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A nacionalizao da banca no contexto do processo revolucionrio portugus (1974-75)
Ricardo Vieira de Campos de Abreu Noronha
Junho 2011
Tese de Doutoramento em Histria Econmica e Social Contempornea
Orientador: Fernando Jos Mendes Rosa
Dissertao apresentada para o cumprimento dos requisitos necessrios obteno do
grau de Doutor em Histria na especialidade de Histria Econmica e Social
Contempornea, realizada sob a orientao cientfica do Prof. Doutor Fernando Rosas
Apoio financeiro do POCTI no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio.
Apoio financeiro da FCT e do FSE no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio.
201
A nacionalizao da banca no contexto do processo
revolucionrio (1974-75)
Ricardo Noronha
PALAVRAS-CHAVE: Bancos, Nacionalizaes, Conflitos sociais, Revoluo
portuguesa, Controlo operrio, Socialismo
RESUMO
Entre 1968 e 1975, a contradio entre capital e trabalho polarizou a evoluo da
situao poltica e econmica portuguesa. Desde a ecloso de conflitos laborais que
marcou o Marcelismo (ou seja, o perodo durante o qual o pas foi governado por
Marcelo Caetano, de Setembro de 1968 a Abril de 1974) at ao processo de
nacionalizaes e ocupaes de terra que decorreu aps o golpe militar de 25 de Abril
de 1974, os trabalhadores bancrios revelaram uma aprecivel capacidade de
mobilizao e organizao colectiva. Esta dissertao procura apresentar as principais
linhas de fora deste ciclo de lutas sociais e as suas consequncias polticas e
econmicas, interpretando a nacionalizao da banca no contexto do processo
revolucionrio de 1974-75, destacando elementos como a sabotagem econmica, o
controlo operrio e os aspectos financeiros da via portuguesa para o socialismo.
The nationalization of the bank system during the Portuguese
revolution (1974-75)
Ricardo Noronha
KEYWORDS: Banks, Nationalizations, Social conflict, Portuguese revolution, Workers
control, Socialism
ABSTRACT
From 1968 to 1975, the contradiction between capital and labour has polarized the
evolution of the political and economic situation in Portugal. Since the burst of labour
conflicts that characterized Marcelismo (that is, the period in which the country was
governed by Marcello Caetano, from September 1968 to April 1974) until the process
of nationalization and land occupation in the aftermath of the military coup of the 25th
of April 1974, bank workers have shown a remarkable ability for collective
mobilization and organization. This dissertation aims at presenting the guidelines of this
cycle of social struggles and its political and economical consequences, interpreting the
bank nationalization in the context of the 1975-75 revolutionary process, highlighting
such elements as economical sabotage, workers control and the financial aspects of the
Portuguese path towards socialism.
Dedicado memria de
Jorge de Abreu Noronha e
Fernando Baginha
Agradecimentos
Desejo agradecer ao Professor Doutor Fernando Rosas por ter aceitado orientar este
trabalho de investigao e me ter incentivado a seguir as minhas hipteses
interpretativas ao longo dos ltimos cinco anos, perodo durante o qual acompanhou o
processo de consulta de fontes e materiais diversos, bem como a redaco deste texto.
Este agradecimento estende-se ao Professor Doutor Antnio Reis e Professora
Doutora Maria Fernanda Rollo, que me guiaram durante os seminrios do Mestrado de
Histria do Sculo XX na Faculdade de Cincias Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa, bem como ao conjunto dos investigadores e investigadoras do Instituto
de Histria Contempornea daquela Faculdade, com quem tenho o privilgio de
trabalhar.
Aqui fica tambm uma palavra de agradecimento aos funcionrios dos vrios arquivos
mencionados no final deste texto, nomeadamente ao Dr. Joo Sabino, do Arquivo
Contemporneo do Ministrio das Finanas, e ao Dr. Paulo Tremoceiro, do Instituto dos
Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, bem como D Elsa, do Sindicato dos Bancrios
do Sul e Ilhas. O Dr. Carlos Gomes merece uma especial palavra de agradecimento pela
simpatia com que me acolheu na sua casa, permitindo-me aceder a material do seu
esplio e correspondncia pessoal.
Este texto tem a marca indelvel dos vrios debates pelos quais circulei ao longo dos
ltimos anos, nomeadamente aqueles em que participaram os membros da Unipop e das
Edies Antipticas, sempre prontos a criticar os meus pontos de vista e a questionar as
minhas certezas, contribuindo dessa forma para reforar o rigor e a exigncia do meu
trabalho. Sem eles este texto seria indubitavelmente mais pobre.
Qualquer uma das minhas famlias foi, cada uma sua maneira, fundamental para que
eu chegasse at aqui. A todos e todas agradeo, mas uma palavra especial teria
necessariamente que ficar reservada para a minha me, trabalhadora da banca, sem a
qual nada disto teria sido possvel, por vrias razes, que vo das mais s menos bvias.
Uma pessoa muito especial acompanhou-me ao longo de todo este percurso e evitou que
eu me levasse excessivamente a srio. Mencion-la quase redundante, mas a Sara j se
habituou minha redundncia.
Desnecessrio ser dizer que apenas os eventuais mritos que esta tese possa ter devero
ser atribudos a estes cmplices, cabendo as suas vrias falhas nica e exclusivamente a
quem a assina.
A nacionalizao da banca no contexto do processo
revolucionrio (1974-75)
Introduo 1
I- A sociedade e a economia portuguesas no ocaso do Marcelismo 12
1. Crescimento, concentrao e internacionalizao (1953-1973)
1.1. Crescimento 13
1.2. Concentrao 23
1.3. Internacionalizao 48
2. A liberalizao Marcelista
2.1. Abertura e bloqueio durante o Marcelismo 58
2.2. Inflao e contratao colectiva 75
2.3. O ltimo conflito colonial 87
3. A crise da economia mundial
3.1. O fim dos Trinta anos gloriosos 95
3.2. Uma economia vulnervel 102
3.3. Os banqueiros falam da crise 106
3.4. Crise e luta de classes 109
II- Abril comeou em Maio 113
4. As lutas sociais a seguir ao 25 de Abril 114
5. O consulado Spinolista
5.1. Uma coligao provisria 140
5.2. A economia provisria 141
5.3. A recomposio do aparelho de Estado 163
6. O longo ms de Setembro
6.1. O Partido da Ordem 179
6.2. A manifestao de 12 de Setembro de 1974 186
6.3. A conspirao da alta finana 192
6.4. O 28 de Setembro 195
III- A fase socializante 202
7. Governar a economia
7.1. Um princpio de pnico 203
7.2. O Plano Melo Antunes 207
7.3. A orquestra da sabotagem econmica 219
7.4. A grande ofensiva 237
7.5. Os delegados do Banco de Portugal 252
8. As jornadas de Maro
8.1. As origens do golpe 272
8.2. O desenrolar do golpe 279
8.3. As consequncias do golpe 289
IV- A transio para o socialismo 301
9. As nacionalizaes e a via portuguesa para o socialismo
9.1 Destapar os segredos do grande capitalismo 302
9.2 Reconstruir a economia por via do socialismo 320
9.3 Quem manda na economia? 331
9.4 As empresas intervencionadas 341
9.5 A terra a quem a trabalha - O incio da Reforma Agrria 351
10. A banca ao servio do povo
10.1 O controlo sindical na banca nacionalizada 358
10.2 A gesto da banca nacionalizada 366
10.3 Os bancrios sob ataque 387
10.4 Os problemas de liquidez da banca nacionalizada 390
10.5 A dimenso financeira da dependncia externa 405
11. Os bancrios no olho do furaco 425
12. A economia da contra-revoluo 448
Anexos 476
Bibliografia 504
1
Introduo
A revoluo portuguesa vem sendo objecto de anlise, estudo e debate desde o prprio
momento da sua ecloso, na sequncia do golpe militar de 25 de Abril de 1974. Os
processos de transformao em curso colocaram ento, a protagonistas e a
observadores, vrios desafios relativamente interpretao e caracterizao da
formao social portuguesa, bem como da natureza mesma dos acontecimentos
polticos, econmicos e sociais despoletados aps a rendio de Marcelo Caetano. Era
possvel a Csar de Oliveira, por exemplo, num artigo publicado a 1 de Junho de 1974
no semanrio Expresso, colocar entre aspas a palavra revoluo para designar o 25
de Abril e a situao poltico-social por ele criada1.
Aquilo que viria a apresentar-se inequivocamente pelo menos para os seus
protagonistas - como um processo revolucionrio, ainda que dotado de especificidades
que tornavam difcil a sua caracterizao luz dos modelos estabelecidos, continuou a
ocupar a ateno de jornalistas e de investigadores de vrias reas, aps a aprovao, em
Abril de 1976, da Constituio da Repblica Portuguesa, derradeiro e inequvoco
momento de normalizao da situao poltica. A maioria dos trabalhos publicados
em 1975, ou nos anos imediatamente posteriores, assumiu um formato monogrfico,
debruando-se sobre aspectos ou acontecimentos especficos do processo
revolucionrio2. De outra natureza, mas tambm publicados logo a seguir ao eplogo do
processo revolucionrio, comearam a surgir livros escritos por protagonistas e
observadores privilegiados, avanando os respectivos pontos de vista sobre os
acontecimentos testemunhados e prolongando alguns dos principais debates polticos do
1 Oliveira, Csar de, Lutas de classes, greves e socialismo Notas breves para uma discusso
necessria, Expresso, 01/06/1974, p.21. 2 o caso, entre outros referidos na bibliografia final, de: Faye, Jean-Pierre, 1977, O Portugal de Otelo: a
revoluo no labirinto, Lisboa, Socicultur; Feio, Jorge, Leito, Fernanda e Pina, Carlos, 1975, 11 de
Maro: autpsia de um golpe, Lisboa, Agncia Portuguesa de Revistas; Gil, L. Pereira, 1976, 25 de
Novembro Anatomia de um golpe, Lisboa, Editus.
2
perodo3. Muito mais raros foram os trabalhos de investigao levados a cabo nos meios
universitrios nestes primeiros anos, provavelmente devido intensidade com que foi
vivido o processo revolucionrio e necessidade de um considervel distanciamento
temporal relativamente ao perodo4.
Este panorama comeou a inverter-se lentamente, j na dcada de Oitenta. Em 1983, o
historiador Jos Medeiros Ferreira publicou um ensaio interpretativo do que apelidou
perodo pr-constitucional, no qual procurava dar conta dos principais acontecimentos
polticos e econmicos, enfrentando simultaneamente o dilema da caracterizao a
oferecer a um processo revolucionrio travado e, de certa maneira, at invertido
nalgumas das suas mais ambiciosas transformaes a nvel econmico5.
A reflexo sobre o tema deu um salto decisivo quando o Centro de Estudos Sociais da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra realizou, em Dezembro de 1984,
um colquio dedicado s transformaes verificadas na sociedade portuguesa ao longo
dos dez anos anteriores, cujas comunicaes viriam a ser publicadas, juntamente com
um conjunto de artigos adicionais, em dois nmeros da Revista Crtica de Cincias
Sociais. Como ento escreveu Boaventura de Sousa Santos, o colquio:
no foi uma comemorao dos dez anos do 25 de Abril, paralela a outras que,
com diferentes matizes, nesse ano tiveram lugar, um pouco por todo o pas.
3 Veja-se, por exemplo, os seguintes testemunhos e apontamentos: Baptista, Fernando de Oliveira, 1978,
1975- Os campos, Porto, Ed. Luta de Classes/Afrontamento; Clemente, Manuel Duran, 1976, Elementos
para a compreenso do 25 de Novembro, Edies Sociais, Lisboa; Marques, Fernando Pereira, 1977,
Contra-poder e revoluo, Lisboa, Diabril,; Mota, Jos Gomes, 1976, A resistncia o vero quente de
1975, Lisboa, Edies Jornal Expresso; Murteira, Mrio, 1977, Poltica econmica numa sociedade em
transio, Lisboa, Moraes Editores; Pereira, Antnio Maria, 1976, A burla do 28 de Setembro, Amadora,
Bertrand; Pereira, Joo Martins, 1976, O Socialismo, a transio e o caso portugus, Amadora, Bertrand;
Rosa, Eugnio, 1976, Portugal: dois anos de revoluo na economia, Lisboa, Diabril; Sousa, Alfredo de,
Ferreira, Eurico, 1976, Em defesa da democracia, Lisboa, Perspectivas e realidades; Spnola, Antnio de,
1978, Pas sem rumo : contributo para a histria de uma revoluo, s.l., Scire. 4 Destaque-se em todo o caso o extenso e laborioso esforo de recolha de fontes e primeira
problematizao metdica dos conflitos sociais nas empresas, levado a cabo por um colectivo de
investigadores universitrios da rea da sociologia do trabalho: Santos, Maria de Lourdes Lima et all.,
1976, O 25 de Abril e as lutas sociais nas empresas, Porto, Afrontamento, 3 Volumes. 5 Ferreira, Jos Medeiros, 1983, Ensaio histrico sobre o perodo pr-constitucional, Lisboa, INCM-
SREC da Regio Autnoma dos Aores.
3
Pretendeu-se sim lanar um debate cientfico com o recuo histrico nesse
momento j possvel, sobre esta importante data da nossa contemporaneidade, um
processo social rico e complexo que percorreu (profundamente?
Superficialmente?) a realidade portuguesa com modelos de desenvolvimento e
planos polticos, com projectos de aco e programas de futuro, que foram outras
tantas linhas com que se coseram as rupturas e as continuidades entre a sociedade
emergente e a sociedade antiga que lhe foi resistindo com a fora feita dos anos6.
O mesmo texto referia o formato do colquio, onde se reuniram tanto pessoas que
tiveram uma interveno prtica dominante nesse perodo como os que sobre ele se
tm debruado, quer ao nvel da anlise poltica, quer ao nvel da anlise cientfica,
exprimindo dessa forma o prprio estatuto do objecto de estudo, suficientemente
prximo para que os seus principais protagonistas fossem chamados a debat-lo mas,
simultaneamente, distante o suficiente para que existissem j algumas reflexes e
pesquisas apontadas sua interpretao de um ponto de vista crtico. No nmero
anterior da mesma revista, publicado no ano anterior, Boaventura de Sousa Santos tinha
j procurado avanar uma interpretao global do processo, assinalando a ntima relao
entre a crise de hegemonia da burguesia industrial-financeira, a ruptura com o regime
anterior a nvel institucional e a fora do movimento social popular, que caracterizou
como o mais amplo e profundo da histria europeia do ps-guerra7.
Nos anos seguintes comearam a surgir estudos propriamente acadmicos sobre o
perodo revolucionrio, na forma de teses, livros e artigos em publicaes cientficas,
abordando aspectos especficos e fornecendo propostas de interpretao assentes na
recolha de material emprico e fontes primrios. O campo de estudos do processo
6 Santos, Boaventura de Sousa, Editorial, Revista Crtica de Cincias Sociais, ns 15/16/17, Maio de
1985, p.6 7 Santos, Boaventura de Sousa, A crise e a reconstituio do Estado em Portugal (1974-1984), Revista
Crtica de Cincias Sociais, n14, Novembro de 1984, pp.7-29
4
revolucionrio caracterizou-se desde cedo pela sua multidisciplinaridade, abarcando
disciplinas como a sociologia, a economia ou a cincia poltica, a par da historiografia,
o que no deixou de espelhar a complexidade do seu objecto e a multiplicidade de
metodologias, anlises e interpretaes que o mesmo autorizava8. O interesse suscitado
pela revoluo portuguesa junto de investigadores universitrios estrangeiros
nomeadamente o poder das organizaes e mobilizaes de base e o respectivo impacto
poltico no desenrolar dos acontecimentos deu origem a alguns dos trabalhos mais
interessantes acerca do perodo publicados na dcada de Oitenta9.
Duas obras colectivas, publicadas com um curto intervalo de tempo, vieram reunir
trabalhos de investigao realizados j na dcada de Noventa e acrescentar um novo
flego ao conhecimento do perodo: em 1999, com a publicao das actas do I Curso
Livre organizado pelo Instituto de Histria Contempornea da Faculdade Cincias
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (em conjunto com a Fundao
Mrio Soares) e intitulado Portugal e a transio para a democracia; em 2001, com a
publicao da obra coordenada por Jos Maria Brando de Brito e intitulada O pas em
revoluo10
. Se o primeiro repetia, de certo modo, o formato do colquio realizado em
Coimbra quinze anos antes, juntando comunicaes de protagonistas e investigadores, o
8 Veja-se, por exemplo: Aguiar, Joaquim, 1985, O ps-salazarismo 1974-1984, Lisboa, Publicaes D.
Quixote; Barreto, Antnio, 1987, Anatomia de uma Revoluo - A reforma agrria em Portugal, 1974-
1976, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica; Carrilho, Maria, 1985, Foras armadas e mudana poltica
em Portugal no sculo XX. Para uma explicao sociolgica do papel dos militares. Lisboa, INCM;
Cervell, Josep Snchez, 1993, A revoluo portuguesa e a sua influncia na transio espanhola (1961-
1976), Lisboa, Assrio & Alvim; Corkill, David, 1993, The Portuguese economy since 1974. Edimburgo,
Edimburg's University Press; Maxwell, Kenneth, 1995, The making of Portuguese democracy,
Cambridge, Cambridge University Press; Viegas, Jos Manuel Leite, 1996, Nacionalizaes e
privatizaes lites e cultura poltica na histria recente de Portugal, Oeiras, Celta. 9 Bermeo, Nancy, 1986, Revolution within the revolution: Workers control in rural Portugal, Princeton,
Princeton University Press; Downs, Charles, 1989, Revolution at the grassroots community
organization in the Portuguese Revolution, Albany, The State University of New York; Hammond, John
L., 1988, Building popular power workers and neighborhood movements in the Portuguese Revolution,
Nova Iorque, Monthly Review Press; Kayman, Martin, 1987, Revolution and Counter-Revolution in
Portugal, Londres, Merlin Press.
10
AAVV, 1999, Portugal e a transio para a democracia (1974-76), Fernando Rosas (Coord.), Lisboa,
Colibri; AAVV, 2001, O pas em revoluo, Jos Maria Brando de Brito (Coord.), Lisboa, Editorial
Notcias.
5
segundo apresentava uma seleco mais depurada de textos acadmicos. Vrios dos
intervenientes do colquio contriburam tambm para o livro coordenado por Jos
Maria Brando de Brito, ilustrando dessa forma a consolidao do campo de estudos do
processo revolucionrio.
Simultaneamente, os protagonistas do perodo continuaram a editar memrias e
testemunhos, prolongando frequentemente as principais clivagens e divergncias
daqueles dezanove meses, ilustrando a sua natureza conflitual enquanto momento de
gnese do regime democrtico vigente11
. J mais recentemente, merece destaque o
trabalho de recolha de testemunhos levado a cabo por Maria Manuela Cruzeiro junto de
trs dos principais protagonistas militares do processo revolucionrio, Francisco Costa
Gomes, Vasco Gonalves e Ernesto Melo Antunes12
.
No decurso deste processo de desenvolvimento da investigao acerca do processo
revolucionrio portugus pde ser observada uma tendncia para a sua inscrio numa
rea de estudos desenvolvida escala internacional e que podemos genericamente
denominar de estudos das transies para a democracia, fortemente influenciada pela
ideia de uma terceira vaga de democratizao decorrida entre os meados da dcada de
Setenta e o incio da dcada de Noventa, da qual a queda da ditadura em Portugal seria a
precursora e as liberalizaes ocorridas na Amrica Latina, juntamente com os
processos de democratizao na Europa de Leste, representaria o eplogo13
. Os trabalhos
do historiador Antnio Costa Pinto e do cientista poltico Phillip C. Schmitter, sobre o
11
Amaral, Diogo Freitas do, 1995, O Antigo regime e a revoluo memrias polticas (1941-1975),
Lisboa, Bertrand; Cunhal, lvaro, 1999, A verdade e a mentira na Revoluo de Abril (a contra-
revoluo confessa-se), Lisboa, Edies Avante!; Avillez, Maria Joo, 1996, Soares: ditadura e
revoluo, Lisboa, Pblico. 12
Cruzeiro, Maria Manuela, 1998, Costa Gomes: o ltimo Marechal, Lisboa, Crculo de Leitores; Idem,
2002, Vasco Gonalves: um general na revoluo, Lisboa, Editorial Notcias; Idem, 2005, Ernesto Melo
Antunes: o sonhador pragmtico, Lisboa, Editorial Notcias. 13
Huntington, Samuel 1991, The third wave - Democratization in the late twentieth century, Norman,
Oklahoma University Press
6
caso portugus, inserem-se claramente nesta perspectiva comparativa14
. Semelhante
abordagem tem o inquestionvel mrito de inserir os acontecimentos portugueses num
contexto histrico internacional mais amplo, sem deixar de gerar alguns problemas
interpretativos, ao comparar processos de natureza bastante distinta, privilegiando os
seus resultados em detrimento da sua dinmica histrica especfica e sugerindo um ciclo
temporal unificado onde possvel identificar, com relativa facilidade, conjunturas
bastante diferentes, cujo impacto sobre o prprio desenrolar dos acontecimentos parece
incontornvel. Significativamente, a crescente inscrio da interpretao do perodo
revolucionrio neste campo de estudos permitiu uma reabertura do problema da sua
caracterizao, como se a revoluo que Csar de Oliveira colocou cuidadosamente
entre aspas, pouco mais de um ms aps a sua ecloso, tivesse voltado assumir a sua
indeterminao original, transmutando-se numa mais genrica transio, caracterizada
pela sua natureza de ruptura contraposta natureza negociada do caso espanhol ou
da generalidade dos pases latino-americanos.
No cabe nesta introduo resolver ou sequer enfrentar o problema em toda a sua
complexidade e implicaes. O propsito antes o de sinalizar algumas da principais
tendncias da investigao mais recentes e posicionar-se relativamente a elas, como se
procurar fazer mais adiante.
Mais recentemente, assistiu-se a um surto de novos trabalhos publicados acerca da
revoluo portuguesa, resultantes de investigaes levadas a cabo no mbito de ps-
graduaes universitrias e que correspondem a uma nova fase de amadurecimento
14
Pinto, Antnio Costa, 2001, Enfrentando o legado autoritrio na transio para a democracia (1974-
1976), O pas em revoluo, Jos Maria Brando de Brito (Coord.), Lisboa, Editorial Notcias, pp.359-
384; Schmitter, Phillipe C., 1999, Portugal: do Autoritarismo Democracia, Lisboa, Imprensa de
Cincias Sociais
7
deste campo de estudos15
. sobretudo com esses trabalhos que esta tese procura
estabelecer um dilogo, ora complementando algumas das suas hiptese e concluses,
ora tentando seguir outras direces interpretativas, de maneira a oferecer do perodo
revolucionrio uma imagem altura da sua complexidade, essa actualidade, a de 1974-
75, poltica e historicamente densa sobre a qual escrevia Lus Trindade em 2004, num
artigo sugestivamente intitulado Os excessos de Abril16
.
***
Feito um balano, seguramente no exaustivo, dos rumos da investigao e debate
acerca do processo revolucionrio portugus, tempo de esclarecer e justificar as
hipteses, objectivos e opes desta tese. Grande parte das interpretaes do processo
revolucionrio tm reduzido este perodo a um confronto entre totalitarismo e
democracia, protagonizados, respectivamente, pela esquerda militar, o PCP e as
organizaes de extrema-esquerda, de um lado, e as foras do arco democrtico, do
outro. Semelhante ponto de vista tende a reduzir toda a dinmica do perodo a um
confronto poltico com contornos ntidos e precisos, em que organizaes, processos e
movimentos sociais se vm reduzidos a apndices e prolongamentos de dois grandes
sujeitos e respectivas estratgias.
Poder-se-ia esperar de um trabalho dedicado ao tema da nacionalizao do sistema
bancrio que se ocupasse sobretudo de questes financeiras e se debruasse
15
o caso, nomeadamente, das seguintes obras: Cerezales, Diego Palcios, 2003, O poder caiu na rua
crise de Estado e aces colectivas na Revoluo Portuguesa, Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais;
Gomes, Bernardino, S, Tiago Moreira de, 2008, Carlucci vs Kissinger Os EUA e a REvoluo
Portuguesa, Lisboa, Dom Quixote; Piarra, Constantino, 2008, As ocupaes de terras no distrito de Beja
(1974-75), Lisboa, Almedina; Pinto, Pedro Ramos, 2011, Lisbon Rising: The Politics of Urban
Citizenship in Portugal, 19281976, Manchester, Manchester University Press; Rezola, Maria Incia,
2006, Os militares na Revoluo de Abril - O Conselho da Revoluo e a transio para a democracia
em Portugal (1974-1976), Lisboa, Campo da Comunicao; Santos, Paula Borges, 2005, A Igreja e o 25
de Abril O caso Rdio Renascena (1974-75), Lisboa, Imprensa de Cincias Sociais; Varela, Raquel,
2011, A Histria do PCP na Revoluo dos Cravos, Amadora, Bertrand. A estas obras acresce uma tese
de mestrado por publicar: Prez, Miguel, 2009, Abaixo a explorao capitalista As Comisses de
Trabalhadores durante o PREC (1974-75), Lisboa, FCSH/UNL, Tese de Mestrado 16
Trindade, Lus, Os excessos de Abril, Histria, Abril de 2004, Ano XXVI (III Srie), pp.20-31
8
primordialmente sobre temas e problemas especficos ao sector. Como as pginas
seguintes procuraro demonstrar, contudo, falar da banca num contexto revolucionrio
(mas no apenas nesse contexto) implica dar conta de questes mais amplas, que vo do
campo poltico e social ao econmico. Este trabalho procura sublinhar a importncia de
elementos habitualmente remetidos para um lugar secundrio, reconhecendo no
processo revolucionrio outros sujeitos que no os partidos polticos, os militares e os
ministros dos seis governos provisrios, segundo a ideia de que uma revoluo se
caracteriza sobretudo pela velocidade e imprevisibilidade dos acontecimentos, pela
multiplicao dos espaos de participao e socializao poltica, pela emergncia de
novos sujeitos e actores histricos, pelo extravasar dos limites habitualmente colocados
aco colectiva e pela aspirao de (pelo menos) uma parte substancial da populao a
uma transformao ampla e profunda da sua vida quotidiana.
No se pretendeu seguir aqui um esquema interpretativo previamente definido pela
adeso a esta ou aquela escola historiogrfica ou tendncia interpretativa dos processos
revolucionrios. A tentao de descortinar no processo histrico elementos que sirvam
de confirmao a este ou aquele texto clssico - mais ou menos proftico e quase
sempre extremamente sedutor pairou constantemente sobre este trabalho e colocou-lhe
vrios desafios. No desejvamos, por um lado, que a crise revolucionria que
atravessou a formao social portuguesa se visse representada como uma mera
manifestao local de uma mecnica (ou dialctica) dos processos revolucionrios, que
se arrisca frequentemente a tornar-se teleolgica, sendo incapaz de dar conta do que h
de contingente (mas nem por isso irrelevante ou secundrio) em qualquer acontecimento
histrico concreto. Mas tambm no pretendamos partir interpretao desse
acontecimento histrico concreto (ou, mais rigorosamente, deste conjunto de
acontecimentos) sem algumas ideias claras, que nos permitissem seleccionar, entre o
9
vasto conjunto de informaes disponveis e documentos que nos propnhamos
consultar, os elementos fundamentais que poderiam tornar inteligvel esse
acontecimento e sublinhar a importncia que ele assumiu no seu tempo.
A opo tomada foi a de seguir algumas ideias chave trabalhadas por uma corrente
poltica, terica e historiogrfica internacional particularmente activa nas dcadas de
Sessenta e Setenta e que se destacou pela importncia que atribuiu s lutas sociais no
contexto dos pases industrializados no ps-guerra. O operasmo, que teve o seu
centro de gravidade em Itlia mas conheceu uma expresso significativa noutros pases
da Europa Ocidental e nos Estados Unidos da Amrica, resultou dos trabalhos de
desenvolvimento terico de algumas hipteses contidas nos escritos de Karl Marx
nomeadamente em O Capital e nos Grundrisse levados a cabo por pequenos grupos
de dissidentes do Partido Comunista Italiano e do Partido Socialista Italiano, agrupados
em torno das revistas Quaderni Rossi e Classe Operaia. Embora os desenvolvimentos
desta corrente tenham seguido inmeras direces e avanado diferentes formas de
interpretao dos problemas polticos, econmicos, sociais e culturais do seu tempo, o
seu texto fundador ou, se quisermos, o livro que sintetizou o conjunto da sua
experincia colectiva de reflexo terica, servindo de base para os seus
desenvolvimentos posteriores, foi Operrios e Capital, de Mrio Tronti17
. Nesta obra
publicada em 1966, Tronti props uma inverso da perspectiva com que habitualmente
se v representada a conflituosidade social, deslocando-a da margem para o centro da
anlise do modo de produo capitalista, sublinhando o seu papel decisivo enquanto
mola do desenvolvimento e da reconfigurao das relaes de produo:
Tambm ns prprios comemos por ver primeiro o desenvolvimento capitalista
e s depois as lutas operrias. um erro. Tem de se inverter o problema, mud-lo
17
Tronti, Mrio, 1976, Operrios e Capital, Porto, Afrontamento
10
de sinal, recomear desde o princpio: e o princpio a luta da classe operria. Ao
nvel do capital socialmente desenvolvido, o desenvolvimento capitalista
subordinado s lutas operrias, vem depois delas e a elas tem de fazer
corresponder o mecanismo poltico da sua prpria produo18
.
Esta proposio, avanada como uma nova hiptese de trabalho de pesquisa terica e
emprica (os operastas levaram a cabo numerosos inquritos entre populaes
operrias de diferentes empresas, sectores e regies), seria desenvolvida de forma mais
ambiciosa noutra passagem do mesmo livro:
Ora, a particularidade da mercadoria fora de trabalho, podemos agora dizer que
coincide com o facto de ela ser trabalho vivo associado ao capital e nele
objectivado, com o facto, portanto, de ser no s classe operria, mas tambm a
classe operria dentro da relao de produo capitalista: no se trata de trabalho
que cria riqueza e portanto reivindica a riqueza para si, mas de operrios que,
como classe, produzem capital e, como classe, podem portanto recusar-se a
produzir capital. O carcter particular da fora de trabalho, como mercadoria,
revela-se assim j no como um dado econmico passivamente incorporado na
existncia do operrio, mas como uma possibilidade poltica activa que a classe
operria tem em seu poder com a sua simples presena, como parte viva, no
interior do capital19
.
O comportamento da fora de trabalho assume nesta tese um lugar central. Tratou-se de
partir da seguinte hiptese: interpretar a nacionalizao da banca e o projecto de
transformao econmica, poltica e social implcito na formulao via portuguesa
para o socialismo, luz de uma contradio entre trabalho e capital que se vinha
18
Idem, p.93 19
Idem, p.249
11
exprimindo no interior da sociedade portuguesa, grosso modo, desde 1968 e que atingiu
o seu ponto culminante no perodo entre Maro e Novembro de 1975. O conceito de
composio de classe - empregue igualmente pelos operastas para descrever o
conjunto dos comportamentos da fora de trabalho na sua relao com as caractersticas
tcnicas da produo industrial e das formas polticas/jurdicas que possibilitam a
reproduo alargada do capital serviu-nos aqui para identificar a formao de um
sujeito colectivo capaz de polarizar, em torno das suas formas de luta e de organizao,
o conjunto da evoluo poltica e econmica portuguesa, condicionando o aparelho de
Estado e as estruturas empresariais a reconfigurarem-se em funo dos seus
movimentos e objectivos estratgicos.
A nacionalizao da banca e dos seguros foi aqui equacionada como uma profunda
descontinuidade introduzida na estrutura da economia portuguesa, uma acelerao do
alcance e da profundidade de uma revoluo que at a se afirmara socializante e
doravante se proclamaria socialista, impulsionada pela dinmica dos conflitos sociais
e pela inverso das relaes de poder nas empresas, no aparelho de Estado e nos campos
do Sul. Foi pois no articular do social e do poltico que se procurou situar esta esfera
econmica, pano de fundo dos avanos e recuos da revoluo, sem a qual a mesma
dificilmente pode ser interpretada, avanando uma caracterizao to sumria quanto o
possvel da estrutura econmica e social portuguesa deste perodo, na qual se procurou
sublinhar o facto que permaneceria invisvel se nos servssemos apenas de sries
quantitativas longas relativas evoluo do PIB sem nos debruarmos sobre a
especificidade da conjuntura pr-revolucionria dos anos finais do Estado Novo desta
sucesso de acontecimentos ter tido lugar num contexto de esgotamento do modelo de
industrializao portugus do ps-guerra e de uma aguda crise econmica escala
mundial.
12
***
A organizao interna desta tese sobretudo cronolgica. A primeira parte cobre o
perodo imediatamente anterior ao 25 de Abril de 1974 e divide-se em trs captulos. No
primeiro, procuramos dar conta do processo de industrializao do ps-guerra e do seu
impacto na formao social portuguesa, das caractersticas da poltica econmica do
Estado Novo e da configurao da estrutura empresarial portuguesa, com destaque para
os grandes grupos econmicos. No segundo captulo abordamos a conjuntura do
marcelismo, marcada pelas medidas iniciais de descompresso poltica, pelas
tentativas de modernizao do sistema corporativo e pela emergncia de um novo ciclo
de conflituosidade social que se prolongaria at ao perodo revolucionrio. O tema do
terceiro captulo a crise monetria e econmica mundial de 1971-1974 e o seu impacto
sobre a economia portuguesa.
A segunda parte debrua-se sobre os meses que vo de Abril a Setembro de 1974,
dividindo-se em trs captulos. No quarto captulo abordada a vaga de lutas sociais
que se seguiu ao golpe militar de 25 de Abril e se prolongaria at ao final do Vero de
1974, com uma expresso significativa escala nacional, ainda que visivelmente mais
forte na cintura industrial de Lisboa. O quinto captulo passa em revista as principais
coordenadas polticas deste perodo, dominado pelo conflito que ops o General Spnola
(e os militares agrupado em seu torno) Coordenadora do Programa do MFA, num
contexto de recomposio do aparelho de Estado. O sexto captulo trata do embate
decisivo para a radicalizao do MFA e da revoluo portuguesa, ocorrido no ltimo
fim-de-semana de Setembro de 1974 por ocasio da manifestao da maioria
silenciosa.
A terceira tese cobre o perodo entre Outubro de 1974 e Maro de 1975. O stimo
captulo procura delinear os contornos da deslocao da formao social portuguesa
13
para a esquerda, assinalando o reforo da interveno do Estado na esfera econmica e a
emergncia de uma segunda grande vaga de conflitos sociais, que colocou em causa a
questo do poder no interior das empresas. O oitavo captulo debrua-se sobre o golpe
militar derrotado de 11 de Maro, seguindo as suas variadas ramificaes e dando conta
das suas implicaes mais relevantes, a comear pelo tema principal deste texto, a
nacionalizao do sistema bancrio.
A quarta e ltima parte desta tese ocupa-se do que aconteceu na segunda metade do
processo revolucionrio, desde Maro at ao final de 1975. No nono captulo passa-se
em revista o processo de nacionalizaes no seu conjunto, procurando identificar a
lgica adoptada pelos decisores polticos, a formao de novos centros de poder nas
empresas e os problemas que resultaram deste significativo reforo da interveno do
Estado na economia. No dcimo captulo procura-se interpretar e descrever o lugar do
sistema bancrio e da sua reestruturao no quadro de uma projectada transio para
socialista. O dcimo primeiro captulo aborda o conflito que emergiu no interior do
Sindicato dos Bancrios do Sul e Ilhas (nova designao cunhada durante o processo
revolucionrio para o antigo Sindicato Nacional dos Empregados Bancrios do Distrito
de Lisboa), relativamente ao seu funcionamento interno e natureza das transformaes
a operar no sector bancrio, cristalizada nas eleies internas realizadas no final de
Agosto de 1975. O dcimo segundo e ltimo captulo desta tese, que lhe serve tambm
de concluso, aborda as principais decises tomadas pelo VI Governo Provisrio na fase
final do processo revolucionrio, passando em revista alguns dos dados acerca do
sistema bancrio e da situao da economia portuguesa na passagem de 1975 para 1976
e sugerindo um conjunto de hipteses para a sua interpretao, luz do debate acerca
das modalidades de transio para uma economia socialista tal como ele se processou na
poca.
14
15
I. A sociedade e a economia portuguesa no ocaso do Marcelismo
Um trabalho dedicado s transformaes econmicas, sociais e polticas decorridas
durante o perodo revolucionrio portugus de 1974-75 dificilmente poderia dispensar
uma anlise do perodo imediatamente antecedente, no sentido de identificar as
continuidades e descontinuidades, os problemas latentes e as caractersticas
fundamentais da sociedade e da economia portuguesas em vsperas da revoluo. No
este o espao para uma abordagem aprofundada do Marcelismo, do processo de
industrializao portuguesa posterior II Guerra Mundial ou da crise econmica
mundial de 1973. Estes tm sido objecto de inmeros trabalhos e investigaes
especializadas, de cujas concluses e resultados a nossa prpria investigao veio
beneficiar e para os quais remeteremos sempre que tal se revelar pertinente.
Pretende-se aqui, sobretudo, analisar algumas das caractersticas fundamentais do ciclo
de crescimento econmico situado entre 1950 e 1973, com particular destaque para as
relaes entre poder econmico e poder poltico, bem como para os aspectos mais
salientes da modernizao da formao social portuguesa e da sua insero na economia
mundial. No que respeita ao perodo Marcelista, enquanto ciclo poltico que assinala
a fase final do Estado Novo, interessam-nos sobretudo as motivaes, implicaes e
impasses do processo de liberalizao iniciado em 1968, o seu desenvolvimento e as
dinmicas polticas e sociais que o atravessam at Abril de 1974. Finalmente,
pretendemos debruar-nos sobre a crise econmica mundial que atinge o seu ponto alto
em 1973 e cujo impacto dificilmente pode ser ignorado na compreenso da situao da
economia portuguesa durante o perodo revolucionrio.
16
1. Crescimento, concentrao e internacionalizao (1953-1973)
1.1 Crescimento
Frtil em problemas e questes, o perodo que vai de 1953 (assinalado pelo incio do I
Plano de Fomento) at ao final do Marcelismo vem sendo olhado retrospectivamente
como nico no panorama econmico do sculo XX portugus. Num artigo de sntese
acerca do desempenho da economia portuguesa na segunda metade do sculo XX,
Pedro Lains assinalou como marco fundamental do desenvolvimento econmico
portugus o ano de 1963, em que pela primeira vez o valor da produo industrial
superou o da produo agrcola20
.
Passando em anlise a evoluo dos principais indicadores econmicos, destacam-se as
elevadas taxas de crescimento anual do PIB (uma mdia de 6,8% ao ano entre 1958 e
1973), ultrapassadas apenas pela Grcia e pela Espanha, bem como uma melhoria
generalizada e significativa do conjunto dos indicadores econmicos e sociais:
produtividade, salrios, escolarizao, consumo, formao bruta de capital fixo e outros.
O PIB per capita, que em 1960 correspondia a 275 dlares, ascendia em 1973 aos 1271
dlares21
. A estrutura do consumo alterou-se, sobretudo por via da urbanizao e da
industrializao, e, apesar das assimetrias desta alterao e do peso relativo que nela
assumiram os dois grandes centros urbanos, teve lugar uma modernizao do
quotidiano, dos padres de consumo e dos modos de vida, com implicaes decisivas no
plano poltico, econmico, cultural e social. Saliente-se a velocidade vertiginosa deste
crescimento quando comparada com os anos anteriores, cuja rapidez marcou
profundamente atitudes, mtodos e discursos, introduzindo novidades ao nvel da vida
20
Lains, Pedro, 1994, O Estado e a industrializao em Portugal, 1945-1990, Anlise Social, Vol.
XXIX (4.), n. 128, pp.931-932 21
Corkill, David, 2004, O desenvolvimento econmico portugus no fim do Estado Novo, A transio
falhada, Fernando Rosas e Pedro Aires de Oliveira (Org.), Lisboa, Editorial Notcias, p.215
17
quotidiana, do imaginrio, das representaes culturais ou das ideias polticas,
compondo um quadro social complexo e desigual.
Nesta abordagem pretendemos avanar uma descrio sumria de alguns dos elementos
fundamentais dessa transformao, com destaque para: (a) a planificao como
instrumento privilegiado da poltica econmica; (b) a evoluo sectorial da economia
portuguesa; (c) as transformaes no plano social.
a) O processo de industrializao havia sido inicialmente concebido na dcada de 30 - por
Ferreira Dias e pela ala tecnocrtica do Estado Novo - como esforo de
desenvolvimento autrcico, assente no desenvolvimento de infra-estruturas e indstrias
de base por iniciativa do Estado, no crescimento do mercado interno, na racionalizao
da produo agrcola e industrial e na modernizao geral da estrutura econmica
portuguesa sob a gide do poder poltico, atravs de uma ambiciosa orgnica de
planificao. Este projecto modernizador, em que a electrificao (por via do
aproveitamento de recursos hdricos) desempenhava um papel central, assentava no
pressuposto de que o desenvolvimento industrial teria um efeito de arrastamento sobre o
conjunto da economia.
O I Plano de Fomento (1953-1958), na sequncia das Leis n2002 e 2005 de 1944 e
1945 (da Electrificao e do Fomento e reorganizao industrial), procurara concretizar
estes objectivos, apesar do abandono de algumas medidas que punham em causa, de
forma flagrante, os interesses de camadas e grupos que constituam a base social do
Estado Novo nomeadamente no que toca racionalizao agrcola (rega,
modernizao tecnolgica, qualificao da fora de trabalho, alterao da estrutura
fundiria, aumento da produo), mas tambm no caso de alguns sectores industriais
altamente pulverizados e dependentes de tecnologia semi-artesanal.
18
Na passagem da dcada de 50 para a dcada de 60, a dinmica do comrcio mundial e a
adeso EFTA veio assinalar os limites desta concepo e redireccionar o processo de
industrializao portugus. O modelo de desenvolvimento auto-centrado deu
gradualmente lugar, no mbito e objectivos da poltica econmica, a uma crescente
aceitao da abertura ao exterior e da necessidade de incrementar as trocas comerciais,
evoluindo dos objectivos iniciais de substituio de importaes para os de aumento das
exportaes.
O II Plano de Fomento (1959-1964) explicitava j quatro objectivos fundamentais a
acelerao do ritmo de crescimento do produto nacional, melhoria do nvel de vida,
ajuda resoluo dos problemas do emprego e melhoria da balana de pagamentos
procurando responder a problemas fundamentais da formao social portuguesa sem pr
em causa os equilbrios que asseguravam a base de sustentao do Estado Novo. Parece
plausvel identificar nestes objectivos a necessidade de mitigar o descontentamento
social expresso nas eleies de 1958, a emigrao crescente e a dependncia externa em
produtos essenciais, sendo significativo o envolvimento directo de Marcelo Caetano
(ento Ministro da Presidncia) na sua elaborao, rodeado j de alguns dos elementos
que viriam a integrar a sua governao nas reas econmicas22
.
A abertura externa e a integrao da economia portuguesa no mercado mundial far-se-
iam sentir de modo mais claro no Plano Intercalar, que tomava como referncia a
metrpole e as colnias, assumindo como prioridade o crescimento do produto a nveis
acelerados. Aqui enunciavam-se os objectivos habituais de estabilidade da moeda, das
finanas pblicas e da balana comercial, deixando entrever os novos problemas da
integrao internacional (nomeadamente o investimento externo), da necessria reviso
do condicionamento e do estmulo da concorrncia
22
Rosas, Fernando, 1999, O Marcelismo ou a falncia da poltica de transio no Estado Novo, Do
marcelismo ao fim do imprio, J. M. Brando de Brito (Coord.), Lisboa, Editorial Notcias, p.30
19
O III Plano de Fomento, sucessivas vezes revisto, representou a maturidade da orgnica
e das competncias da planificao econmica do Estado Novo, exprimindo a afirmao
do sector tecnocrtico do regime e do seu projecto de modernizao econmica -
assente na articulao da actividade privada com as polticas pblicas, no reforo da
integrao da economia portuguesa no mercado mundial atravs de um aumento das
suas exportaes, no crescimento do produto interno, numa mais equilibrada repartio
dos rendimentos e na correco dos desequilbrios regionais.
Assinale-se que ao longo de todo o perodo o paradigma do equilbrio oramental e
monetrio se manteve intacto: de 1947 a 1973, a taxa mdia de inflao foi de apenas
3%, ainda que, como adiante poderemos observar, este perodo longo possa ser
decomposto em sries mais curtas, nas quais os ltimos anos do Estado Novo teriam
forosamente de ser encaradas parte, com nveis inflacionrios na casa dos dois
dgitos. A preocupao de sustentar financeiramente uma guerra dispersa em trs
frentes, juntamente com a tentativa de constituio do espao econmico portugus,
procurando conciliar as contingncias da dependncia externa nomeadamente no que
dizia respeito Europa ocidental com o projecto imperial, no poderiam ter deixado
de servir de obstculo ou retardador do processo, ao imobilizar ou desviar uma
considervel massa de capitais dos investimentos pblicos e privados necessrios
concretizao dos objectivos econmicos.
A influncia do regime poltico e institucional sobre o processo de industrializao
portugus justamente destacada por Joo Csar das Neves num artigo relativo ao
crescimento econmico do ps-guerra:
O facto de os principais elementos da estrutura institucional portuguesa do ps-
guerra terem sido determinados pelo regime sado da revoluo de 1926 um
facto essencial para compreender a experincia portuguesa e os seus contornos
20
particulares. Em Portugal, as turbulentas dcadas europeias de 30 e 40 foram
governadas pela mesma estrutura institucional que a golden age dos anos 50 e
6023
.
b) Se considerarmos este processo de crescimento do ponto de vista dos diferentes
sectores, rapidamente constataremos os desequilbrios que o caracterizaram e que no
deixaram de representar um conjunto de obstculos que o limitaram a prazo.
A agricultura cresceu em mdia 1,5% ao ano entre 1958 e 1973, tendo conhecido nos
cinco ltimos anos (1968-73) uma quase estagnao, com um crescimento mdio anual
de 0,4%. O contributo da agricultura para o PIB viu-se assim reduzido, de 26,4% para
12,9% entre 1958 e 1973, perodo em que a percentagem da populao activa no sector
primrio passou de 43,6% para 26%. No total, o nvel de emprego na agricultura ter-se-
reduzido em cerca de meio milho de pessoas, sem que se verificassem aumentos de
produtividade assinalveis. Para ilustrar a profundidade do problema bastar referir que
80% das exploraes agrcolas asseguravam apenas 15% do total da produo e que
existiam em 1973, em mdia, 15 tractores por mil hectares de terra cultivada (para 65
tractores na Europa Ocidental, 30 na Grcia e 22 em Espanha)24
. O problema da
estagnao agrcola acarretava duas consequncias fundamentais, ambas relacionadas
com a crescente integrao da economia portuguesa no mercado mundial.
Por um lado, conduziu a um vasto processo de xodo rural, repartido entre a migrao
para os centros urbanos em expanso no territrio portugus e a emigrao para outros
pases do Norte e Centro da Europa (reforada a partir do incio da guerra colonial).
Este xodo veio retirar ao sector agrcola o seu principal factor produtivo o trabalho
ao mesmo tempo que, segundo Edgar Rocha:
23
Neves, Joo Csar das, 1994, O crescimento econmico portugus no ps-guerra: um quadro global,
Anlise Social, Vol. XXIX (4.), n. 128, p.1006 24
Santos, Amrico Ramos dos, 1989, Abertura e bloqueamento da economia portuguesa, Portugal
Contemporneo, Antnio Reis (Dir.), Vol.V, Lisboa, Edies Alfa, pp.125-127
21
... as remessas dos emigrantes se tornaram uma importante fonte de receitas
(especialmente nas reas mais afectadas pela emigrao) para as famlias rurais,
o que explica que a explorao agrcola e seu desenvolvimento se tenham
tornado factores bastante menos cruciais para a sobrevivncia e relativo bem-
estar de muitas daquelas famlias 25
.
Na ausncia de uma poltica de modernizao da produo agrcola nomeadamente de
uma reforma agrria com incidncia na estrutura fundiria e de uma mais ambiciosa
poltica de concesso de crdito -, bem como de mecanismos que canalizassem
prioritariamente as remessas dos emigrantes para o investimento no sector primrio, o
cenrio de estagnao tornava-se inultrapassvel.
Simultaneamente, as diferenas de crescimento entre o sector primrio e o sector
secundrio tiveram um impacto significativo sobre a balana comercial portuguesa, por
via da necessidade de importao de produtos alimentares, como destacou Luciano
Amaral:
Graas subida dos rendimentos urbanos induzida pelo desenvolvimento
industrial, o consumo, nomeadamente o alimentar, sofreu um razovel aumento
entre a dcada de 50 e a de 70. Em matria de alimentos, esse aumento foi-se
fazendo em benefcio dos chamados produtos agrcolas ricos carne, leite, ovos,
fruta, etc. e em detrimento dos mais pobres cereais, como o centeio, a cevada
e o arroz, mas tambm a batata, o vinho e outros. Produzindo principalmente
estes ltimos apesar de o fazer em proporo cada vez menor -, a agricultura
portuguesa foi mostrando muitas dificuldades em dar resposta mudana de
orientao na procura alimentar operada durante o perodo. Efectivamente,
25
Rocha, Edgar, 1979, Evoluo do dfice externo agrcola, particularmente no domnio alimentar, e
suas causas, Anlise Social, Vol. XV (4.), n. 60, p.851
22
embora a produo dos ditos produtos ricos tenha aumentado, com excepo da
produo de frutas, que cresceu a um ritmo muito aceitvel, as restantes
quedaram-se por ritmos lentssimos26
.
A indstria foi o sector que mais contribuiu para o crescimento do PIB, passando de
36,5% para 51,7% do total entre 1960 e 1973, vendo ainda a sua taxa de produtividade
aumentar em mdia 7,6% ao ano (com destaque para o crescimento mdio anual de 10%
entre 1970 e 1973). A industrializao portuguesa concentrou-se fundamentalmente em
cinco distritos do litoral (Lisboa, Setbal, Porto, Aveiro e Braga), onde estavam
reunidos 57% dos habitantes, responsveis por 70% do PIB e 81% do produto
industrial. Representou por isso uma significativa deslocao de populaes do campo
para os centros urbanos, nomeadamente a rea metropolitana de Lisboa, cujo
crescimento foi particularmente assinalvel neste perodo. Entre 1960 e 1973, a
percentagem da populao activa no sector secundrio passou de 28,7% para 36,7%.
A industrializao portuguesa do ps-guerra compe no entanto um quadro complexo e
difcil de definir sem dar conta das suas muitas contradies. Existiam grandes plos
industriais, bem apetrechados do ponto de vista tecnolgico, mas eram uma excepo
dentro do panorama geral, caracterizado pela dependncia dos baixos salrios, uma
fraca componente tecnolgica e uma excessiva especializao em sectores produtivos de
baixo valor acrescentado. O condicionamento industrial impedia ou desencorajava
novos investimentos em vrias reas produtivas, ao fixar preos e salrios e limitar a
concorrncia, com efeitos semelhantes aos identificados por Fernando Rosas
relativamente dcada de Trinta:
26
Amaral, Luciano, 1994, Portugal e o passado: poltica agrria, grupos de presso e evoluo da
agricultura portuguesa durante o Estado Novo (1950-1973), Anlise Social, Vol.XXIX (4), n128, p.
p.904
23
... o condicionamento iria funcionar como verdadeiro obstculo modernizao
e concentrao dos sectores industriais mais pulverizados e de menor
intensidade capitalstica, onde no avultavam claramente ncleos industriais
susceptveis de dinamizar o processo de monopolizao. Em tais situaes, o
condicionamento, por um lado, e a organizao gremial e cartelizada, onde
existia, por outro, constituir-se-iam em factor de perpetuao de empresas,
tecnologias e nveis de produtividade obsoletos, unicamente possibilitadas pelo
escamoteamento administrativo da concorrncia e pela consequente travagem
artificial da queda das taxas de lucro das unidades inviveis27
.
A esta pulverizao juntava-se a reduzida dimenso do mercado interno, resultante dos
baixos salrios, acentuando a orientao dos sectores mais modernos da economia
portuguesa para o exterior.
Nas grandes indstrias de base era geral a dependncia do proteccionismo estatal e a
prtica do monoplio, de direito ou de facto, como realou Joo Martins Pereira num
artigo dedicado Siderurgia Nacional:
altura de pr em relevo o facto, aparentemente paradoxal, de ter sido o
processo incipiente de integrao europeia, em princpio tendente liberalizao
das trocas e ao mercado livre, que esteve na origem de uma empresa industrial
fortemente apoiada pelo Estado e que, com a sua proteco (que veio a chegar
proibio de importaes), monopolizou durante dcadas o mercado de
laminados correntes em Portugal28
.
Somando-se s indstrias de base promovidas nos Planos de Fomento, viriam a surgir
ou a desenvolver-se novos sectores industriais como a metalomecnica, as indstrias
27
Rosas, Fernando, O Estado Novo nos anos 30 (1928-1938), Estampa, Lisboa, 1986, pp.209-210 28
Pereira, Joo Martins, 2002, Como entrou a siderurgia em Portugal, Anlise Social, Vol.XXXVII (Inverno), n165, pp.1186-1187
24
elctricas, a qumica pesada, as celuloses e a maquinaria, que vieram complementar os
sectores tradicionais dos txteis e vesturio, do calado, da cortia e dos produtos
alimentares (vinho, conservas e concentrado de tomate). O processo de electrificao
assumiu particular impacto neste crescimento industrial, ao garantir uma fonte de
energia consideravelmente mais barata e abundante do que a traco a vapor (que
acentuava a dependncia relativamente ao carvo importado). Teve para alm disso um
impacto significativo, sobretudo na dcada de 50, sobre o sector de maquinaria e
equipamento pesado, ao recorrer abundantemente a fornecedores nacionais para a
construo de Centrais Hidro-Elctricas29
. Finalmente, permitiu a electrificao de redes
de transporte urbano e suburbano, bem como da ligao ferroviria entre Lisboa e o
Porto.
Correspondendo ao que Amrico Ramos dos Santos designou como uma
industrializao de baixo nvel a indstria transformadora portuguesa era assinalada
pela forte concentrao, com quatro sectores a assegurar dois teros do produto e mais
de 60% da formao bruta de capital fixo em 1973: Metalomecnica e indstrias
elctricas (30,1% do produto), Txteis e calado (24,2%), Qumica (11,9%), Indstrias
alimentares e tabacos (10,1%)30
. Note-se que alguns sectores, cuja competitividade se
devia fundamentalmente aos baixos salrios, encarregavam-se de uma quota
significativa das exportaes, nomeadamente os txteis, os calados e os produtos
alimentares (conservas, concentrado de tomate e vinho), que somavam em conjunto
quase metade do valor das exportaes portuguesas31
.
29
Ribeiro, Jos Flix et all, 1987, Grande indstria, banca e grupos financeiros 1953/1973, Anlise
Social, Vol. XXIII (5.), n. 99, p.953 30
Santos, Amrico Ramos dos, 1989, Abertura e bloqueamento da economia portuguesa Portugal
Contemporneo, Antnio Reis (Dir.), Vol.V, Lisboa, Edies Alfa, p. 127 31
Idem, p.143
25
Por ltimo, o sector tercirio (comrcio e servios), registou um aumento significativo
ao nvel do emprego, passando no mesmo perodo de 27,7% para 37,3%, sem que tal
assumisse um impacto positivo ao nvel da percentagem do PIB, que decresceu de
38,4% para 36,1%32
. Neste crescimento destacaram-se fundamentalmente os sectores da
restaurao e hotelaria, dos transportes e comunicaes (com uma taxa mdia de
crescimento anual da Formao Bruta de Capital Fixo de 10,2% entre 1958 e 1973), o
sistema de ensino (com um crescimento de 10,4% do mesmo indicador entre 1969 e
1973) e de Sade (17,9%, tambm entre 1969 e 1973). De uma maneira geral, o sector
tercirio sofreu as alteraes mais profundas nos centros urbanos, onde emergiram
novas profisses e se expandiram actividades relacionadas com o desenvolvimento de
indstrias culturais, do sector pblico e de novos servios, observando-se um recuo
assinalvel de algumas actividades tradicionais, nomeadamente no sector do comrcio
de retalho e ambulante, bem como nos servios domsticos. O desenvolvimento do
turismo em territrio nacional teve um importante impacto no crescimento do sector dos
hotis e restaurantes, com as entradas anuais de estrangeiros em territrio nacional a
passar de 353 mil em 1960 para 4 milhes em 197333
. O seu impacto sobre os sectores
dos transportes e comunicaes (a par da crescente emigrao) tambm no pode ser
menosprezado.
Finalmente, o sector bancrio, que optamos por abordar em profundidade mais frente,
inserido na temtica da concentrao econmica, tambm registou durante este perodo
um crescimento assinalvel, com a multiplicao de agncias bancrias e o
desenvolvimento de uma rede de correspondentes em diversas localidades, a
complexificao dos produtos e servios e a consequente multiplicao da mo-de-obra
empregue. Entre 1960 e 1973, o volume de depsitos do conjunto das instituies de
32
Idem, p.131 33
Lopes, Jos da Silva, 1996, A economia portuguesa desde 1960, Lisboa, Gradiva, Lisboa, pp.104-105
26
crdito cresceu a uma mdia de 10% ao ano, com a proporo dos activos bancrios em
relao ao PIB a crescer de 51% para 93% a preos correntes34
.
c) Uma sociedade dualista em evoluo35. Foi assim que Adrito Sedas Nunes
caracterizou, ainda em 1964, a formao social portuguesa e as transformaes que esta
atravessava, sublinhando a divergncia entre um dinmico processo de industrializao
e crescimento urbano e uma progressiva estagnao da agricultura e do mundo rural.
Numa anlise que procurava encontrar as razes estruturais para o processo de xodo
rural em curso, Sedas Nunes acentuava o aspecto propriamente social do fenmeno,
contrapondo, imagem da ruralidade harmoniosa e da simplicidade camponesa que
caracterizava o discurso do Estado Novo, a atraco das oportunidades e perspectivas
que a sociedade moderna oferecia e que toda uma rede de contactos adensados e
todo um fluxo de informao incessantemente acrescida transmitia aos habitantes do
campo, incentivando-os a emigrar para as cidades do litoral ou para o estrangeiro.
Era todo um mundo novo que se formava nos centros urbanos em crescimento
nomeadamente as duas grandes reas metropolitanas de Lisboa e Porto onde
mentalidade, hbitos e atitudes culturais se transformavam sob o mpeto intenso da
industrializao.
Sendo o crescimento da populao assalariada um dos elementos mais marcantes deste
perodo, a anlise da evoluo salarial e, em geral, da distribuio de rendimentos, um
dos mais significativos indicadores das transformaes sociais neste perodo. A parte
dos salrios no rendimento nacional cresceu ao longo do perodo, passando de 37,8%
para 48% entre 1958 e 1973, ultrapassando os 52% se lhe juntarmos as contribuies
para a previdncia social. Tendo a distncia relativamente aos pases da OCDE
34
idem, p.106 35
Nunes, Adrito Sedas, 1964, Portugal: sociedade dualista em evoluo, Anlise Social, Vol. II, (n. 7-8, pp. 407-462
27
diminudo em 6%, assinale-se que em 1973 a percentagem equivalente era no Reino
Unido 74%, na RFA e na Frana 65% e em Espanha 55%. A esta evoluo no foi
estranha a alterao na estrutura da populao activa, com a taxa de assalariamento a
atingir os 75% em 1973, oscilando entre os 50% no sector primrio e os 90% no sector
tercirio. Os salrios reais cresceram em Portugal 4,2% entre 1958 e 1973, registando a
indstria transformadora o maior crescimento neste perodo (6,7%), acompanhada pelas
comunicaes, transportes, pescas, indstrias extractivas, electricidade e construo
civil36
. Sublinhe-se que este crescimento no impediu um desequilbrio considervel na
distribuio do rendimento disponvel de sector para sector, registando o sector tercirio
a repartio mais favorvel aos assalariados e o primrio a mais desfavorvel. Em 1973,
os salrios na banca eram ainda cerca de quatro vezes superiores aos da agricultura.
Mas, mais do que os desequilbrios entre sectores econmicos, era o desequilbrio
central na repartio do rendimento, entre detentores de Capital e vendedores de fora
trabalho, que implicava limites ao processo de desenvolvimento econmico, como
sublinharia Alfredo de Sousa num artigo publicado em 1969:
Estes desequilbrios to profundos, no s recobrem situaes socialmente
injustas, como se revelam elas mesmas como obstculos ao desenvolvimento do
pas. A estrutura da repartio do rendimento e a evoluo do perfil da procura
devem ser consideradas atentamente, como aspectos fundamentais da estratgia
do desenvolvimento econmico e social; a dinmica do investimento e a
absoro do progresso tecnolgico nos esquemas produtivos concretos esto
36
Santos, Amrico Ramos dos, 1989, Abertura e bloqueamento da economia portuguesa, Portugal Contemporneo, Antnio Reis (Dir.), Vol.V, Lisboa, Edies Alfa, pp.109-150
28
fortemente dependentes dos nveis de salrios, da repartio funcional, pessoal e
espacial do rendimento37
.
Ainda segundo Alfredo de Sousa, a desigualdade na repartio do rendimento - uma
das mais pr-capitalistas da Europa - formava um perfil da procura que se traduzia
numa deformao da estrutura da produo, ao desviar uma significativa percentagem
de meios de pagamento para o consumo de bens importados e bloqueando o potencial
desenvolvimento do mercado interno:
Se a repartio de rendimento favorece as classes de mais altos rendimentos, os
acrscimos de despesa dirigem-se para a compra de bens mais elaborados com
incidncias sobre a importao, uma vez que, como as classes privilegiadas
constituem uma minoria estatstica, o mercado que elas formam para cada um
dos bens (cujo nmero alis aumenta e se diversifica) no suficiente para
introduzir o aparecimento de uma produo nacional; ou ento essa produo
faz-se a custos de produo elevados38
.
Esta profunda desigualdade na distribuio do rendimento o modelo portugus de
subdesenvolvimento para utilizar uma expresso avanada por Mrio Murteira39
- foi
um dos aspectos mais assinalveis do processo de industrializao e crescimento
econmico portugus. Em 1967, Xavier Pintado sublinharia o facto de as remuneraes
dos operrios portugueses serem, em termos reais, trs a seis vezes inferiores s dos
operrios da Europa industrializada, enquanto as do pessoal superior (tcnico e
directivo) das indstrias eram equivalentes ou superiores s do pessoal de idntico nvel
37
Sousa, Alfredo de, 1969, O desenvolvimento econmico e social portugus: reflexo crtica, Anlise
Social, Vol. VII, ns27-28, p.409 38
Idem, p.403 39
Murteira, Mrio, 1979, Desenvolvimento, subdesenvolvimento e o modelo portugus, Ed. Presena,
Lisboa, p.
29
hierrquico daqueles pases40
. Ensaiando em 1969 um esboo de caracterizao da
estratificao da sociedade portuguesa, Sedas Nunes e David Miranda chamariam
tambm ateno para as profundas desigualdades que a atravessavam, assinalando a
existncia de uma camada superior muito restrita e, abaixo dela, um perfil de
estratificao com a forma de uma pirmide aguada, na qual as camadas intermdias
no englobam mais do que uma pequena parcela da populao, sendo a larga maioria
desta constituda pelas camadas da base. 41
Apesar do inegvel crescimento econmico registado neste perodo, os indicadores
sociais fundamentais nas vsperas da revoluo descrevem uma sociedade que estava
ainda bastante longe dos padres de vida atingidos poca na Europa Ocidental,
incluindo nos pases menos desenvolvidos como a Espanha ou a Grcia, divergindo
mesmo destes em alguns aspectos (nomeadamente nas reas da sade e da educao).
Em Portugal, ao longo deste perodo, 60% dos gastos de um agregado familiar eram
efectuados no consumo de produtos bsicos como o calado, o vesturio ou a
alimentao, contra os equivalentes 32% em Frana ou 43% em Espanha. Cerca de 1/3
da populao no atingia o nvel dirio mnimo de protenas considerado fundamental e
50 em cada 1000 crianas morriam antes de ultrapassar a primeira infncia42
.
A sociedade portuguesa era atravessada, nas vsperas da revoluo, por fracturas,
antagonismos e desigualdades profundas, elementos estruturais do processo de
industrializao e crescimento econmico que ajudam certamente a compreender a
radicalidade dos movimentos sociais durante o perodo revolucionrio. A luta de
classes, que o regime poltico e as suas estruturas repressivas haviam procurado manter
40
Pintado, Xavier, 1967, Nveis e estruturas de salrios comparados: os salrios portugueses e os
europeus, Anlise Social, Vol. V, n. 17, pp. 57-89 41
Miranda, David e Nunes, Adrito Sedas, 1969, A composio social da populao portuguesa: alguns
aspectos e implicaes, Anlise Social, Vol. VII, 1969 (n. 27-28), p.370 42
Santos, Amrico Ramos dos, 1989, Abertura e bloqueamento da economia portuguesa Portugal
Contemporneo, Antnio Reis (Dir.), Vol.V, Lisboa, Edies Alfa, pp. 109-150
30
oculta e subterrnea, estava contida nas engrenagens do capitalismo portugus e
crescera com este.
1.2 Concentrao
Num livro publicado em 1973 e onde analisava a dimenso e o papel dos grandes
grupos na estrutura da economia, Maria Belmira Martins resumiria o aspecto mais
evidente da industrializao portuguesa:
... diga-se imediatamente que a economia portuguesa se caracteriza precisamente
por um grau de desenvolvimento muito baixo e um grau de concentrao muito
elevado (e em elevao). Isso porque as transformaes estruturais no
resultaram apenas do desenvolvimento das foras produtivas, mas foram antes
provocadas por uma interveno exterior (estatal) s possvel numa situao
poltica como a do nosso pas. Foi o condicionamento industrial, foram as
reorganizaes da indstria, as isenes fiscais e os outros apoios do Estado que
fizeram acelerar o processo de concentrao. a nova Lei de Fomento Industrial
e a sua poltica selectiva de crdito e de incentivos fiscais, so os mltiplos
apoios estatais aos empreendimentos considerados chaves que continuam a fazer
acelerar esse mesmo processo. Foi e a poltica seguida (nica, mas adaptada
evoluo da situao) que facultou, a um pequeno nmero de grupos, uma
enorme dimenso43
.
A partir da dcada de Cinquenta, a formao de grandes grupos empresariais tornou-se
um dos objectivos estratgicos da poltica econmica do Estado Novo que, procurando
promover a concentrao de actividades dispersas e altamente pulverizadas (sobretudo a
partir da subida ao poder de Marcelo Caetano), criou condies favorveis ao
investimento e permitiu, pela limitao da concorrncia ou pela sua abertura, que
43
Martins, Maria Belmira, 1973, Sociedades e Grupos em Portugal, Lisboa, Estampa, p.16
31
grandes empresas industriais ou grandes bancos modernizassem a economia
introduzindo novas tecnologias, qualificaes, mtodos produtivos, formas de
organizao do trabalho e tcnicas de gesto atravs de investimentos de risco
relativamente reduzido e com taxas de lucro sem paralelo na economia portuguesa,
estendendo a sua actividade por inmeros ramos de actividade, complementando cada
ramo e cada fase do ciclo produtivo a jusante e a montante. Na dimenso mundial em
que se integrava a economia portuguesa, a escala tornara-se um factor de importncia
primordial e o processo de concentrao econmica coincidiu com considerveis
aumentos de produtividade e de salrios, com o incremento da Formao Bruta de
Capital Fixo e com o crescimento do volume de exportaes. Surgiu assim um ncleo
monopolista da economia portuguesa, como sublinhou Amrico Ramos dos Santos:
No admira, pois, que a anlise do processo real nos mostre uma centralizao e
concentrao do capital crescentes a partir de 1960 e excepcionalmente intensa
nos ltimos seis/sete anos do regime. Ser neste perodo que os grandes grupos
monopolistas iro evidenciar uma dimenso verdadeiramente anormal para um
pas to pequeno. Concentrao que medida que se mostra em toda a sua
enormidade, vai deixando bem visvel uma estrutura agrcola e industrial
fortemente pulverizada e inerte44
.
A articulao entre o sector financeiro e a indstria assumiu um papel decisivo para a
configurao destes conglomerados, formados a partir da expanso de grupos de base
industrial que procuravam estender o seu controlo ao sector bancrio, ou de grandes
bancos comerciais que multiplicavam e diversificavam os seus investimentos
industriais. O seu processo de formao assentou fortemente no controlo de sectores
estratgicos da actividade econmica, ao abrigo do condicionamento e beneficiando de
44
Santos, Amrico Ramos dos, 1977, Desenvolvimento monopolista em Portugal: 1968/73, Anlise
Social, Vol.XIII, n49, Lisboa, ICS, pp.80-81
32
tabelas de preos fixadas pelo Estado acima dos seus valores internacionais. O seu
processo de acumulao via-se no entanto limitado pela reduzida dimenso do mercado
interno, o que impunha a sua aplicao noutros sectores produtivos, inicialmente
complementares da actividade inicial, mas que dela se afastavam medida que cresciam
e, necessariamente, se diversificavam os investimentos, at chegar ao sector financeiro.
O percurso inverso assumiu caractersticas semelhantes, pela necessidade sentida por
certos bancos comerciais - at a ocupados sobretudo no financiamento do comrcio de
import/export por via das suas ligaes ao capital comercial - de prolongar a sua
actividade ao investimento produtivo directo ou indirecto, por via das elevadssimas
taxas de lucro que este propiciava.
As vantagens desta relao entre banca e indstria foram assinaladas num artigo
colectivo de Jos Flix Ribeiro, Lino Gomes Fernandes e Maria Manuel Carreira
Ramos, publicado na Anlise Social:
Vrias eram as vantagens que os grupos industriais podiam retirar do controlo
sobre bancos: permitia uma muito maior flexibilidade na utilizao do cash-flow
anualmente libertado pelas empresas industriais do grupo e no empregue no
investimento nos sectores onde se originava, podendo a sua utilizao ser
optimizada pela combinao com capitais alheios centralizados no banco a um
custo baixo; contribua, pelas relaes de dependncia de crdito que gerava,
para tornar mais fcil a tomada de controlo sobre outras empresas situadas em
reas de interesse estratgico dos grupos; e, obviamente, aumentava tambm a
capacidade de negociao em relao ao resto da banca nacional e aos credores
internacionais. Por sua vez, os grupos industriais forneciam aos bancos a que
estavam associados vrios apoios para o crescimento dos seus negcios:
ofereciam-lhes a possibilidade de seguirem uma poltica de dividendos baixos e
33
forte autofinanciamento, que sustentava um crescimento mais acelerado do que o
dos bancos tradicionais, e propiciavam um volume muito elevado de operaes
comerciais, no s das empresas industriais do grupo, como de muitas outras
situadas a jusante e suas clientes obrigatrias nas reas em que aqueles detinham
uma forte presena industrial (p. ex.: fornecimentos agricultura e construo
civil)45
.
No final do perodo, uma parte substancial da economia portuguesa estava nas mos de
sete grandes grupos econmicos: Banco Nacional Ultramarino, Banco Fonsecas &
Burnay, Champalimaud, CUF, Banco Esprito Santo e Comercial de Lisboa, Banco
Portugus do Atlntico e Banco Borges & Irmo. Este ncleo monopolista do qual
se destacavam o Esprito Santo, o grupo Champalimaud e o grupo CUF pela sua
dimenso - articulavam-se ou coexistiam por sua vez com um conjunto de outras
empresas e grupos de menor dimenso, permitindo a 44 famlias controlar parte
substancial da economia. Em 1973, das 411 empresas com volumes de vendas
superiores a 30 000 contos, 300 pertenciam ao ncleo monopolista que, para alm do
controlo sobre matrias-primas fundamentais e indstrias de base, passara a controlar os
principais meios de transporte e o sector financeiro (80% da banca e 55% dos seguros).
Controlavam ainda: 8 das 10 maiores empresas industriais e metade das empresas com
capital superior a 500 000 contos; as cinco principais empresas exportadoras; os quatro
sectores industriais com maior produtividade, taxas de lucro e capacidade tecnolgica
(cerveja, tabacos, papel e cimentos); as indstrias base fundamentais (energia, qumica,
construo e reparao naval, siderurgia e metalomecnica pesada)46
. Segundo Joo
Martins Pereira, seria precisamente nos sectores mais fortemente concentrados, onde se
45
Ribeiro, Jos Flix, et all, 1987, Grande indstria, banca e grupos financeiros 1953-73, Anlise Social, Vol. XXIII (5), n99, p.966 46
Santos, Amrico Ramos dos, 1977, Desenvolvimento monopolista em Portugal: 1968/73, Anlise
Social, Vol.XIII, n49, Lisboa, ICS, pp.76-90
34
verificavam posies dominantes acentuadas, privilgios ou situaes de
monoplio/oligoplio, que se registariam as mais elevadas taxas de lucro, obtendo os
investimentos vultuosos (necessrios em bens de equipamento e matrias-primas
fundamentais) uma elevadssima remunerao por via da ausncia de concorrncia e por
uma fixao de salrios e preos extremamente favorvel47
.
Se no sector secundrio se encontravam neste perodo as mais elevadas taxas de
acrscimo de produtividade, de crescimento da Formao Bruta de Capital Fixo e da
massa salarial, bem como o maior contributo para o crescimento do PIB, era atravs do
sector financeiro que os grupos monopolistas obtinham parte substancial dos seus
lucros, complementando a sua actividade produtiva com a captao de poupanas,
remessas de emigrantes e investimentos concentrados na banca ou nos seguros. Nos
grupos mais modernos, uma sociedade financeira/Holding geria os investimentos e as
participaes em empresas dispersas por vrios ramos de actividade, segundo uma
lgica moderna de especializao de actividades, reveladora da dimenso e
complexidade da sua actividade econmica:
Nos grupos onde o grau de estruturao se encontrava mais adiantado assistia-se
criao de um novo plo de irradiao autnomo, mas subordinado s
orientaes da empresa--lder. So as sociedades holding. Registe-se, de igual
modo, que alguns grupos familiares comeavam tambm a lanar a sua holding
como coordenadora da actividade financeira. Anotemos na primeira hiptese a
constituio da Sogefi (CUF), a da Rodes (Fonsecas & Burnay) e a da Sogin
(Pinto de Magalhes). No segundo caso teremos exemplos na Eminco (Mendes
de Almeida), na Sonacin (M. Bulhosa) e na So Ciro (M. Vinhas). Uma forte
articulao directa (administrao, planos de expanso, lugares-chave, etc.)
47
Pereira, Joo Martins, 1974, Indstria, ideologia e quotidiano: ensaio sobre o capitalismo em Portugal, Porto, Afrontamento, pp.168-174
35
encontrava depois entre a empresa-lder e as estruturas financeiras do grupo
(banco e seguradora). Era a partir deste quadrado fundamental (empresa-
lder/holding/ banco/ seguradora) que se processava o crescimento estrutural do
grupo48
.
A articulao do sector financeiro com a indstria, promovida pela concentrao
monopolista, permitia aos grupos econmicos condicionar atravs do crdito a
generalidade da actividade econmica. O aumento exponencial dos depsitos e a
concorrncia da banca comercial ao nvel das taxas de juro dos depsitos a prazo
(permitida at 1965, quando o Decreto-Lei 46 492, de 18 de Agosto veio vedar aos
bancos comerciais operaes passivas dessa natureza49
), a par do lanamentos de ttulos
de sociedades annimas, muitas vezes sobrevalorizados por manobras financeiras
(aquisio de carteiras de ttulos acima do seu valor nominal com crdito concedido
pelos bancos dos prprios grupos ou atravs da aplicao de fundos de investimentos
das seguradoras que estes controlavam), multiplicaram os capitais ao servio dos
grandes econmicos que, pela sua dimenso, actividade e extenso, se tornaram os
verdadeiros organizadores do investimento privado em Portugal. O valor dos ttulos
transaccionados em Portugal atingiu 17,4 milhes de contos em 1973, correspondente
ao dobro do registado no ano anterior, sendo 1/3 desse valor transaccionado nos balces
de Bancos e casas bancrias50
. Muitas das empresas que registaram nos anos finais do
Estado Novo resultados contabilsticos apreciveis tinham na realidade estruturas
financeiras altamente deficitrias, apenas compensadas pelos ganhos especulativos
relacionados com emisses de ttulos, cujo valor nominal excedia largamente o seu
48
Santos, Amrico Ramos dos, 1977, Desenvolvimento monopolista em Portugal: 1968/73, Anlise
Social, Vol.XIII, n49, Lisboa, ICS, p.93 49
Dirio do Governo, n185, I Srie, p.1122 50
Santos, Amrico Ramos dos, 1977, Monoplios, capital financeiro e especulao: Cinco anos de
Marcelismo, Economia e Socialismo, n17, p.21
36
valor efectivo e que transitavam no interior dos grandes grupos econmicos em funo
necessidades de liquidez momentneas51
.
Correspondendo a apenas 5,7% do conjunto das empresas, as sociedades annimas
detinham, em 1973, 75% do capital e 46% da receita total do sector privado52
. Este
processo de concentrao econmica podia ainda ser identificado atravs de outros
indicadores. Em 1959 existiam 6386 micro-sociedades (capital social at 10 contos),
nmero que baixaria para 4810 em 1968, para se quedar em 3577 no ano de 1973. Nos
ltimos seis anos do Estado Novo, a mdia de desaparecimento foi de 263 empresas por
ano, enquanto no decnio anterior a 1968 a mdia se cifrava em 123 empresas. No
mesmo perodo, o capital mdio por sociedade constituda passara de 281 mil escudos
para 1,710 mil contos, nmeros que aumentam significativamente se tivermos em conta
apenas as sociedades annimas, onde se passara de 4 mil contos para quase 12 mil
contos. O nmero de sociedades com capital superior a cem mil contos quase duplicou,
passando de 65 para 120. O lanamento de sociedades annimas e a consequente
dinamizao do mercado de ttulos, foi um dos instrumentos privilegiados dos grandes
grupos no processo de concentrao econmica, com o objectivo de captar a pequena e
mdia poupana para projectos de expanso elaborados e decididos na lgica de
crescimento dos grupos, diversificar a suas estrutura atravs da penetrao em
sociedades j existentes ou do lanamento de novas em sectores estratgicos,
possibilitando, atravs de participaes cruzadas, uma aparente diluio do poder
monopolista e uma reduo da carga fiscal:
Esta acelerao particularmente visvel no sector financeiro (para o que contam
as prprias disposies legais), em que a sociedade annima domina
51
Idem, p.26 52
Santos, Amrico Ramos dos, 1977, Desenvolvimento monopolista em Portugal: 1968/73, Anlise
Social, Vol.XIII, n49, Lisboa, ICS, p.85
37
praticamente todo o sector na indstria transformadora, na construo civil e nos
servios. Tambm no comrcio crescente a participao da sociedade annima.
No comrcio por grosso, as sociedades annimas intensificam o seu controlo.
Em 1965 dominam 41 % do mercado e em 1973 a quota de mercado sobe para
55 %. O mesmo se poder dizer no comrcio a retalho, onde se constata uma
rpida multiplicao das cadeias