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A Mulher e a Lua - Artigo Científico

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A Mulher e a Lua

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  • RITUAL DA LUA: O ETERNO RETORNO DO FEMININO. Professora Regina Meira Aguiar.

    Resumo cada vez maior o nmero de mulheres cultas e de classe mdia que se renem para cultuar a lua. O ritual observa signos e smbolos que remontam as origens da humanidade. O texto procura desenvolver as caractersticas desse ritual, buscando semelhanas com os rituais das feiticeiras medievais, para contribuir com um vis de anlise do feminino na histria da religio.

    Introduo: Deusa da lua e da magia,

    mostre-me a resposta. Deusa dos mistrios,

    revela-me todos os destinos.

    Essa pequena orao acima, ensinada pelas mulheres mais velhas a todas as jovens que so iniciadas na arte da Quiromancia e do Tar, foi-me ensinada j no me lembro quando, nem onde. Sei que as mulheres que a ensinaram esto mortas. grafas, 1 seus saberes foram recebidos e transmitidos oralmente e perderam-se num mundo cada vez mais escrito, cientfico e tecnolgico. Imersa no mundo racional-capitalista e cristo, tambm eu fui perdendo a f nos poderes mgicos da lua. Lembro-me inclusive, de ter confessado inmeras vezes o pecado de ver a lua como me, to poderosa como a prpria me de Jesus. Pediram-me que desistisse dessa viso. Hoje posso dizer que desisti. Desisti da confisso.

    Nos meados dos anos 80, comecei a ver, cada vez mais, a mesma orao reproduzida em agendas, cartazes capas de livros esotricos, livros infantis, filmes de televiso que tratavam do mysterium tremendum. Mais ou menos modificada, a orao era sempre dita num dia de lua cheia benigna (mais adiante, tentarei diferenci-la da lua cheia maligna) por uma mulher jovem nua ou de trajes transparentes.

    Um outro fato propulsor das questes que tentarei desenvolver aqui foi a percepo, nessa poca, de um nmero crescente de colegas de profisso, todas de nvel universitrio e de classe mdia, que comearam a aconselhar, umas s outras, inclusive a mim, sobre rituais mgicos ligados lua, no sentido de solucionar as

    1Diz-se grafos aos povos que no desenvolveram um sistema de escrita prprio e grafas pessoas que no sabem escrever.

  • questes do cotidiano, at problemas profissionais, de difcil soluo no plano lgico-racional.

    Aps um debate acirrado com uma dessas mestras da magia-da-lua, sobre a importncia da lua nova2 e os motivos que, a meu ver, levavam ao desprezo por essa fase lunar pelos agentes dos mil e um cursos que ela havia feito. Tornei-me sem querer e durante dois anos, a lder de um Coven, nome que elas trouxeram, via neo-esoterismo, da tradio celta-bret.

    Constantemente, dividida entre o gosto e a crena pelo mundo mgico e o prazer em produzir cincia e ensinar aprendendo dentro de instituies racionais capitalistas que me possibilitam o bien-tre numa sociedade de consumo. Compreendendo, por herana da tradio cientfica europia que fazemos nossa prpria histria e por herana mstica de que somos ajudadas por foras desprovidas de lgica. E, aps trs luas minguantes de ritual mgico por sabedoria e virtude, decidi que no seria uma profissional mstica, e que antes me dedicaria s questes cientficas.

    Mas, como diria Paulo Freire, o saber que se aprende fazendo pode ser acumulado a outros saberes, jamais perdido. Assim, ao ingressar no curso de Ps-graduao em Cincias da Religio escolha mais do que pertinente para o meu sentir-me no mundo algumas questes, antes desconexas, apenas leves surpresas por ver o mesmo texto se repetindo em ambientes completamente diferentes e at mesmo opostos, comearam a tomar corpo em minha mente, sobretudo, durante os cursos da Prof. Dr Maria Jos F. Rosado Nunes, e seus toques feministas e da leitura do Tratado de Histria das Religies de Mircea Eliade, captulo IV: A lua e a mstica lunar, obra que d o fundamento simblico, a essas questes tidas como crendices e ignorncias populares para a maioria dos cientistas sociais.

    A dvida central desse texto, que agora exponho ao debate e para a qual pretendo iniciar um vis de resposta que houve nos primrdios da humanidade um perodo matriarcal e que apesar da falta de dados concretos, os mitos antiqssimos podem confirmar essa ginocracia das origens; que correspondia a uma religio da vida, a um dos ciclos das estaes e a um predomnio absoluto do amor e do acasalamento, da vida, do nascimento e da morte (Terrin 1994: 84)... a partir do segundo milnio a.C., est documentada a superao do homem sobre a mulher, e est tambm documentada a situao de inferioridade a que a mulher foi relegada, em quase todos os mbitos culturais e religiosos (Terrin, 1994:83) e mais adiante... no mais o instinto religioso, mas a instituio: no mais a liberdade religiosa, mas a lei. As deusas so submetidas aos deuses. Na verdade, a mulher a contradio em nvel lgico e ontolgico do princpio do ser, pois provoca o devir; o provocador do devir por excelncia. (Terrin, 1994:100)

    Ora, se o devir a norma lunar (Eliade, 1998: 145), se durante o processo civilizador (Elias, 1994) da Europa pr-crist as mulheres, cujos rituais (atribudos a bruxarias e adoraes demonacas), tm profundas semelhanas com os rituais do culto lua, recebe todo o dio daqueles que, pelo seu ascetismo, rejeitam o devir que elas simbolizam, e, se em nossos dias, a mulher (e aqui penso na ocidental, culta e de classe mdia) nunca foi to livre e senhora de seu destino e portanto faz s claras esse ritual, inclusive, com convites divulgados pela mdia. Seria possvel pensar que, na verdade esse culto nunca morreu e mais, tal como a prpria lua

    2 A fase da lua Nova para tradio cigana do sub-grupo Calon a fase do recolhimento, da busca interior e no mundo material daquilo que devemos nos separar.

  • ocultou-se em perodos de intensa perseguio, para renascer em pocas favorveis sendo assim um fato concreto e, portanto, passvel de estudo cientfico, como uma das formas de resistncia para perpetuar os saberes e resgatar a memria feminina?

    1 RITUAL DA LUA.

    Existe toda uma tradio antropolgica explicando que o rito esconde o mito, por sua vez criado coletivamente para expressar uma viso de mundo ideal ou historicamente perdida e que reconhecida como verdadeira pelo grupo que, atravs da atividade simblica do rito, pretende que essa verdade seja incorporada na realidade humana, pelo uso metafrico de palavras, gestos e substncias.

    Mais do que uma mitologia, a aceitao da influncia da lua em nossas vidas remonta a figuraes arquetpicas do feminino e materno, da ligao intrnseca com a natureza com o abandono ao devir, do simples, da fora ertica, da doura e da crueldade enfim da capacidade geradora do arqutipo feminino (Terrin, 1996: 190 a 214).

    So essas foras que orientam a conduta: o ritual da lua que feito sempre noite, mesmo quando o momento exato da mudana de fase ocorre durante o reinado do sol, espera-se a noite chegar e a lua aparecer, fato que por si s sugere maioria das pessoas, um carter de mistrio. As hierofanias lunares, como diria Eliade, esto relacionadas fertilidade, s guas, vegetao, mulher, ao antepassado mtico. Assim, a escolha do stio, onde se dar o ritual, tem que estar prximo a uma grande gua, de preferncia ao mar, porm, jamais na areia que considerado estril, mas em um campo de gramneas naturais.

    O ritual um congraamento de mulheres e os pedidos devem ser mantidos em segredo, sobretudo de pais, filhos, maridos e irmos, mesmo quando esses pedidos estejam relacionados a eles. Tambm se deve silenciar sobre experincias msticas e sobre o local ritualstico, o que impede a participao de mulheres extremamente dominadas, fteis ou excessivamente materialistas. A participao se d por convite.

    Apesar de aparecer na mdia e no imaginrio popular, que o ritual lunar sempre na lua cheia e mesmo sendo o mais fortemente carregado de simbolismo e visualmente bonito cada fase da lua tem o seu ritual especfico, desejos certos aos quais podem favorecer. Esses desejos ou pedidos, comumente esto ligados s necessidades especficas das mulheres: a gravidez, o amor romntico ou sexual, a beleza ou doenas degenerativas, o domstico e seu entorno, os filhos, a me. Muito embora alguns grupos, hoje, so capazes de adaptar as magias lunares para a aquisio de bens materiais, poder poltico e/ou econmico e a que penso estar o interesse de um estudo sistemtico o rito lunar est ligado aos padres mticos do grande redondo, ou eterno retorno o ciclo de sacrifcio, vida-morte-renascimento, historicamente associados a Grande Deusa Me3 - Gaia que por partogenesis gerou Urano - o pai cu da mitologia grega, a raiz misteriosa de todo

    3 Sobre a Grande Deusa Me vide a coleo Amor e Psique da Paulus, sobretudo a obra de Jean Shinoda Bolen, e sua obra essencial As deusas e a mulher dessa coleo, editada em 1990 em So Paulo pelas Edies Paulinas.

  • crescimento e de toda mudana; o amor que significa volta ao lar, abrigo, e o longo silncio em que tudo tem seu incio e no qual tudo encontra seu fim.4

    Alguns smbolos ritualsticos so fixos, isto , utilizados em todas as fases da lua como, por exemplo, a serpente em forma de anel, que usado sempre no dedo anelar. O dedo mdio tem a funo lunar de ligar o mundo superior com o mundo inferior e se usa anel nesse dedo, quando no se deseja mais participar do ritual. A serpente aparece tambm no vaso ritual da lua cheia. que a serpente significa regenerao, pois ela muda de casca periodicamente.

    Outros smbolos so especficos a cada fase. A lua Nova o perodo escuro sombrio, o perodo de Kali que Terrin (1998: 104) chama de o poder do tempo e da morte e Eliade (1998: 150) de poca sombria, por isso deve-se usar num ritual mgico da lua nova prolas negras (ou contas que se lhe assemelham). O crculo ritualstico de ritmo lento e o cntico apenas com o nome Kali ou Malakali repetido. E o perodo em que se planta o desejo (o pedido) da lunao. Quando se pede paz aos mortos e o perodo de descida ao lado obscuro da alma. Tempo das vivas, das tradas, das abandonadas, as que tiveram filhos precocemente mortos plantarem as sementes (so mais usadas as do alho, da cebola e outras plantas de bulbo, pois a gua contida neles, simbolicamente as lgrimas femininas, vo alimentar a nova planta) do renascimento afetivo. As vestimentas so de cores que vo do negro ao verde escuro.

    O ritual da lua crescente se faz no sentido de costurar o que est separado, de tecer a trama do destino. O smbolo da crescente a agulha em forma de lua crescente com a qual se deve costurar os desejos. Tecer no significa somente predestinar e reunir realidades diferentes, mas tambm criar, fazer sair da sua prpria substncia, como faz a aranha, que urde, ela prpria sua teia. (Eliade, 1998: 149) a lua da esperana, da adolescncia revivida em qualquer idade, do novo amor ou do retorno do amor sob novos augrios. O crculo ritual na verdade um semicrculo e os cnticos so de pedidos de coragem para tecer seu prprio destino. Creio ser por isto que alguns crculos neo-esotricos, desprezam a lua nova e j comeam o ritual na crescente. Esses dfricheurs (Ortiz, 1998: 206) no suportariam descer antes, aos prprios infernos para, s ento, tecer seu destino e pensam ser possvel construir edifcios sem alicerces subterrneos. Mas, aqui no o espao, nem o tempo para esse debate.

    O ritual da lua cheia o mais conhecido. Esteticamente belo, sonoro, ritmado, feito num crculo mgico. Onde, de mos dadas, as mulheres vestidas com tecidos leves e claros cantam e giram em crculo cada vez mais rpido, tendo ao centro uma fogueira, o que provoca xtase5 nas participantes, e certo frenesi nos assistentes. Por isso mais divulgado na mdia, aparecendo constantemente nos filmes e novelas da televiso.

    Nem todas as luas cheias so iguais. Por serem o centro da magia, a lua plena no cu pode revelar augrios distintos. Se acontecerem junto aos solstcios geralmente tais luas so benficas, melhores aquelas que vm com uma aurola branca. Aziagas, as que so circundadas por um crculo vermelho. Terrveis, geralmente produzem derramamento de sangue. As luas cheias de equincio trazem a beno da paz, da concrdia e da justia e se vierem com crculos dourados podem 4 Jung in Psychologial Aspects of the Mother Archetypc citado por James Hollis Rastreando os Deuses Paulus, 1995. 5 O fogo desde a pr-histria associado s religies. Representa a vida e a morte, a origem e o fim de todas as coisas, e nesse sentido um dos mais importantes emblemas de transformao e regenerao.

  • trazer um perodo de grande prosperidade. claro que, hoje com o avano tecnolgico, a astronomia tem explicaes simples e claras para essas mensagens lunares, mas as praticantes de rituais mgicos acreditam que a cincia est coberta pelo vu da iluso.

    A lua cheia a lua de Demeter6, a lua do amor em seu sentido maior. a mulher de corao nos olhos, buscando o amor imensurvel, oferecendo quele que habita em seus infinitos braos. quando ela procura seu filho em cada ser da natureza, quando quer ser a ave-me e ninho a um s tempo. quando seu colo se torna parto e suplica dolorosamente, pelo lanar de ncoras de todas as embarcaes. o tempo de receber, alquimicamente, o que se plantou na lua nova. As prolas, agora brancas, j devem trazer a intuio da concretizao da magia da lua escura. a lua-me.

    A minguante o inverso da nova, no crculo, nos smbolos e nos pedidos mgicos. quando se usa o punhal ou a foice, para simbolicamente cortar tudo o que nos perturba ou que motivo de iluso, outro atributo lunar. Nessa fase lunar se pede lua sabedoria para tecer nosso destino e virtude para compreender a solido e a finitude, causa e razo de tudo. Nessa lua se pede o dom da Magia. No final do ritual cada participante separa-se das outras cantando com voz cada vez mais baixa a orao: agora penso na morte, para encontrar o que sou, antes de tornar-me outra.

    2 RITUAL DE BRUXARIA MEDIEVAL E O RITUAL DA LUA.

    Numa forma sumria quero expor aqui algumas semelhanas entre os dois rituais e tentar contribuir para esclarecer os motivos do martrio de tantas mulheres no passado cristo. Tenho convico que s o tema daria dezenas de dissertaes de mestrado, sem que nenhuma repetisse a outra. Contudo, gostaria de expor um vis para que outras colegas, interessadas pelo assunto, possam em forma de uma pesquisa cientfica, desenvolv-lo.

    Uma das figuras de grande simbologia ritualstica e de vivncia para as magas da lua e que foi visto de maneira preconceituosa sofrendo os mesmos martrios que as mulheres e que quase no aparecem nas bibliografias que tratam do mito o gato. por isso, que eu gostaria de lembrar um pouco a sua figura. Animal noturno, sagaz, silencioso, sensual, intuitivo, amoroso, limpo e livre. Porm, desapegado e feroz quando oprimido, preso ou violentado. O gato foi desde os primrdios considerado um animal lunar, pois dorme em forma de crculo, canta para a lua plena e tem uma relao de amor e dio com a gua, pois ao mesmo tempo em que se alimenta de seu fruto (o peixe) no a aceita em seu corpo. Por tudo isso, o gato modelo de virtudes para a maga da lua e como muito intuitivo, anuncia os perigos no visveis no ambiente e, parecem renascer em situaes limites como guerras e desastres naturais.

    Outros smbolos e signos comuns ao ritual da lua e rituais de bruxaria j foram trabalhados por diversos autores tais como: o crculo, o vestir-se de negro (lua nova), a dana nua ou seminua (lua cheia), o uso de chifres (lua crescente ou minguante), a serpente, o clice com vinho no ritual da lua cheia maligna, o besuntar-se de

    6 Demeter deusa da mitologia grega, me de Persfone e que, apesar de esposa de Zeus, no so as caractersticas de esposa que carrega, mas a de me por excelncia, capaz de lutar com o deus dos infernos.

  • poes e cremes para restaurar ou promover a beleza do corpo (lua crescente de maio), a utilizao do cabelo humano para simbolizar a serpente (lua crescente); as atitudes rituais de adolescentes (lua crescente). Essas prticas podem ter sofrido uma leitura asctica do poder masculino institucionalizado medieval relacionando-as ao culto ao demnio e por isso essas mulheres foram martirizadas.

    Digno de estudo, ainda, o smbolo da serpente, pois se regenera e uma fora da lua e como tal distribui fecundidade, cincia (profecia) e mesmo imortalidade. (Eliade, 198: 136), e o fato da serpente ter sido o motivo da queda do homem via mulher no paraso, a origem de todos os males. Terrin desenvolve magistralmente essa relao em O sagrado off Limits (1998:83 106): durante toda a histria da construo do ocidente cristo, a mulher continua sob suspeita e mantida distncia, como se fosse verdadeiramente e no apenas metaforicamente a origem dos males do homem. Eliade diz que grande nmero de documentos etnogrficos confirmam a feitiaria uma investidura lunar (direta ou transmitida por intermdio das serpentes). (1998:139)

    3 A LUA NA CARTOMANCIA.

    Se a lua tece todos os destinos, est intimamente ligada a faculdade de previso do devir atravs da leitura das cartas. Estas so consideradas por muitos como sendo um banco de memria no qual todo o saber antigo est sintetizado. O prprio Carl G. Jung dedicou especial ateno ao tar e outros jogos que possibilitam a arte divinatria, considerando as cartas uma sntese de arqutipos. Mas este no o espao para desenvolver um trabalho sobre o Tar e outras cartas divinatrias e sim para demonstrar a importncia do smbolo da lua e sua relao com a mulher presente nas artes divinatrias.

    No baralho cigano a lua a carta 32 denominada A glria, pertence ao naipe de copas, est ligada ao elemento gua e seu plano de existncia e o sentimento. Ligada ao mundo mstico e ao ocultismo, a lua indica glria e reconhecimento. Sempre que aparece num jogo essa carta indica que se deve prestar ateno intuio como uma maneira de perceber o acontecimento futuro que, as outras cartas anunciam.

    No Tar de Marselha a lua o arcano XVIII cuja figura traz a lua sugando a energia terrestre. Dois cachorros, que representam as emoes humanas, uivam para a lua. Numa lagoa de guas paradas uma lagosta ergue seus braos em direo lua. Sempre que essa carta surge no jogo representa as condies da alma quando sob o domnio da matria e sempre aviso de algo ruim, excesso de imaginao, influncias perniciosas, exposio a perigos, drogas, alcoolismo, instabilidade emocional.

    Essa oposio de significados entre o simbolismo do baralho cigano para a lua e o sentido do arcano XVIII do Tar est no fato que o baralho cigano lido por e para mulheres. Bem mais antigo que o Tar7, o desenho do naipe 32 do baralho cigano traz uma relva de gramneas com um rio que serpenteia o caminho para o mar, uma paisagem noturna tendo um plenilnio dourado ao fundo. No bastassem 7 Segundo Serra Negra in O que baralho?, Coleo Primeiros Passos, n 257, edit. Brasiliense, 1992; h dvidas sobre a origem do Tar, uns atribuem ao Egito Antigo ( Livro de Thot) outros aos Hebreus (Tarock - Tor). A data provvel de seu aparecimento na regio de Marselha Frana por volta do sc. XV.

  • tantos smbolos ligados, h um tempo que no se temia o devir, possui ainda o oito de copas que significa a transformao da vida afetiva.

    Resumindo, at nas cartas de divinao possvel perceber a passagem de uma cultura baseada no predomnio da mulher lua serpente para a situao de inferioridade a que foi legada, invertendo o sentido dos smbolos, dando queles que representam o feminino, um sentido de vcio, concupiscncia e loucura. O Tar traz em suas lminas a lembrana da passagem da comunidade clmica, onde a regra da me ordenava o grupo, para o perodo em que o poder masculino comeou a acumular propriedades e descobriu que sua fora e coragem podiam aumentar suas posses. Essa mudana coincidiu com o incio, do culto do Sol sob um sacerdcio masculino, que veio substituir os cultos da lua, bem anteriores, que permaneciam nas mos das mulheres (Harding, 1985: 60). o arcano XVIIII o Sol do Tar que promete a glria que a carta da lua do baralho cigano anuncia.

    4 A FASE CRESCENTE DO RITUAL DA LUA.

    A lua nunca foi adorada em si mesma, mas no que ela revelava de sagrado, quer dizer, na fora que est concentrada nela, na realidade e na vida inesgotvel que manifesta. (Eliade 1998: 131).

    Essa realidade se manifesta tambm, podemos crer, no retorno do culto lua feito livremente, sem pejo ou medo de represso que muitos grupos de mulheres hoje praticam em todo o mundo. Interpretado muitas vezes como parte da bricolagem neo-esotrica. Os estudiosos do fenmeno religioso tm colocado esse ritual como exemplo que caracteriza do individualismo religioso ps-moderno. Penso que o problema mais profundo.

    Nas ltimas dcadas os laos de coeso familiar afrouxaram. O grande nmero de divrcios e maternidades fora do casamento tem produzido o aumento de famlias nucleares conduzidas pelas regras da mulher. Livres, bem sucedidas profissionalmente, mas ss e donas de seu prprio saber e da busca de conhecimento. Minha tese que, na busca de sentido, comum ao seu tempo, acabam tomando conhecimento do ritual da lua (via teosofia), terminando por identific-lo com o resgate do sagrado eminentemente feminino, e, portanto capaz de dar sentido s suas vidas, respostas aos sentimentos e angstias impossveis de serem respondidas pelas religies reveladas, patriarcais e masculinas.

    A liberao e independncia econmico-cultural das mulheres ocorreram primeiramente nos Estados Unidos, por isso l que ocorre o pioneirismo na exposio luz do ritual da lua bem como sua representao crist puritano a festa das bruxas caricatura provocativa da leitura que o ascetismo-cristo masculino fez do ritual da lua. Essas mulheres norte-americanas e europias j desenvolveram um profundo trabalho de resgate do religioso feminino, no s atravs do ritual em si, que seria um momento de troca, de purificao e lapidao do self, como tambm de toda uma bibliografia especfica (principalmente na rea da psicologia), no sentido de resgatar o arqutipo da lua ou Grande Me escondida nas Deusas greco-romana.

  • Herdeiras da cultura-europia, as magas da lua do hemisfrio norte, utilizam termos e conceitos8 oriundos da tradio celta-bret, que contm, de fato, os pedaos de memria de suas antepassadas deixadas margem da Histria. Privilegiam suas estaes do ano, dando lunao de maio carter benfico em detrimento da de outubro, inteiramente dedicada, entrada da alma no lado obscuro. Esto perfeitamente corretas, j que nas rvores milenares despidas de folhas, que, por intuio ou at na busca de dados concretos onde se encontra alguma marca, inscrio, desenhos etc que podero representar traos da memria feminina ancestral.

    Discordo que, nos do hemisfrio-sul devamos seguir paripasso esse padro, j que, nossa natureza oposta e nela que iremos nos nutrir da mstica lunar. Temos que ser sbias o suficiente para perceber que o tempo de renascer aqui outubro e o tempo de Hstia/Lares9 maio, mesmo que a tradio crist-catlica o denomine ms-das-noivas.

    Contudo, devemos aprender, com nossas irms do hemisfrio norte, a coragem de promover o retorno da mstica feminina, da pesquisa incessante nos sinais deixados quer por pesquisa cientfica, intuio e at incorporao de espritos, por mulheres que a histria fez esquecer. Os trabalhos de pesquisa revolucionrios dessas psiclogas, socilogas da religio ou msticas nos daro subsdios para buscar nossa prpria memria, pois esses conhecimentos so parecidos com uma msica que fosse feita no para ser mais ou menos passivamente executada, ou mesmo escutada, mas sim para fornecer princpios de composio. (Bourdieu, 1989: 63)

    CONCLUSO

    Se uma poca sombria seguida, em todos os planos csmicos, de uma poca luminosa, pura, regenerada (Eliade, 1998: 151), possvel pensar que o aumento do nmero de mulheres que buscam atravs do ritual da lua, um espao para juntar foras, demonstra uma busca pela mstica essencialmente feminina e que d subsdios para a construo (reconstruo) da histria das mulheres.

    Todos sabemos que as crenas mgicas que envolvem a relao mulher-lua so to numerosas quanto o nmero de etnias existentes na Terra e que, quanto mais ligados vida agrria maior afinidade com os fenmenos naturais. Cultuar a lua, ento, significa prever as intempries naturais que prejudicam a agricultura. Alm disso, na vida comunitria se nasce e se morre junto s mulheres aparentadas, cabendo a elas s previses desses eventos, bem como os agrcolas e os que regem a vida dos animais domsticos.

    Contudo, o que tentei desenvolver aqui que, um nmero cada vez maior de mulheres, oriundas do topo da pirmide social de sociedades de ponta do mundo 8 Exemplo disso o termo coven para o circulo, o uso de clice para o vaso ritual e espada medieval no lugar do punhal. 9 Hstia-lares deusa greco-latina do inconsciente e da lua. Representada nas casas romanas pela lareira, acabou por simbolizar o habitat humano o lar. Simboliza ainda o estgio da velhice e as mulheres enclausuradas em instituies.

  • capitalista, bem como as de metrpoles como a cidade de So Paulo que lhes assemelham, tm buscado a sabedoria milenar feminina contida no ritual do culto da lua. E que, sendo instrudas buscam nesses rituais a histria religiosa das mulheres, oculta ou distorcida, por milnios de patriarcalismo.

    A meu ver, dentro do aparente non sense dos rituais mgicos, das feiticeiras ps-modernas, por trs de cada adesivo consulte sempre uma Bruxa colados nos carros que passeiam pela cidade, atrs de cada bibel de profisso das bruxas exposto nos consultrios de mdicas, dentistas e psiclogas e, exibidos nas escrivaninhas de escritoras, professoras e intelectuais pode estar oculta a busca pelo respeito e valorizao da mstica feminina. Afinal diz a tradio mgica: sempre existe um tesouro a ser desenterrado onde vista a primeira andorinha.

    Se a modalidade lunar por excelncia, a mudana dos ritmos, no menos a do retorno cclico; destino que fere e consola ao mesmo tempo, porque, se as manifestaes da vida so bastante frgeis para se dissolverem de maneira fulgurante so, no entanto, restauradas pelo eterno retorno que a lua dirige. (Eliade, 1998: 152)

    Finalmente, se me atrevi a escrever esse texto para uma revista acadmica que a lua cresce no cu e assim me lano sem amparo do cume feito com todas as pedras, que tentam, inteis, bloquear meus atos deliciosamente insanos (cntico do ritual da lua crescente, cuja autora o sol queimou e o tempo dissolveu).

    BIBLIOGRAFIA BOLEN, Jean Shinida As Deusas e a Mulher; 2 ed., SP, Ed. Paulinas, 1990. BOURDIEU, Pierre O poder simblico; Lisboa Difel, 1989. ELIADE, Mircea Tratado de Histria das Religies; 2 ed., SP, Martins Fontes,

    1998. ELIAS, Norbert O Processo Civilizador; vol. I, Uma Histria de Costumes 2

    ed., RJ, Jorge Zahar, editores, 1994. HADS Cartas e Destino; Lisboa, ed. 70, 1988. HARDING, Mary Esther Os mistrios da mulher antiga e contempornea, 2 ed.

    SP, Ed. Paulinas, 1985. LELAND, Charles Godfrey Magia Cigana Encantamentos, Ervas mgicas e

    adivinhao; RJ, edit. Bertrand Brasil S.A; 1992. OLIVEIRA, Naldo de Tar: a magia dos ciganos; Rio de Janeiro, Pallas, 1992. ORTIZ, Renato Mundializao e Cultura; 3 reimpresso, SP, Brasiliense, 1998. TERRIN, Aldo Natale Nova Era a religiosidade do ps-moderno; SP, ed.

    Loyola, 1996. Credenciais da autora. Regina Meira Aguiar sociloga formada pela USP. Ps-graduada pela Escola de Sociologia e Poltica de So Paulo Formao social da conscincia. Mestra em Cincias da Religio pela PUC/SP onde defendeu a tese: O desafio de reencantar a educao na luta contra a excluso social dos pobres. Professora de Histria da rede pblica e particular por mais de 25 anos.Leciona Introduo s Cincias Sociais e Filosofia e tica na Faec h 8 anos.

  • Milita em defesa da mulher e estuda a questo de gnero junto a instituies ligadas ao PCB e Pastoral da Igreja Catlica h dcadas.Atualmente trabalha como voluntria na Pastoral da Solidariedade Social na Parquia So Domingos em Perdizes.