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6º Nas Nuvens... Congresso de Música – de 01 a 08 de dezembro de 2020 – ANAIS Artigo
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Nas Nuvens... Congresso de Música: http://musica.ufmg.br/nasnuvens ISSN: 2675-8105
A música ligeira para flauta na segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro: breve panorama a partir de uma pesquisa hemerográfica
Paula Martins1
Categoria: Comunicação
Resumo: Este artigo é parte de uma pesquisa sobre o estudo técnico- interpretativo da obra de flautistas- compositores da segunda metade do século XIX no Rio de Janeiro. Na primeira etapa, buscou-se informações acerca do contexto histórico- musical que envolveu o repertório ligeiro através da consulta em periódicos da época. Desta forma, constatou-se o envolvimento da música ligeira no mercado musical, no campo do entretenimento e no desenvolvimento do que conhecemos hoje como música popular, sobretudo o gênero choro. Palavras-chave: Música ligeira. Música brasileira. Flauta transversa.
Light music for flute in the second half of the 19th century in Rio de Janeiro: a brief overview from a hemerographic survey Abstract: This article is part of a research on the technical-interpretative study of the work of flutists-composers of the second half of the 19th century in Rio de Janeiro. In the first stage, information was sought about the historical-musical context that involved the light repertoire through consultation in periodicals of the time. Thus, the involvement of light music in the music market, in the field of entertainment and in the development of what we know today as popular music, especially the choro genre, has been verified. Keywords: Light music. Brazilian music. Transverse flute.
Introdução
A segunda metade do século XIX foi extremamente profícua para a flauta
transversa em nosso país. A chegada de músicos estrangeiros e a maior aderência ao
sistema moderno elaborado pelo flautista Theobald Boehm foram fatores fundamentais
neste processo. Em um cenário de inúmeros teatros e espetáculos musicais, o repertório
ligeiro fazia grande sucesso entre a classe urbana carioca nas festas e salões burgueses.
Concomitantemente, acontecia nas ruas um movimento musical que culminou no gênero
que conhecemos hoje como choro.
1 Doutoranda na Pós- Graduação em Música na UNIRIO. Bolsista CAPES. E-mail:[email protected].
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Nos primórdios do nascimento do choro, as música tocadas nos salões da côrte
pertenciam ao repertório denominado ligeiro. Esse repertório que também envolvia as
operetas, músicas de cafés e teatros de revista, tinha como característica a leveza,
brevidade e despretensão estética (BASILE, 2015). Rónai e Frydman, ao referirem-se a
música de salão do século XIX, comenta que este repertório ainda é banido a um “meio
termo” na classificação erudito/ popular:
Quando se fala em música de salão (valsas, polcas, habanera, etc.) é praxe não a classificarmos como popular, mas também não a consideramos clássica. Na verdade ela é geralmente vista como uma espécie de música clássica de segunda categoria, assim como a opereta. [...] já houve época em que nenhum músico clássico de respeito ousaria confessar sua predileção por este repertório, mesmo sob tortura! E nem foi há tanto tempo assim. O que relega essas peças para o limbo de uma meia vida? (RÓNAI, Laura; FRYDMAN, Cláudio, 2009, p. 6).
O questionamento levantado pela autora, remete à dualidade que envolve a
interpretação do repertório ligeiro. Na busca por uma maior compreensão do nosso
objeto de estudo, recorreu-se a historiografia da música popular urbana brasileira através
de uma pesquisa hemerográfica na Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro. Tomou-se como foco principal deste trabalho, a cidade do Rio de Janeiro por se
tratar da capital do Império, centro da grande complexidade cultural no século XIX e local
por onde transitaram alguns dos flautistas- compositores mais proeminentes da época e
que são apontados como importantes figuras pertencentes aos primórdios do gênero que
conhecemos hoje como choro: Joaquim Callado (1848-1880) e Viriato Figueira da Silva
(1851-1883).
Ulhôa e Costa-Lima (2014), consideram os jornais fontes importantes de
pesquisa no estudo da música urbana brasileira do século XIX. A autora apresenta como
uma das possibilidades metodológicas na pesquisa da música brasileira a abordagem
sincrônica, ou seja, aquela envolve a contribuição de outros profissionais, como editores
e impressores, além dos músicos e do próprio público. É nesta perspectiva que se dará
este relato, considerando a participação de outros mediadores, como editores de jornais,
dos impressores de partituras, do músico amador, do público e dos músicos.
1. O repertório ligeiro e o mercado musical
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A circulação da música no período em questão acontecia primordialmente
através de partituras ou através da transmissão oral, tendo em vista que o rádio só
chegaria ao Rio de Janeiro na década de 1920. Essa música acontecia em diferentes
ambientes da cidade, transitando entre o salão e a rua.
O repertório ligeiro obteve grande sucesso na capital do Brasil, sobretudo a polca.
À partir de 1844 a polca tornou-se mania nacional, inicialmente nos salões burgueses,
abrangendo também o mercado editorial (Figura 1).Na edição de 1880 da Revista
Ilustrada Musical e de Bellas Artes, após publicarem diversas notas de polcas compostas
recentemente, inclusive a polca Caiu.. Não disse!, de Viriato Figueira, o editor A. de Lino
encerra a publicação da seguinte forma: “Parece que desta vez não ficou gato pingado sem
arrebanhar quatro colcheias e duas fusas para oferecê-las a gente com o nome de polca.
Arre!”(REVISTA ILUSTRADA (RJ), 1880, p.6 )
Fig. 1. Anúncio de venda de polcas de Joaquim Callado. Jornal Commercio, 13/03/1869. Ed. 71. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A música de salão, também estava presente em boa parte dos programas de recitais
da segunda metade do século XIX e até nos intervalos de óperas. Neste programa (Figura
2), Callado e Figueira apresentaram fantasias em seus instrumentos no intervalo de uma
opereta, prática comum nos programas musicais dos teatros da época.
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Fig. 2. Programa de concerto com o repertório ligeiro. Jornal do Commercio, 26/01/1872. Ed. 26. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A elite cultural juntamente com a monarquia brasileira, através de um plano de
construção de tradições nacionais, influenciava os campos de consumo da sociedade.
Ainda com a maior parte da população analfabeta2 e com conhecimento restrito de leitura
musical, os iletrados usufruíam do repertório consumido através do que Leme (2006)
chama de “leitura indireta”.
2 Como menciona Schwarcz (2008, p.166), o recenseamento de 1872 indicava que apenas 16% da população
brasileira era alfabetizada. Na população escrava, o índice chegava a 99, 9%, o que demonstra o acesso à educação
restrito à elite da época.
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A multiplicidade do mercado musical, como ressalta Volpe (2010), foi apoiada por
um conjunto de fatores: a instrução musical, a performance pública e as séries editoriais.
As publicações eram vendidas individualmente, permitindo ao cliente a escolha de seu
gênero favorito. Vale ressaltar que, as linhas editoriais constituíram importante
estratégia, não somente do ponto de vista comercial, mas também nas práticas sociais do
consumidor. Tanto os gêneros musicais quanto os valores culturais, fomentaram um
processo de criação de uma identidade nacional através de valores sociais e práticas
musicais com intensa participação do público amador. Este fazia parte da clientela das
lojas de música e editoras de partituras, que ofereciam partes de danças da moda,
variações, fantasias e reduções de ópera (Figura 3) para diferentes formações. Para Volpe,
“mais do que os grandes compositores e virtuoses, o músico amador foi o protagonista da
cultura musical do século XIX [...]” (VOLPE, 2010, p. 27).
Fig. 3. Anúncio de reduções para piano da ópera A força do Destino. Jornal do Commercio, 23/07/1871. Ed. 202. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
De acordo com Requião (2014, p. 65), foi a partir do século XIX que o músico
passou a adquirir certa autonomia do seu trabalho e quando se desenvolveu um mercado
“para a compra e venda de serviços musicais.” A arte passou a ser mediada por editores
de música, empresários e negociadores e a impressão musical foi um fator crucial neste
processo, fazendo da música um bem consumível. Leme (2006), atribui a participação
efetiva dos compositores, copistas e compiladores de repertório como decisivas neste
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processo. Eles tinham como função garimpar as obras a serem lançadas pelas editoras da
cidade e foram responsáveis pela solidificação de tradições e do conceito de música
popular, firmado no século XX. O diálogo entre as editoras e os intelectuais da época
procurava criar tradições nacionalistas, na intenção de estabelecer um mercado
consumidor. Para isso, foram consolidados certos modelos musicais, como aponta Leme:
[...] os editores tiveram importantes aliados: os homens letrados defensores de um projeto nacional, os folcloristas preocupados em mapear aquilo que nos fazia únicos diante das outras nações, ou seja, nossas “raízes”, nossos costumes e tradições. Tudo isso foi estratégico para a consolidação do mercado de música no país, mais voltado para as camadas médias e populares, principalmente no Rio de Janeiro. (LEME, 2006 , p. 124)
Nas casas das “boas famílias”, era bem vista a presença de um piano para ser tocado
pelas moças, muito mais pelo status social que o instrumento representava do que pelo
sentido da educação estética. O Jornal das Senhoras3, instrua suas leitoras sobre diversos
temas, entre eles, a música. O caráter pedagógico chama a atenção, pois traziam impressas
partituras para que as moças aprendessem a tocar (Figura 4), geralmente tendo o piano
como instrumento indicado, além de comentários sobre concertos e eventos musicais, no
intuito de instruir as leitoras sobre a prática musical na capital imperial. Esta forma de
divulgação aliada ao modismo atribuído ao piano, contribui para o incremento do
mercado musical voltado para a venda de partituras dos gêneros ligeiros.
3 Periódico publicado entre 1852 e 1855, no Rio de Janeiro. Voltado ao público feminino, apresentava conteúdo
sobre moda, literatura,, além de trazer nos últimos domingos de cada mês, uma partitura do repertório ligeiro.
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Fig. 4. Partitura de Lundum das Moças. Jornal das Senhoras, 13/06/1852.Ed.24. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Apesar do piano ser o instrumento “da moda’ na capital imperial, a flauta também
apresentava popularidade através da venda de partituras com o repertório de sucesso da
época. Além do piano, encontra-se inúmeros anúncios de músicas do repertório ligeiro
para flauta transversa geralmente com o valor em torno de 500 réis. Destaca-se, no
anúncio a seguir, o apelo do editor ao afirmar que as peças estão em tons fáceis para o
instrumento, são de execução descomplicada e que podem ser tocadas por qualquer
pessoa (Figura 5):
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Fig. 5. Anúncios de partituras para flauta. Jornal do Commercio, 15/12/1867.Ed..348. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
A partir da década de 1850, com a institucionalização do ensino da música, verifica-
se uma fase extensa de profissionalização além de maior procura pela flauta por músicos
amadores. Tal fator expandiu o campo de atuação de professores para aulas particulares,
como observamos no anúncio abaixo em que um professor de flauta oferece seu serviço
considerando ter conhecimento do novo sistema Boehm4, implantado em 1847(Figura 6):
Fig. 6. Oferta para aulas particulares de flauta. Jornal do Commercio, 27/06/1860. Ed. 177. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Toda a propagação do repertório ligeiro e a popularização da flauta também
incitou o mercado de compra e venda de instrumentos, como pode-se atestar no anúncio
seguinte (Figura 7):
4 Virtuoso flautista alemão, compositor e físico, Theoblad Boehm( 1794- 1881) desenvolveu em 1847, a flauta
de prata com corpo cilíndrico utilizada até os dias atuais pelos flautistas.
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Fig. 7. Anúncio de venda da flauta Boehm. Jornal do Commercio, 24/02/ 1871. Ed. 54.Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Observa-se, através dos periódicos como apropriação dos gêneros importados,
bem como a nacionalização das danças estilizadas pertencentes ao repertório ligeiro
tornaram-se o centro da economia no âmbito musical, convertendo-se na principal
receita do mercado editorial que atingia diferentes camadas da sociedade, como salienta
Volpe: “A popularidade dos arranjos operísticos, reduções, variações e fantasias, bem
como as danças estilizadas como as quadrilhas, valsas e polcas são bons exemplos da
disseminação do repertório através de diferentes classes sociais.”5 (VOLPE, 2010, p. 19,
tradução nossa). Nesse sentido, a importação dos gêneros europeus não apenas modificou
o mercado musical ou possibilitou a geração de um “tipo brasileiro” de música, mas
culminou em diferentes maneiras de expressão na performance e abriu caminhos para
novas formas de divertimento da sociedade urbana carioca.
2. A música ligeira e o entretenimento na capital imperial
Com a chegada da corte em 1808, a vida social e a paisagem urbana do Rio de
Janeiro passaram por um processo de adaptações espelhados nos moldes europeus. Ao
longo de todo o século XIX, as festas particulares e as realizadas nos salões imperiais
refletiam as mudanças de comportamento exigidas para uma “boa sociedade” na época.
Em 1850, a cidade do Rio de Janeiro passou por um processo de desenvolvimento urbano,
com a implantação do sistema de gás (1854), calçamento com paralelepípedos
(1853),rede de esgoto (1862) e abastecimento de água nas residências (1874), fatores
que contribuíram para alimentar os novos hábitos dos cariocas.
Nessa época, emergiram elementos culturais constituintes de uma sociedade
5 The popularity of operatic arrangements, reductions, variations and fantasies, as well as stylized dance music
such as quadrilles, waltz, and polkas are good examples of the dissemination of the repertoire throughout diferente
social classes. (VOLPE, 2010, p. 19)
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moderna, tais como a imprensa voltada para a massa e a literatura voltada para a
população dos estratos medianos da sociedade. Da mesma forma, elaborada para o deleite
dos ouvintes em salões e em festas familiares, a música ligeira, fazia parte do cenário
urbano da cidade do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX sendo “rapidamente
canalizada para consumo”.(NAPOLITANO & WASSERMAN, 2000, p. 169)
Ao analisarmos periódicos da época, nota-se que a consolidação de certas
práticas culturais, como os recitais de música ligeira, estava atrelada à participação não
somente de músicos, mas de profissionais de outras áreas, como editores. (ULHÔA; NETO,
2014).
A ideia de entretenimento era vista de forma negativa e se opunha aos conceitos
do que era arte. As críticas de jornais referentes aos espetáculos de música ligeira eram,
muitas vezes, impiedosas : “Diremos mais: se a leitura dos romances curva o espirito e o
impossibilita para todo o esforço sério, do mesmo modo, a música ligeira e frívola, em vez
de fortificar e educar a intelligencia, a atrophya, paralhysando-lhe toda a energia.”
(AMPHION, 1884, p. 76)
Por ser ligada à natureza do entretenimento, a música ligeira não era bem vista por
muitos que a taxavam como um produto artisticamente inútil, tendo em vista que não
havia a ambição em expandir o horizonte cultural do ouvinte, apenas entretê-lo:
Nós estamos ainda muito longe de ter uma educação esthetica, já não digo boa, mas soffrivel. Em materia de theatro, então, somos de um atrazo quaternario. A opereta buffa, a musica ligeira, a literatura de café cantante estragaram-nos inteiramente
o bocadinho do gosto que, porventura, íamos adquirindo.(MONITOR CAMPISTA, 1891, p. 1).
Como percebe-se através das críticas acima, a música ligeira era vista pelos
intelectuais como uma manifestação de baixo valor cultural, deixando clara uma espécie
de esnobismo intelectual, que rebaixava as manifestações culturais de sucesso comercial.
Aproximando-se do final do século, encontramos comentários a respeito dos
frequentadores dos espetáculos de música ligeira caracterizados pelo jornal como
trabalhadores do “árduo trabalho cotidiano”, o que colabora para o entendimento de que
o público frequentador dos teatros já no final do século XIX não era composto somente
pela burguesia, como em relatos anteriores, mas pertencia a uma nova camada social
oriunda do crescimento industrial na capital imperial. Tal dado reforça a ideia de que os
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gêneros ligeiros perderam, ao longo dos anos, o status de música da elite e aproximaram-
se de outros estratos da sociedade, como aponta a nota do final do século XIX de O Paiz :
A maioria do publico fluminense que frequenta os nossos theatros é uma grande parte da gente que vive do árduo trabalho quotidiano. Não temos, como nas grandes capitaes européas, ou como em Buenos Aires, para não sairmos da América do Sul, um mundo vivendo exclusivamente a divertir-se, procurando nas grandes manifestações da arte o unico trabalho serio para o cerebro. O publico fluminense, sob a influencia de um clima que abate as forças, depois do trabalho quer divertir-se, mas a seu modo: quer rir, quer ver e ouvir – mas tudo isso sem preocupação, sem se fatigar horas inteiras acompanhando o genero fino da litteratura e sem cansar a sua attenção. Procurar attrahir o nosso publico com quadros sacros, esculpturas classicas, symphonias de Beethoven e tragedias de Shakspeare é perder tempo; o que querem aquelles que trabalham, em uma cidade essencialmente laboriosa, é o divertimento fácil e alegre – a caricatura, a musica ligeira, a baixa comedia, a revista e por ahi além. (O PAIZ, 1896, p. 2)
O crescimento da música popular – cantada ou instrumental- entre as camadas
trabalhadoras da população está diretamente relacionado a expansão industrial da
virada do século XIX para o século XX. Pode-se atribuir o desenvolvimento deste
repertório ao surgimento das classes populares no ambiente urbano, assim como a nova
estrutura socioeconômica capitalista, como comenta Napolitano:
A música popular é fruto de um cruzamento da música ligeira com as músicas tradicionais, das danças de salão com as danças folclóricas. Até aí nenhuma novidade, não fosse o momento histórico que propiciou este encontro, marcado pela expansão da industrialização da cultura e pelo surgimento das sociedades de massa. (NAPOLITANO, 2007, p. 155).
Ressalta-se que os intelectuais fizeram uso da palavra impressa para reafirmar a
música como parte de um ideal civilizatório baseada nos moldes europeus. A imprensa
exerceu grande relevância através da propaganda em periódicos, tratados técnicos para
diferentes instrumentos e ainda nas revistas musicais. (LEME, 2006) Um exemplo é a
Revista Musical e de Bellas Artes, editada pela Casa Arthur Napoleão & Miguez nos anos de
1879 e 1880. A Revista era comandada pelo pianista Arthur Napoleão (português
erradicado no Brasil) e pelo violinista e compositor Leopoldo Miguez. Publicada aos
sábados, tratava de questões referentes à música e às Belas Artes, porém ia além da função
informativa e demonstrava a intenção em contribuir para o movimento musical apoiado
no modelo europeu. A Revista abordava o conteúdo de diversas manifestações artísticas,
como artes visuais, literatura, teatro, além da música. Os redatores deixaram claro na
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primeira edição que a intenção era trazer conteúdo artístico à população da capital
imperial - segundo a revista, ainda carente de informações desta espécie- mediado por
redatores com conhecimentos sobre as áreas tratadas. Verifica-se, o interesse em
construir uma memória nacional, através de notas biográficas permanentes sobre os
compositores padre José Maurício e Carlos Gomes, além da intenção de formação de
público para a música europeia, através do informativo estrangeiro que tratava de
concertos e estreias de operas em países europeus.
3. Os primórdios do choro
Além da polca europeia, outras contradanças também circulavam no meio
musical. É o caso da habanera e do tango que, a princípio originaram-se de contradanças
europeias, mas que incorporaram outros padrões rítmicos e, aos poucos, ganhando
idioma e sotaque próprios de cada região por onde passavam. No Brasil, a habanera e o
tango juntamente com a polca, influenciaram diversos gêneros da música popular
brasileira, como o maxixe, o lundu, o tango brasileiro e o choro. (ARAGÃO, 2020).
O livro do carteiro e músico amador Alexandre Gomes Pinto (1870-1940), O Baú
do Animal6, traz o relato mais antigo que se tem conhecimento sobre o choro. Pinto,
apresenta um verbete sobre a polca na época em que o choro ainda não constituía um
gênero, mas reuniões onde eram tocadas polcas, lundus e modinhas de forma
abrasileirada. O autor ressalta a participação de flautistas de grande importância na
história nessa “nova maneira” de interpretar as dança, comentando que a polca já era
considerada um gênero tipicamente brasileiro e que a flauta era um instrumento
característico deste repertório:
A polca cadenciada e chorosa ao som de uma flauta, fosse o flautista o Viriato, o Callado, o Rangel, ou seja o Pixinguinha, o João de Deus ou o Benedito Lacerda; foi, é e continuará a ser a alma da dança brasileira, com todo seu esplendor de melodia e sua beleza de música buliçosa, atraente e às vezes convidativa aos repuxos do maxixe... (PINTO, 2014, p. 123)
A atuação dos flautistas Joaquim Callado e Viriato Figueira, citados pelo carteiro,
também acontecia além das ruas é comprovada nos periódicos que traziam referências de
6 O livro, escrito em 1936 por um carteiro que também era violonista e cavaquinista, tornou-se uma importante
fonte de pesquisa. Trata-se de um discurso sobre a música popular urbana de alguém que frequentou encontros de
choro durante a vida e contém verbetes sobre chorões e gêneros musicais como a polca, modinha e maxixe.
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recitais e concertos nos teatros e salões da capital imperial. Callado, com apenas 12 anos
de idade já se apresentava tocando típico repertório ligeiro, como reduções de óperas
para flauta e clarinete ( Figura 8):
Fig. 8. Recital do flautista Joaquim Callado. Correio Mercantil e Instructivo Político Universal (RJ), 27/12/1860. Ed. 357. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Mais tarde, o flautista- compositor tornou-se um dos maiores músicos da capital
imperial e fundou, aproximadamente em 1870, o grupo Choro Carioca – também chamado
de Pau e Corda - formado por flauta, cavaquinho e dois violões.
Viriato Figueira também tinha intensa atividade na música carioca do século XIX
e aclamado pela crítica. Em recital organizado pela Sociedade Brasileira contra a
Escravidão, que contou com a presença de ilustres convidados da sociedade carioca,
membros de clubes e sociedades abolicionistas, Figueira tocou uma composição sua:
Carnaval do Brasil, acompanhado pelo pianista Arthur Camillo. Segundo a crítica do
jornal, “essa bela produção foi interrompida por bravos e coroada por flores e aplausos
gerais”. (GAZETA DA TARDE, 1880,p. 1). O artista também tinha suas peças vendidas pelas
casas de impressão. A polca Só para Moer é anunciada aqui (Figura 9) na versão para
piano:
Fig. 9. Anúncio da polca Só Para Moer de Viriato Figueira. Jornal do Commercio 18/01/1877. Ed. 18. Fonte: acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
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O percurso trilhado pelo repertório ligeiro nas vendas de partituras, nos palcos,
nos salões e nas ruas culminou no desenvolvimento de gêneros tipicamente brasileiros
como o choro. Aragão supõe que o termo choro passou a ser utilizado de maneira
coloquial para referir-se ao repertório de salão no início do século XX :
Ora, sabemos pela análise de cadernos manuscritos de partituras de fins do século XIX e inícios do XX que as composições dos chorões mais antigos eram designadas como polcas, schottischs, valsas, mazurcas e quadrilhas. Entretanto parece razoável supormos que já se utilizava, pelo menos desde a primeira década do século XX, o termo “choro” como designação geral para estes gêneros originalmentes europeus tocados por instrumentistas populares e que essa tendência se acentuou a partir da década de 1920. (ARAGÃO, 2011, p. 118)
A utilização do termo música popular, empregado somente no final do século XIX,
é posterior às manifestações musicais que ocorreram naquele período. (ULHÔA, 2000 ).
Da mesma maneira, percebe-se através dos periódicos consultados, que o
estabelecimento do choro como gênero deu-se após um período de intensa atividade
musical do repertório de salão em diferentes estratos da sociedade carioca.
4. Considerações finais
A partir das informações coletadas através da pesquisa hemerográfica foi
possível compreender a influência da música ligeira na sociedade urbana carioca
oitocentista seja através dos recitais nos teatros, salões e das editoras de partituras. Nesse
contexto, a flauta transversa tornou-se um instrumento popular e exerceu grande
destaque no desenvolvimento de um repertório tipicamente nacional através da
importante participação de flautistas- compositores no cenário musical urbano carioca.
Observamos que o repertório ligeiro movimentou e modificou as práticas do mercado
musical através da venda de partituras e aulas particulares, sendo a flauta um
instrumento popular e presente nas atividades comerciais. A música ligeira também ditou
as preferências de entretenimento nos salões burgueses, nos teatros populares, nas festas
da côrte, além da presença nas ruas através dos grupos de Pau e Corda.
Constatou-se que os flautistas Joaquim Callado e Viriato Figueira - considerados
personagens fundamentais para o nascimento do choro como gênero - também exerceram
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intensa atividade nos salões e teatros da capital imperial, tanto como compositores
quanto intérpretes da música ligeira. A contribuição desses artistas para a história da
música brasileira e da flauta é de extrema relevância assim como o estudo do seu
repertório que será realizado na próxima etapa desta pesquisa.
Referências
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