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Modelo ou Metáfora? A morte em Fédon, Harry Edmar Schulz

São Carlos, 2011. Projeto: Humanização como ferramenta de aumento de interesse nas exatas.

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MODELO OU METÁFORA?

A MORTE EM FÉDON

Harry Edmar Schulz

Esboço inicial de Novembro de 2011 Texto final de Dezembro de 2011

Modelo ou Metáfora? A morte em Fédon, Harry Edmar Schulz

São Carlos, 2011. Projeto: Humanização como ferramenta de aumento de interesse nas exatas.

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Prefácio

Um tema sempre complexo para o homem é a sua própria finitude. Transmitir idéias vinculadas à finitude parece que sempre envolve uma parcela de “desejo de demonstrar racionalidade” e de “desejo de demonstrar a sua crença”. Assim, é algo que pode ser lido à luz do objetivo didático por mim perseguido: “como transmitir idéias complexas?”

Platão descreve uma cena para a morte de um

personagem: Sócrates. No dia de sua morte, Sócrates (Platão) discorre sobre suas crenças, buscando estabelecer raciocínios que as consubstanciem.

No contexto da proposta de discutir a morte para o

filósofo, pode-se eventualmente aventar que Platão tenha pretendido explorar a metáfora da morte como um afastar-se dos sentidos.

Mas o texto descreve uma morte, e descreve um modelo

para a morte. Assim, apresentam-se aqui também algumas informações de um segundo modelo, bem como das conclusões acerca do fenômeno da morte no momento atual, talvez um pouco mais objetivo cientificamente do que nas épocas que nos precederam. A morte é estudada hoje a partir de experiências limítrofes (quase-morte) descritas por sobreviventes. Isto afasta-se da abordagem usual da filosofia ocidental, e talvez ainda mais da filosofia desenvolvida na Grécia há mais de 2000 anos.

O texto de Fédon é revestido de um “arcadismo”

evidente. Descrições de uma época impregnada de outros mitos, diferentes dos atuais, polvilham as descrições. A imaginação do autor no contexto místico é exposta, conferindo-lhe uma dimensão mais humana, verificando-se que o autor também se sujeitou a enganos, também defendeu crenças, aproximando-se

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do leitor. A fé, enfim, emoldura a discussão humana acerca da morte, mesmo nos textos que mais pretendem diretamente racionalizar a finitude, independente do contexto religioso dominante. O que se mantém como impressão, ao fechar o livro, é que também um grande pensador se rende àquilo que crê nesta linha tão crítica para o conhecimento humano, que é a sua finitude, o seu próprio desaparecimento. Para comparações ou comentários, por favor entrar em contato com o presente autor, através de [email protected], ou [email protected].

Harry Edmar Schulz São Carlos, 31 de Dezembro de 2011. Projeto: Humanização como ferramenta de aumento de interesse nas exatas.

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Sumário

1 - Introdução motivadora......................................(3)

2 - Introdução exploratória: o que seria um modelo para a Morte?...............................(5)

3 – A morte de Sócrates em Fédon.........................(7)

3.1 – Pode haver uma “interpretação” desta descrição?....................................................(7)

3.2 – Como foi Montado o Texto Literário da Morte?.........................................................(9)

3.2.1 - O Prazer e a Dor (pg. 108)........................(9)

3.2.2 - A Morte como Libertação do Pensamento (pg. 114).....................................................(10)

3.2.3 - A Purificação (pg. 120)............................(11)

3.2.4 - A Sobrevivência da Alma (pg. 125)........(11)

3.2.5 - Os contrários (pg. 126)............................(11)

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3.2.6 - O Destino das Almas (pg. 146)................(13)

3.2.7 - A Função da Filosofia (pg. 149)..............(13)

3.2.8 - O Problema da Física (pg. 170)..............(14)

3.2.9 - A Idéia (pg. 174).......................................(15)

3.2.10 - O Problema dos Contrários e a Idéia (pg. 178).....................................................(16)

4 – Conclusão..........................................................(17)

5 – Referências Bibliográficas...............................(17)

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MODELO OU METÁFORA?

A MORTE EM FÉDON

1 - Introdução motivadora

Considerando o meu interesse nos aspectos de educação e transmissão de conceitos (idéias), talvez seja necessário explicar rapidamente o porquê da escolha deste tema para o presente trabalho.

Primeiramente, a transmissão de idéias complexas,

mesmo na área de exatas, encontra situações nas quais eventualmente uma formulação proposta se fundamenta em conceitos de assimilação um tanto difícil. Por exemplo, podemos quantificar várias características na física quântica básica utilizando a equação de Schrödinger para a função de onda, mas a própria função de onda é uma variável que necessita de algum tempo de assimilação pelo estudante. Considerando mesmo as formulações mais clássicas, como a segunda lei de Newton, que fundamenta toda a mecânica, pode-se chegar a dificuldades conceituais quando se considera suas grandezas fundamentais. Assim, a força está relacionada à massa, mas como perceber ou entender uma sem utilizar a outra? Evidentemente não se pretende nem gerar questões, nem esclarecer conceitos físicos neste texto. Entretanto o tema escolhido, que envolve uma discussão em torno de um conceito de difícil assimilação, ou mesmo de uma definição que não é aceita incondicionalmente, mostra uma situação próxima àquelas encontradas nas ciências com as quais me ocupo.

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O tema é a discussão do conhecimento e de sua assimilação, em considerando uma situação limítrofe de “morte”. Precisamente esta “morte”, que envolve de maneira mais imediata a nossa percepção de uma finitude própria enquanto indivíduos imersos neste meio, é a “variável” que desponta como “de difícil definição” no contexto das preleções ouvidas ao longo do curso de História da Filosofia Antiga I. Entretanto, a “equação” discutida em sala busca esclarecer a assimilação de conhecimento, e não necessariamente a morte, o que mostra a analogia anteriormente feita com os equacionamentos físicos.

Objetivamente, o entendimento científico da “morte”

exige a análise de experiências limítrofes, conhecidas hoje como experiências de quase-morte, que nos forneçam informações empíricas acerca da transição entre o estado que conhecemos (usualmente denominado de “vivo”) e o estado que desconhecemos (usualmente denominado de “morto”). Adicionalmente, a possibilidade de gerar um conhecimento útil, que possa servir para explicar as experiências limítrofes, exige a formulação de modelos, os quais, por comparação com os resultados dos experimentos relatados, poderão então ser refinados por passos sucessivos, ou descartados em favor de modelos melhores. A grande dificuldade existe justamente na análise completa de uma transição que, como resultado até o momento observado, nos tira definitivamente do convívio com os “vivos”. Ou seja, não há informações acerca do estado “morto” que cheguem até nós (na nossa realidade) e que sejam aceitas de forma científica. De fato, o nome “quase-morte” já mostra que as experiências objetivas consideram que não se atingiu a inflexão no processo de “mudança de estado” que implicaria em impossibilidade de “regresso”. A figura 1 explica o comentado.

Embora esta introdução pareça fora de contexto, convém

frisar que entendo que é preciso, antes de “mergulhar” em uma digressão apresentada há mais de dois mil anos, situar o atual estágio de curiosidade humana acerca de sua “finitude observável

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Figura 1: Objetivamente, o estudo da “morte” considera que os relatos de pacientes ou acidentados que voltaram a apresentar sinais vitais após

condições extremas de fato não atingiram o ponto de inflexão que caracterizaria a morte “de fato”.

enquanto indivíduo”. Assim, com a experiência acumulada nas áreas científicas, utilizando metodologias que se fundamentam na observação, estamos procurando desvendar o limite daquilo que é passível de conhecimento acerca desta nossa condição. Não temos ainda modelos que tenham sido aplicados de forma sistemática, embora sejam feitas buscas acerca do tema, de modo que se possa localizar eventuais coincidências. Nesse caso, as áreas ditas humanas são terreno de prospecção, seja na filosofia, seja nas correntes místicas (*), seja na psicologia. Mas não há conclusão que possa indicar que alguma hipótese tenha sido definitivamente confirmada. __________________________

(*) Nota: O termo “místico” foi utilizado de forma indistinta do termo “mítico”. Entende-se que o primeiro vincula-se a uma corrente religiosa, não necessariamente refletindo sua corrente principal. O segundo vincula-se a um mito. Entretanto, o mito pode ser religioso. Como Platão fala de escrúpulos religiosos e de tradição, usou-se “místico”.

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Se se for discutir um modelo para o observado, vale a pena destacar algumas das características mais repetitivas que são relatadas nessas experiências. Da Wikipédia, no verbete Experiência de Quase-Morte, que possui um texto muito simples e, de certa forma, superficial, pode-se extrair:

• um sentimento de paz interior; • a sensação de flutuar acima do seu corpo físico; • a impressão de estar em um segundo corpo, distinto do corpo

físico; • a percepção da presença de pessoas à sua volta; • a visão de seres espirituais; 1 • visão de 360º; • sensação de que o tempo passa mais rápido ou mais devagar; • ampliação de vários sentidos; • a sensação de viajar através de um túnel intensamente

iluminado no fundo (efeito túnel). Nesse túnel, a maioria descreve a presença de um "ser de luz".

O portal entre essas duas dimensões é também descrito como a fronteira entre a vida e a morte. Alguns pacientes relatam que tiveram de decidir sobre o regresso à vida física. Muitos falam de um campo, uma porta, uma sebe ou um lago, como uma espécie de barreira que, se atravessada, implicaria não regressarem ao seu corpo físico. (Em outras referências ainda há o relato de sensações sonoras, como barulho, música, ou silêncio). Com a multiplicação de referências a experiências de quase-morte, pesquisadores deram início à análise do fenômeno de forma mais aberta. Grupos da comunidade médica passaram a olhar para a morte e a sobrevivência da consciência sob uma nova perspectiva, como ocorre, por exemplo, na Associação Brasileira de Medicina Psicossomática. Estudos realizados em hospitais, entre sobreviventes de paradas cardíacas, em que se observou que o fenômeno ocorre em cerca de 11% dos pacientes,

(*) Nota: O termo “místico” foi utilizado de forma indistinta do termo

“mítico”. Entende-se que o primeiro vincula-se a uma corrente religiosa, não necessariamente refletindo sua corrente principal. O segundo vincula-se a um mito. Entretanto, o mito pode ser religioso. Como Platão fala de escrúpulos religiosos e de tradição, usou-se “místico”.

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demonstram que tais fatos são possivelmente explicáveis pela falta de oxigênio no cérebro. As descrições de quase-morte podem ser parcialmente reproduzidas por medicações ou por indução de hipóxia cerebral por alta gravidade, incluindo visão em túnel, comunhão com Deus, saída do corpo e alucinações. Mas as explicações biológicas não conseguem justificar os fenômenos de percepção extrasensorial alegados por alguns sobreviventes.

2 - Introdução exploratória: o que seria um modelo para a Morte? “A questão de saber se existe ou não uma continuidade da

consciência depois da morte tem sido um importante aspecto da reflexão e do debate filosófico desde os tempos da Índia antiga. Todavia, quando refletimos sobre essas questões do ponto de vista budista, devemos ter em mente que a compreensão da natureza da continuidade da consciência e da compreensão da natureza do “eu” ou do “si mesmo” estão intimamente inter-relacionadas. Portanto, voltemos nossa atenção primeiro para aquilo que, segundo podemos afirmar, constitui uma pessoa”. Assim inicia o comentário introdutório de SS, o 14º Dalai-Lama, à versão traduzida e comentada do Livro Tibetano dos Mortos, resultante de um projeto iniciado em 1988, organizado em conjunto por Graham Coleman e Thupen Jinpa (Coleman, Jinpa e Dorje, 2010).

Observa-se que esta introdução menciona elementos coincidentes com aqueles dos discursos em filosofia, como a “consciência”, o “eu” e o “si mesmo”. O Livro Tibetano dos Mortos sem dúvida tem seu lugar em uma corrente mística, mas pelo fato de discutir a natureza do eu e a separação entre a alma e o corpo, contém um discurso que pode ser, pelo menos em parte, tratado à luz da filosofia. Porém o livro também coloca o leitor em contato com as divindades desta corrente, e, no desenrolar das explicações, o leitor pode concluir que está diante de um

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modelo para a morte. Este modelo procura explicar o processo de morte àquele que está morrendo.

Em princípio, qualquer corrente mística poderia ser utilizada nesta exploração de um modelo, uma vez que, muito provavelmente, as interpretações desses modelos poderiam mostrar coincidências com as informações coletadas mais objetivamente das experiências de quase-morte. Esta é precisamente a característica buscada no modelo: a partir de coincidências com o observável, explicar o desenrolar dos acontecimentos. Optou-se pela corrente budista por haver um tratamento mais evidente da mudança de estado (vivo-morto) como um objeto, o que não é abordado pelas correntes ocidentais (com origens comuns e considerando o deus único).

Vale mencionar que o texto de Platão, “Fédon”, coloca o protagonista diante da morte e, através do seu personagem, Platão explica as suas convicções acerca da morte, acerca do trajeto da alma no momento da morte e da separação entre corpo e alma. Ou seja, considerando apenas este aspecto, Platão parece também estar explicando seu modelo.

Na presente altura do presente texto, apenas como ilustração, citam-se algumas passagens do Livro Tibetano dos Mortos, no início de seu capítulo 11 (A grande libertação pela auscultação). Na Parte 1 deste capítulo, o mestre espiritual diz para o moribundo, no momento da morte (aqui são apresentados apenas poucos fragmentos): “...Assim que cessar tua respiração, se manifestará [a luminosidade] conhecida como ‘esplendor interno do primeiro estado intermediário’...[Assim que] cessar tua respiração, todos os fenômenos se tornarão vazios e despojados como o espaço. [Ao mesmo tempo], se manifestará uma pura consciência nua...”

Mais adiante, deve ser dito ao moribundo (igualmente são fragmentos): “...O puro esplendor interno, que é a própria realidade, é agora manifesto diante de ti. Reconhece-o...essa essência radiante que é agora percepção consciente em ti é uma vacuidade luminosa...a natureza essencial da realidade...livremente luminosa, brilhante e vibrante...é a

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natureza búdica de luz imutável, que transcende nascimento e morte...”

Ainda mais tarde, diz-se (igualmente fragmentos): “...aquilo que chamamos morte chegou a ti. Estás deixando este mundo...a morte chega para todos. Não te apegues a esta vida! Não te aferres a esta vida!...Dev[es] reconhecer que tudo o que surge é consciência pura que se manifesta naturalmente por si mesma. Sabendo que [estes sons, luzes e raios] são fenômenos visionários do estado intermediário...não dev[es] temer...quando se separarem teu corpo e tua mente, as puras manifestações [luminosas] da própria realidade surgirão diante de ti...”

Os conselhos e descrições são longos, envolvendo ora deuses, ora aspectos mais palpáveis. Em suma, observa-se que, em uma tradição mística há um modelo de interação entre mente e corpo no mínimo interessante, que admite o auxílio de um mestre espiritual na mudança de estado de vivo para morto. Este mestre espiritual informa as atitudes que o moribundo deve tomar frente aos diferentes momentos da morte, explicando a separação entre mente e corpo, e apresentando e eclarecendo elementos que também constam nos relatos de quase-morte (sons, luz, entre outros). O modelo possui vários estágios intermediários, inicialmente mencionando as “visões” que o moribundo tem e depois explicando a função das divindades (pacíficas e furiosas).

Como qualquer corrente mística que fosse eventualmente usada como exemplo, esta citação apenas visa expor o que seria um modelo. Talvez valha mencionar que o modelo utilizado está baseado em tradições orais seculares que foram convertidas em texto escrito apenas no século VIII. Comenta-se aqui que há outras passagens, mais ocupadas com as características físicas que indicam a proximidade da morte (algumas das quais podem ser correlacionadas com infecções ou doenças hoje diagnosticadas), e outras ainda que estão mais vinculadas às tradições específicas desta cultura, interpretando de forma mística outros sinais menos correlacionados com a própria morte

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ou mesmo com o indivíduo (e, nesse caso, dificultando uma abordagem essencialmente racional).

No tocante à parte introdutória do capítulo 11, novamente comenta-se que é interessante observar a objetividade com que a mudança de estado é assumida, procurando esclarecer ao moribundo aquilo que está vivenciando e como deve agir. Os paralelismos que se pode vislumbrar entre as experiências de quase morte e as descrições mencionadas (entre outras arroladas no livro) talvez decorram de relatos antigos de quase morte, não classificados, na época, como tais, e que passaram a compor, paulatinamente, um “conhecimento” antigo sobre as nossas reações nesse ponto limítrofe da “vida”.

Qualquer afirmação é, sem dúvida, precipitada nesta

leitura tão superficial feita por minha pessoa, acerca de um tema sobre o qual ainda não há uma abordagem que seja entendida como definitiva, ou pelo menos como suficientemente embasada na racionalidade. Isto nos remete definitivamente, finalmente, ao texto de Platão que também trata da morte. Como já mencionado, o texto “Fédon” apresenta idéias de Platão através do seu personagem Sócrates, idealizado a partir do elemento histórico homônimo que teve sua morte decretada em julgamento na Grécia, no ano 399 AC. É precisamente a morte de Sócrates o tema desse texto. Não há, é verdade, a descrição de uma experiência de quase morte, mas há uma descrição daquilo que Platão entende que seja a morte para o filósofo. Interessantemente, uma vez que se discute o conhecimento filosófico a atingir com a morte, essa condição limítrofe também pode ser reinterpretada como o reconhecimento de que a obtenção do conhecimento filosófico é mais elevada em se atingindo a condição de separação da alma e do corpo. Esta possibilidade foi utilizada no curso de História de Filosofia Antiga 1.

O texto aqui apresentado compõe-se de resumos da maior parte do Fédon (buscou-se lê-lo de forma completa, mas a análise do texto como um todo seria impossível na escala de tempo

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destinada a este estudo, o que impôs efetuar os resumos de forma radical) e a apresentação daquilo que seria o entendimento momentâneo desta leitura, bem como alguma comparação com interpretações e comentaristas que também se ocuparam deste texto.

Acerca da apresentação em si, quando se escreveu o nome de Sócrates afirmando ou propondo algo, colocou-se entre parênteses o nome de Platão. Segundo comentado por Moura (199?), Platão procurou separar Sócrates dos sofistas, mas Sócrates foi o maior e o melhor dos sofistas. Uma vez que Sócrates não deixou qualquer coisa escrita, Platão teria “criado” um Sócrates retórico e disputador. Segundo Moura (199?), Fédon “deformou” Sócrates. Mencionando Han Ryner, em sua obra Les Véritables Entretiens de Socrates, Moura (199?) reproduz a frase de que Sócrates ensinava a ser homem, e não a ser cidadão. Entre várias contradições entre o homem e o personagem citado por Platão, por exemplo é dito que Sócrates não teria usado o vocativo “(Ó) cidadãos atenienses...” (usado na Apologia de Sócrates), porque para Sócrates o cidadão era o cadáver de um homem. Embora muito mais conciliador, e voltado à busca de uma correta interpretação de Platão, Dorion (2011), também aponta algumas características paradoxais no “Sócrates de Platão”. Vê-se, portanto, que as discussões em torno de Sócrates tendem a ser discussões em torno de um personagem. Por conseguinte, melhor é usar o nome do autor da obra (Platão), buscando não macular eventualmente o pensamento do homem representado pelo personagem.

3 – A morte de Sócrates em Fédon

3.1 – Pode haver uma “interpretação” desta descrição?

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Começa-se este estudo pela parte final de Fédon, bastante dramática, onde são apresentados os momentos e atitudes que precederam o ato de tomar cicuta e os acontecimentos subseqüentes, que culminam com a morte. Nesse caso, não é possível falar de metáforas, porque são atos revestidos de banalidade, ou seja, despojados de segundas intenções literárias. Esta parte do texto é a única que foi transcrita integralmente, justamente para que a dramaticidade seja mantida e se ateste pela sua característica descritiva (há várias versões em Português, mas essencialmente trazem a mesma mensagem). Pode-se, então, ler:

O sol já estava prestes a se por; pois Sócrates passara

muito tempo neste lugar. Assentara-se, ao voltar do banho e, a partir daquele momento, a palestra foi muito breve. Chegou, então, o servidor dos Onze e, de pé diante dele, disse-lhe:”Sócrates, não tenho nenhum motivo para te censurar justamente naquilo que incrimino aos outros! Encolorizam-se contra-mim e crivam-me de imprecações, quando convido-os a beber o veneo, pois tal é a ordem dos Magistrados. Quanto a ti, porém, já noutras ocasiões tive tempo suficiente para compreender que és o homem mais generoso, mais doce e melhor de quantos jamais entraram. E, muito especialmente hoje, tenho plena certeza que não é contra mim que se dirige a tua cólera, pois conheces, com efeito, os responsáveis, mas contra estes. Agora, portanto, como não ignoras o que vim te anunciar, adeus! Procura suportar da melhor maneira aquilo que é fatal”! Começou, ao mesmo tempo, a chorar e, voltando as costas, afastou-se. Sócrates, levantando os olhos para ele, disse-lhe: “A ti também, adeus! No tocante a nós, seguiremos tua recomendação”! A esta altura, Sócrates voltou-se para nosso lado e disse: “Quanta gentileza neste homem! Durante toda a minha estada aqui, ele vinha procurar-me e entretinha, por vezes, a conversar comigo: em suma, um homem excelente. E hoje, que generosidade na maneira como chora a minha sorte! Vamos, pois! Obedeçamos-lhe, Criton. Tragam-me o veneno se

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já estiver socado; caso ainda não esteja, que disso se ocupe quem estiver encarregado”!

Então Criton disse: “Mas Sócrates, se não me engano, o sol ainda está sobre as montanhas e não acabou de se por. Também ouvi diquer que outros beberam o veneno muito depois de terem recebido o convite, e isto só depois de haverem comido e bebido à saciedade, alguns mesmo depois de ter tido comércio com as pessoas com quem pudessem ter vontade. Vamos! Nada de precipitações: há atempo ainda”! Ao que replicou Sócrates: “É natural, sem dúvida, Criton que assim procedessem as pessoas a que te referes, pensando, com efeito ganhar algo com isso. Quanto a mim, porém, também é natural que não faça nada, pois penso que, deixando para beber um pouco mais tarde o veneno, outra coisa não lucro senão ter-me tornado objeto de escárneo para mim mesmo, colocando-me, assim, à vida e procurando economizar quando não sobra mais nada! Basta, porém, de falar; Vai, obedece e não me contraries”.

Assim interpelado, Criton fez sinal a um dos servidores que se mantinha perto. Este saiu e voltou a cabo de verto tempo, trazendo consigo quem deveria ministrar o veneno já mído numa taça. Ao ver o homem, Sócrates disse o seguinte: “Meu caro! Tu que está ao corrente do assunto, dize-me o que devo fazer. – Nada mais, respondeu, que dar uma volta depois de ter bebido, até que sintas tuas pernas pesadas, deita-te em seguida e permanece estirado: com isso ele produzirá efeito”. Dizendo isso, estendeu a taça a Sócrates. Este tomou-a, conservando toda a serenidade, sem um tremor sequer, sem a mínima alteração nem da cor nem dos traços. Mas, olhando na direçào do homem, um pouco por baixo conforme seu hábito, com seus olhos de touro, interrogou: “Dize-me: é permitido ou não oferecer a alguma divindade uma libação desta bebida? – Sócrates, respondeu o homem, nós moemos apenas a dose necessária para beber – Endendido, disse ele. Mas, pelo menos é permitido, o que aliás é um dever, dirigir aos deuses uma prece pelo feliz êxito dessa mudança de residência, daqui para lá embaixo. Eis minha prece: assim seja!” Logo que acabou de falar, sem parar,

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sem demonstrar a mínima resistência ou enjôo, bebeu até o fundo.

Então nós, que quase todos havíamos feito o máximo até aquele momento para não chorar, ao vermos que bebia, que já tinha bebido, não pudemos conter-nos; minhas forças foram ultrapassadas e minhas lágrimas, a mim também, correram abundantes, de tal forma que, com a face velada, chorava até me fartar sobre minha sorte (pois, evidentemente não era sobre a dele) sim, sobre meu infortúnio de ser privado de semelhante companheiro! Criton, aliás, incapaz, já antes de mim, de reter as lágrimas, levantara-se para sair. Apolodoro, por sua vez, que já antes, não cessara um instante sequer de chorar, começou, então, como era natural, a lançar tais rugidos de dor e de cólera, que esmagava o coração de todos os presentes, salvo do próprio Sócrates. “Que fazeis lá?, exclamou este; sois mesmo extraordinários! Se mandei embora as mulheres, foi sobretudo pelo seguinte: para evitar da parte delas semelhante falta de medida; pois como me ensinaram, é com palavras felizes que devemos terminar. Guardem, pois calma e firmeza”! Ao ouvir tal linguagem, sentimo-nos envergonhados e deixamos de chorar.

Ele, porém, continuava a andar quando declarou que sentia a spernas otrnarem-se pesadas. Então, deitou-se de costas, como efetivamente lhe recomendara o homem. Ao mesmo tempo, esta aplicava a mão aos pés e às pernas examinando-o por intervalos. Em seguida, apertou-lhe fortemente o pé, perguntando-lhe se sentia; Sócrates respondeu que não. Depois, recomeçou na parte inferior das pernas e foi subindo para mostrar-nos que já começava a esfriar e tornar-se hirto. E, tocando-o ainda, declarou-nos, que quando chegar ao coração, nesse momento Sócrates partirá. Já tinha pois, gelada quase toda a região do baixo-ventre, quando descobriu a face, que antes cobrira, e disse estas palavras, as últimas que pronunciou: “Crito, devemos um galo a Asclépios; pois bem, pagai minha dívida, pensai nela.- Bom! Isto será feito, disse Criton. Mas vê se não tens mais nada a dizer?” A pergunta ficou sem resposta. Ao cabo de curto momento, ele teve, entretanto, um sobressalto.

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Então, o homem descobriu-o: o seu olhar estava fixo. Vendo isso, Criton fechou-lhe a boca e os olhos.

Assim, foi o fim que vimos dar a nosso companheiro, o homem do qual podemos dizer, com justiça que, dentre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, foi o melhor, e, além disso, o mais sábio e o mais justo.

Evidentemente isto é uma descrição de uma morte de

fato. Não há metáforas. O final do texto de Fédon, portanto, é uma versão (a única existente, salvo melhor juízo), da morte de um personagem, assumida como sendo a morte do elemento real que lhe deu origem. Note-se que a morte pode ter acontecido como descrita, embora a morte por cicuta tenha sintomas descritos como vertigens, sede, frio (hipotermia), diarréia, parestesias (sensações de pele, como formigamento), paralisia muscular e morte por parada respiratória. Observações efetuadas em ruminantes, que ingerem a cicuta acidentalmente no pasto, decrevem ainda (em adição aos sintomas mencionados) a salivação, cólicas e convulsões (ver, por exemplo, http://slnoventa.com.br/det_biblioteca.php?biblioteca=179, ou outros sites vinculados aos verbetes de sintomas de morte por cicuta ou pelo seu elemento ativo). O texto de Platão menciona que o corpo foi ficando frio (hipotermia) e rijo, e que a morte viria quando isto chegasse ao coração. Não há descrição, em Platão, dos aspectos menos “calmos” e menos “dignos” deste envenenamento para um homem como Sócrates. Há apenas a menção do sobressalto no final, quando definitivamente morre.

Mas, falando objetivamente, Sócrates bebeu a cicuta, e,

novamente falando objetivamente, Sócrates morreu. A pergunta que se faz então é: estando Sócrates diante da

morte de fato, os seus ensinamentos, que remetem ao tema da morte, podem ser reinterpretados para considerar um “estágio epistemológico” do filósofo, ou seja, uma atitude para atingir o

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conhecimento? Em outras palavras, estaria Sócrates, diante de sua morte, falando metaforicamente da morte para o filósofo?

Note-se que se trata aqui do personagem Sócrates e, nesse

caso, Platão poderia estar usando o momento da morte de fato para apresentar uma metáfora da morte, criando um “sentido epistemológico” para sua descrição. Nesse caso, uma resposta possível é “sim”. Como já mencionado, esse foi o sentido explorado ao longo do curso de História da Filosofia Antiga I, que mostrou-se mais objetivo para o estudo desse autor. Entretanto, entendo que se deve manter aberta a possibilidade de que Platão poderia estar falando da morte “de fato”. Assim, estaríamos diante de mais um modelo para a morte e, nesse caso, a descrição de Platão é mais uma que se soma às descrições místicas. O provável cerne de uma análise de Fédon, neste caso, seria a sua comparação com outros modelos, como aquele mencionado do Livro Tibetano dos Mortos, que, se não conduzida de modo adequado, poderia se tornar uma “discussão de fé”.

3.2 – Como foi Montado o Texto Literário da Morte?

O texto principal aqui lido, Fédon, faz parte do volume

Platão, da coleção “Os Pensadores”, publicada pela editora Nova Cultural, edição de 1991 (Platão, seleção de textos de Pessanha, J.A.M, 1991). Neste texto o organizador apresentou divisões internas com subtítulos, a maior parte dos quais é arrolada abaixo, mostrando como o autor apresenta as discussões de Sócrates em seu derradeiro dia. Na seqüência estão os títulos mais relacionados ao tema em tela. A paginação apresentada é a da versão lida.

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3.2.1 - O Prazer e a Dor (pg. 108) Resumo: Nesse item é perguntado a Sócrates porque fez

alguns versos, que nunca tinha feito, e sua resposta (de Platão) foi “por escrúpulo religioso”, explicando posteriormente este escrúpulo.

Na seqüência, Cebes pergunta a Sócrates como se pode defender a não-vilência contra si e se suicidar? Sócrates (Platão) menciona aqueles para os quais a vida é o bem maior, e aqueles que querem abandonar a vida, mas que esse direito deve ser dado por terceiros. São mencionados os deuses, dos quais somos propriedade, e que cuidam para que não saiamos por vontade própria da prisão em que estamos. Assim, seríamos mal-quistos se nos matássemos e, portanto, temos que esperar a permissão da divindade.

Cebes e Símias comentam que seria insensato que homens sábios quizessem fugir de bons donos ou de donos que valem mais que eles próprios, os deuses, e dos amigos (eles próprios). Sócrates (Platão) diz que isso é certo. Ele deveria se irritar contra a morte, mas não o faz porque sabe que encontrará bons deuses e homens que já morreram e que valem mais do que os daqui. Sócrates (Platão) diz que há uma tradição que menciona que a morte é melhor para os bons do que para os maus.

Comentário: Este item trás muitos elementos místicos,

como os deuses, a crença na vida após a morte, a crença de que a morte é melhor para os bons do que para os maus (recompensa), segundo a tradição. Também está afetada pela realidade do servo e do senhor, porque coloca o ser humano como propriedade de um deus, um ser superior. Esta é uma visão natural para a sociedade da época, que utilizava escravos dos povos sob domínio da Grécia. Os escravos eram inferiores a seus senhores. Um escravo inteligente estaria feliz com um bom dono. Pode-se perguntar se já há aqui a possibilidade de interpretação voltada

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para a aquisição de conhecimento. No meu entender, momentaneamente ainda não desponta essa possibilidade. Ainda se fala da morte como abandono dos amigos e o encontro de homens que já morreram.

3.2.2 - A Morte como Libertação do Pensamento (pg. 114) Resumo: Sócrates (Platão) informa que, como filósofo,

preparou-se a vida inteira para morrer e, portanto, não está irritado. Símias ri, dizendo que muitos veriam isso como um bom destino para os filósofos. Sócrates (Platão) diz que é preciso considerar que tipo de morte os filósofos merecem. Daí pergunta se a morte é a alma separada do corpo (ambos independentes). Símias responde que sim. Sócrates (Platão) pergunta se o filósofo em vida estaria preocupado com coisas do corpo ou da alma. A resposta é que estaria ocupado com coisas da alma. Assim, o filósofo surge como alguém que separa o corpo da alma e, para o vulgo, está mais próximo da morte. Daí o corpo é colocado, na discussão, como um entrave ao conhecimento, pelas limitações de seus sentidos. A alma atinge o conhecimento ao raciocinar, atitude que que é melhor atingida sem as interferências dos sentidos. De forma resumida, a assimilação do conhecimento é mais fácil sem a interferência dos sentidos. O justo em si mesmo, o belo em si, o bom em si, são entendidos em mais alto grau por aquele que utiliza do raciocínio sem o auxílio dos sentidos. As realidades verdadeiras seriam atingidas por aquele que se desembaraça de seu corpo. A verdade jamais será atingida enquanto houver a mistura da alma com o corpo. Assim, conhecemos os entes em si mesmo por intermédio da alma em si mesma. Teremos posse daquilo do qual nos consideramos amantes, a sabedoria, quando estivermos mortos. Durante a vida não teremos acesso a sabedoria, mas estaremos mais próximos do saber quanto mais nos afastarmos da sociedade e da união com o

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corpo, até o dia em que o próprio deus desfizer esses laços. Não é possível apossar-se do puro sem ser puro.

Comentário: Este item admite uma interpretação de

busca de conhecimento sem haver a morte de fato. Mais que uma interpretação, Platão afirma que o filósofo busca cuidar das coisas da alma ao invés das coisas do corpo durante sua vida, o que o remete à assimilação do conhecimento e às realidades verdadeiras. Há, por conseguinte, uma possibilidade aberta ao filósofo de aproximar-se do saber em se afastando da sociedade e do corpo. Isso é um ponto de vista defendido por Platão para a postura do filósofo: não se ocupar das coisas do corpo, mas da alma, ao longo de sua vida. Nesse caso, considerando o que Platão apresenta no texto, é um exercício que o próprio Sócrates seguiu. Esta parte do texto é bastante marcante, tanto que alguns autores de dicionários e organizadores de obras de história da filosfia a utilizam no verbete da definição da morte. Japiassú e Marcondes (2008), por exemplo, mencionam que “para Platão, filosofar é aprender a morrer; e a imortalidade da alma é um belo risco a ser corrido”. Padovani e Castagnola (1962) a mencionam para referir-se à morte do próprio Platão.

Na seqüência, entretanto, deus é mencionado e o seu poder de desfazer os laços de união entre alma e corpo, quando será possível ser puro e se apossar do que é puro. Note-se que esse aspecto está vinculado ao fato de que Sócrates vai morrer e o texto é localizado temporalmente no último dia de vida do filósofo. Embora este aspecto lúgubre sempre nos remeta à relidade dessa morte física, o contexto desta parte da narrativa permite interpretar que não necessariamente o filósofo deve buscar sua morte, mas buscar o conhecimento e se preparar para a morte. No curso de História da Filosofia Antiga I a possibilidade de que se tenha procurado evidenciar essa postura ao filósofo foi enfatizada, o que representou um aspecto positivo no acompanhamento desta narrativa. Caso contrário, não haveria um “ensinamento” prático a extrair dela, mas apenas se estabeleceria um contato com um modelo para a morte.

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3.2.3 - A Purificação (pg. 120) Resumo: Sócrates (Platão) diz que há nele uma grande

esperança, que seu pensamento está pronto e purificado, sendo a purificação justamente o esforço de separar alma e corpo durante a vida, ou seja, o esforço do filósofo. Assim, não há como irritar-se frente a morte, que é a separação da alma e do corpo. A sabedoria almejada é encontrada no outro mundo. Quem se irrita na morte, ama o corpo. Sócrates (Platão) fala da coragem, da temprança e da prudência, dos homens e dos filósofos frente a morte. Menciona que os que não foram iniciados morarão no lodaçal, e aqueles purificados morarão com os deuses. Os filósofos compõem o segundo grupo e Sócrates (Platão) se (o) coloca neste grupo. Mas comenta que, se tudo o que fez foi certo ele espera saber, se deus quiser, em breve, sendo esta a opinião dele.

Comentário: A menção do preparo do filósofo ao longo

da vida ainda permite tratar de forma mais prática este trecho da narrativa e associar a busca do conhecimento com o esforço de afastar a alma do corpo. Nesse caso, mantém-se a possibilidade da metáfora.

Porém, a seqüência do texto fixa-se na possível irritação frente a morte, na comparação entre profanos e purificados, na morada no lodaçal ou ao lado dos deuses (recompensa), temas que novamente introduzem aspectos místicos. Ao final, o autor novamente nos leva à menção da morte de Sócrates, porque o personagem comenta que em breve terá a resposta sobre o resultado de seus atos. Assim, este retorno intermitente à situação da espera da morte não permite que se desenvolva a idéia da metáfora de forma contínua, o que, naturalmente, induz que o leitor se atenha ao aspecto físico da morte.

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3.2.4 - A Sobrevivência da Alma (pg. 125) Resumo: Cebes comenta que a separação entre alma e

corpo não garante a sua sobrevivência. Ela pode deixar de existir no momento da separação. Sócrates (Platão) concorda, e diz que tal coisa deve ser vista mais a fundo.

Sem comentários.

3.2.5 - Os contrários (pg. 126) Resumo: Sócrates (Platão) pergunta se as almas dos

defuntos estão no Hades. Se, segundo a tradição, há o renascimento dos mortos. Não poderia haver renascimento se não houvessem almas. Se não for assim, outro argumento é necessário, com o que Cebes concorda. Daí Sócrates (Platão) utiliza de exemplos de contrários para dizer que esses nascem das coisas que lhe são contrárias. Posteriormente, menciona que suas propriedades são reconhecidas concomitantemente mutuamente contrárias e que provêm de seus contrários. Com este racioncínio, a morte provêm da vida e a vida provêm da morte. Nesse caso, as almas dos vivos vem do Hades. Seguindo nesta idéia, como houve o morrer e o ir ao Hades, há o reviver. Após uma discussão sobre esses pontos, reafirma-se que há o reviver, que os vivos provêm dos mortos, que as almas dos mortos têm existência e que a sorte das almas boas é melhor do que a sorte das almas ruins. Cebes comenta que em outra oportunidade Sócrates argumentava que aprender é recordar, o que mostrava a imortalidade da alma. Sócrates (Platão) comenta então que, para recordar algo é preciso ter sabido este algo. Adicionalmente, ao ver um objeto, podemos recordar de outro totalmente diferente, mas que lhe tem certa relação. Pode-se, então, lembrar de algo semelhante ou dessemelhante. Ao observar várias coisas, temos noção se são iguais ou não. Elas podem ser iguais em certa

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medida, e em certa medida não, uma situação que, interessantemente, nos revela que há aquilo que é “igual em si”. Entretanto, para que nós tenhamos em nós essa noção do “igual em si”, ela forçosamente deve ter vindo do conhecimento prévio do “igual”. E, como temos esta noção antes de ver ou ouvir, ela estava em nós antes de nascermos. Assim, o belo em si, o justo em si, e todas essa idéias estão em nós como conhecimento permanente. Portanto, ao buscar um conhecimento, estamos de fato aprendendo por recordar do que já sabíamos. Instrução, nesse caso, é reminiscência. Sócrates (Platão) então faz perguntas e induz respostas que mostram que nem todos tem conhecimento das idéias, que os homens recordam o que conheciam no passado, que as almas têm conhecimento das idéias antes de nascermos, que as almas existem antes do nascimento. Símias então comenta que ainda assim, a alma pode deixar de existir com a morte. Sócrates (Platão) comenta que o viver (nascer) a partir do morto já é uma prova de que a alma permanece. Mas vale a pena procurar outra prova. Sócrates (Platão) coloca em discussão o mutável e o imutável, o visível e o invisível e, por fim, a alma e o corpo. A alma tem mais semelhança com o invisível e o corpo com o visível. A alma se utiliza dos sentidos do corpo para investigar algo, mas titubeia. Enquanto a alma é só ela, trabalhando com objetos puros, mais próximos a ela, mostra-se como pensamento. A alma se aproxima então daquilo que é permanente. Na seqüência, a alma se aproxima do divino e o corpo do mortal. O corpo se dissolve naturalmente, embora isso possa demorar, e ele pode ser mantido artificialmente, como as múmias. A alma, por sua vez, pode se dissolver, ou ficará com os deuses (que é o desejo que Sócrates – Platão - manifesta).

Comentário: Nesse trecho pouco se pode falar de uma

separação ideal de corpo e alma para atingir o conhecimento, ou seja, de uma continuação da metáfora. Isso porque literalmente se fala em um lugar para as almas após a morte e da possibilidade de sua extinção, e também no renascimento. Toda a discussão é fundamentada na busca de uma explicação

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convincente para a imortalidade da alma. Sócrates (Platão) mostra que a alma existe antes do nascimento, baseado na idéia de que nos lembramos de coisas que já sabíamos e, nesse caso, aprender é relembrar. Nesse contexto, não há como associar a busca do conhecimento com o esforço de separação em vida entre alma e corpo, porque a discussão está concentrada em explicar como o conhecimento já existia antes de nós partirmos em sua busca. Ou seja, a discussão migrou para o extremo oposto da vida, ou ao nosso nascimento, a partir do qual nos recordamos daquilo que já sabíamos. Na seqüência, qualquer busca de conhecimento é apenas o relembrar das formas ideais. Mas isto tirou o foco da discussão de uma possibilidade de metáfora e nos coloca de fato a considerar o que ocorre com as almas quando não estão no corpo.

Note-se que o tema, como discutido, é o que interessa no presente estudo. Mas vale mencionar que os autores que discutem Platão mencionam que a sua teoria da reminiscência visa responder a objeção sofística da inutilidade e da impossibilidade do conhecimento. Sendo assim, esta teoria faz do conhecimento um reconhecimento, suplantando a dificuldade (tradução nossa) (Hansen-Love, 2011). Outros autores, argumentando no mesmo sentido, mencionam a obra Mênon e comentam que a teoria é uma tentativa de explicar o caráter inato ou não-aprendido do conhecimento dos princípios básicos, respondendo ao paradoxo da aprendizagem (Blackburn, 1997). Bostock (199?) mostra que há muitos aspectos a tratar acerca da teoria da reminiscência, e expõe detalhes ao longo de 56 páginas, concluindo interessantemente que é certo supor que o conhecimento filosófico do Bem, se atingível, deve ser atingido a priori. Não se pode atingí-lo investigando as coisas boas do mundo, porque é muito incerto saber quais coisas são boas (tradução nossa).

O que desponta mais evidentemente nesta parte da narrativa é que se tem um modelo de morte. O trecho evidencia o renascimento (reencarnação) e a lembrança em vida do que era conhecido antes do nascimento. Tal modelo encontra paralelos

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em diferentes correntes místicas, como aquelas que se baseiam no budismo ou no cardecismo.

3.2.6 - O Destino das Almas (pg. 146) Resumo: Admite-se como exemplo uma alma pura que

se separou do corpo, alma que se dedicou à filosofia, portanto ao exercício para a morte. Sendo assim, ela se dirige àquilo que dela se assemelha, ou seja, passa na companhia dos deuses o resto dos seus tempos. Daí admite-se um novo exemplo, uma outra alma que, por sua vez, estava intimamente vinculada aos prazeres corpóreos. Ao se separar do corpo, ela vagueia pelos monumentos funerários e sepulturas, onde já foram vistos espectros, tornando-se ela mesma visível. As primeiras são as almas dos bons, e essas últimas são as almas dos maus. E essas, segundo Platão, entram nos corpos de animais com características semelhantes àquelas das atitudes que os homens tinham enquanto vivos. A divindade só é atingida pelo filósofo.

Comentário: A menos que haja uma metáfora subjacente

(que não foi percebida nesta leitura), a descrição é apenas a continuação do modelo de morte já anteriormente exposto. As menções dos espectros vistos em sepulturas conferem certa irrealidade à explicação. Considerando visões de fato em locais de deposição dos mortos, hoje temos explicações para isto. Ainda que emanações gasosas de fato incendeiem em sepulturas (os fogos fátuos), isto está evidentemente longe de ser uma alma. Nesse caso, muito provavelmente a explicação dada por Platão repousa em interpretações da realidade, do fato físico, fundamentadas nas possibilidades de explanação da época. Platão não tinha conhecimento das características termodinâmicas desses gases (algo que a ciência só veio esclarecer cerca de dois milênios depois). Assim, essa parte do texto tem componentes incertos, ou incorretamente explicados. Pessoalmente, quando

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uma explicação ou descrição repousa na ignorância acerca dos fenômenos físicos (tomados como fenômenos de outra natureza), menciono que não é conveniente que emitamos julgamentos acerca dessa postura, porque também nós emitimos opiniões com base naquilo que consideramos correto hoje e que poderá parecer ridículo aos que virão depois de nós, quando conceitos mais próximos da realidade tiverem sido elaborados. Assim, a conclusão mais relevante é que o modelo de morte é evidenciado neste trecho da narrativa.

3.2.7 - A Função da Filosofia (pg. 149) Resumo: Sócrates (Platão) justifica porque o filósofo se

abstém dos valores usualmente apreciados pelos outros seres humanos, com o que Cebes concorda. A rota da filosofia é apontada como purificadora. Sócrates (Platão) descreve o corpo como prisão da alma e a filosofia como sua libertadora, e o verdadeiro filósofo não se opõe a esta libertação. Os prazeres e dores das coisas corpóreas agem com um cravo que prende a alma ao corpo, tornando-a material, fazendo com que atinja o Hades fora do estado de pureza, contaminada pelo corpo do qual sai e entrando logo em outro corpo. Assim, perde o direito de estar com o divino. O filósofo acalma as paixões, e irá ao que lhe é semelhante quando a alma se separar do corpo. Símias não se mostra convencido com as provas apresentadas por Sócrates, dizendo que Cebes também não está. São apresentados os argumentos da dúvida. Na página 159, sob o título de “Fédon retoma a narrativa”, a versão lida inicia a apresentação dos argumentos de Sócrates (Platão). Este diz que não devemos nos tornar inimigos da ciência. O ódio à ciência nasce como nasce o ódio aos homens, ou seja, pela decepção de alguém em quem confiávamos. Mas vivemos em uma humanidade que não é totalmente boa nem má. Assim, quem odeia o homem age mal. Uma pessoa que não argumenta como na filosofia, se entrega

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facilmente a um argumento, para, depois, achar que ele é falso. Essa pessoa titubeia, e, por vezes, a sua incapacidade faz com que negue um argumento verdadeiro, o que seria um desastre. Sócrates (Platão) passa a discorrer longamente sobre a harmonia e a alma, concluindo que a alma não pode ser simplesmente harmonia, porque esta está sujeita às coisas que conduzem à harmonia, e não comanda essas coisas. A alma, por sua vez, comanda o corpo e não se sujeita a ele.

Comentário: O texto aqui resumido é de fato bastante

longo, e os argumentos multiplicam-se, havendo muitos detalhes que não estão expostos aqui. Inicialmente, por comentar sobre aquilo que é valorizado pelo filósofo enquanto em vida, pode-se considerar a metáfora da busca do conhecimento pelo esforço de separação entre corpo e alma. O texto deste sub-título não é conclusivo no que tange à manutenção da alma após a morte, que é a pergunta motivadora desta parte do Fédon. Esta é a razão de não apreentar ou discutir esses argumentos aqui, uma vez que a discussão seria também longa, decorrente da prórpia apresentação original dos mesmos. Assim, esta parte da narrativa fica mais marcada, nesta leitura, pelas afirmações de que o corpo prende a alma, de que a alma contaminada penetra logo em outro corpo, não indo para a divindade. As questões da harmonia colocam a alma como aquela que comandaria, e não que obedeceria o corpo.

Por se tratar de uma discussão que pretende provar a manutenção da alma após se separar do corpo, mas que não concentra esta discussão na aquisição de conhecimento, não se pode considerar a metáfora mencionada como válida ao longo de todo o sub-capítulo. Quando o autor fala de um procedimento, este é o de bem proceder para que a alma encontre a divindade quando se separar do corpo. A presença da divindade dificulta a interpretação desse encontro como algo vinculado ao conhecimento humano. A divindade é um elemento estranho à racionalidade. Assim, ao final deste trecho, retorna-se à idéia de que se está tratando de um modelo para a morte.

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3.2.8 - O Problema da Física (pg. 170) Resumo: Sócrates (Platão) descreve sua paixão juvenil

pelas coisas da natureza, confessando-se inapto (nesse caso, provavelmente Platão descreve coisas que conhecia de seus contatos com Sócrates). Comenta então sobre o crescimento fisiológico e a comparação de tamanhos e valores, para em seguida mostrar que suas perguntas filosóficas empanaram a objetividade de seus conhecimentos. Posteriormente, diz então ter conhecido um texto de Anaxágoras, onde o espírito era apontado como a causa de todas as coisas. Daí discorre sobre o que esperava fosse explicado pelo espírito e por Anaxágoras. Mas a sua decepção foi grande, porque as causas descritas eram físicas, e não atingiam as perguntas de Sócrates. Assim, todas as coisas, como as forças do universo, não tinham explicação.

Comentário: Esta é a continuação da discussão que

propõe que não se deve odiar a ciência porque nos decepciona. Platão mostra que Sócrates tinha uma curiosidade juvenil muito aguçada, que poderíamos classificar de científica nos dias de hoje (filosófica para ele). A tradução coloca termos muito apropriados para as buscas e as dúvidas de Sócrates. Interessantemente, a objetividade que se vê nessas palavras, some quando Sócrates se confessa ignorante atualmente. A clareza da descrição some frente a argumentação que se classifica como filosófica. O desconforto sentido pelo leitor é de que houve uma corrupção da clareza de Sócrates, tendo este “perdido a noção do limite” que há nas descrições obtidas com as ferramentas por nós desenvolvidas. Suas dúvidas passam a questionar, parece, os componentes das ferramentas, e não objeto de estudo. Em outras palavras, parece que houve perda de foco, ou mudança de foco. Talvez seja um artifício literário de Platão, mas pode ser uma descrição de fato de uma limitação.

Ao mencionar Anaxágoras, Sócrates (Platão) mostra uma busca de uma causa que, para ele, se mostra infrutífera. Diz que

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Anaxágoras colocava causas fora do espírito, enquanto afirmava ser o espírito a causa. Apesar de se mostrar claro na busca da causa que mantém o equilíbrio do universo, Sócrates (Platão) mostra uma expectativa que vai além de sua possibilidade de explicação. Nesse caso, Platão (o autor do texto) provavelmente atingiu o limite de sua própria ciência, e expressa isto nesse texto. De fato, uma explicação das forças (termo usado na tradução) que equilibram o universo só foi atingida com os estudos de Galileu Galilei e Newton, cerca de dois mil anos depois. Esta parte da narrativa é mais autobiográfica e mais realcionada às coisas físicas, sendo como um “aposto” na narrativa vinculada à morte.

3.2.9 - A Idéia (pg. 174) Resumo: Sócrates (Platão) retorna à noção das “coisas

em si” e diz que se há uma coisa que reconhecemos como tal, ela participa da coisa em si. Assim, se algo é belo, é porque participa do belo em si. Em seguida, um jogo de palavras substantivando adjetivos é usado para falar de tamanhos relativos. Daí passa-se a explicar a quantidade em si, de forma que 1+1 não forma o 2, mas apenas surge a idéia do 2 que participa da idéia do 2 em si. Em seguida, expõe que os filósofos se afastam daqueles que discutem sobre os números, passando a testar suas teses, de que há a existência real de cada idéia. Símias e Cedes concordam.

Comentário: Platão apresentou o seu modelo das idéias,

na pessoa do personagem Sócrates. Não se busca, aqui, discorrer sobre as idéias, mas perseguir a proposta de provar a imortalidade da alma, que foi a proposta original de Platão, ao colocar Sócrates respondendo às dúvidas de Cebes e Símias. Assim, a noção obtida com esta passagem, embora relevante no contexto do pensamento de Platão, não será aqui desenvolvida. Menciona-se que, embora Platão coloque a teoria das idéias nos

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lábios de Sócrates, os comentadores consideram que esta teoria é própria de Platão, não tendo se delineado da noita para o dia (ver, por exemplo, Bergson, ed. 2005). Embora também não tenha sido a postura adotada nesta leitura, vale mencionar que Ross (199?) comenta que as idéias “estão quase que onipresentes” no texto de Fédon, porém sempre subordinadas à prova da imortalidade. Na presente leitura, como já comentado, buscou-se considerar o ponto de vista acompanhado em sala de aula, ou seja, verificar a possibilidade de associar a morte a uma metáfora de aprendizado para o filósofo.

3.2.10 - O Problema dos Contrários e a Idéia (pg. 178) Resumo: Novamente é discutido o tamanho relativo das

coisas, assumindo, como sempre, a postura de que a grandeza relativa é contraditória. Daí alguém remete à afirmação de que as coisas nascem de seus contrários, o que estaria sendo contestado pela nova descrição feita, de que há contradição entre grandezs relativas. Sócrates (Platão) responde dizendo que antes se falava de coisas que tinham qualidades contrárias e que agora se fala dos contrários que estão dentro das coisas e lhes dão o nome. Assim, um contrário não pode ser o seu contrário. Surge a descrição de que o fogo não é o calor e a neve não é o frio. Aproximando fogo e frio, um pode afastar-se, mas ambos serão sempre fogo e frio. Depois surge a descrição da paridade e imparidade, e dos números que podem ser os próprios números e também pares ou ímpares. A partir disso, é informado que aproximando o três do par, o três antes se destruiria a ser tornado em par. Assim, não é uma questão apenas de contrários se aproximarem, mas de alguma idéia associada às coisas. Conseqüentemente, o que contém a idéia do três não é só o três, mas também a idéia de ímpar. O três nunca será par, portanto é ímpar. O três, sem ser contrário ao par, não o aceita. Então é

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perguntado o que produz a vida. A resposta é a alma. Em seguida pergunta-se o que é oposto à vida e a resposta é a morte. A alma não aceita o contrário do que traz consigo, e a alma não admite a morte. Portanto, a alma é imortal. Na seqüência, os argumentos levam à conclusão de que o que é imortal é indestrutível e, por conseguinte, a alma é imortal e indestrutível. Quando a morte vem ao homem, morre a parte mortal, mas a parte imortal subsiste.

Comentário: Ao inserir a idéia dos contrários, e,

posterioremente, a ideía de que as coisas têm mais propriedades em si e que essas propiedades podem ser contrárias, embora as coisas não sejam, Platão abriu a possibilidade de atrelar qualidades às almas, que “repelem” seus contrários. Uma alma, que produz vida, não aceita a idéia da morte e, portanto, é ela própria imortal. O uso de números como coisas que não são contrárias entre si poderia ser substituído por qualquer conjunto de elementos não contrários, aos quais se atrelaria propriedades definidas no contexto humano, consideradas posteriormente gerais. Assim, por exemplo, poderia ser usado o conjunto de todas as cores. Elas não são contrárias entre si. Nada faz o amarelo ser contrário do laranja, ou do cinza. Mas pode-se atrelar alguma propriedade às cores. Assim, por exemplo, pode-se dizer que a idéia do azul não é só do azul, mas também é a idéia da cor primária. O azul nunca será uma cor secundária, portanto é primária. O azul, sem ser contrário ao secundário, não o aceita.

Assim, a questão da imortalidade da alma foi considerada resolvida por Sócrates (Platão), na aquiescência de seus interlocutores, segundo a descrição de Platão. Com isso, tem-se que a alma existe antes do nascimento e não é destruída após a morte, sendo imortal. Isto não remete à busca de conhecimento em vida, nem ao esforço do filósofo em buscar a separação entre alma e corpo. O texto fala da separação real, e, como já frisado, da imortalidade da alma. Assim, esta parte da narrativa concentra-se no modelo para a morte.

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Na seqüencia, descreve-se o mito do destino das almas (pg. 188), onde descrições da Terra, com cavidades e buracos misturam-se a abismos, rios lagos, e para onde os mortos são conduzidos, sendo também julgados. Como esta parte não foi discutida em sala, não envolve a prova da imortalidade da alma, e seu conteúdo claramente mostra ser um modelo místico, não se vê necessidade em descrevê-lo. Tal postura já assumimos também, por exemplo, ao não ver necessidade em descrever as passagens do Livro Tibetano dos Mortos, que considera outro modelo para a morte, ainda que seja interessante.

4 – Conclusão Considerando o texto lido, e a tentativa feita de localizar

passagens nas quais a uma metáfora de morte poderia ser considerada, pode-se concluir:

- Existem de fato passagens nas quais Platão sugere uma

postura do filósofo que seja “a preparação para a morte”, que implica em “exercitar” a separação entre corpo e alma para atingir mais adequadamente o conhecimento. Nesse caso, este esforço de separação pode ser associado a uma metáfora da própria morte.

- Entretanto, o texto como um todo apresenta um modelo

para a morte, considerando a imortalidade da alma, o conceito de que aprender é relembrar, a possibilidade de haver a recompensa de morar junto aos deuses ou de morar “no lodaçal”, a possibilidade de a alma penetrar em animais, a aceitação do rensacimento, a existência de um local no qual as almas dos mortos esperam (Hades), entre outros elementos que conferem à descrição o status de um modelo.

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- Como se trata de um relato acerca do último dia de Sócrates, ou de suas últimas horas, a morte “de fato” do personagem permeia o texto, mais uma vez reforçando a idéia de que as discussões apontam essencialmente para um modelo da morte. Nesse caso, o modelo não visa explicar fatos observados (no início deste texto mencionou-se a postura atual de classificar os relatos de experiências de quase-morte, e um modelo que parece utilizar fatos observados foi rapidamente mencionado), mas visa dar subsídios racionais para as expectativas de Platão. O modelo descreve um trajeto para as almas após a separação do corpo e o renascimento. A expectativa de a alma existir antes do nascimento e depois da morte compõe o tema “provado” pelos argumentos de Platão. O trajeto em si, com os locais passados, rios, etc., fundamenta-se na “tradição”, e, portanto, compõe a parte “não provada” do modelo (perdendo também sua objetividade racional).

Vale mencionar o que é apresentado no verbete “Morte”

de Abbagnano (2007): para doutrinas que admitem a imortalidade da alma, a morte é entendida como início de um ciclo de vida. “Para elas, a morte é o que Platão chamava de ‘separação entre alma e corpo’ (Fed. 64c). Com essa separação de fato, inicia-se o novo ciclo de vida da alma: seja ele entendido como reencarnação da alma em novo corpo, seja uma vida incorpórea”. Esta descrição, baseada no texto do Fédon, também classifica este texto como um modelo para a morte.

Harry Edmar Schulz São Carlos, São Paulo, Dezembro de 2011

Modelo ou Metáfora? A morte em Fédon, Harry Edmar Schulz

São Carlos, 2011. Projeto: Humanização como ferramenta de aumento de interesse nas exatas.

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5 – Referências Bibliográficas

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Neto, B.P., Ed. Martins Fontes, São Paulo. Blackburn, S. (1997), Dicionário Oxford de Filosofia, Jorge

Zahar Editores, Rio de Janeiro. (#) Bostock, D. (199?), The Recollection Argument (72e-77d),

in: Plato’s Phaedo, Clarendon Press, Oxford, pp. 60-115. Coleman, G.; Jinpa, T.; Dorje, G. (2010), O Livro Tibetano dos

Mortos, Ed. WMF Martins Fontes, São Paulo. Dorion, L.A. (2011), A Figura Paradoxal de Sócrates nos

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(#) Ross, D. (199?), El Fédon, in: Teoría de las ideas de Platón,

Colección Teorema, Ed. Catedra Teorema, pp. 39-48. (#) Referências incompletas decorrentes das cópias xerográficas

consultadas. (@) Referência incompleta porque o ano de publicação não

consta no livro adquirido. Imagem da capa: A flor da cicuta é muito delicada, atraente, mas o alcalóide da planta é altamente tóxico. A capa mostra o veículo pelo qual Sócrates (elemento histórico e personagem de Platão) foi morto. A capa não transmite a idéia da morte descrita no Fédon, assim talvez como a morte em Fédon não transmita a idéia do que de fato venha a ser a morte. Na dúvida, usemos a imagem mais atraente, ou mais branda. Platão também seguiu este caminho.