatildeo hoje

crucificados21 Assim podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia

ldquoO Jesus Cristo crucificado tatildeo onipresente eacute realmente uma boa notiacutecia eacute na

verdade um Jesus Cristo libertadorrdquo22 Nesta obra ele faz uma leitura histoacuterico-

teoloacutegica da vida e morte de Jesus

Dando continuidade agrave reflexatildeo lanccedila em 1999 a obra A feacute em Jesus

Cristo Ensaio a partir das viacutetimas23 onde trata da realidade uacuteltima de Jesus

Cristo proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreiccedilatildeo e confessado

como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na feacute da Igreja

A cruz de Jesus eacute um ponto de partida para olharmos toda a sua vida A

realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos

nossos olhos do que olhar a ldquobeleza escondidardquo na cruz assim colocamos

ldquoadornosrdquo em torno dela para melhor explicaacute-la Sobrino enfatiza que

ldquona praacutetica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus eacute que com ela o homem foi salvo A repeticcedilatildeo irreflexiva desta afirmaccedilatildeo chegou a uma concepccedilatildeo maacutegica da redenccedilatildeo e no fundo a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histoacuterica de Jesusrdquo

24

18

Tiacutetulo original Cristologiacutea desde Ameacuterica Latina 19

Tiacutetulo original Jesucristo liberador 20

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 11 21

Cf Ibid p 11 22

Cf Ibid p 22 23

Tiacutetulo original La fe em Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas 24

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p192

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Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu

violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais

especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua

paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam

morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a

cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos

histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz

a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus

25

Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem

distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute

relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam

Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte

ldquopor que Jesus morrerdquo26

Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon

Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder

ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da

libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que

igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um

acaso Segundo Sobrino

ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo

27

Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca

iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia

25

Id Jesus o libertador p288 26

Cf Ibid p 287 27

Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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21

11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz

Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz

Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que

houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e

rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa

ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo

28

A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de

pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses

e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados

podiam ser decapitados

Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal

judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no

madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e

assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus

ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30

Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de

Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a

eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais

quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como

um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte

Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave

cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos

processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo

O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada

relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio

enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio

Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos

evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas

28

KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29

Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30

Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31

THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216

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22

informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios

judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da

crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs

liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33

As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o

objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo

descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo

completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim

encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores

e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

como uma morte criminosa e escandalosa34

Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que

Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute

condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer

Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as

causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada

por Sobrino

Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam

a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que

tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como

justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel

portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que

salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo

estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de

corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado

sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um

ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os

outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total

desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses

33

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35

Cf Ibid p 216 36

Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37

Ibid

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23

etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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24

Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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51

indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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53

O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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55

mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 3: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

19

diferencia de outras religiotildees Apenas no cristianismo Deus se faz tatildeo humano e

tatildeo proacuteximo ateacute mesmo na dor e no sofrimento a ponto de morrer numa cruz

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina18 de 1976 Sobrino faz um

primeiro ensaio de Cristologia com a finalidade de apresentar Jesus Cristo a

partir da perspectiva da libertaccedilatildeo No sexto capiacutetulo desta obra ele apresenta

sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus a partir de 14 teses

Em 1991 lanccedila outra obra intitulada Jesus o libertador19 com a mesma

finalidade da anterior poreacutem esta eacute mais elaborada fruto de um grandioso

trabalho Assim jaacute na introduccedilatildeo da segunda obra justifica a necessidade de

outro livro de Cristologia onde aprofunda os conteuacutedos da primeira e ressalta a

diferenccedila entre esta obra que enfatiza Jesus como o libertador e as Cristologias

europeacuteias Para Sobrino enfatizar Jesus como o libertador eacute de fundamental

importacircncia para a realidade latino-americana onde a crucificaccedilatildeo acontece a

cada momento Portanto haacute a necessidade do anuacutencio da esperanccedila de

libertaccedilatildeo20 Devido a este contexto Sobrino teve o desejo de intitular sua obra

Jesus Cristo crucificado pois para ele tanto Cristo como o Continente estatildeo hoje

crucificados21 Assim podemos contemplar a cruz como eixo de sua Cristologia

ldquoO Jesus Cristo crucificado tatildeo onipresente eacute realmente uma boa notiacutecia eacute na

verdade um Jesus Cristo libertadorrdquo22 Nesta obra ele faz uma leitura histoacuterico-

teoloacutegica da vida e morte de Jesus

Dando continuidade agrave reflexatildeo lanccedila em 1999 a obra A feacute em Jesus

Cristo Ensaio a partir das viacutetimas23 onde trata da realidade uacuteltima de Jesus

Cristo proclamado como Filho de Deus a partir da ressurreiccedilatildeo e confessado

como verdadeiro Deus e verdadeiro ser humano na feacute da Igreja

A cruz de Jesus eacute um ponto de partida para olharmos toda a sua vida A

realidade nos impulsiona a olharmos muito mais a beleza que agrada aos

nossos olhos do que olhar a ldquobeleza escondidardquo na cruz assim colocamos

ldquoadornosrdquo em torno dela para melhor explicaacute-la Sobrino enfatiza que

ldquona praacutetica o que se costuma afirmar da cruz de Jesus eacute que com ela o homem foi salvo A repeticcedilatildeo irreflexiva desta afirmaccedilatildeo chegou a uma concepccedilatildeo maacutegica da redenccedilatildeo e no fundo a eliminar o aspecto escandaloso da cruz histoacuterica de Jesusrdquo

24

18

Tiacutetulo original Cristologiacutea desde Ameacuterica Latina 19

Tiacutetulo original Jesucristo liberador 20

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 11 21

Cf Ibid p 11 22

Cf Ibid p 22 23

Tiacutetulo original La fe em Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas 24

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p192

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20

Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu

violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais

especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua

paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam

morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a

cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos

histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz

a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus

25

Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem

distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute

relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam

Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte

ldquopor que Jesus morrerdquo26

Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon

Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder

ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da

libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que

igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um

acaso Segundo Sobrino

ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo

27

Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca

iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia

25

Id Jesus o libertador p288 26

Cf Ibid p 287 27

Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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21

11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz

Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz

Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que

houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e

rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa

ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo

28

A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de

pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses

e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados

podiam ser decapitados

Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal

judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no

madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e

assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus

ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30

Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de

Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a

eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais

quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como

um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte

Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave

cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos

processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo

O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada

relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio

enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio

Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos

evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas

28

KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29

Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30

Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31

THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216

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22

informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios

judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da

crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs

liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33

As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o

objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo

descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo

completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim

encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores

e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

como uma morte criminosa e escandalosa34

Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que

Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute

condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer

Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as

causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada

por Sobrino

Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam

a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que

tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como

justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel

portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que

salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo

estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de

corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado

sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um

ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os

outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total

desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses

33

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35

Cf Ibid p 216 36

Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37

Ibid

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23

etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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24

Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 4: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

20

Jesus morreu crucificado Daqui podemos haurir que Jesus morreu

violentamente assassinado como nos confirma o Novo Testamento e mais

especificamente os quatro Evangelhos onde encontramos as narrativas de sua

paixatildeo e morte Na Ameacuterica Latina muitas pessoas morreram e continuam

morrendo de forma violenta como viacutetimas de um sistema opressor que gera a

cada dia ldquocrucificadosrdquo e excluiacutedos Para Jon Sobrino esses dois fatos

histoacutericos satildeo o ponto de partida de sua teologia da cruz

a cruz de Jesus remete agraves cruzes existentes mas que estas por sua vez remetem agrave de Jesus e que satildeo ndash historicamente ndash a grande hermenecircutica para compreender por que matam Jesus e teologicamente expressam em si mesmas a pergunta que natildeo pode ser calada sobre o misteacuterio do por que Jesus morre Os povos crucificados no Terceiro Mundo satildeo hoje o grande lugar teoloacutegico para compreender a cruz de Jesus

25

Jon Sobrino apresenta dois problemas relacionados entre si poreacutem

distintos em relaccedilatildeo agrave morte violenta de Jesus O primeiro problema estaacute

relacionado agrave pergunta histoacuterica pelas causas da sua morte ldquopor que matam

Jesusrdquo O segundo refere-se agrave pergunta teoloacutegica pelo sentido de sua morte

ldquopor que Jesus morrerdquo26

Com o presente capiacutetulo propomo-nos apresentar a reflexatildeo de Jon

Sobrino acerca do aspecto histoacuterico da cruz de Jesus procurando responder

ldquopor que matam Jesusrdquo Sua reflexatildeo estaacute em sintonia com a dos teoacutelogos da

libertaccedilatildeo que buscam apresentar os perigos existentes nas afirmaccedilotildees que

igualam soteriologia e cruz pois tais afirmaccedilotildees desviam a atenccedilatildeo dos

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus ocultando que ela natildeo foi um erro ou um

acaso Segundo Sobrino

ldquoa cruz eacute tudo menos uma metaacutefora Significa morte e crueldade ao que a cruz de Jesus acrescenta inocecircncia e indefensibilidade Para os teoacutelogos cristatildeos a cruz remete-nos a Jesus de Nazareacute Ele eacute o crucificado Por isso ao chamar os pobres deste mundo de povos crucificados noacutes os tiramos do anonimato e conferimos-lhe a maacutexima dignidaderdquo

27

Ressaltando os aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Sobrino busca

iluminar a realidade das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia

25

Id Jesus o libertador p288 26

Cf Ibid p 287 27

Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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21

11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz

Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz

Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que

houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e

rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa

ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo

28

A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de

pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses

e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados

podiam ser decapitados

Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal

judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no

madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e

assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus

ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30

Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de

Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a

eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais

quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como

um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte

Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave

cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos

processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo

O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada

relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio

enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio

Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos

evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas

28

KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29

Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30

Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31

THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216

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22

informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios

judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da

crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs

liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33

As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o

objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo

descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo

completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim

encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores

e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

como uma morte criminosa e escandalosa34

Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que

Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute

condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer

Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as

causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada

por Sobrino

Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam

a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que

tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como

justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel

portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que

salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo

estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de

corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado

sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um

ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os

outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total

desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses

33

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35

Cf Ibid p 216 36

Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37

Ibid

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23

etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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24

Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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27

Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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48

14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 5: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

21

11 O acontecimento da crucificaccedilatildeo como condenaccedilatildeo sumaacuteria o escacircndalo da cruz

Jesus morre como um condenado Condenado agrave morte e morte de cruz

Castigo de escravos e subversivos segundo a lei romana para os que

houvessem cometido crimes atrozes como assassiacutenio furto grave traiccedilatildeo e

rebeliatildeo Era a condenaccedilatildeo mais cruel e vergonhosa

ldquoNatildeo se tratava somente de uma condenaccedilatildeo particularmente cruel mas tambeacutem de um ato profundamente discriminatoacuterio Condenar agrave morte de cruz os escravos e os combatentes pela resistecircncia aos romanos significava tambeacutem o seu cruel desprezo por esta genterdquo

28

A crucificaccedilatildeo foi introduzida no Ocidente pelos persas Era uma forma de

pena oriental pouco utilizada pelos gregos mas muito usada pelos cartagineses

e romanos29 Os cidadatildeos romanos natildeo eram crucificados Quando condenados

podiam ser decapitados

Para os judeus a morte de cruz natildeo eacute mencionada na Lei No direito penal

judaico a pena adicional para os idoacutelatras ou blasfemos era o ldquopendurar no

madeiro apoacutes a morte mediante apedrejamento ou decapitaccedilatildeo (Dt 2122s) e

assim o executado era tachado publicamente como amaldiccediloado por Deus

ldquoMaldito quem for pendurado no madeirordquo (Dt 21 23b)30

Diretamente os romanos satildeo os principais responsaacuteveis pela morte de

Jesus pois o direito de proferir sentenccedilas de morte (ius gladii) era reservado a

eles Os judeus perderam o direito de conduzir processos com penas capitais

quarenta anos antes da destruiccedilatildeo do templo (70 dC)31 Se Jesus morre como

um condenado houve um processo e uma razatildeo para tal condenaccedilatildeo agrave morte

Sobrino afirma que a concepccedilatildeo que Jesus tinha de Deus eacute que o leva agrave

cruz32 Para chegar a tal afirmaccedilatildeo tem como ponto de partida a anaacutelise dos

processos religioso e poliacutetico de sua condenaccedilatildeo

O processo contra Jesus comeccedila com sua prisatildeo no Getsecircmani Cada

relato evangeacutelico o narra de uma forma diversa Marcos eacute o mais sumaacuterio

enquanto Mateus e Lucas estendem o relato Joatildeo segue um esquema proacuteprio

Quanto agrave historicidade desses processos apresentados pelas narrativas dos

evangelhos haacute muitas discussotildees exegeacuteticas A exegese nos daacute poucas

28

KASPER W Jesugrave il Cristo p 153 29

Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 30

Cf KESSLER H Cristologia p 256 In SCHNEIDER T (ORG) Manual de dogmaacutetica pp 219-400 31

THEISSEN G MERZ A O Jesus histoacuterico Um manual p 482 32

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 216

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informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios

judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da

crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs

liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33

As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o

objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo

descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo

completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim

encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores

e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

como uma morte criminosa e escandalosa34

Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que

Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute

condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer

Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as

causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada

por Sobrino

Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam

a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que

tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como

justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel

portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que

salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo

estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de

corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado

sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um

ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os

outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total

desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses

33

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35

Cf Ibid p 216 36

Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37

Ibid

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etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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30

pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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48

14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 6: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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informaccedilotildees acerca do que aconteceu historicamente nos interrogatoacuterios

judiciais com as autoridades judaicas e romanas Poreacutem os fatos da

crucificaccedilatildeo da condenaccedilatildeo por Pilatos e da inscriccedilatildeo no alto da cruz em trecircs

liacutenguas conhecidas dos judeus satildeo historicamente certos33

As narrativas da paixatildeo satildeo perpassadas por explicaccedilotildees teoloacutegicas com o

objetivo de dar um sentido ao que aconteceu com Jesus Tais relatos satildeo

descritos a partir da ressurreiccedilatildeo pois a feacute cristatilde tem sua origem de modo

completo e se torna consciente de si mesma apoacutes a ressurreiccedilatildeo Assim

encontramos nos textos a histoacuteria mesclada de reflexotildees teoloacutegicas dos autores

e interpretaccedilotildees de feacute das comunidades que dificultam ver a morte de Jesus

como uma morte criminosa e escandalosa34

Em relaccedilatildeo ao processo religioso afirmam as narrativas evangeacutelicas que

Jesus eacute julgado pelos chefes religiosos do seu povo e segundo os Sinoacuteticos eacute

condenado como blasfemador (Mc 1464 Mt 2666) e por isso deveria morrer

Poreacutem Jesus natildeo sofreu o apedrejamento que era a pena judaica prevista para

os casos de blasfecircmia Por que Jesus deveria morrer ou melhor quais foram as

causas histoacutericas que levaram Jesus a esta condenaccedilatildeo eacute a questatildeo levantada

por Sobrino

Jesus foi um liberal em mateacuteria religiosa pois suas praacuteticas questionavam

a opressatildeo que a religiatildeo impunha ao povo devido agrave concepccedilatildeo de Deus que

tinham Para Jesus a reverecircncia a Deus prestada atraveacutes do rito e do culto como

justificaccedilatildeo automaacutetica apresentava alguns limites Deus natildeo eacute manipulaacutevel

portanto natildeo eram as praacuteticas da lei em detrimento do ser humano que

salvariam35 ldquoO culto aleacutem de hipoacutecrita necessita literalmente de sentido se natildeo

estaacute acompanhado do amor ao irmatildeo porque natildeo eacute nem pode ser a maneira de

corresponder a Deusrdquo36 Exemplo tiacutepico eacute a rigidez da observacircncia do saacutebado

sublinhada por Jesus (Mc 223ss Mt 121-8 Lc 61-5 Jo 59ss) ldquoDeus natildeo eacute um

ser egocecircntrico cuja realidade eacute ser para si mesmo mas eacute um ser para os

outrosrdquo37 Aleacutem disso Jesus ldquopregou um rigorismo eacutetico e exigente e um total

desprendimento daquilo que comumente eacute considerado bom (famiacutelia posses

33

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 52 As liacutenguas eram o aramaico o dialeto local o grego a liacutengua do mundo romano e o latim a liacutengua oficial da administraccedilatildeo romana (Cf MCKENZIE J L Cruz p 203 In ___ Dicionaacuterio Biacuteblico pp 203-204 34

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p196 35

Cf Ibid p 216 36

Id A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 30 37

Ibid

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etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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27

Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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30

pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 7: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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etc) daqueles que o seguemrdquo38 Natildeo resta duacutevida que devido a tais atitudes

Jesus entrou historicamente em conflito com os liacutederes religiosos

O segundo momento do processo religioso refere-se ao interrogatoacuterio na

casa do sumo sacerdote ocorrido agrave noite O processo natildeo poderia ter ocorrido agrave

noite pois natildeo era permitido pela lei do sineacutedrio39 Joatildeo narra com menos

detalhes o interrogatoacuterio e natildeo trata do outro interrogatoacuterio perante o sineacutedrio na

parte da manhatilde como estaacute descrito pelos Sinoacuteticos Segundo Joatildeo o sumo

sacerdote interrogou Jesus sobre seus disciacutepulos e sua doutrina (1819) Os

liacutederes religiosos tinham medo que ele se tornasse um perigo para a religiatildeo

estabelecida O sumo sacerdote natildeo encontrou na resposta de Jesus nenhum

motivo que o levasse agrave condenaccedilatildeo Poreacutem Jesus levou uma bofetada de um

dos guardas por achar uma insolecircncia sua forma de responder ao sumo

sacerdote Jaacute nos Sinoacuteticos a causa de sua condenaccedilatildeo aparece quando Jesus

blasfema ao declarar-se o Cristo (Mt 2664 Mc 1462 Lc 2267)40 ldquoSegundo

Marcos o sumo sacerdote afirma solenemente no final do interrogatoacuterio

bdquoOuvistes a blasfecircmia Que vos parece Todos julgaram que era reacuteu de morte‟

(Mc 1464)rdquo41 No direito judaico a pretensatildeo de ser Messias natildeo era um delito

que levasse agrave morte42

Seguindo ainda a loacutegica do processo religioso as razotildees da condenaccedilatildeo

de Jesus para outros autores satildeo divergentes Sobrino contrapotildee as teses de E

Schillebeeckx e de Boismard43

Para E Schillebeeckx as pessoas que compunham o sineacutedrio eram

contraacuterias a Jesus por diversos motivos mas respeitavam a lei e natildeo o

condenariam sem uma base legal O crime de blasfecircmia eacute julgado agrave luz de

Deuteronocircmio 1712 ldquoQuem tiver a ousadia de natildeo escutar o sacerdote que laacute

estaacute para o serviccedilo do Senhor teu Deus nem aceitar sua sentenccedila morreraacuterdquo 44

ldquoEm Israel eacute punido com a morte quem resistir ao sumo sacerdote no exerciacutecio de sua funccedilatildeo de juiz na base da qual ele tem que julgar tambeacutem sobre a bdquoortodoxia judaica‟ Desprezar a autoridade de Israel sobretudo na sua funccedilatildeo de examinar a ortodoxia judaica dos bdquomestres de Israel‟ era base juriacutedica para uma execuccedilatildeo legalrdquo

45

38

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 215 39

Cf BOFF L op cit p52 40

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 301 41

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p216 42

KESSLER H op cit p 256 43

Cf SOBRINO J op cit pp 301-302 44

Cf Ibid p 301 45

SCHILLEBEECKX E Jesus A histoacuteria de um vivente p 307

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Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 8: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

24

Jesus silenciou diante da mais alta autoridade e isto seria um desrespeito

e desacato e assim uma blasfecircmia Jesus foi desaprovado porque ficou calado

diante do sineacutedrio Esse silecircncio se tornou para o sineacutedrio a base juriacutedica para

condenar Jesus segundo Dt 171246 Poreacutem para Schillebeeckx ldquotodos estavam

contra Jesus mas natildeo havia unanimidade sobre o motivo legal para condenaacute-lo

E eacute aiacute que comeccedila a culpa do sineacutedrio Chegou-se ao acordo de entregar Jesus

aos romanosrdquo47

Na base de diversas interpretaccedilotildees legais todos os membros do sineacutedrio tinham objeccedilotildees contra Jesus de Nazareacute mas muitos deles natildeo achavam na doutrina e nas accedilotildees de Jesus motivo suficiente para aplicar-lhe o veredicto de Dt 1712 Contudo devido agraves objeccedilotildees fundamentais que todos os membros do sineacutedrio tinham contra Jesus sob diversos pontos de vista encontrou-se numa segunda sessatildeo uma saiacuteda juriacutedica por causa das implicaccedilotildees poliacuteticas da atuaccedilatildeo dele vamos entregar aos romanos esse ldquoproblema Jesusrdquo Deixem os romanos decidir

48

Leonardo Boff afirma que tal tese assumida por E Schillebeeckx parece

pouco convincente pois os testemunhos histoacutericos do julgamento de falsos

doutores ou profetas segundo Dt 1712 foram aplicados posteriores ao ano 7049

O proacuteprio Schillebeeckx reconhece que a partir de 70 eacute que o texto foi aplicado

com precisatildeo nos julgamentos mas afirma que jaacute no tempo de Jesus o texto de

Deuteronocircmio desempenhava papel decisivo50

Segundo Boismard a razatildeo da condenaccedilatildeo de Jesus eacute o fato de querer

destruir o templo (Mt 2661 Mc 1458) O templo era o centro configurador da

sociedade judaica assim eacute compreensiacutevel que os dirigentes judaicos que eram

religiosos poliacuteticos e ricos ao mesmo tempo quisessem eliminaacute-lo51

Para Sobrino a conclusatildeo de Boismard eacute mais convincente pois coincide

com o que Jesus fez ao longo de sua vida em relaccedilatildeo agrave denuacutencia do antirreino

Jesus apresentou uma alternativa diferente de uma relaccedilatildeo com Deus natildeo mais

centrada no templo que havia se tornado o centro de uma teocracia poliacutetica

social e econocircmica da vida de Israel52 O modo como Jesus falava e tornava

Deus presente no mundo o levou a morte portanto ele eacute condenado em nome

de um deus53

46

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 310 47

SOBRINO J Jesus o libertador p 302 48

SCHILLEBEECKX E op cit p 311 49

Cf BOFF L op cit pp 53-54 50

Cf SCHILLEBEECKX E op cit p 307 51

SOBRINO J op cit p 302 52

Cf Ibid 53

Cf Ibid

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25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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27

Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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43

Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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53

O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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54

existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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55

mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 9: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

25

A decisatildeo do Sineacutedrio foi ratificada pelo processo poliacutetico diante do

procurador romano Pilatos As acusaccedilotildees de ordem religiosa satildeo transformadas

em difamaccedilotildees de ordem poliacutetica Segundo Sobrino nos Evangelhos sobretudo

em Lucas haacute uma tendecircncia em transferir a responsabilidade da morte de Jesus

aos chefes judeus e natildeo a Pilatos54 Poreacutem natildeo haacute duacutevidas que Jesus morreu

crucificado como um malfeitor poliacutetico e subversivo por se proclamar o rei dos

judeus e com um tipo de morte que soacute os romanos poderiam realizar Para

confirmar as acusaccedilotildees de ordem poliacutetica temos o fato de que Pilatos ofereceu a

troca de Jesus por Barrabaacutes que era um subversivo poliacutetico Jesus eacute equiparado

a ele

Nesse contexto de processo poliacutetico dois tipos de acusaccedilotildees se inserem

para conseguir a condenaccedilatildeo de Jesus Uma baseada em supostos fatos

poliacutetico-subversivos de Jesus e outra a que ocasionaraacute a condenaccedilatildeo em base

agrave oposiccedilatildeo religioso-poliacutetica que representava Jesus em relaccedilatildeo a Roma55

Lucas 232 relata as acusaccedilotildees em relaccedilatildeo os fatos poliacutetico-subversivos

de Jesus ldquoEncontramos este homem subvertendo nossa naccedilatildeo impedindo que

se paguem os impostos a Ceacutesar e pretendendo ser Cristo Reirdquo Em Joatildeo 1912-

15 confirmam-se as acusaccedilotildees ldquoaquele que se faz rei opotildee-se a Ceacutesarhelliprdquo

A acusaccedilatildeo de subversatildeo eacute uma apresentaccedilatildeo de Jesus como algueacutem

politicamente perigoso diante de Pilatos Quanto agrave acusaccedilatildeo de proibir o povo a

pagar os impostos referentes a Mc 1213-17 Mt 2215-22 e Lc 2020-26 Jesus

apenas responde que eacute para dar a Ceacutesar o que eacute de Ceacutesar e o que eacute de Deus a

Deus distanciando-se de questotildees poliacuteticas Em Joatildeo Jesus se declara rei

poreacutem com ldquoum reino que natildeo eacute deste mundordquo Com isso Jesus exclui a ideia de

que o seu reino seja poliacutetico ou como o dos poliacuteticos56

Todas as acusaccedilotildees a Jesus natildeo encontraram eco em Pilatos pois natildeo viu

nenhum motivo para condenaacute-lo (Jo 1830) Pilatos natildeo se assustou com a

pretensatildeo de Jesus querer ser rei (Jo 1833) e ateacute procurou livraacute-lo porque

acreditava na sua inocecircncia Poreacutem no final eacute Pilatos quem condena Jesus agrave

morte Sobrino acentua que as palavras dos judeus ldquose soltas este homem natildeo

eacutes amigo do Imperador porque quem se faz rei se declara contra Ceacutesarrdquo (Jo

1912) eacute que levaram Pilatos a condenaacute-lo (Jo 1916)57 A condenaccedilatildeo de Jesus

eacute injusta e sem loacutegica portanto confirma-se a tese defendida por Sobrino sobre o

porquecirc matam Jesus

54

Cf Ibid p 303 55

Cf Ibid 56

Cf ibid pp 304-305 57

Cf Ibid pp 305-306

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26

As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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27

Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 10: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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As divindades e suas mediaccedilotildees estatildeo em luta e por isto tambeacutem seus mediadores estatildeo em luta O processo contra Jesus eacute um processo contra o mediador mas eacute realizado para defender uma mediaccedilatildeo e isso eacute feito em nome de um deus Em outras palavras o processo contra Jesus eacute tambeacutem um processo contra seu Deus A partir de agora se pode ver a trageacutedia que vai acontecer Jesus seraacute condenado agrave morte em nome de um deus e Jesus e seu Deus parecem perder no processo

58

Sobrino apresenta ldquocomo fio condutor do seu discurso o esquema da bdquoluta

entre os deuses‟ na sua dupla ramificaccedilatildeo de bdquoluta entre as mediaccedilotildees‟ e de bdquoluta

entre os mediadores‟rdquo59 Os dois mediadores satildeo Jesus e Pilatos e as duas

mediaccedilotildees satildeo o reino de Deus e o Impeacuterio romano (a pax romana) Por traacutes dos

mediadores e das mediaccedilotildees estatildeo a luta de duas divindades o Deus de Jesus

e o deus de Pilatos o imperador Ceacutesar Os proacuteprios Evangelhos afirmam que

natildeo se pode ser amigo de Jesus e de Ceacutesar ao mesmo tempo pois todo rei se

opotildee a Ceacutesar (Jo 1912) Eacute preciso escolher entre dois senhores60

Natildeo encontramos explicitamente nos Evangelhos a relaccedilatildeo de Jesus com

o campo poliacutetico assim como no religioso ou no social Entatildeo podemos nos

perguntar por que ele seria tatildeo perigoso para o Impeacuterio Sobrino afirma que a

partir do religioso se mexe e se abala o alicerce da sociedade de maneira

radical e isto se confirma pela escolha de Barrabaacutes um subversivo poliacutetico ao

inveacutes de Jesus um liacuteder religioso61

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino compara a atuaccedilatildeo de

Jesus com a dos zelotas para se compreender sua posiccedilatildeo diante do campo

poliacutetico Os zelotas natildeo foram duramente criticados por Jesus como foram os

outros grupos sociais de seu tempo (fariseus escribas e saduceus) Alguns

pontos de vistas eram comuns a Jesus e aos zelotas pois ambos compreendiam

sua missatildeo como uma implantaccedilatildeo do Reino de Deus afirmando que estava

proacuteximo e exigiam uma entrega incondicional agrave causa Jesus exige um

seguimento pessoal levando agrave cruz e os zelotas tiveram muitos maacutertires Alguns

disciacutepulos de Jesus eram zelotas como Simatildeo (Lc 615) e talvez Judas

Iscariotes e Pedro Alguns atos de Jesus como a expulsatildeo dos mercadores do

templo (Mc 1115ss) a entrada messiacircnica em Jerusaleacutem (Mc 11 1-10) o

mandar vender um manto e comprar uma espada (Lc 2236) satildeo proacuteximos aos

atos de espiacuterito zelota

58

Ibid p 300 59

TAVARES S S A cruz de Jesus e o sofrimento no mundo p 37 60

Cf SOBRINO J op cit p 307 61

Ibid

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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29

os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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47

Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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48

14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 11: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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Apesar dessas proximidades Jesus se distanciava dos zelotas em muitos

sentidos Os zelotas consideravam os cobradores de impostos como pecadores

por serem colaboradores do poder romano de ocupaccedilatildeo Jesus admite entre os

seus disciacutepulos um cobrador de impostos (Mc 113s) come com eles (Mc 215)

como sinal escatoloacutegico da vinda do Reino Aleacutem disso condena o uso da

espada (Mt 2652) E como jaacute afirmamos anteriormente Jesus natildeo se pronuncia

claramente em relaccedilatildeo aos impostos como faziam os zelotas A instauraccedilatildeo do

reino de Deus seria feita segundo os zelotas a partir de uma insurreiccedilatildeo

armada Jesus anuncia o reino onde o amor eacute a medida maior Portanto Jesus

natildeo pertenceu aos zelotas pois sua concepccedilatildeo de Deus e de seu reino era

diferente 62

O reino natildeo se instalaraacute atraveacutes do poder por isso Jesus natildeo participa de

nacionalismos religiosos exaltados nem de teocracismos poliacutetico como o dos

zelotas O reino seraacute de verdade justiccedila e amor e seraacute instalado diferentemente

da expectativa de todos os outros grupos pela graccedila63

Os processos religioso e poliacutetico satildeo frutos de uma perseguiccedilatildeo a Jesus

por sua forma de apresentar Deus em relaccedilatildeo ao reino e seus destinataacuterios O

anuacutencio do reino de Deus da forma como Jesus fazia incomodava as estruturas

estabelecidas pelos dirigentes da sociedade (Mt 6331831923 Mc 1023-27

Lc 1824-25) L Boff afirma que ldquoa aceitaccedilatildeo que Jesus encontrava nas camadas

populares preocupava as autoridades causando-lhes inveja e maacute vontaderdquo64

Jesus critica os poderes opressores incluindo na sociedade aqueles que

satildeo excluiacutedos ldquoa perseguiccedilatildeo eacute ocasionada porque Jesus ataca os opressores

(dimensatildeo histoacuterica) os quais aleacutem disso justificam a opressatildeo em nome de

Deus (dimensatildeo transcendente) E ao atacaacute-los defende suas viacutetimasrdquo65 O

escacircndalo da cruz encontra-se em sintonia com as inuacutemeras cruzes da histoacuteria

Isto pode ser sintetizado pelas palavras de D Romero a alguns camponeses

aterrorizados sobreviventes do massacre de Aguilares ldquoVocecircs satildeo o divino

transpassadordquo66

62

Cf Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 221-223 63

Cf Id Jesus o libertador p314 64

BOFF L Jesus Cristo Libertador p 114 65

SOBRINO J op cit p 294 66

Cf Id Epiacutelogo p350 In VIGIL JM (Org) Descer da cruz os pobres cristologia da libertaccedilatildeo

pp 345-357

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 12: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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12 As principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras comunidades cristatildes

As primeiras comunidades cristatildes estavam preocupadas em responder

ldquopor que Jesus morreurdquo visto que na cruz morre o Filho de Deus Em um fato

aparentemente negativo deve ter algo positivo e eacute esta a explicaccedilatildeo que o Novo

Testamento daacute apoacutes a ressurreiccedilatildeo de Jesus Atraveacutes da cruz de Jesus Deus

concedeu a salvaccedilatildeo

Tal preocupaccedilatildeo levou os cristatildeos a buscar alguma explicaccedilatildeo possiacutevel e

algum possiacutevel sentido para a cruz de Jesus Com isso corre-se o perigo de se

desvirtuar ou suavizar o que haacute de escacircndalo na cruz de Jesus e nas cruzes da

histoacuteria Assim as explicaccedilotildees e o sentido que os cristatildeos datildeo para a cruz satildeo

objetos de feacute expressatildeo de feacute67 As interpretaccedilotildees das primeiras comunidades

natildeo enfatizam o porquecirc histoacuterico da morte de Jesus A principal preocupaccedilatildeo

encontra-se no niacutevel teoloacutegico

ldquoA convicccedilatildeo de feacute de que agrave morte de Jesus cabe um significado

soterioloacutegico especial eacute uma convicccedilatildeo cristatilde primitiva jaacute ancorada nas palavras

da uacuteltima ceia e registrada no Credo de 381 (crucifixus etiam pro nobis =

crucificado tambeacutem por noacutes)rdquo68 O pro nobis foi interpretado no Novo Testamento

como sacrifiacutecio expiaccedilatildeo resgate etc Tais interpretaccedilotildees eram tentativas de

aproximaccedilatildeo linguiacutestica do acontecimento Ao transmitir a mensagem da

ressurreiccedilatildeo os cristatildeos tiveram a necessidade de refletir sobre o escacircndalo da

cruz69

Sobrino apresenta de forma loacutegica as respostas dos primeiros cristatildeos agrave

pergunta ldquopor que Jesus morreurdquo perpassando alguns pontos essenciais No

primeiro momento enquadra o significado da cruz no misteacuterio de Deus70 Soacute nele

se justifica a morte de Jesus

Jaacute no primeiro escrito do NT encontramos a consideraccedilatildeo da cruz de

Jesus como o destino de um profeta Em 1Ts 214ss se afirma que ldquoeles (os

judeus) mataram o Senhor Jesus e os profetas e nos tecircm perseguido a noacutesrdquo

Com isso unifica-se a perseguiccedilatildeo que a comunidade sofria com o destino dos

profetas e o de Jesus Os evangelhos retomaratildeo esta explicaccedilatildeo quanto agrave

rejeiccedilatildeo de Israel aos profetas (Mt 2337 Mc 122ss Lc 1149-50 Mt 2334ss) e

67

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 320 68

KESSLER H op cit p374 69

Ibid p 269 70

Cf SOBRINO J op cit pp 321-323

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os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 13: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

29

os sinoacuteticos acrescentaratildeo que o profeta rejeitado retornaraacute para julgar seus

verdugos (Lc 128-9 Mt 1032-33s Mc 838)

Apesar das primeiras comunidades justificarem a morte de Jesus como a

morte de um profeta isto ainda natildeo responde agrave questatildeo por que Jesus morre

mas apenas esclarece por que matam Jesus

Uma explicaccedilatildeo da cruz importante para os cristatildeos provenientes da feacute

judia era a argumentaccedilatildeo de que a cruz jaacute estava predita nas Escrituras Assim

natildeo precisavam se surpreender com o escacircndalo da cruz O texto dos disciacutepulos

de Emauacutes (Lc 2413-35) enfatiza este anuacutencio Em 1Cor 154 afirma-se que

ldquoCristo morreu por nossos pecados segundo as escriturasrdquo Encontramos Jesus

interpretando sua morte como predita tambeacutem em Marcos (cf Mc 831 931

1033) Poreacutem estes textos tambeacutem ainda natildeo respondem ao por que da morte

de Jesus

Em outros textos encontramos que Jesus morre ldquosegundo os desiacutegnios

da presciecircncia de Deusrdquo (At 223 428) Ou ainda ldquoque a cruz era necessaacuteriardquo

(Lc 2426 Mc 831)

Todos os textos citados colocam em Deus o sentido da cruz de Jesus

Segundo Sobrino

apelar em uacuteltima instacircncia para Deus para que ao menos nele a cruz tenha sentido mostra por um lado a renuacutencia das pessoas a encontrarem esse sentido o que eacute sinal de honradez para o que em si mesmo eacute soacute trageacutedia e escacircndalo E mostra por outro lado a teimosia destas mesmas pessoas em manter que existe algum sentido em outras palavras que a histoacuteria natildeo eacute absurda que a esperanccedila continua sendo uma possibilidade E colocam esse sentido em Deus

71

A apelaccedilatildeo para encontrar em Deus o sentido da cruz de Jesus

apresenta pontos positivos e negativos O porquecirc soacute tem resposta em Deus

portanto a morte natildeo eacute uacuteltima palavra mas o proacuteprio Deus O perigo de pensar

assim eacute eliminar as arestas do escacircndalo da cruz e pretender saber por que e

como a cruz de Jesus se torna algo loacutegico e ateacute necessaacuterio em Deus72

A resposta ao por que da cruz inserida no misteacuterio de Deus leva a outros

questionamentos ldquoPor que foi esse e natildeo outro o desiacutegnio de Deusrdquo ldquoComo um

Deus bom libertador dos oprimidos pode querer a morte do proacuteprio Filhordquo Da

pergunta ldquopor que Jesus morrerdquo se passa a ldquopara que Jesus morre e o que haacute

de bom na cruz de Jesusrdquo A resposta que o Novo Testamento encontra eacute que

71

Cf Ibid p 322 72

Cf Ibid pp 322-323

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30

pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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48

14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 14: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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pela cruz de Jesus Deus nos salvou do pecado (At 531 Jo 1150-52 2Cor 514-

15 1Tm 26 Jo 651)73

Segundo Sobrino este modo de proceder do Novo Testamento ao refletir

sobre o ldquopara-quecircrdquo salviacutefico da cruz apresenta alguns pontos que merecem

atenccedilatildeo Um deles eacute o restringir salvaccedilatildeo agrave salvaccedilatildeo dos pecados trazida pela

cruz de Jesus pois o reino de Deus anunciado por Jesus traz salvaccedilotildees plurais

e estas podem natildeo ser mais explicitadas por exemplo a salvaccedilatildeo de qualquer

tipo de opressatildeo interna ou externa espiritual e fiacutesica pessoal e social Outro

ponto eacute a distinccedilatildeo de dois niacuteveis da soteriologia aqui explicitada os cristatildeos

acreditam que Deus quer salvar e que quer salvar atraveacutes de Jesus No primeiro

niacutevel da feacute pode-se afirmar que na cruz haacute salvaccedilatildeo No niacutevel mais teoloacutegico

pergunta-se como que na cruz pode haver salvaccedilatildeo74

O Novo Testamento se apropria da teologia subjacente ao Antigo

Testamento para defender como na cruz pode haver salvaccedilatildeo Para isso os

principais modelos soterioloacutegicos que o NT apresenta unem cruz ao sacrifiacutecio agrave

nova alianccedila e agrave figura do servo sofredor Encontramos tambeacutem os escritos de

Paulo que apresentam o sentido salviacutefico da cruz de maneira proacutepria Segundo

Sobrino esses modelos satildeo uma forma de dizer racionalmente que na cruz se

manifestou o amor salviacutefico de Deus portanto natildeo explicam a salvaccedilatildeo que a

cruz enquanto tal traz Aleacutem disso correm o perigo de eliminar o escacircndalo da

cruz em si mesma que eacute o fato de Deus deixar seu Filho morrer para trazer a

salvaccedilatildeo75

O sacrifiacutecio eacute ldquoum fenocircmeno universal e que dificilmente se conhece uma

religiatildeo que natildeo tenha um ritual sacrificalrdquo Seu objetivo eacute estabelecer ou manter

a comunhatildeo com a divindade atraveacutes de uma oblaccedilatildeo por meio da consagraccedilatildeo

ou consumaccedilatildeo da coisa oferecida76 No Antigo Testamento o sacrifiacutecio eacute

estabelecido para vencer a infinita distacircncia que separa o ser humano de Deus

pelo pecado da criatura O sacrifiacutecio eacute tornar sagrada a oferenda do mundo da

criatura ao ser introduzida no mundo sagrado Ao consagrar ou consumir a

oferenda o ser humano pensa que venceu a distacircncia entre ele e Deus

Encontramos em vaacuterios lugares do Novo Testamento a figura e a accedilatildeo de Jesus

relacionadas ao sacrifiacutecio a partir de uma linguagem cultual sacrifical ldquocordeiro

pascal imoladordquo (1Cor 57) ldquocordeiro reconciliador (Ap 59) ldquoo sanguerdquo de Cristo

que aponta para o sacrifiacutecio da cruz (Rm 325 59 Ef 17 213) o ldquosangue

73

Cf Ibid pp 323-324 74

Cf Ibid p 324 75

Cf Ibid pp 324-325 76

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 819 In ___ op cit pp 819-824

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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41

Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 15: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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derramadordquo por ldquovoacutesrdquo por ldquomuitosrdquo nas palavras da uacuteltima ceia (Mc 1424 Mt

2628 Lc 2220)77

Em Hebreus encontramos uma terminologia cultual-sacrifical que declara

abolido todo sacrifiacutecio e todo sacerdoacutecio anterior e posterior a Cristo O texto

critica profundamente os sacrifiacutecios do AT mas manteacutem a terminologia do

sacrifiacutecio para explicar a salvaccedilatildeo trazida pela cruz de Jesus A criacutetica ao AT eacute

que os sacrifiacutecios natildeo podem superar a separaccedilatildeo pois natildeo satildeo aceitos por

Deus Poreacutem o sacrifiacutecio de Jesus realiza a comunhatildeo porque foi aceito por

Deus78 O sacerdoacutecio e o sacrifiacutecio do judaiacutesmo satildeo contrapostos ao sacerdoacutecio

e ao sacrifiacutecio de Jesus O ato de Jesus eacute comparado ao do sumo sacerdote no

dia da Expiaccedilatildeo pois com sua paixatildeo ele oferece o uacutenico sacrifiacutecio verdadeiro

(Hb 217) O sangue expiatoacuterio da nova alianccedila eacute o sangue de Jesus (Hb 912-

14) e uma alianccedila soacute pode ser ratificada com sangue (Hb 915-21) e natildeo haacute

perdatildeo dos pecados sem derramamento de sangue sacrifical (Hb 922) O

sacrifiacutecio expiatoacuterio de Jesus deve ser oferecido apenas uma vez jaacute que eacute

totalmente eficaz (Hb 925-28)79 Jesus torna-se sacerdote e ao mesmo tempo a

ldquooferenda perfeitardquo que sendo aceita por Deus pode trazer a salvaccedilatildeo

A alianccedila eacute outro modelo soterioloacutegico do NT Encontramos a relaccedilatildeo

entre alianccedila e salvaccedilatildeo presente no AT A alianccedila era selada atraveacutes de

derramamento de sangue O NT se apropria desta relaccedilatildeo para aplicaacute-la a

Jesus O seu sangue derramado na cruz torna-se o sangue da nova alianccedila Hb

afirma que em Jesus ocorreu uma alianccedila superior agrave do Sinai (86) predita em Jr

3131-34 Na uacuteltima ceia os sinoacuteticos e 1Cor 1125 afirmam que o sangue de

Jesus eacute o que produz uma alianccedila nova e definitiva entre Deus e os seres

humanos

A figura do servo sofredor eacute outro modelo explicativo da salvaccedilatildeo que a

cruz traz Essa figura eacute descrita nos quatro cacircnticos de Isaiacuteas (421-9 491-6

504-9 5213 ndash 5312) O uacuteltimo cacircntico faz referecircncia direta aos sofrimentos do

servo Natildeo imediatamente mas apoacutes a morte de Jesus a comunidade primitiva

identificou os sofrimentos do servo com os sofrimentos de Jesus e se apropriou

dos cacircnticos para explicar como Jesus morreu Poreacutem tal identificaccedilatildeo natildeo

explicou o sentido histoacuterico da morte de Jesus

Encontramos ainda no NT algumas reflexotildees de Paulo aleacutem das jaacute

mencionadas anteriormente que ressaltam o valor salviacutefico da cruz Em Paulo a

77

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 325-326 78

Cf Ibid p 326 79

Cf MCKENZIE J L Sacrifiacutecio p 823 In ___ op cit pp 819-824

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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35

De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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36

Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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42

fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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43

Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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51

indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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53

O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 16: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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cruz de Jesus eacute o tema central de sua pregaccedilatildeo Sobrino destaca pontos que

satildeo de suma importacircncia presentes em 1Cor 2Cor e Gl80

Em 1Cor destaca-se a criacutetica de Paulo aos cristatildeos que estavam se

esquivando da cruz pois pensavam que jaacute viviam como ressuscitados ldquoOs

judeus pedem sinais e os gregos procuram sabedoria enquanto noacutes pregamos

Cristo crucificado escacircndalo para judeus loucura para os pagatildeos mas poder e

sabedoria de Deus para os chamados quer judeus quer gregosrdquo(1Cor 122-24)

Segundo Sobrino eacute justamente o escacircndalo da cruz que a torna salviacutefica pois

constitui uma autecircntica revelaccedilatildeo de Deus isto eacute Deus se revela na cruz e

aceitaacute-lo desta forma eacute aceitaacute-lo do jeito que Ele eacute e do jeito que se revela e natildeo

como noacutes o queremos ou o imaginamos81 Em 2Cor eacute acentuado o valor salviacutefico

da cruz pois a fraqueza maacutexima se transformou em forccedila (134) a pobreza em

riqueza (89) o egoiacutesmo em descentramento (515) a divisatildeo em reconciliaccedilatildeo

(519) ou seja o negativo em positivo82 Por uacuteltimo na carta aos Gaacutelatas Paulo

explica como a cruz nos libertou da lei convertida em maldiccedilatildeo Para Paulo a lei

eacute boa pois vem de Deus Poreacutem a lei diz o que eacute para ser feito mas natildeo daacute a

forccedila para fazecirc-lo Assim se natildeo fosse por Cristo o ser humano ficaria

condenado ao fracasso Ao nascer sujeito agrave lei resgatou os que estavam sob a

lei (Gl 44-5) e esta libertaccedilatildeo aconteceu na cruz pois ldquoCristo resgatou-nos da

maldiccedilatildeo da lei fazendo-se maldiccedilatildeo por noacutesrdquo (Gl 313)83

Em siacutentese as principais interpretaccedilotildees da cruz nas primeiras

comunidades natildeo explicam o porquecirc da morte de cruz de Jesus como pudemos

confirmar anteriormente Os modelos soterioloacutegicos (sacrifiacutecio alianccedila expiaccedilatildeo

vicaacuteria do servo libertaccedilatildeo da lei) satildeo afirmaccedilotildees que a cruz de Jesus eacute

salviacutefica O NT natildeo acentua um dolorismo ou a salvaccedilatildeo como fruto do

sofrimento O que o NT destaca eacute a vida de Jesus como vida doada com amor

gratuito e isto revela o amor de Deus84

80

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 329-330 81

Cf Ibid p 330 82

Cf Ibid 83

Cf Ibid p 331 84

Para aprofundar a reflexatildeo sobre as interpretaccedilotildees da morte de Cristo nas primitivas comunidades cristatildes sugerimos BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo Petroacutepolis Vozes

1977 pp 89-107

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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47

Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 17: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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13 As principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica

Em Cristologia a partir da Ameacuterica Latina Sobrino afirma que ldquona histoacuteria

da Igreja e da teologia houve tambeacutem uma tendecircncia de passar por cima do

escacircndalo da cruzrdquo85 Aqui enumera apenas trecircs exemplos acerca das principais

interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica O primeiro exemplo eacute a dificuldade

de aceitar o abandono de Deus na cruz por alguns teoacutelogos desde a

antiguidade O segundo eacute a interpretaccedilatildeo claacutessica na Idade Meacutedia sobre o

sentido salviacutefico da morte de Jesus Por uacuteltimo uma concepccedilatildeo do culto como

sacrifiacutecio Nos exemplos citados estaacute intriacutenseca uma influecircncia da metafiacutesica

grega sobre o ser e a perfeiccedilatildeo de Deus que impossibilitam uma teologia da cruz

e que de alguma forma nos influenciam hoje tambeacutem86

Em relaccedilatildeo ao abandono de Deus na cruz de Jesus alguns Padres da

Igreja interpretaram o Salmo 222 na boca de Jesus como uma metaacutefora Jesus

fala em nome da humanidade pecadora e natildeo em seu proacuteprio nome portanto

natildeo eacute ele que se sente abandonado pelo Pai Para Oriacutegenes Cirilo de

Alexandria e Agostinho na pessoa de Jesus os pecadores satildeo abandonados

Essa interpretaccedilatildeo deve-se a maacute traduccedilatildeo do Salmo 222 que ao inveacutes de ldquoas

vozes do meu bradordquo se traduziu por ldquoas vozes de meus pecadosrdquo Jesus natildeo

poderia falar de si mesmo jaacute que natildeo era pecador assim interpretou-se que o

abandono de Deus natildeo o afetou mas aos pecadores em sua pessoa Segundo

Euseacutebio e Epifacircnio o Salmo 22 eacute um ldquodiaacutelogo entre a natureza humana e divina

de Jesus o homem Jesus se queixa ao Verbo de que tenha que abandonar a

natureza humana no sepulcrordquo Assim natildeo eacute o Pai que abandona propriamente

o Filho Tertuliano Ambroacutesio e Tomaacutes de Aquino ldquoadmitem que Jesus sofreu o

abandono de Deus em sua psicologia o que lhe causou anguacutestia mas natildeo

desesperordquo87

Na Idade Meacutedia Anselmo de Cantuaacuteria (+1109) em sua obra Cur Deus

homo (Por que Deus se fez homem) interpreta o sentido salviacutefico da morte de

Jesus com a sua teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria Tal teoria influenciou fortemente a

cristologia e a soteriologia ocidentais posteriores88

A teoria da satisfaccedilatildeo vicaacuteria eacute fruto da tentativa de diaacutelogo com o

judaiacutesmo e o islamismo que acreditam em Deus uno mas rejeitam uma

85

SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 202 86

Cf Ibid pp 202-206 87

Cf Ibid pp 202-203 88

Cf KESSLER H op cit p 325

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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43

Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 18: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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redenccedilatildeo por meio da encarnaccedilatildeo ou ateacute mesmo da morte do Filho de Deus

Anselmo expotildee apenas com a razatildeo atraveacutes de razotildees necessaacuterias porque Deus

tinha de fazer-se humano Deus se torna humano e por sua morte deu de novo a

vida ao mundo89

No acircmbito de categorias assumidas do direito germacircnico como ofensa satisfaccedilatildeo dignidade do ofendido dignidade daquele que ofende etc afirma Anselmo que a dignidade ofendida do Pai soacute pode ser aplacada pela satisfaccedilatildeo de algueacutem que possa reparar dignamente em uma palavra superar a distacircncia infinita entre Deus e a criatura Este soacute pode ser o Filho de Deus feito homem Pela cruz do Filho o Pai eacute reparado e perdoa os pecados dos homens

90

Eis sinteticamente o caminho trilhado por Anselmo na teoria da satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Deus eacute o Senhor de tudo o que foi criado O natildeo reconhecimento desse

senhorio distorce e perturba a ordem do mundo e assim o ser humano desonra a

Deus O pecado eacute o roubo em relaccedilatildeo agrave honra de Deus O roubo exige

reparaccedilatildeo ou atraveacutes de uma pena ou de uma reparaccedilatildeo assim o pecador deve

pagar voluntariamente o que deve e se natildeo pagar Deus obteacutem dele contra a

vontade do pecador Poreacutem isto eacute impossiacutevel por causa da destinaccedilatildeo do ser

humano agrave bem-aventuranccedila agrave qual o Criador se ateacutem Entatildeo para reparar

dignamente a ofensa a Deus eacute preciso que se pague a diacutevida com o mesmo

peso de Deus isto eacute com um valor infinito mas isto eacute impossiacutevel ao ser humano

que eacute finito Soacute Deus mesmo pode efetuar esta satisfaccedilatildeo assim eacute necessaacuterio

que Deus se faccedila ser humano Deus se encarna e sua entrega voluntaacuteria paga a

diacutevida dos pecadores91

A teoria de Anselmo reflete o sistema feudal de seu tempo Deus eacute

comparado ao senhor feudal portanto natildeo tem nada a ver com o Deus de Jesus

Cristo Deus assume os traccedilos de um juiz cruel sanguinaacuterio e vindicativo

Finalizando as principais interpretaccedilotildees da cruz destacadas por Sobrino

temos a concepccedilatildeo do culto cristatildeo como sacrifiacutecio O culto cristatildeo que

celebrava no iniacutecio o aacutegape celebraccedilatildeo em agradecimento da salvaccedilatildeo

lembranccedila de Jesus presente atraveacutes do seu Espiacuterito no meio da comunidade

vai se convertendo nos fins do primeiro seacuteculo em liturgia sacrifical Assim a cruz

vai sendo concebida a partir do conceito de sacrifiacutecio e o seu sentido histoacuterico

natildeo foi acentuado92

89

Cf KESSLER H op cit p 325 90

SOBRINO J op cit p 203 91

Cf KESSLER H op cit pp 325-326 92

Cf SOBRINO J op cit p204

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 19: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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De tudo o que se disse ateacute agora podemos deduzir a seguinte conclusatildeo a cruz de Jesus foi um escacircndalo para os primeiros cristatildeos e por isso consciente ou inconscientemente foram aparecendo modelos teoloacutegicos para desvirtuaacute-la O mecanismo fundamental para desvirtuaacute-la acreditamos consistiu em esquecer que quem morreu na cruz eacute o Filho de Deus e neste sentido em ignorar como a cruz afeta o proacuteprio Deus Se o Pai eacute realmente o uacuteltimo correlato da vida do cristatildeo na medida em que se prescinde do Pai ao refletir sobre a morte de Jesus nesta medida se ignora a relaccedilatildeo da cruz de Jesus com o uacuteltimo sentido da vida do cristatildeo mesmo quando verbal asceacutetica ou culticamente se continue recordando esta cruz

93

A teologia cristatilde foi ao longo dos seacuteculos formulada com o auxiacutelio do

pensamento grego especificamente da metafiacutesica A influecircncia deste

pensamento na reflexatildeo sobre a cruz de Jesus contribuiu para um desvio do seu

sentido original Na metafiacutesica o modo de ser de Deus eacute ser perfeito portanto

um Deus assim natildeo supotildee sofrimento como modo de ser de Deus O ideal de

perfeiccedilatildeo pressupotildee imutabilidade o perfeito eacute o eterno e o a-histoacuterico por isso

a divindade eacute perfeita Seria contraditoacuterio para o pensamento grego afirmar que

Deus sofre pois o sofrimento supotildee mutabilidade e passividade94

Diante das principais interpretaccedilotildees da cruz na tradiccedilatildeo teoloacutegica que

Sobrino destaca queremos aqui apresentar algumas visotildees que merecem ser

sublinhadas pela influecircncia que exerceram na reflexatildeo teoloacutegica

Tomaacutes de Aquino (+1274) em sua Suma Teoloacutegica sistematiza os

tratados teoloacutegicos Dentre eles a cristologia eacute dividida em duas partes Uma

delas refere-se agrave soteriologia Neste tratado ele retoma a ideia de satisfaccedilatildeo

como sinocircnimo de sacrifiacutecio e redenccedilatildeo utilizados pela Igreja antiga Segundo

Tomaacutes tudo o que Cristo vive e sofre em sua humanidade traz salvaccedilatildeo para

noacutes (Sth III q 50 a 6c) Poreacutem ele corrige alguns pontos da teoria de Anselmo

Deus poderia ter libertado o ser humano do pecado sem qualquer satisfaccedilatildeo por

pura misericoacuterdia (Sth III q46 a 2 ad 3) o caminho da redenccedilatildeo soacute pode ser

descoberto a posteriori Cristo assumiu a pena que nos caberia mas ela atinge

apenas o seu corpo (Sth III q48 a 8c) tanto na vida quanto na paixatildeo o

aspecto central da vida de Jesus eacute o amor ativo pessoal e a obediecircncia a Deus

o amor de Cristo eacute o aspecto que lhe daacute valor satisfatoacuterio e causa efeito salviacutefico

a satisfaccedilatildeo ocorre pelo pecado efetua seu perdatildeo e liberta da sujeiccedilatildeo agrave

pena95

A insatisfaccedilatildeo com as formulaccedilotildees soterioloacutegicas tradicionais e doutrinais

da Escolaacutestica fez nascer na Idade Meacutedia uma miacutestica onde a relaccedilatildeo com

93

SOBRINO J op cit p 205 94

Cf ibid p 206 95

Cf KESSLER H op cit pp 329-330

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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37

reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 20: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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Jesus tornou-se cada vez mais pessoal A figura de Cristo compassivo que sofre

junto com a pessoa foi centralizada na miacutestica e na devoccedilatildeo Nesse contexto

assume-se a cruz de Cristo com radicalidade como Francisco de Assis por

exemplo e busca-se viver como o Cristo assumindo as cruzes do dia a dia na

proacutepria vida Assim surgem livros e meditaccedilotildees sobre a vida de Cristo e os mais

difundidos foram Imitaccedilatildeo de Cristo de Tomaacutes de Kempis (lido ateacute hoje) e Vita

Christi de Ludolfo da Saxocircnia96

A salvaccedilatildeo continuou ponto de interrogaccedilatildeo para muitos A Reforma

protestante do seacuteculo XVI procurou responder aos anseios daqueles que

buscavam compreender como poderiam se salvar diante de tanto pecado

existente no mundo e com a imagem de um Deus tatildeo distante que se criou

Lutero elabora a sua teologia da cruz indo diretamente aos textos biacuteblicos e sem

o uso da filosofia grega como mediaccedilatildeo A cruz eacute o centro de sua cristologia

Diante de um mundo cheio de sofrimento humano vivenciado pela

coletividade a crenccedila em um Deus justo bom e poderoso soacute poderia ser

desconsiderada O sofrimento humano questiona a onipotecircncia de Deus97

Devido a todo sofrimento trazido pela ganacircncia pelas guerras e por tantas

outras formas causadas pelos proacuteprios seres humanos nos perguntamos ldquopor

que Deus permite tudo issordquo ou ainda ldquopor que ele natildeo interveacutem na histoacuteriardquo

A contradiccedilatildeo da imagem desse Deus todo-poderoso que foi difundida na

tradiccedilatildeo cristatilde e na pregaccedilatildeo da Igreja em relaccedilatildeo aos sofrimentos do mundo

contribuiu na difusatildeo do anuacutencio da morte de Deus98 A verdade deste anuacutencio eacute

que Deus aceita ser ignorado rechaccedilado negado blasfemado e isto pode ser

confirmado nos relatos evangeacutelicos onde Jesus se coloca a serviccedilo dos

excluiacutedos daquela sociedade como os enfermos os pobres as mulheres as

crianccedilas etc para carregar nossas dores Aleacutem disso ressalta-se todo o

caminho de humilhaccedilatildeo que passou ateacute a crucificaccedilatildeo99

Deus foi mantido pela religiatildeo de certa forma agrave distacircncia de seu Filho

portanto tornava-se difiacutecil mostrar Deus se compadecendo do sofrimento

humano Alguns teoacutelogos modernos tentaram pensar a feacute agrave luz da cruz Dentre

eles destaca-se no campo protestante Juumlrgen Moltmann e no campo catoacutelico

Hans Urs Von Balthazar Interessa-nos aqui ressaltar os pontos principais da

96

Cf KESSLER H op cit p 331 97

O que geralmente compreendemos por onipotecircncia como atributo de Deus natildeo condiz com aquilo que de fato eacute No segundo capiacutetulo de nosso trabalho procuraremos explicar um pouco mais tal temaacutetica 98

A morte de Deus foi um anuacutencio do movimento filosoacutefico no seacuteculo XIX diante de tanto

sofrimento Para uma maior compreensatildeo do surgimento desse movimento sugerimos MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios Salamanca Ed Siacutegueme 2007 99

Cf MOINGT J Dios que viene al hombre Del duelo al desvelamiento de Dios p 458

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37

reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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Page 21: A morte de cruz de Jesus é um fato. O significado da cruz

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reflexatildeo de Moltmann100 visto que Jon Sobrino bebe desta fonte101 e tenta

traduzi-la para a Ameacuterica Latina102

A experiecircncia dos campos de concentraccedilatildeo especificamente o de

Auschwitz marcou profundamente a vida de Moltmann A pergunta sobre a

presenccedila de Deus em meio a tanto sofrimento encontra uma resposta na

presenccedila de Deus no sofrimento do proacuteprio Filho

Sobrino destaca que em Moltmann podem-se distinguir duas etapas de

sua reflexatildeo teoloacutegica a da ldquoteologia da esperanccedilardquo e a do ldquoDeus crucificadordquo A

segunda etapa estaacute centrada na cruz de Jesus103 Em trecircs obras principais

Moltmann desenvolve sua teologia da cruz O Deus crucificado104 A Trindade e

o reino de Deus105 e O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees

messiacircnicas106

Em 1972 em O Deus crucificado tentou responder o que significa a morte

de Cristo para o proacuteprio Deus como ele mesmo afirma

Naquele livro estive interessado na pergunta por Deus que significa a morte de Cristo para o proacuteprio Deus Tentei superar o antigo axioma metafiacutesico da apatia na doutrina de Deus para poder falar a respeito do essencial ldquosofrimento de Deusrdquo natildeo apenas em forma metafoacuterica mas diretamente Enxerguei no grito de total abandono com o qual Jesus morre na cruz o criteacuterio para toda a teologia que pretende ser cristatilde A teologia da cruz entrou para mim no horizonte da questatildeo da

teodiceia e refutou o teiacutesmo abstrato como tambeacutem o ateiacutesmo abstrato 107

100

Moltmann nasceu em 1926 em Hamburgo Alemanha Lutou na II Guerra Mundial foi feito prisioneiro pelos ingleses e foi levado para um campo de concentraccedilatildeo na Inglaterra De 1945-1948 foi prisioneiro da Beacutelgica Escoacutecia e Inglaterra Esses anos de prisatildeo levaram-no a refletir sobre o sentido da vocaccedilatildeo cristatilde Em 1943 Hamburgo foi destruiacuteda pela Operaccedilatildeo Gomorra da Forccedila Aeacuterea Britacircnica e aproximadamente quarenta mil pessoas morreram Assim com 17 anos viu morrer seus amigos e se perguntou ldquoMeu Deus onde estaacutes Por que estou vivo e natildeo morto como tantos outrosrdquo Na prisatildeo ele refletiu sobre esses questionamentos buscando em textos biacuteblicos uma resposta e encontrou no grito de Jesus o grito de abandono de Deus por Deus Em 1948 voltou agrave Alemanha e foi estudar teologia A partir de 1952 atuou como pastor da Igreja Luterana Desde 1967 foi professor de teologia sistemaacutetica na Universidade de Tubinga Cf ALMEIDA E F O drama pascal na cristologia de J Moltmann e as representaccedilotildees contemporacircneas do sofrimento e da morte Tese de doutorado Puc-rio 2002 pp 2-5 Tambeacutem em Cf BINGEMER MCL O Deus desarmado A teologia da cruz de J Moltmann e seu impacto na teologia catoacutelica Estudos de Religiatildeo v 23 n 36 230-248 janjun 2009 101

Jon Sobrino defendeu sua tese doutoral em 1975 com o tiacutetulo ldquoSignificado de la cruz y resurreccioacuten de Jesuacutes en las cristologias sistemaacuteticas de W Pannenberg y J Moltmannrdquo 102

Em O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados pp14-28 como vimos na

introduccedilatildeo de nossa pesquisa Sobrino relata sua volta a El Salvador depois de seus estudos Ele sente a necessidade de encarna-se na nova realidade ldquoPara dizecirc-Io em palavras concretas natildeo se trata de Ranher ou Moltmann a quem estudei a fundo jaacute natildeo terem nada a dizer mas compreendi que era uma insensatez ter como ideal rahnerizar ou moltmanizar os salvadorenhos Se eu pudesse ajudar algo em meus estudos a tarefa teria que ser a inversa salvadorenhizar Ranher e Moltmann se fosse possiacutevelrdquo 103

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p51 104

Tiacutetulo original Der gekreuzigte Gott O tiacutetulo em espanhol eacute El Dios crucificado 105

Tiacutetulo original Trinitaumlt und Reich Gottes 106

Tiacutetulo original Der Weg Jesu Christi Christlogie in messianischen Dimensionen 107

MOLTMANN J O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas p 210

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No livro A Trindade e o reino de Deus de 1980 desenvolve uma doutrina

da Trindade que tem sua origem no essencial amor de Deus No terceiro capiacutetulo

deste livro ele integra na cristologia trinitaacuteria a missatildeo e o futuro do Filho108

Em O caminho de Jesus Cristo cristologia em dimensotildees messiacircnicas de

1989 adota como resumo da teologia da cruz a expressatildeo dos ldquosofrimentos de

Cristordquo que natildeo se limitam a Jesus mas tecircm dimensotildees universais Assim

elabora uma cristologia que seja relevante aos sofrimentos de nosso tempo109

O Deus crucificado eacute a obra que mais influenciou na reflexatildeo de Sobrino e

eacute por ele muito citada em sua teologia da cruz Sobrino confirma que muitas

reflexotildees do seu trabalho foram motivadas pelas sugestivas foacutermulas da obra de

Moltmann110

Jon Sobrino seguiraacute a linha de Moltmann da theologia crucis como centro do misteacuterio de Jesus Cristo mas aplicando-a diretamente agrave questatildeo da pobreza e da luta pela justiccedila Moltmann estaacute muito proacuteximo das teologias do Terceiro Mundo e eacute faacutecil perceber o influxo muacutetuo dele sobre elas e delas sobre ele Do ldquoDeus crucificadordquo ao ldquopovo crucificadordquo da Teologia da Libertaccedilatildeo o caminho eacute curto Se para Moltmann Deus estaacute no patiacutebulo com o jovem judeu do campo de concentraccedilatildeo e extensivamente com todos os crucificados a Teologia latino-americana de Ellacuriacutea e Sobrino por sua vez vecirc o povo crucificado com Deus O proacuteprio Moltmann vecirc nesta passagem um desenvolvimento legiacutetimo de sua Cristologia

111

Para Moltmann verdadeira teologia eacute aquela que se faz agrave sombra do

Crucificado e a partir da cruz112 A cruz do ressuscitado eacute o conceito-chave que

orienta sua reflexatildeo teoloacutegica ldquoOu o Jesus abandonado de Deus eacute o final de

toda teologia ou eacute o comeccedilo de uma teologia e existecircncia especificamente

cristatildes e portanto criacuteticas e libertadorasrdquo113

Em O Deus crucificado Moltmann afirma que Deus participa da histoacuteria

pois estaacute presente no sofrimento de Cristo Ele remeteu Deus ao terreno da

histoacuteria onde no sofrimento de Cristo tornava-se possiacutevel descobrir ldquoa

humanidade de Deusrdquo 114

ldquoA religiatildeo cristatilde natildeo pode anunciar plenamente a verdade do Deus de Jesus Cristo a natildeo ser anunciando tambeacutem sua humanidade e natildeo pode fazecirc-lo de maneira crediacutevel senatildeo trabalhando na libertaccedilatildeo e na humanizaccedilatildeo da histoacuteriardquo

115

108

Cf Ibid p 210 109

Cf Ibid p 210 110

Cf SOBRINO J Cristologia a partir da Ameacuterica Latina nota 1 p191 111

BINGEMER MCL op cit pp 244-245 112

Cf BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo pp 53-54 113

Cf SOBRINO J op cit p54 (Extraiacutedo de Moltmann em El Dios crucificado) 114

Cf MOINGT J O homem que vinha de Deus p 512 115

Cf Ibid p 516

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No sexto capiacutetulo de O Deus crucificado encontramos o eixo desta obra

onde Moltmann aprofunda quem eacute Deus tendo como ponto de partida a morte

de Jesus pois para ele existe na cruz um acontecimento de Deus onde a

Trindade se revela116 Moltmann demonstra como Deus eacute diferente do Deus

apresentado pela metafiacutesica e esta por sua vez o quanto ocultou a essecircncia de

Deus Para a metafiacutesica Deus eacute apaacutetico A apatia de Deus eacute o elemento no qual

eacute percebido como imutaacutevel sem afeto sem amor117 Poreacutem a revelaccedilatildeo biacuteblica

apresenta um Deus que vem ao encontro do ser humano isto eacute um Deus que

se envolve na histoacuteria concreta a ponto de sentir os sofrimentos do ser

humano118 No crucificado Deus alcanccedila as dores do ser humano portanto isto

eacute o maacuteximo de sua revelaccedilatildeo119 ldquoDeus natildeo soacute participa na nossa dor mas

converte nossa dor em sua proacutepria dor e introduz nossa morte em sua proacutepria

vidardquo120

A reflexatildeo de Moltmann encontrou ressonacircncia no contexto latino-

americano de sofrimento A interpretaccedilatildeo da cruz que nasce na Ameacuterica Latina

com a teologia da libertaccedilatildeo tambeacutem apresenta a participaccedilatildeo de Deus no

sofrimento de Cristo121 Para falar de um Deus que padece com o sofrimento

humano muitos teoacutelogos da libertaccedilatildeo utilizaram uma linguagem que parte da

realidade que experienciam Para Leonardo Boff

ldquose Deus se cala diante da dor eacute porque Ele mesmo sofre assume a causa dos martirizados e sofredores (cf Mt 2531) Ela natildeo lhe eacute alheia Mas se a assumiu natildeo foi para eternizaacute-la e tirar-nos a esperanccedila Pelo contraacuterio porque quer dar cabo a todas as cruzes da histoacuteriardquo

122

Na Ameacuterica Latina muitas satildeo as viacutetimas que sofrem a miseacuteria e a

opressatildeo A pobreza tem sido a causa de grandes sofrimentos de inuacutemeras

pessoas que vivem situaccedilotildees desumanas Nesse contexto a Teologia da

libertaccedilatildeo apresenta a Deus como libertador de todos os crucificados da histoacuteria

por sua participaccedilatildeo nos sofrimentos de Jesus exposto agrave conspiraccedilatildeo dos

poderes poliacuteticos e religiosos

Milhotildees e milhotildees das classes subjugadas continuam sendo crucificadas com salaacuterios de fome em condiccedilotildees de trabalho que lhes encurtam a vida e em

116

Cf MOLTMANN J El dios crucificado p 288 117

Cf Ibid p 384 118

Cf Ibid p 390 119

Cf Ibid p 394 120

Id El dios crucificado Selecciones de teologia Disponiacutevel em lthttpcristianismointeligentefileswordpresscom200904045_moltmann1pdfgt Acesso em 15 abril 2010 121

Cf MOINGT J op cit p 512 122

BOFF L Paixatildeo de Cristo paixatildeo do mundo p 141

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situaccedilotildees higiecircnicas que produzem a morte de cerca de quarenta milhotildees de pessoas anualmente Outras pessoas penam sob a cruz da discriminaccedilatildeo pelo fato de serem mulheres doentes pobres negros homossexuais portadores de Aids e devido a outras formas de exclusatildeo e morte social

123

Como jaacute afirmamos anteriormente Sobrino busca iluminar a realidade

das cruzes que o povo latino-americano vivencia a cada dia ressaltando os

aspectos histoacutericos da cruz de Jesus Ao realizar este objetivo garante que o

sentido original da cruz de Jesus e seu valor salviacutefico natildeo sejam desvirtuados e

ao mesmo tempo aproxima o Deus de Jesus aos sofrimentos presentes em

nosso contexto

Jaacute demonstramos num primeiro momento a visatildeo de Sobrino sobre a

crucificaccedilatildeo de Jesus como uma condenaccedilatildeo sumaacuteria Em seguida vimos como

analisa as formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT Ele afirma respaldado pela

exegese atual124 que algumas formulaccedilotildees sobre o valor salviacutefico da morte de

Jesus satildeo poacutes-pascais embora estejam em sintonia com toda a vida de Jesus e

com a teologia do Antigo Testamento Com isto apresenta que tais formulaccedilotildees

podem apresentar perigos como

primeiro pensar que esses modelos (soterioloacutegicos) realmente ldquoexplicamrdquo a salvaccedilatildeo que a cruz enquanto tal traz sendo que satildeo soacute uma forma de dizer racionalmente que na cruz se manifestou o amor salviacutefico de Deus O segundo seria novamente tirar as arestas do escacircndalo da cruz em si mesma natildeo haveria nada de escandaloso no fato de Deus deixar o Filho morrer pois soacute dessa maneira poderia conseguir o bem maior da salvaccedilatildeo

125

Apesar dessas consideraccedilotildees de Sobrino a temaacutetica em questatildeo

encontra-se na Notificaccedilatildeo da Congregaccedilatildeo para a Doutrina da feacute (CDF) de

2006 (sendo divulgada em 2007) agrave duas obras principais de Jon Sobrino

Jesucristo liberador Lectura histoacuterico-teoloacutegica de Jesuacutes de Nazaret e La fe en

Jesucristo Ensayo desde las viacutectimas A Notificaccedilatildeo sublinha proposiccedilotildees que

natildeo satildeo conformes agrave doutrina da Igreja sendo elas os pressupostos

metodoloacutegicos enunciados pelo Autor onde ele funda a sua reflexatildeo teoloacutegica a

divindade de Jesus Cristo a encarnaccedilatildeo do Filho de Deus a relaccedilatildeo entre Jesus

123

BOFF L A cruz nossa de cada dia p 28 124

Sobrino sublinha em Jesus o libertador nota 1 p 320 que os dados do NT que usa no capiacutetulo VIII sobre a morte de Jesus estatildeo baseados em L Boff E Schillebeeckx XL Dufour e JL Gonzaacuteles Faus 125

SOBRINO J Jesus o libertador p 325

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Cristo e o Reino de Deus a autoconsciecircncia de Jesus Cristo o valor salviacutefico da

sua morte126

Segundo a Notificaccedilatildeo Jesus atribui agrave sua morte um valor salviacutefico pois

tem um conhecimento iacutentimo e imediato de Deus e uma visatildeo que vai aleacutem da

feacute127 Assim a Notificaccedilatildeo declara que as afirmaccedilotildees de Sobrino em relaccedilatildeo agraves

formulaccedilotildees soterioloacutegicas do NT parecem limitadas por substituiacuterem os dados

neotestamentaacuterios por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica128

Alguns teoacutelogos escreveram vaacuterios textos numa tentativa de diaacutelogo com

a Notificaccedilatildeo para justificar as formulaccedilotildees de Sobrino O teoacutelogo jesuiacuteta Felice

Scalia apresenta algumas deficiecircncias ou lacunas nas proposiccedilotildees da

Notificaccedilatildeo Quanto ao valor salviacutefico da morte de Jesus destaca trecircs pontos129

a) As afirmaccedilotildees de Sobrino foram tiradas do contexto ou seja ldquoalgumas

afirmaccedilotildeesrdquo avulsas do contexto induzem a pensar alguma coisa ou se todas as

afirmaccedilotildees conduzem a isto pois natildeo se levou em consideraccedilatildeo o restante da

reflexatildeo pois Sobrino acrescenta agrave reflexatildeo a seguinte formulaccedilatildeo

Jaacute dissemos antes que esta interpretaccedilatildeo eacute poacutes-pascal mas seu sentido salviacutefico-positivo global tem um importante nuacutecleo histoacuterico que indica o que Jesus pensou sobre sua proacutepria morte O decisivo estaacute no fato de Jesus afirmar que sua vida eacute ldquoparardquordquobdquoem favor derdquo (hyper) outros e que isso produz neles um

126

Em relaccedilatildeo agrave visatildeo de Sobrino a atribuiccedilatildeo de Jesus ao valor salviacutefico de sua morte diz a CDF ldquoAlgumas afirmaccedilotildees do P Sobrino levam a pensar que segundo ele Jesus natildeo atribuiu agrave sua morte um valor salviacutefico bdquoDigamos desde el principio que el Jesuacutes histoacuterico no interpretoacute su muerte de manera salviacutefica seguacuten los modelos soteriloacutegicos que despueacutes elaboroacute el Nuevo Testamento sacrificio expiatorio satisfaccioacuten vicaria [hellip] En otras palabras no hay datos para pensar que Jesuacutes otorgara un sentido absoluto trascendente a su propia muerte como hizo despueacutes el Nuevo Testamento‟ (Jesucristo 261) ‟En los textos evangeacutelicos no se puede encontrar inequiacutevocamente el significado que Jesuacutes otorgoacute a su propia muerte‟ (ibidem) bdquohellip puede decirse que Jesuacutes va a la muerte con confianza y la ve como uacuteltimo acto de servicio maacutes bien a la manera de ejemplo eficaz y motivante para otros que a la manera de mecanismo de salvacioacuten para otros Ser fiel hasta el final eso es ser humano‟ (Jesucristo 263) CDF Notificaccedilatildeo sobre as obras de Jon Sobrino Disponiacutevel em lthttpwwwvaticanvaroman_curiacongregationscfaithdocumentsrc_con_cfaith_ doc_20061126_notification-sobrino_pohtmlgt Acesso em 01 maio 2009 127

Ibid 128

Ibid Assim diz a Notificaccedilatildeo ldquoNum primeiro momento a afirmaccedilatildeo do Autor parece limitada no sentido que Jesus natildeo teria atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua morte com as categorias que o Novo Testamento viria a usar depois A seguir poreacutem se afirma que natildeo haacute dados para pensar que Jesus deu um sentido absoluto transcendente agrave sua proacutepria morte Diz-se apenas que vai para a morte com confianccedila e lhe atribui um valor de exemplo motivante para outros Assim sendo as numerosas passagens do Novo Testamento que falam do valor salviacutefico da morte de Cristo [Cf p ex Rm 325 2 Cor 521 1 Jo 22 etc] ficam destituiacutedas de toda a ligaccedilatildeo com a consciecircncia de Cristo durante a sua vida mortal Natildeo se tomam devidamente em consideraccedilatildeo as passagens evangeacutelicas onde Jesus atribui agrave sua morte um significado em ordem agrave salvaccedilatildeo de modo especial Mc 1045 (Mt 2028) bdquoo Filho do homem natildeo veio para ser servido mas para servir e a dar a vida como resgate de muitos‟ e as palavras da instituiccedilatildeo da Eucaristia bdquoEste eacute o meu sangue da alianccedila que seraacute derramado por muitos‟ [Mc 1424 cf Mt 2628 Lc 2220] Mais uma vez aparece aqui a dificuldade atraacutes mencionada do uso que o P Sobrino faz do Novo Testamento Os dados neo-testamentaacuterios satildeo substituiacutedos por uma hipoteacutetica reconstruccedilatildeo histoacuterica que eacute erradardquo 129

Cf SCALIA F La teologia scomoda Il ldquocaso Sobrinordquo pp 71-73

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fruto positivo Eacute a compreensatildeo da vida de Jesus como serviccedilo e no fim como serviccedilo sacrifical

130

b) Haacute uma diferenccedila em afirmar que Jesus natildeo atribui nenhum valor salviacutefico a

sua morte e o que afirma Sobrino o valor salviacutefico daquela morte segundo os

modelos do Novo Testamento Sobrino diz o que afirma a ciecircncia biacuteblica quanto

ao texto do NT

c) O que se discute no paraacutegrafo VI natildeo pertence agrave integridade da feacute mas a

exegese biacuteblica Sobrino se limita a exprimir o que diz a maioria dos exegetas

hoje

Segundo Scalia haacute mais de cinquenta anos a exegese explicou como

nascem as categorias neotestamentaacuterias redenccedilatildeo expiaccedilatildeo satisfaccedilatildeo vicaacuteria

etc no iniacutecio da pregaccedilatildeo do evangelho131 Aleacutem disso Sobrino cita

Schillebeeckx e Ranher ao afirmar que Jesus natildeo interpretou sua morte de

maneira salviacutefica segundo os modelos soterioloacutegicos elaborados posteriormente

pelo NT132

A reflexatildeo de Sobrino estaacute baseada em estudos exegeacuteticos recentes e

confirmada pela cristologia de vaacuterios autores Como estamos apresentando as

principais interpretaccedilotildees da cruz na reflexatildeo teoloacutegica queremos sinteticamente

apresentar algumas reflexotildees que confirmam a de Sobrino

V Balthasar afirma que

Jesus eacute um homem autecircntico e a nobreza inalienaacutevel do homem consiste num poder que inclui o dever de projetar livremente o plano da sua existecircncia no futuro que ignora Se este homem eacute crente o futuro no qual se lanccedila e se projeta eacute Deus na sua imensidatildeo e liberdade Privar Jesus desta possibilidade e fazecirc-lo avanccedilar na direccedilatildeo de uma meta conhecida antecipadamente e distante soacute no tempo seria despojaacute-lo da sua dignidade de homem Por isto deve ser autecircntico o texto de Marcos ldquoningueacutem conhece a hora nem mesmo o Filhordquo

133

Para Moingt

Jesus lecirc a histoacuteria de Israel como o haviam feito muitos profetas antes dele eacute a histoacuteria sempre recomeccedilada de um povo ingrato e indoacutecil de maacute feacute que natildeo quer devolver a Deus o que lhe deve Integra nele sua visatildeo da histoacuteria dos profetas um apoacutes o outro todos foram rejeitados e perseguidos sem que jamais o povo se arrependesse dos maus-tratos infligidos aos enviados de Deus Portanto eacute uma lei geral da histoacuteria a de que os homens querem se livrar dos enviados de Deus Jesus contempla nessa lei a sorte que o espera

134

130

SOBRINO J Jesus o libertador p 298 131

Cf SCALIA F op cit p 72 132

Cf SOBRINO J op cit notas 10-11 p 289 133

SCALIA F op cit p 68 134

MOINGT J op cit p 350

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Segundo Schillebeeckx

ldquodas palavras e accedilotildees de Jesus podemos deduzir a priori que ele tatildeo logo a morte apareceu na sua perspectiva natildeo apenas refletiu sobre tal possibilidade mas a deve ter vivido existencialmente as circunstacircncias o forccedilaram a dar agrave morte que se aproximava um lugar na sua radical confianccedila em Deusrdquo

135

Segundo Schuumlrmann encontramos no Novo Testamento diferentes

formulaccedilotildees sobre a salvaccedilatildeo e uma delas refere-se agrave morte de Jesus como

morte expiatoacuteria e vicaacuteria pois ele teria morrido na cruz por obediecircncia ao Pai e

assim se sacrificara por mim e por toda a humanidade Tais formulaccedilotildees satildeo

poacutes-pascais pois a exegese atual afirma que Jesus natildeo apresentou

publicamente a doutrina da redenccedilatildeo antes da paacutescoa136 Algumas afirmaccedilotildees

do NT sobre a compreensatildeo de Jesus acerca de sua morte tecircm-se respaldado

no Antigo Testamento e no judaiacutesmo palestinense sobre as ideias do poder

expiatoacuterio do sacrifiacutecio e do poder expiatoacuterio do sofrimento Poreacutem a moderna

investigaccedilatildeo sente dificuldades de atribuir uma influecircncia desse pensamento em

Jesus

Schuumlrmann parafraseando Loisy (que afirma que Jesus anunciou o

Reino e veio a Igreja) levanta uma possibilidade sobre a as formulaccedilotildees

soterioloacutegicas do Novo Testamento Jesus proclamou a mensagem da basileia

como o libertador caminho da salvaccedilatildeo e a Igreja ndash desde Paulo e Marcos e ateacute

mesmo antes deles ndash proclamou a feacute no ato expiatoacuterio e vicaacuterio da morte

sacrificial de Jesus como caminho de salvaccedilatildeo137

Parecem dois caminhos opostos a salvaccedilatildeo pela chegada do reino de

Deus como supremo ato de Deus e a salvaccedilatildeo em virtude da voluntaacuteria morte de

Jesus como maacutertir Segundo Schuumlrmann o que a Igreja depois anuncia estaacute em

continuidade com o anuncio preacute-pascal mesmo que haja uma descontinuidade

do anuacutencio da basileia feito por Jesus

Schuumlrmann afirma que a morte de Jesus foi consequecircncia de sua ldquoproacute-

existecircnciardquo Com este termo cunhado e utilizado pela primeira vez por ele em

1972138 demonstra que

a significaccedilatildeo salviacutefica da morte de Jesus natildeo pertence soacute a proclamaccedilatildeo de Cristo efetuada depois da Paacutescoa Essa significaccedilatildeo teve jaacute sua bdquopreestrutura‟ na conduta e na proclamaccedilatildeo de Jesus a conduta proacute-existente de Jesus eacute apesar de toda a descontinuidade o continuum que vai desde o Jesus proclamador ao Cristo proclamado e eacute ademais a conduta pela qual Jesus eacute ndash como Cristo ndash a

135

SCHILLEBEECKX op cit p 297 136

Cf SCHUumlRMANN H El destino de Jesuacutes su vida y su morte pp131-132 137

Cf Ibid p133 138

Cf KESSLER H op cit p 267

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paraacutebola e o representante da proacute-existecircncia de Deus e de seu reino (no caso de que a proacute-existencia de Jesus tenha seu fundamento preexistente)

139

Muitos teoacutelogos inclusive Sobrino se apropriaram deste termo em suas

reflexotildees cristoloacutegicas portanto faz-se necessaacuterio ressaltar como Schuumlrmann

desenvolve sua reflexatildeo sobre a morte de Jesus partindo do termo proacute-existente

Segundo Schuumlrmann a proacute-existecircncia de Jesus estaacute baseada em sua

relaccedilatildeo com Deus isto eacute sua vida para os outros flui de sua vida com Deus

Repleto do Espiacuterito de Deus Jesus vive inteiramente a partir de Deus portanto

daacute espaccedilo a Deus em si e em toda a sua vida por isso deixa acontecer e realiza

o amor de Deus que jamais se esgota140 Jesus anuncia o reino (basileacuteia) de

Deus e com este mesmo Deus tem uma maneira particular de se relacionar a

ponto de chamaacute-lo de abba (Pai) A basileia do abba foi o destino de Jesus e

nesse sentido o tema central da sua pregaccedilatildeo A compreensatildeo que Jesus tinha

acerca da basileia mostra aspectos que admitem a ideia de um possiacutevel destino

de morte (Cf Mc 1425 ldquoEm verdade vos digo jaacute natildeo beberei do fruto da videira

ateacute aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deusrdquo)

A maneira de falar plasmada de novo de maneira originaliacutessima de Jesus acerca da chegada da basileia estava aberta para o destino de morte de Jesus Em certo modo o termo-siacutembolo acerca da ldquobasileia de Deusrdquo implicava jaacute como possibilidade este destino E assim depois da paacutescoa o kerigma da ressurreiccedilatildeo do crucificado pode acolhecirc-lo e pode expressar desta forma como proclamaccedilatildeo da basileia o conjunto do kerigma cristatildeo qualificando-o assim como ldquoo evangelhordquo e como symbolum

141

A visatildeo que Jesus tinha do mundo era a da apocaliacuteptica do seu tempo

Segundo Schuumlrmann a esse contexto estaacute tambeacutem associada agrave noccedilatildeo de

basileia ou seja esperava-se a instauraccedilatildeo do reino Admite-se que a noccedilatildeo de

basileia se encontra desde o AT poreacutem natildeo se encontra em parte alguma uma

proclamaccedilatildeo como a efetuada por Jesus142 Jesus une a noccedilatildeo de reino com o

abba tal qual na oraccedilatildeo do Pai nosso (Lc 1112 Venha o teu reino) Abba era

uma maneira originaliacutessima de Jesus se dirigir ao Pai Deste modo a

compreensatildeo que Jesus tinha da basileia estava plasmada por sua

originaliacutessima experiecircncia do abba e vice-versa143

A basileia que chegava se converteu para o orante Jesus um destino foi para ele desde sempre um destino presente mas que historicamente lhe foi chegando

139

SCHUumlRMANN H op cit p 204 140

KESSLER H op cit p363 141

SCHUumlRMANN H op cit p 22 142

Cf Ibid p 151 143

Cf Ibid p 34

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de maneira cada vez mais clara Aiacute poderia estar a verdadeira razatildeo pela qual Jesus se dirigira a Deus com a excepcional invocaccedilatildeo de abba mas esta invocaccedilatildeo fora por sua vez em sentido inverso a razatildeo profunda da originaliacutessima compreensatildeo que Jesus tinha da basileia

144

O anuacutencio do reino feito por Jesus devia ir se tornando compreensiacutevel

para o povo Poreacutem tal anuacutencio estava em sintonia com o ldquofracassordquo de Joatildeo

Batista em sua missatildeo De certa forma pode-se falar de ldquofracassordquo histoacuterico de

Jesus na proclamaccedilatildeo da basileia pois ldquoa compreensatildeo de reino de Jesus eacute

concebiacutevel paradoxalmente o eterno reinado e reino de Deus e seu poder se

esclarecem parabolicamente na atividade de Jesus como um risco um infortuacutenio

e uma humilhaccedilatildeordquo145

A basileia estaacute intrinsecamente ligada a Jesus e nele centrada de tal

forma que plasmou a fundamental atitude ldquoproacute-existenterdquo de Jesus enviando-lhe

em missatildeo

O anuacutencio de Jesus sobre o reino jaacute presente se chocava com todas as

frentes do judaiacutesmo pois a expectativa deste reino era diferente esperavam

uma restauraccedilatildeo poliacutetica Aleacutem disso o anuacutencio do reino desencadeou um

ldquomovimentordquo isto eacute um grupo de disciacutepulos que se reuniam em torno dele e

estes seriam mais tarde proclamadores desse reino jaacute presente Dentre esses

havia membros de grupos extremistas como os zelotas o que poderia provocar

suspeitas de uma revolta popular

Diante de toda essa realidade Jesus ao anunciar a basileia contava

tambeacutem que sua morte era uma possibilidade como destino pois havia uma

ldquodinamiterdquo nas matildeos Ao proclamar a basileia como realidade presente Jesus

pensou seguramente desde o princiacutepio num possiacutevel fracasso da proclamaccedilatildeo

como destino intrinsecamente necessaacuterio da basileia mesma e assim como seu

proacuteprio infortuacutenio possiacutevel

Jesus teve que ter bem presente a possibilidade de sofrer uma morte

violenta Suas experiecircncias iam demonstrando que quanto mais anunciava o

reino mais essa possibilidade ia chegando Jesus era realista via o futuro que

se aproximava diante de si se assim natildeo fosse seria um ingecircnuo Desde o

princiacutepio de sua atividade via a possibilidade de morrer como um maacutertir como jaacute

havia experimentado o martiacuterio do Batista (Mc 617-19)

ldquoJesus natildeo foi a Jerusaleacutem com o firme propoacutesito de coroar a sua vida mediante uma morte salviacutefica e de redimir morrendo o mundo Sua expectativa era a chegada de Deus o reinado de Deus e o reino de Deus a salvaccedilatildeo definitiva

144

Ibid p 29 145

Ibid p 118

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46

Proclamar e apresentar isso era sua tarefa a que permaneceu fiel ateacute a uacuteltima horardquo

146

Mesmo com a expectativa da morte Jesus se pega agrave validade de sua

mensagem e expressa a certeza de que sua morte natildeo poderia deter a vinda do

reino de Deus Jesus ligou seu destino de morte agrave sua missatildeo e o assumiu de

modo ativo na mesma atitude de serviccedilo agrave vinda de Deus que caracteriza sua

atuaccedilatildeo anterior147

O serviccedilo da vida terrena de Jesus se converteu no serviccedilo da morte O

que caracteriza o serviccedilo de Jesus eacute a palavra ldquoporrdquo (em favor de que em grego

eacute ldquohyperrdquo e em latim ldquoprordquo) Assim enfatiza Schuumlrmann Jesus vivia proacute-

existencialmente como homem para os outros A vida de Jesus foi um serviccedilo

ateacute o fim Nos Evangelhos essa conduta de Jesus estaacute bem descrita Jesus

ensinou que quem quiser ser o primeiro que seja o uacuteltimo lavou os peacutes dos

disciacutepulos acolheu os excluiacutedos da sociedade Jesus teria concebido a proacutepria

morte como serviccedilo agrave vinda do Reino de Deus O serviccedilo estaacute presente em toda

a vida de Jesus

Sobrino afirma que o sentido que Jesus deu a sua morte natildeo eacute

absolutamente verossiacutemil que o buscasse nos modelos teoacutericos do NT expiaccedilatildeo

vicaacuteria sacrifiacutecio expiatoacuterio etc Referindo-se agrave tese de Schuumlrmann levanta o

questionamento se Jesus pensou que com sua morte aceleraria a vinda do reino

de Deus isto eacute que sua morte fosse serviccedilo expliacutecito ao advento do reino148

No proacuteximo toacutepico de nosso trabalho queremos apresentar a visatildeo de

Sobrino acerca da cruz de Jesus como consequecircncia de sua praacutexis e assim

poderemos perceber o quanto o termo proacute-existente o aproxima de Schuumlrmann

Poreacutem como vimos anteriormente para Schuumlrmann a relaccedilatildeo intriacutenseca entre

basileia e abba eacute que eacute o centro da vida de Jesus e seu destino Sobrino

tambeacutem afirma que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino Deus e que reino e

Deus estatildeo intrinsecamente ligados A diferenccedila eacute que Sobrino acentua a

presenccedila de Deus nesse reino como algueacutem que se relaciona com a histoacuteria e a

histoacuteria com ele isto eacute

ldquoa proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus realiza-se em primeiro lugar para os pobres A eles anuncia o reino de Deus e nisto consiste sua missatildeo Esta proacute-existecircncia parcial em favor dos outros eacute a que explica historicamente a proacute-existecircncia de Jesus como entrega de si mesmordquo

149

146

Ibid p 250 147

KESSLER H op cit p254 148

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 299 149

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 59-60

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Jon Sobrino natildeo nega que Jesus tenha atribuiacutedo um valor salviacutefico agrave sua

morte e tambeacutem natildeo nega a sua morte como redentora apenas parte de uma

reflexatildeo natildeo fundamentalista isto eacute para ele alguns conceitos como sacrifiacutecio

expiatoacuterio satisfaccedilatildeo vicaacuteria etc foram elaborados posteriormente pelas

comunidades Isto natildeo significa que Jesus natildeo deu um sentido agrave proacutepria morte

ldquoJesus natildeo diz em que consiste propriamente o sentido de sua morte mas afirma que para ele a morte natildeo eacute sem-sentido pois natildeo anula sua esperanccedila - que formula aleacutem disso em termos de reino de Deus - o que eacute coerente com sua confianccedila depositada no Pairdquo

150

Jesus vivia num contexto onde a espera messiacircnica era fortemente

acentuada Sua vida estabeleceu continuidades e rupturas com a tradiccedilatildeo

judaica Ele era um messias mas natildeo como o povo esperava Jesus conhecia as

escrituras a realidade e a histoacuteria de seu povo Nesse contexto a sua

consciecircncia era realmente fazer a vontade do Pai Pelo ldquosimrdquo dado ao Pai Jesus

foi assumindo a cada dia a sua missatildeo e sentia que a consequecircncia dela era a

morte pois sua vida incomodava as estruturas presentes A sua opccedilatildeo

preferencial pelos pobres e excluiacutedos daquela sociedade o fez diversas vezes

transgredir a lei colocando-os acima dela Portanto Jesus natildeo vecirc a sua morte

apenas como um fim traacutegico mas como consequecircncia de sua vida doada por

muitos Nesse sentido podemos afirmar que Jesus tinha essa consciecircncia de sua

morte salviacutefica

Jon Sobrino afirma o que a feacute da Igreja afirma Jesus eacute o salvador A

questatildeo do conhecimento de Jesus natildeo faz parte da feacute mas da expressatildeo da feacute

Em outros escritos confirma sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao valor salviacutefico da morte

de Jesus

O escolhido por Deus para trazer salvaccedilatildeo eacute o servo o qual acrescenta escacircndalo E cremos sinceramente que a teologia natildeo sabe o que fazer com esta afirmaccedilatildeo central a natildeo ser buscar na ldquoexpiaccedilatildeo vicaacuteriardquo do servo um modelo teoacuterico de compreensatildeo da redenccedilatildeo de Cristo na Cruz sem que esse modelo ilumine intrinsecamente qual salvaccedilatildeo a cruz traz e muito menos que salvaccedilatildeo histoacuterica a cruz traz hoje Todavia natildeo afirmar a salvaccedilatildeo que o servo traz seria o mesmo que apagar algo central na feacute Analisar quanta salvaccedilatildeo e salvaccedilatildeo histoacuterica o servo traz eacute o que a teologia da libertaccedilatildeo tentou fazer

151

150

SOBRINO J Jesus o libertador pp 297-298 151

Id O princiacutepio misericoacuterdia descer da cruz os povos crucificados p90

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14 A cruz como consequecircncia de uma praacutexis

Apoacutes contemplarmos o fato da condenaccedilatildeo sumaacuteria e morte de cruz de

Jesus e as principais interpretaccedilotildees desta mesma morte nas comunidades

primitivas e na tradiccedilatildeo teoloacutegica nos deparamos agora com a tese defendida

por Sobrino sobre o porquecirc matam Jesus Ao responder esta questatildeo Sobrino

demonstra que ldquouma primeira forma de recuperar o sentido original da cruz de

Jesus eacute consideraacute-la como a consequumlecircncia histoacuterica de sua vidardquo152 I Ellacuriacutea

afirma que em Jesus ldquoeacute sua vida que daacute sentido uacuteltimo a sua morterdquo153

Podemos haurir da reflexatildeo de Sobrino como veremos a seguir que a

encarnaccedilatildeo de Jesus no antirreino que produz a morte o anuacutencio do reino de

Deus e o Deus da vida que defende e opta pelas viacutetimas satildeo as causas

histoacutericas da morte de Jesus Estes trecircs pontos estatildeo intrinsecamente ligados

O centro da pregaccedilatildeo e missatildeo de Jesus era o reino e o Pai Duas faces

de um uacutenico amor Jesus natildeo pregou a si mesmo pois se sabia vivia e

trabalhava a partir de algo e para algo distinto de si mesmo O reino de Deus e o

Pai satildeo realidades que podem ser a razatildeo do destino histoacuterico da cruz de

Jesus154 Sobrino comprova dialeticamente negando o que natildeo eacute a realidade

uacuteltima para Jesus para chegar ao que eacute verdadeiramente uacuteltimo Jesus natildeo eacute a

realidade uacuteltima para si mesmo pois natildeo prega a si mesmo Jesus soacute pode ser

compreendido a partir de algo distinto e maior do que ele mesmo e natildeo a partir

de si mesmo diretamente A realidade uacuteltima para Jesus natildeo eacute simplesmente

Deus mas Deus e seu reino isto eacute Deus em sua relaccedilatildeo concreta com a

histoacuteria Portanto a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus155

152

Id Cristologia a partir da Ameacuterica Latina p 212 153

ELLACURIacuteA I El pueblo crucificado In MISTERIUM LIBERATIONIS Conceptos fundamentales de la teologia tomo III p 200 154

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 105 Nosso objetivo aqui eacute apresentar a relaccedilatildeo do reino com o destino de Jesus portanto natildeo iremos aprofundar a temaacutetica do reino desenvolvida por Sobrino Para isso recomendamos SOBRINO J Jesus o libertador pp 103-201 e Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 121-143 155

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 126 A relaccedilatildeo entre Jesus Cristo e o reino de Deus desenvolvida por Sobrino eacute vista pela Notificaccedilatildeo como uma visatildeo peculiar onde o reino eacute visto como algo distinto de Jesus Segundo a notificaccedilatildeo Natildeo basta falar de uma conexatildeo iacutentima ou de uma relaccedilatildeo constitutiva entre Jesus e o Reino ou de uma ldquoultimidade do mediadorrdquo se este nos remete para algo que lhe eacute distinto Jesus Cristo e o Reino num certo sentido identificam-se na pessoa de Jesus o Reino jaacute se fez presente Uma tal identidade foi posta em realce desde a eacutepoca patriacutestica O Papa Joatildeo Paulo II afirma na Enciacuteclica Redemptoris Missio ldquoSobre o anuacutencio de Jesus Cristo com o Qual o Reino de Deus se identifica se concentra a pregaccedilatildeo da Igreja primitivardquo ldquoCristo natildeo soacute anunciou o Reino mas n‟Ele o proacuteprio Reino se tornou presente e plenamente se realizourdquo ldquoO Reino de Deus natildeo eacute um conceito uma doutrina um programa [hellip] mas eacute acima de tudo uma Pessoa que tem o nome e o rosto de Jesus de Nazareacute imagem do Deus invisiacutevel Se separarmos o Reino de Jesus ficaremos sem o Reino de Deus por Ele pregadordquo CDF op cit

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Citando Wilhelm Thuumlsing Sobrino afirma que ldquoqualquer tentativa de fazer

de Jesus sem mais algo absolutamente uacuteltimo fracassa diante da evidecircncia da

exegese E isto natildeo soacute a partir do Jesus histoacuterico mas tambeacutem a partir do Jesus

ressuscitadordquo156 Thuumlsing afirma que

a autoconsciecircncia de Jesus se pocircs diante de Deus como qualquer outra consciecircncia humana na distacircncia de um ser criado na liberdade obediecircncia e adoraccedilatildeo[] Neste sentido eacute verdade e natildeo temos motivo para tecirc-lo escondido que Jesus proclama o Reino de Deus e natildeo a si mesmo Jesus eacute assim o ponto culminante o caso ldquoexemplarrdquo e original do homem que ndash numa compreensatildeo transcendental ndash se encontra orientado ldquoem direccedilatildeo ao misteacuterio inacessiacutevel que eacute o princiacutepio e suporte do ato e o objeto que chamamos Deusrdquo

157

Ao afirmar que a realidade uacuteltima para Jesus eacute o reino de Deus Sobrino

acentua que a vida de Jesus estaacute a serviccedilo do reino portanto importa o que ele

diz e faz a serviccedilo desse reino Jesus anuncia que o reino de Deus estaacute proacuteximo

e se aproxima dos pobres ldquoPara Jesus o plano original de Deus eacute que os

homens tenham a vidardquo158

Em Jesus o libertador Sobrino apresenta a noccedilatildeo de reino de Deus

concebida por Moltmann a qual contribuiu grandemente para a teologia da

libertaccedilatildeo embora do ponto de vista latino-americano se criticou sua falta de

concreccedilatildeo histoacuterica como o faraacute a teologia da libertaccedilatildeo159

Moltmann entende o reino como um mundo melhor e sem escravidatildeo e

que na atualidade deve ser o que foi para Jesus ele anunciou o reino aos

pobres e chamou os cativos agrave liberdade de Deus Para Moltmann os pobres satildeo

todos os que vivem agrave beira da morte e aqueles a quem a vida natildeo deu nada Os

pobres satildeo descritos dialeticamente em relaccedilatildeo ao antirreino pois natildeo podem se

defender da violecircncia e da injusticcedila O conceito de pobre eacute oposto ao de

opressor de violento A libertaccedilatildeo acontece no reino de Deus a ser construiacutedo

Assim a boa notiacutecia anunciada por Jesus eacute para todos mas soacute pode ser

escutada como boa notiacutecia aceitando a proacutepria pobreza e em comunhatildeo e

solidariedade com os pobres O reino se faz presente para todos e de forma

comunitaacuteria160

ldquoA teologia da libertaccedilatildeo parte do reino de Deus anunciado por Jesus mas

o historiza para o presente pela razatildeo oacutebvia de que a o reino natildeo chegou no

156

Ibid 157

SCALIA F op cit p 86 158

SOBRINO J op cit p150 159

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 180 160

Cf Ibid p 179 Sobrino se refere especificamente agrave obra de Moltmann La Iglesia fuerza del Espiacuteritu Salamanca 1978

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tempo de Jesus e o presente exige sua historizaccedilatildeordquo161 Os pobres satildeo os

destinataacuterios do reino O pobre eacute real por isso natildeo pode ser espiritualizado O

reino de Deus teraacute a sua plenitude no final da histoacuteria mas jaacute se realiza no

presente da histoacuteria

Para Jesus os pobres satildeo caracterizados numa dupla linha Pobres satildeo os pecadores publicanos prostitutas (Mc 26 Mt 1119 2132 Lc 151) satildeo os simples (mt 1125) os pequenos (Mc 92 Mt 1042 181014) os menores (Mt 254045) os que exercem profissotildees desprezadas (Mt 2131 Lc 1811) Nesta linha os pobres satildeo os desprezados Por outro lado pobres satildeo para Jesus os que tecircm uma necessidade real na linha de Is 611 Pobres satildeo os que padecem necessidade os famintos e sedentos os nus forasteiros doentes e encarcerados os que tecircm fome os que choram os que estatildeo esmagados por um peso Nesta linha de pensamento os pobres satildeo os que estatildeo sob algum tipo de opressatildeo real

162

Para defender a vida e especialmente daqueles que natildeo a tecircm em

plenitude Jesus enfrentou todo tipo de forccedila social que de uma forma ou de

outra mediata ou imediatamente desumaniza o ser humano e lhe daacute a morte163

Muitos outros foram mortos antes e depois de Jesus por causa de suas palavras

e accedilotildees em defesa da vida O que acontece a Jesus natildeo tem nada de

misterioso pois a morte para silenciar aqueles que estatildeo de certa forma

perturbando acontece frequentemente Sobrino acentua que isto eacute uma grande

trageacutedia pois natildeo apenas o Filho de Deus foi morto mas muitos filhos de Deus

satildeo mortos a cada dia O que difere entre a morte de Jesus (o Filho de Deus) e a

morte dos inuacutemeros filhos de Deus eacute que a morte de Jesus foi consequecircncia de

uma escolha de Deus encarnar-se num mundo que eacute antirreino Jesus se

encarnou na histoacuteria concreta E mais ainda se encarnou num mundo que eacute

antirreino que mata Portanto a morte de Jesus foi consequecircncia de sua vida

encarnada Jesus defende as viacutetimas desse antirreino ao anunciar o reino de

Deus164

Ao analisar as causas histoacutericas da morte de Jesus Sobrino sublinha o

fato de que a morte de Jesus natildeo foi um erro165 Antes de sua condenaccedilatildeo e

morte foi perseguido Jesus foi perseguido porque ldquosua pregaccedilatildeo e praacutetica

representou uma ameaccedila radical ao poder religioso de seu tempo e

161

Ibid p 188 162

Id Jesus na Ameacuterica Latina pp133-134 162

Ibid p150 163

Ibid p150 164

Cf SOBRINO J Jesus o libertador pp 308-309 165

Ibid p 309

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indiretamente a todo poder opressor e que este reagiurdquo166 Jesus tinha

consciecircncia que tal perseguiccedilatildeo poderia levaacute-lo agrave morte

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus comparando-a com a perseguiccedilatildeo

cruel e em massa que o povo latino-americano sofreu e que continua sofrendo a

cada dia de formas mais camufladas ldquoa cruz imperante no Terceiro Mundo

ilumina muito a coerecircncia com que eacute descrita ndash em sua totalidade ndash a paixatildeo e

morte de Jesusrdquo167 O interesse principal de Sobrino eacute a aproximaccedilatildeo com a

histoacuteria do povo crucificado na Ameacuterica Latina portanto ele mesmo afirma que

nada tem a contribuir para a dilucidaccedilatildeo exegeacutetica de questotildees relacionadas a

avaliaccedilatildeo de Jesus de sua proacutepria morte a historicidade dos julgamentos contra

Jesus as uacuteltimas palavras de Jesus na cruz etc168

Jesus natildeo vai ingenuamente da Galileia para Jerusaleacutem Ele sabia que

suas palavras e accedilotildees incomodavam o poder existente Todos sabiam que Jesus

havia sido batizado por Joatildeo Batista que Jesus era mais radical do que ele em

seu anuacutencio do reino Se Herodes Antipas havia usado o ldquodireito da espadardquo

para decapitaacute-lo Jesus sabia que poderia fazer o mesmo com ele O Sineacutedrio

com seu direito de apedrejar tambeacutem seria uma ameaccedila para Jesus pois

tambeacutem suas palavras e accedilotildees criavam situaccedilotildees extremamente perigosas para

ele mesmo Em relaccedilatildeo aos romanos Jesus natildeo entrou diretamente em conflito

com eles poreacutem estes temiam uma revolta popular e para os escravos e

sediciosos a pena era a crucificaccedilatildeo Contudo esta uacuteltima morte seria a menos

esperada por Jesus169

As palavras e accedilotildees de Jesus o levaram a entrar em conflito direto com

os poderes religiosos e indireto com os poderes poliacuteticos Jesus falava em nome

de Deus anunciava a Deus e ao seu reino e propunha uma escolha desse

mesmo Deus e reino Jesus propocircs uma alternativa excludente Deus ou os

deuses que os poderes religioso e poliacutetico representavam Com isso inicia-se

uma luta entre as divindades e suas mediaccedilotildees como jaacute afirmamos

anteriormente ldquoas divindades (Deus Jesus e os iacutedolos) estatildeo em luta As

mediaccedilotildees (o reino de Deus e o antirreino) tambeacutem Por isso os mediadores

(Jesus e seus adversaacuterios) tambeacutem estatildeo bdquoquem natildeo estaacute comigo estaacute contra

mim‟ (Mt 1230 Mc 940)rdquo170 A atividade de Jesus ldquodaacute motivo a numerosos

ataques e perseguiccedilotildees e em uacuteltima anaacutelise agrave morte Os deuses da opressatildeo

166

Ibid p 288 167

Ibid 168

Cf Ibid 169

Cf SCHILLEBEECKX op cit pp 294-295 170

SOBRINO J Jesus o libertador p 289

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contra os quais lutou datildeo-lhe a morterdquo171 Eacute a experiecircncia e noccedilatildeo de Deus como

um Deus da vida que faz com que Jesus entre em conflito com aqueles que natildeo

permitem que todos tenham vida ldquoO anuacutencio do reino eacute revelaccedilatildeo sobre Deus eacute

palavra sobre seu amor livre e gratuito que natildeo depende das disposiccedilotildees eacuteticas

e religiosas de seus destinataacuteriosrdquo172

Sobrino analisa a perseguiccedilatildeo a Jesus nos Sinoacuteticos separadamente da

perseguiccedilatildeo no Evangelho de Joatildeo pois este eacute mais teologizado Ele conclui

que natildeo se pode negar que os Evangelhos satildeo unacircnimes ao narrar a

perseguiccedilatildeo que Jesus sofre em sua vida embora apareccedila de forma diferente

Interessa-nos aqui natildeo a cronologia histoacuterica da perseguiccedilatildeo de Jesus mas

acentuar que a morte de Jesus teve causas histoacutericas e que ele devia estar bem

consciente disso173

No evangelho de Lucas a primeira perseguiccedilatildeo que Jesus sofre estaacute bem

no iniacutecio de sua missatildeo e esta eacute em favor dos pobres (Lc 418)174 O reino eacute

preferencialmente para os pobres pois satildeo os primeiros destinataacuterios a quem

anuncia o reino Jesus relaciona a boa notiacutecia com o reino ao qual foi enviado a

anunciar (Lc 443) Marcos e Mateus apresentam o iniacutecio da missatildeo de Jesus

com o anuacutencio da proximidade do reino (Mc114 Mt 417) Ao longo dos

Sinoacuteticos podemos perceber que os dirigentes querem acabar com Jesus

Sobrino enfatiza que todos os Sinoacuteticos apresentam cinco cenas nas quais

Jesus corre perigo a passagem sobre o tributo a Ceacutesar (Mc 1213-17) a

discussatildeo sobre a ressurreiccedilatildeo dos mortos (Mc 1219-23 ) a expulsatildeo dos

mercadores do templo (Mc 1115-19 ) a paraacutebola dos vinhateiros homicidas

(Mc 121-12) e Mt e Mc que introduzem neste lugar (Mc 1228-34 Mt 2234-35)

a discussatildeo sobre o primeiro mandamento175

No evangelho de Joatildeo a responsabilidade da perseguiccedilatildeo a Jesus eacute

dirigida aos judeus em geral e natildeo soacute aos seus chefes como aparece nos

sinoacuteticos Em diversas passagens os judeus perseguem a Jesus procuravam

mataacute-lo porque natildeo soacute transgredia o saacutebado mas tambeacutem chamava a Deus de

Pai fazendo-se igual a Deus (Jo 516-18) apoacutes algumas discussotildees com Jesus

queriam prendecirc-lo (Jo 71112530234482059 1031) e tambeacutem apoacutes os

milagres por ele realizados (Jo 9221153)

171

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 172

GUTIEacuteRREZ G O Deus da vida p153 173

Cf SOBRINO J Jesus o libertador p 289 174

Cf Ibid 175

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p172

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O fato de ter tido perseguiccedilatildeo significa que a cruz natildeo foi um fatalismo

um acidente ou um erro Se Jesus foi perseguido eacute porque estava incomodando

isto eacute sua vida apontava para outras perspectivas em todos os acircmbitos (social

religioso poliacutetico etc) como exigecircncia da chegada do reino de Deus O reino

mexeu com as estruturas estabelecidas e os dirigentes daquela sociedade se

sentiram ameaccedilados Os Evangelhos expotildeem os perseguidores fariseus sumos

sacerdotes escribas saduceus herodianos etc pois todos tecircm algum poder

econocircmico poliacutetico religioso ideoloacutegico religioso-exemplar policial-militar

etc176

Em relaccedilatildeo agrave lei judaica Jesus teve algumas atitudes como explicaccedilatildeo

criacutetica superaccedilatildeo e aprofundamento dela Tudo isto porque entende que o plano

original de Deus eacute que todos tenham vida e a tenham em plenitude177 Quando

os dirigentes religiosos interpretam a lei para oprimir o outro e privaacute-lo da vida

estatildeo utilizando a Deus para seus proacuteprios interesses portanto eacute preciso

desmascaraacute-los178 Eacute visiacutevel nos relatos evangeacutelicos que uma grande maioria eacute

privada da vida E isso devido a uma minoria que oprime Esses satildeo

anatematizados por Jesus porque privam da vida as maiorias de diversas

formas179

Jesus tem a convicccedilatildeo de que haacute um antirreino pois o mundo e a

sociedade em que viveu natildeo estavam totalmente de acordo com a vontade de

seu Pai Deus Muitas controveacutersias que Jesus enfrentou com os representantes

religiosos mostram quem eacute Deus Ele eacute o Deus da vida que tem a vida acima de

qualquer outra coisa Assim a sociedade deve ser organizada ao redor da vida

Ao apresentar Deus desta forma Jesus denuncia o anti-reino e condena os seus

responsaacuteveis As denuacutencias e os anaacutetemas de Jesus para estes responsaacuteveis

satildeo tambeacutem denuacutencias contra a sociedade que eles configuram como opressora

e podre em sua raiz pois produz tantas viacutetimas As denuacutencias e

desmascaramentos de Jesus vistos como um todo soam como praacutexis Tal

praacutexis o leva ao seu destino e este por sua vez esclarece o que eacute o reino180

Diante de toda essa reflexatildeo podemos compreender melhor o que

Sobrino compreende por proacute-existecircncia de Jesus Em Schuumlrmann a proacute-

existecircncia resume-se numa vida doada para os outros pela experiecircncia que tem

do abba Em Sobrino estes ldquooutrosrdquo tecircm nome e rosto os pobres ldquoA proacute-

176

Cf Id Jesus o libertador p 293 177

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina p 150 178

Ibid p166 179

Cf Ibid p159 180

Cf Id Centralidad Del reino de Dios en la teologia de la liberacion pp484-485 In ELLACURIacuteA I SOBRINO J MISTERIUM LIBERATIONIS Madrid Editorial Trotta 1990 tomo I

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existecircncia de Jesus consiste num primeiro momento em anunciar e trabalhar

para que os pobres passem da infraexistecircncia agrave existecircncia dos filhos de

Deusrdquo181 A opccedilatildeo preferencial de Deus pelo pobre perpassa toda a Sagrada

Escritura e natildeo pode ser entendida fora da absoluta liberdade e gratuidade do

amor de Deus182

A relaccedilatildeo que Jesus tem com Deus lhe daacute sentido pois sua referecircncia eacute

o abba e natildeo qualquer outra divindade O abba eacute amor Eacute a este Deus que Jesus

serve com radicalidade ateacute chegar a ser assassinado porque crecirc que a vontade

de Deus para o mundo eacute que todos tenham vida O Deus de Jesus eacute o Deus do

reino O reino estaacute em estrita oposiccedilatildeo ao anti-reino histoacuterico ldquoA expressatildeo bdquopai‟

portanto dirigida a Deus declara desde o princiacutepio qual eacute para Jesus o fundo

bdquouacuteltimo‟ da realidade que natildeo se deve buscar na beleza nem no poder mas no

amorrdquo183

Jesus foi obediente e fiel ao Pai e isto o levou agrave sua solidariedade com os

pobres e a seu proacuteprio empobrecimento pessoal ateacute o supremo despojamento na

cruz Esta proacute-existecircncia histoacuterica de Jesus eacute que permite as primeiras

comunidades confessaacute-lo como o salvador escatoloacutegico e assim nascem os

modelos explicativos da sua eficaacutecia salviacutefica184

15 Conclusatildeo Objetivamos apresentar neste primeiro capiacutetulo o sentido original da cruz

de Jesus a partir das teses de Sobrino O ponto de partida de sua reflexatildeo isto

eacute de sua hermenecircutica satildeo os povos crucificados de nosso Continente pois

suas cruzes remetem agrave de Jesus

Num primeiro momento vimos que a cruz de Jesus ganhou diversos

significados ao longo da histoacuteria do cristianismo e para resgatar o seu sentido

original Sobrino volta agraves fontes para analisar os dois processos poliacutetico e

religioso pelos quais Jesus passou e como consequecircncia foi condenado agrave

morte de cruz Para Sobrino haacute em questatildeo uma luta de divindades e de suas

181

Id Jesus na Ameacuterica Latina p 59 182

GUTIEacuteRREZ G op cit p154 183

SOBRINO J A oraccedilatildeo de Jesus e do cristatildeo p 29 184

Cf Id Jesus na Ameacuterica Latina pp 60-63

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mediaccedilotildees e de seus mediadores O processo contra Jesus eacute na verdade um

processo contra o seu Deus

A morte de Jesus foi um escacircndalo para as primeiras comunidades

cristatildes Para dar um sentido positivo agrave cruz elas buscaram interpretar o fato

ocorrido com Jesus Dessas interpretaccedilotildees nasceram formulaccedilotildees soterioloacutegicas

que colocaram em Deus o sentido da morte de Jesus ou seja Jesus morreu por

noacutes para nos salvar Sobrino natildeo desvaloriza tais formulaccedilotildees mas adverte-nos

que vistas fora de seu contexto podem ajudar-nos a desvirtuar o sentido original

da cruz pois na verdade o objetivo principal delas eacute mostrar como na cruz haacute

salvaccedilatildeo e o que eacute destacado em todo o Novo Testamento eacute a revelaccedilatildeo do

amor do Pai atraveacutes da vida doada de Jesus

O escacircndalo da cruz natildeo afetou apenas as primeiras comunidades mas

perpassou a histoacuteria e a tradiccedilatildeo teoloacutegica Desde a patriacutestica a aceitaccedilatildeo do

abandono de Deus na cruz foi uma dificuldade por isso nasceram algumas

interpretaccedilotildees da cruz a partir do Salmo 22 proferido por Jesus Jaacute nos seacuteculos

seguintes ganham destaque Anselmo de Cantuaacuteria com sua teoria de satisfaccedilatildeo

vicaacuteria Tomaacutes de Aquino que retoma a teoria de Anselmo acrescentando

algumas correccedilotildees e Lutero com sua teologia da cruz

Com o decorrer da histoacuteria muitos questionamentos em relaccedilatildeo agrave

presenccedila de Deus diante do sofrimento humano foram trazidos para o interior da

Igreja Para responder a esses questionamentos alguns teoacutelogos modernos

buscaram na cruz de Jesus a resposta Dentre eles destacamos J Moltmann

com sua obra Deus crucificado

Por fim vimos a interpretaccedilatildeo de Sobrino acerca da cruz de Jesus Para

ele a cruz de Jesus eacute consequecircncia histoacuterica de sua vida A cruz de Jesus natildeo eacute

um momento isolado mas um fato interligado aos demais momentos de sua

trajetoacuteria Sua encarnaccedilatildeo vida opccedilatildeo pelo reino e pelas viacutetimas do anti-reino

experiecircncia de Deus como Pai e tudo o que isso acarreta o levaram a entrar em

conflito com as autoridades de sua eacutepoca Isto o levou agrave condenaccedilatildeo e agrave morte

Resgatar esse sentido que Sobrino denomina original eacute essencial para

responder aos desafios atuais onde a luta de divindades com seus mediadores e

mediaccedilotildees ainda existem e com uma forccedila ainda maior Aleacutem disso haacute tambeacutem

uma forte tendecircncia a afastarmos o escacircndalo da cruz atraveacutes do ressaltar o

triunfo glorioso de Jesus sobre a morte o que pode tornar-se perigoso para o

seguimento

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