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11 Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011. A Musicoterapia e sua inserção nas políticas públicas análise de uma experiência Sofia Cristina Dreher 1 RESUMO A Musicoterapia vem inserindo, nos últimos tempos, seu trabalho nas políticas públicas. A forma de pensar, atuar e refletir a Musicoterapia se torna diferente principalmente pelo aspecto político que passa a fazer parte desse campo de atuação. Reflexões sobre saúde coletiva, assistencialismo x coletivo, comunidade x individualidade e população x poder público são de extrema importância para compreender esse universo. Palavras-chave: Musicoterapia sócio-política, Saúde coletiva, Políticas públicas, participação. 1 Bacharel em Musicoterapia pela FAP; Especialista em Comunicação e Semiótica pela PUC-PR; Mestre em Filosofia pela UNISINOS; Professora no Bacharelado em Musicoterapia da Faculdades EST; Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdades EST; Membro da Diretoria da AMT-RS; Musicoterapeuta Clínica AMT-RS 402/2006; [email protected] .

A Musicoterapia e sua inserção nas políticas públicas análise de … · E a droga rola solta Ameaçando a população 3. Aqui na colina temos um bom acesso à saúde Também

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

A Musicoterapia e sua inserção nas políticas públicas –

análise de uma experiência

Sofia Cristina Dreher1

RESUMO

A Musicoterapia vem inserindo, nos últimos tempos, seu trabalho nas políticas públicas. A forma de pensar, atuar e refletir a Musicoterapia se torna diferente principalmente pelo aspecto político que passa a fazer parte desse campo de atuação. Reflexões sobre saúde coletiva, assistencialismo x coletivo, comunidade x individualidade e população x poder público são de extrema importância para compreender esse universo.

Palavras-chave: Musicoterapia sócio-política, Saúde coletiva, Políticas públicas, participação.

1 Bacharel em Musicoterapia pela FAP; Especialista em

Comunicação e Semiótica pela PUC-PR; Mestre em Filosofia pela UNISINOS; Professora no Bacharelado em Musicoterapia da Faculdades EST; Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdades EST; Membro da Diretoria da AMT-RS; Musicoterapeuta Clínica AMT-RS 402/2006; [email protected] .

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

Music therapy and its inclusion in public policies - the

analysis of an experience

ABSTRACT

Lately, Music Therapy has been inserted in public policies. The way of thinking, acting and reflecting Music Therapy is changing, especially through the political aspect which becomes a part of this field of activity. Reflections on community health, assistencialism x collectivity, community x individuality, and population x government are extremely important to understand this universe.

Keywords: Sociopolitical Music Therapy, Community health, Public policies, Participation.

INTRODUÇÃO

O Projeto foi pensado e desenvolvido pela Secretaria

de Desenvolvimento Social da Prefeitura de uma cidade da

região metropolitana de Porto Alegre – RS. As atividades

tiveram início em maio de 2010. No final do ano de 2009 fui

contatada e convidada para desenvolver uma oficina de

Musicoterapia com as famílias dessa comunidade. No todo,

são desenvolvidas cinco oficinas, a saber, artesanato, teatro,

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

Musicoterapia, fortalecimento de vínculos familiares e

comunitários e artes plásticas.

Segundo o projeto, o diagnóstico que caracteriza a

comunidade é o seguinte: o bairro é caracterizado como uma

das principais regiões da cidade que vive em situação de

vulnerabilidade extrema. O desenvolvimento de atividades e

ações pedagógicas, educativas, informativas, culturais e

recreativas, na perspectiva da mobilização comunitária, coloca

os moradores “em movimento”, possibilitando o

reconhecimento das dificuldades e limites, bem como a busca

de iniciativas de emancipação a partir da identificação, do

desenvolvimento das potencialidades locais e também da

valorização do território, que possui uma totalidade de 800

famílias em vulnerabilidade social.

Ainda conforme o projeto, os objetivos são os

seguintes:

Ampliação das informações sobre Políticas Públicas

de Proteção e Direitos Sociais e posteriores

encaminhamentos a redes de serviços;

A inserção dos usuários em espaços promotores de

cidadania (oficina de mobilização comunitária);

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

Através do conhecimento da dinâmica familiar,

problematizar com os sujeitos envolvidos, questões

abordadas e discutidas no que concerne ao seu

pertencimento ao lugar onde vivem, provocando um

sentimento de valorização do seu território;

Transformação na postura dos sujeitos envolvidos,

melhorando sua autoestima. Experienciar um processo

de crítica e autocrítica, tornando-se formadores de

opinião e (re) conhecendo sua liberdade de expressão.

O LOCAL

A cidade fica localizada na região metropolitana de

Porto Alegre, tendo atualmente 122.000 habitantes

aproximadamente. O bairro foi criado para acolher a

população que vivia próxima à linha do Trensurb e outras

localidades. Cada morador realizou a sua inscrição junto à

prefeitura e aqueles que foram beneficiados, receberam um

prazo para quitar a compra do terreno e da casa.

O bairro possui posto de saúde, escola, transporte,

comércio, igrejas, etc. A maioria das ruas não são

pavimentadas, o que prejudica muito a circulação de veículos

e de pessoas em dias de chuva. A escola possui policiamento

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

e horários determinados para saída e entrada de visitantes. O

bairro não possui muita arborização e há muito lixo espalhado

pelas ruas, apesar da coleta realizada pela prefeitura.

A comunidade não possui uma sede para a

Associação do bairro, embora a mesma já esteja constituída.

No momento, a sede se encontra na casa de uma família da

comunidade. O local cedido para a realização das oficinas é a

casa dessa família, no cômodo da frente, onde também

funciona um bar, com mesa de sinuca, e venda de produtos.

Normalmente, durante a execução das oficinas, o

funcionamento é interrompido.

A OFICINA

O primeiro encontro que realizamos foi no dia 18 de

maio 2010. Num primeiro momento me propus a conhecer o

local, o ambiente, as pessoas e suas reações frente ao

trabalho da Musicoterapia. O grupo era formado basicamente

por mulheres e crianças, tendo apenas uma participação

masculina, a do dono da casa.

Em todas as sessões contei com a presença da

Assistente Social, responsável pelo projeto. Ela não apenas

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

nos acompanhava como também se dispôs a participar das

atividades.

Nossos encontros ocorriam uma vez por semana, com

duração de uma hora, tendo uma pausa para o lanche. A

freqüência do grupo variava muito.

Após o primeiro encontro, me deparei com pessoas

muito alegres e muito sofridas ao mesmo tempo. Elas vinham

de diversas regiões do estado do RS e de outros estados.

Cada um com uma história, mas todos em busca de uma casa

própria. Nos primeiros encontros procurei resgatar essas

histórias, até porque muitos deles não se conheciam entre si.

Percebia olhos e ouvidos atentos, assim como sentimentos

parecidos sendo compartilhados. Também passei a perceber

que existia um sentimento em comum que movia a todos

naquele lugar, o sentimento de mudança, de transformar

aquele local, aquele bairro, num local bom para se viver e

conviver. Foi então que lancei o desafio de fazermos uma

paródia sobre o bairro, sobre a comunidade. Nela teríamos

que pensar o que existia de bom naquele lugar e o que era

ruim ou merecia mais atenção. O grupo optou por fazermos a

paródia a partir da canção “As mocinhas da cidade”. O

resultado desse primeiro trabalho ficou assim:

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1. O povo da colina gosta de viver bem

Com a sua família e seus amigos também

Vieram atrás da casa própria

E de uma boa comunidade

2. Mas falta segurança e tem muita violência

Também tem muita sujeira espalhada pelas

ruas

E a droga rola solta

Ameaçando a população

3. Aqui na colina temos um bom acesso à saúde

Também tem um bom transporte que nos

aproxima das coisas

Temos um bom espaço

Pras crianças poderem brincar

4. Mas falta segurança aqui na nossa escola

Temos insegurança com os roubos e as brigas

das crianças

Falta de paz e sossego

Que atrapalham os trabalhadores

5. Queremos melhorias para a nossa comunidade

Temos ruas esburacadas e falta saneamento

Nossas crianças precisam

De um bom campo de futebol

6. Não podemos deixar de lembrar dos amigos

verdadeiros

Também temos na escola muitas amizades

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

O importante é termos união

Entre todas as famílias

No início o grupo ficou bastante ressabiado, pensando

que não iríamos conseguir completar a tarefa, mas a reação

do grupo frente ao trabalho finalizado foi de grande satisfação,

de “somos capazes”, de produção grupal, entre outros. A

partir daquele momento, percebi então que um grupo estava

surgindo. Cada vez que cantávamos a nossa canção, eles se

transformavam e a cada dia a música ganhava mais volume e

entusiasmo.

Foi então que o inusitado aconteceu. A assistente

social nos contou que haveria uma festa junina para as

pessoas do projeto na escola da comunidade. O grupo

automaticamente se dispôs a cantar e a apresentar a nossa

canção na festa. De início “eu” fiquei ressabiada com a

iniciativa, pois fiquei pensando em como a comunidade

receberia a nossa canção. Como eles escutariam as

reclamações sobre as drogas? Será que entre eles não teriam

usuários de drogas? E como eles receberiam os elogios sobre

o transporte e a saúde? Será que eles também concordavam

com aquelas palavras ou discordavam? Percebi de imediato

que esse era um medo meu e não do grupo. Naquele

momento apenas consegui dizer que poderíamos pensar na

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

idéia e decidirmos em conjunto no próximo encontro. Afinal, a

idéia havia sido lançada no final do nosso horário.

No caminho de volta, comentei com a assistente social

sobre a idéia e compartilhei com ela dos meus receios e ao

mesmo tempo do brilho que existia no olhar de cada um em

poder apresentar um produto do grupo. Refleti e percebi que

aquele momento era do grupo e que não podia tirar deles

aquele momento, mesmo que enfrentássemos alguns olhares

desaprovadores da comunidade.

Nos encontros seguintes, o grupo se preocupou muito

em ensaiar e em decorar a letra da canção. Tarefa que muitos

já haviam feito, antes mesmo de mim. No último encontro

antes da apresentação, a assistente social comunicou, ao final

da sessão, que o Prefeito da cidade estaria presente na festa,

para prestigiar as atividades das oficinas. Enquanto o grupo

se encontrava em estado de euforia, eu me preocupava cada

vez mais. Enquanto a minha pergunta era: Como o Prefeito

receberia aquela canção? Como uma reflexão ou como um

ato de manifestação contra a sua gestão? Sendo que ele

havia liberado recursos para a execução desse projeto. O

grupo vibrava com a idéia de que o prefeito pudesse ouvir as

suas reivindicações e fizesse algo para aquela comunidade.

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

O fato é que apenas me dei conta do fato enquanto

estávamos cantando a canção com o prefeito na nossa frente.

Quando comecei a cantar, percebi como devia ser delicado

para ele ouvir aquela canção, embora ela não tenha sido feita

com o intuito dessa apresentação. Vi que o rosto dele

enrubescia, assim como de seus assessores. O grupo ainda

havia escolhido cantar “Oração da família” e essa teve de ser

interrompida antes de seu final, por ordens dos assessores.

No final, além dos aplausos, o Prefeito se aproximou de uma

das integrantes e solicitou uma cópia da canção, dizendo que

queria trabalhar em cima dela.

Fui para casa pensando que a oficina de Musicoterapia

havia acabado! Após alguns diálogos e esclarecimentos da

assistente social, demos tranquilamente continuidade ao

nosso projeto. O interessante foi a reflexão que fizemos com o

grupo após a apresentação. O grupo ficou muito feliz com a

atitude do Prefeito de ficar com a canção e da promessa que

fez em trabalhar sobre o relatado. O grupo ainda relatou que

já estavam trabalhando nas ruas com as patrolas da prefeitura

e que o policiamento na escola havia aumentado.

Tanto eu como a assistente social ficamos admiradas

com as medidas tomadas e tão rapidamente. Mas não

deixamos de trabalhar com o grupo as reações da festa.

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Pedimos para que o grupo fizesse o exercício de se colocar

no lugar do prefeito e de como deve ter sido difícil para ele

escutar aquela canção. Falamos de novo sobre como a

canção surgiu, do objetivo dela, da festa e das reações. Foi

uma reflexão importante e o grupo percebeu que também foi

um pouco constrangedor para o Prefeito ter que escutar as

reclamações.

Passado algum tempo, a assistente social nos trouxe a

informação de que o Prefeito havia levado nossa canção para

Brasília para solicitar mais recursos para atender a demanda

da comunidade.

O projeto transcorreu ao longo do ano de 2010 com

demais atividades e composições do grupo sobre temas

relevantes para a comunidade. Encerramos nossas atividades

em dezembro do mesmo ano, totalizando 26 sessões de

Musicoterapia. O projeto foi interrompido para o período de

férias e retornaremos em fevereiro de 2011.

REFLEXÕES

Após a explanação dessa vivência em comunidade,

gostaria de convidar vocês a fazer algumas reflexões. Mais do

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

que respostas e ou teses, venho propor a construção de

idéias a partir da prática musicoterapêutica relatada.

A primeira reflexão que trago é sobre o ideal de saúde.

Quando entramos em bairros humildes paramos por um

segundo e nos perguntamos se pode existir ali algum tipo de

saúde, quando observamos o esgoto e o lixo escorrendo

pelas ruas, inúmeros animais transmitindo doenças, falta de

alimentação, sem falar em alimentação adequada, falta de

vestimenta, entre outros. Não estamos falando de falta de

vontade dos moradores, mas sim de falta de recursos e

estrutura. No próprio grupo realizamos discussões sobre

como melhorar essa situação. De que existe uma partida de

estrutura por parte do poder público, mas que a contrapartida

da população também é importante. A educação da

população para manter a comunidade limpa é de suma

importância.

Em 1986 ocorreu a I Conferência Internacional sobre

Promoção de saúde onde foi aprovada a Carta de Ottawa.

Segundo Malo e Castro (2006), a carta afirma, em síntese,

que as condições fundamentais para a saúde são: a paz, a

habitação, a educação, a alimentação, a renda, o ecossistema

estável, os recursos sustentáveis, a justiça social e a

equidade. A carta de Ottawa afirma que promover saúde é

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

(...) o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo. Para atingir um estado de completo bem estar físico, mental e social, os indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente. A saúde deve ser vista como um recurso para a vida e não como objetivo de viver. Neste sentido, a saúde é um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas. Assim, a promoção da saúde não é responsabilidade exclusiva do setor saúde e vai para além de um estilo de vida saudável, na direção de um bem estar global (MALO; CASTRO, 2006, p. 26).

Para aqueles que trabalham na prevenção e promoção

de saúde, entender a saúde como um recurso para a vida é

fundamental. Para nós musicoterapeutas, fazer uso de

recursos musicoterapêuticos (técnicas, métodos), dentro

dessa perspectiva de atuação, é transformar os mesmos,

fazer uso dos mesmos como recursos para a vida diária, para

promover saúde a cada dia com essa população. Mas como

fazemos isso? Segundo Cunha e Volpi (2008), nesse formato,

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

o musicoterapeuta se apropria da realidade a ponto de poder,

junto com as pessoas, delinear estratégias e práticas voltadas

aos interesses da própria comunidade.

É a partir dessa perspectiva que o trabalho da

Musicoterapia passa a ter novas concepções de atuação.

Passamos a entender que os indivíduos também devem ser

chamados para a responsabilidade de promoverem saúde em

seus locais de moradia. Isso inclui hábitos básicos de higiene,

de convívio social, de re-estabelecimento da paz, entre outros.

Podemos nos perguntar por um segundo se isso já não

deveria estar funcionando sem a interferência de alguém. A

resposta que temos é que essa não é a realidade instalada.

Através de nossos atendimentos musicoterápicos podemos

reforçar regras básicas de convivência, como escutar o outro,

organizar o setting, estimular a participação e o engajamento.

A promoção da saúde está inserida na idéia da teoria

sistêmica. Teoria essa que entende que participamos de um

grande sistema, no qual todas as partes envolvidas

contribuem para o desenvolvimento ou para o adoecimento

desse sistema. Dessa forma, passamos a entender que a

melhora de um indivíduo influencia a melhora do grupo no

qual ele está inserido, da mesma forma como esse grupo é

responsável pelo sucesso ou pelo fracasso desse indivíduo.

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

Com esse entendimento, passamos a trabalhar não apenas

com nossos clientes, mas também a trabalhar o grupo no qual

esse cliente está inserido. Não se trata de atendimentos

grupais, mas de atividades que envolvam o grupo e nas quais

os indivíduos possam mostrar sua melhora e sua capacidade

de mudança.

Alguns autores, tais como Capra (2006), utilizam a

figura da teia para exemplificar essa teoria, essa prática. Você

pode ser um elo de ligação entre um fio e outro da teia, mas

caso um fio se rompa, você sentirá um abalo. Essa idéia

também traz à tona a questão da responsabilidade sobre

nossos atos e escolhas, porque passamos a entender que

quando algo dá errado isso não traz apenas conseqüências

para mim mesmo, mas para todo o grupo no qual estou

inserido e vice versa.

De acordo com Maturana e Varela, a característica-chave de uma rede viva é que ela produz continuamente a si mesma. Desse modo, “o ser e o fazer dos [sistemas vivos] são inseparáveis, e esse é o seu modo específico de organização”. A autopoiese, ou “autocriação”, é um padrão de rede no qual a função de cada componente consiste em participar da produção ou da transformação dos outros componentes da rede. Dessa maneira, a

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rede, continuamente cria a si mesma. Ela é produzida pelos seus componentes e, por sua vez, produz esses componentes (CAPRA, 2006, p.36).

Diria que esse é o grande desafio da teoria para

nossos trabalhos, fazer essa retomada de responsabilidade

perante a realidade encontrada em meu grupo. Convivemos

hoje com mudanças de comportamento nessas comunidades

muito grandes. A realidade que encontramos é de muito

individualismo, na maioria das vezes. Pessoas que moram

lado a lado, mas que não se conhecem. Da mesma forma,

percebemos um movimento de assistencialismo muito grande.

As pessoas, em sua grande maioria, estão habituadas a

receberem tudo e ainda assim não dão valor ao que lhes está

sendo oferecido. Segundo Pellizzari (2010),

[...] transitamos una línea de conflicto que nos involucra en la cotidianeidad de nuestras intervenciones: el paradigma asistencialista y mercantilizado versus el paradigma colectivo y promocional. Una Musicoterapia que se dedique a la promoción y prevención de la salud colectiva es uma Musicoterapia sociopolítica (PELLIZZARI, 2010, p. 50).

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

Como transformar essas pessoas em agentes de

mudança, quando na maioria das vezes estão exercendo

papéis de espera? O desafio está em sair dessa passividade

para a participação. É dentro dessa perspectiva que

precisamos elaborar nossas ações para um maior

envolvimento, para a criação de um espaço de participação. O

que está em jogo aqui é a retomada da autonomia dos

sujeitos.

Muitas discussões têm sido feitas sobre o

assistencialismo que empregamos em nosso país. Não

podemos deixar de lembrar que esse paradigma não provém

apenas do poder público, mas de muitas entidades privadas e

sociais. Da mesma forma, observamos a mesma discussão

sendo feita em outros países. O sociólogo Bauman (2005) traz

à tona a discussão sobre o trabalho voluntário, por exemplo,

como uma autopromoção e não mais como um ato de

caridade. Não podemos esquecer que “trabalho voluntário”

conta pontos no currículo, hoje em dia!

O mesmo autor relata que vivemos em uma sociedade

líquido-moderna. Nossas relações não são mais sólidas e sim

líquidas, passageiras, que se esvaem em pouco tempo, não

conseguimos nos prender e/ou nos agarrar a elas. O chamado

homem sem-vínculos passa a perceber que não pode

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

sobreviver sem relações e busca então um novo tipo de

relacionamento, busca se amarrar, e conectar-se àquelas

pessoas que possam lhe trazer algum tipo de benefício.

Em seu livro: “Comunidade: a busca por segurança no

mundo atual”, Bauman aborda a difícil tarefa moderna de

busca por proteção em um grupo, sem ao mesmo tempo

perder a individualidade. Segundo ele,

Comunidade associa-se hoje a uma sensação boa: “pertencer a uma comunidade” ou “estar em uma comunidade” transmite a idéia de proteção. Em outras palavras, é um novo nome para o paraíso perdido – mas um paraíso que ainda buscamos, e que esperamos encontrar. Em troca da segurança prometida, contudo, a vida em comunidade parece nos privar da liberdade. A tensão entre esses valores, e entre comunidade e individualidade, dificilmente será desfeita (BAUMAN, 2003, p. 9).

O individualismo impera cada vez mais em nossa

sociedade. O mais estranho é que isso já está se tornando tão

comum, que as pessoas passam a justificar essa

transformação como se isso já estivesse superado e

incorporado no conceito do “ser” do século XXI. Segundo

Pellizari (2010),

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

[...] los Musicoterapeutas nos enfrentamos a un tiempo de compromiso social: este siglo nos pone por delante un gran desafío. Um desafío al narcisimo, al individualismo y al aislamiento que refleje actitudes transformadoras respecto de los saberes que se mantienen en la intelectualidad o en la burocracia sin advenir a una praxis al servicio de la salud colectiva (PELLIZZARI, 2010, p. 57).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Bruscia (2000), na Musicoterapia

comunitária, o objetivo é duplo: preparar o cliente para

participar das funções comunitárias e tornar-se um membro

valorizado da comunidade, e preparar a comunidade para

aceitar e acolher os clientes ajudando seus membros a

compreender e interagir com os clientes.

A Musicoterapia há décadas vem atuando em diversos

campos de atuação nas áreas da promoção, prevenção e

reabilitação. Porém, desde a década de 80, ela passou a

atuar também dentro de pequenas comunidades e grupos

onde o foco estava justamente na relação das pessoas e

dessas com o ambiente no qual estavam inseridas. Não se

pensava mais em retirar as pessoas de seu local e levá-las

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

para um centro de atendimento, mas sim de ir ao encontro

delas e atendê-las em seus locais de residência e/ou trabalho.

Surge assim o trabalho denominado de Musicoterapia

Comunitária. Essa se diferencia da Musicoterapia Social pelo

fato de que os objetivos e forma de trabalho são denominados

pelo próprio grupo. Dessa forma, o musicoterapeuta passa a

ser um mediador do processo. Nessa forma de trabalho, os

clientes são desafiados a desenvolver maior autonomia e

responsabilidade pelo andamento do processo terapêutico e

conseqüentemente do processo de suas vidas. Segundo

Mendoza (2005),

[...] o musicoterapeuta tomará a su cargo la responsabilidad conjuntamente con otros profesionales y con los miembros de la comunidad para elaborar uma estratégia de afrontamiento de problemas ligados a las necesidades y prioridades de dicha comunidad, siendo importante una correda vizualización de esos problemas, teniendo presente lo que esa población percibe como sus problemas (MENDONZA, 2005, p. 82).

Esse campo de ação se encontra dentro da

perspectiva da promoção da saúde, ou seja, o desafio está

em promover saúde, fazer saúde no dia-a-dia das pessoas de

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

acordo com a realidade instalada, diferentemente da

prevenção da saúde, que procura estabelecer metas e

atividades em vistas ao futuro. A promoção da saúde trabalha

com o hoje, com a saúde que fazemos no dia-a-dia.

Como trabalhar, então, no resgate de autonomia de

uma população quando ela recebe a todo momento um

assistencialismo? Também precisamos reforçar aqui que

existem trabalhos sérios e de base, por parte da assistência

social, para podermos desenvolver esse trabalho de

participação, de envolvimento, de mudança, de cidadania, de

transformação social.

Assim como precisamos discutir assistencialismo x

promoção do coletivo, também precisamos discutir a relação

poder público x população nesse contexto. Como foi dito

acima, a assistência social possui um papel primordial de

base e de continuidade de todos esses projetos sociais. Da

mesma forma, o poder público tem o dever de olhar a cidade

e a população e atender as suas necessidades. Nesse

processo, cabe também ao poder público instruir a população

a refletir a sua participação dentro desse processo.

Participação essa que inclui sugestão de melhorias, mas

também a participação efetiva na manutenção da cidade.

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Quando nós musicoterapeutas trabalhamos dentro de

projetos desenvolvidos pelas prefeituras, também cabe a nós

fazermos essas reflexões. Somos contratados para

desenvolver a autonomia e tomada de postura da população,

para promover o empoderamento, mas como gerenciamos

essa relação população versus poder público? Como

sugestões da população podem ser recebidas como

provocação e como auxílio?

Sempre me perguntava como deveria ser difícil para

um musicoterapeuta que trabalha em uma empresa, atender

aos interesses do patrão e dos empregados. Passei a fazer

essa mesma pergunta no trabalho relatado acima. Pensando

que a prefeitura contratou os meus serviços para desenvolver

e aprimorar a cidadania, a tomada de iniciativa, a autonomia e

o sentimento de pertença dessas pessoas frente a sua

comunidade, como lidar com a dinâmica da relação

comunidade – prefeitura, enquanto prestadora de serviços e

administradora da cidade?

Percebi que isso era possível, desde que ambos os

lados estivessem cientes das intenções e das propostas de

cada um. Ninguém melhor do que a própria população para

dizer o que funciona e o que pode e deve melhorar em sua

própria comunidade. Podemos indicar tais problemáticas, sem

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

que elas sejam recebidas como provocações ou agressões.

Da mesma forma, o grupo precisa estar ciente de que o

Prefeito também é um ser humano com limitações e que

exerce uma função. Esse é o verdadeiro exercício da

cidadania, trabalhar e pensar juntos.

Aqueles que se dispõe a trabalhar a Musicoterapia na

área social, ou, como diz Pellizzari, na Musicoterapia

sociopolítica, devem estar cientes de que o trabalho abre um

leque de objetivos que estão completamente interligados. As

áreas mental, emocional e social não podem estar

desconectadas da área sociopolítica, nessas propostas de

atuação.

Si la música es patrimônio de la humanidad, si es que nos humanizamos com la música, los musicoterapeutas podemos elegir el alto compromiso de humanizar la sociedad em que vivimos, atendiendo sus gritos y silencios, también gritando, susurrando, cantando, marchando, danzando, pensando, escuchando, dialogando, proponiendo câmbios, decidiendo, cuidando, ayudando, organizando .... haciéndonos comunidad (SICCARDI, 2005, p. 94).

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. _________________. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BRUSCIA, Kenneth E. Definindo Musicoterapia. Rio de Janeiro: Enelivros, 2000. CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2006. CUNHA, Rosemyriam e VOLPI, Sheila. A prática da Musicoterapia em diferentes áreas de atuação. In: Revista Científica/FAP. v. 3. (jan./dez. 2008) – Curitiba: FAP, 2006, p. 96. MALO, Miguel; CASTRO, Adriana. SUS: ressignificando a promoção da saúde. São Paulo: Ed. Hucitec: Opas. 2006. MENDONZA, Claudia. Evolución de la prática clínica de la Musicoterapia hacia el campo social-comunitario. La comunidad, sujeito e objeto de intervención. In: Salud, escucha y creatividad. PELLIZZARI, P. e RODRIGUEZ, R. (Org.). Buenos Aires: Edicones Universidad Del Salvador, 2005.

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Revista Brasileira de Musicoterapia. Ano XIII, n. 11, 2011.

PELLIZZARI, Patricia. Musicoterapia Comunitaria, Contextos e investigación.In: REVISTA BRASILEIRA DE MUSICOTERAPIA. Ano XII, nº 10, (2010) – Curitiba, 1996. SICCARDI, Maria Gabriela. Musicoterapia Comunitária. In: Salud, escucha y creatividad. PELLIZZARI, P. e RODRIGUEZ, R. (Org.). Buenos Aires: Edicones Universidad Del Salvador, 2005.